A Outra Afinação Do Mundo

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117 Jorge de La Barre | A outra afinação do mundo: os territórios sonoros a outra afinação do mundo: os territórios sonoros Jorge de La Barre resumo: A partir do exemplo de dois filmes da primeira metade dos anos 1990 nos quais a trilha sonora ocupa um papel importante na estrutura narrativa – Until the End of the World, de 1991, e Lisbon Story, de 1994 (ambos dirigidos por Wim Wenders) –, este artigo retoma algumas pre- ocupações refletidas nos trabalhos de Raymond Murray Schafer sobre as paisagens sonoras. Um dos eixos fundamentais do questionamento schaferiano – a sensação de desencanto decorrente da homogeneização dos sons nas cidades modernas – é recontextualizado para uma leitura do mundo sonoro em termos de territórios e de processos de territorialização. palavras-chave: Esquizofonia; Desencanto; Idiofonia; Paisagem sonora; Re-encanto; Ter- ritório sonoro. abstract: abstract: Departing from the example of two movies from the first half of the 1990s whose soundtrack plays an important role for the narrative structure – 1991’s Until the End of the World, and 1994’s Lisbon Story (both directed by Wim Wenders) – this paper explores some of the preoccupations reflected in the works of Raymond Murray Schafer on soundscape. One of the fundamental issues addressed by Schafer’s work – the sensation of disenchantment resulting from the homogenized sounds in modern cities – is recontextualized for an examination of the sonic world in terms of territories and processes of territorialization. keywords: Disenchantment; Idiophonia; Re-enchantment; Schizophonia; Soundscape; Sound territory. Uma leitura original das ideias desenvolvidas por Raymond Murray Schafer sobre as paisagens sonoras (Schafer, 1977) pode ser encontrada em dois filmes produzi- dos na primeira metade dos anos 1990 por Wim Wenders: Until e End Of e World (Até o fim do mundo), e Lisbon Story (O céu de Lisboa), respetivamente de 1991 e 1994. 1 Os dois filmes ilustram interessadamente um dos eixos fundamentais do questionamento schaferiano: a sensação de desencanto decorrente da homoge- neização dos sons nas cidades modernas. A preocupação wendersiana não é des- semelhante. Considerados em seguida, os dois filmes sugerem um jogo de espelho de desencanto/re-encanto, no qual o registro sonoro documenta de forma deter- 1 Este artigo é uma versão revista e aumentada de uma palestra proferida em novembro de 2011 no NARUA (Núcleo de Estudos Artes, Rituais e Sociabilidades Urbanas – UFF/PPGA). O autor agradece o Professor Fernando Morais por ter discutido, numa palestra anterior, as paisagens sonoras de Schafer a partir do exemplo de Lisbon Story, o que motivou a elaboração da presente “resposta”.

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A Outra Afinação Do Mundo

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    a outra afinao do mundo: os territrios sonorosJorge de La Barre

    resumo: A partir do exemplo de dois filmes da primeira metade dos anos 1990 nos quais a trilha sonora ocupa um papel importante na estrutura narrativa Until the End of the World, de 1991, e Lisbon Story, de 1994 (ambos dirigidos por Wim Wenders) , este artigo retoma algumas pre-ocupaes refletidas nos trabalhos de Raymond Murray Schafer sobre as paisagens sonoras. Um dos eixos fundamentais do questionamento schaferiano a sensao de desencanto decorrente da homogeneizao dos sons nas cidades modernas recontextualizado para uma leitura do mundo sonoro em termos de territrios e de processos de territorializao.palavras-chave: Esquizofonia; Desencanto; Idiofonia; Paisagem sonora; Re-encanto; Ter-ritrio sonoro.

    abstract: abstract: Departing from the example of two movies from the first half of the 1990s whose soundtrack plays an important role for the narrative structure 1991s Until the End of the World, and 1994s Lisbon Story (both directed by Wim Wenders) this paper explores some of the preoccupations reflected in the works of Raymond Murray Schafer on soundscape. One of the fundamental issues addressed by Schafers work the sensation of disenchantment resulting from the homogenized sounds in modern cities is recontextualized for an examination of the sonic world in terms of territories and processes of territorialization.keywords: Disenchantment; Idiophonia; Re-enchantment; Schizophonia; Soundscape; Sound territory.

    Uma leitura original das ideias desenvolvidas por Raymond Murray Schafer sobre as paisagens sonoras (Schafer, 1977) pode ser encontrada em dois filmes produzi-dos na primeira metade dos anos 1990 por Wim Wenders: Until The End Of The World (At o fim do mundo), e Lisbon Story (O cu de Lisboa), respetivamente de 1991 e 1994.1 Os dois filmes ilustram interessadamente um dos eixos fundamentais do questionamento schaferiano: a sensao de desencanto decorrente da homoge-neizao dos sons nas cidades modernas. A preocupao wendersiana no des-semelhante. Considerados em seguida, os dois filmes sugerem um jogo de espelho de desencanto/re-encanto, no qual o registro sonoro documenta de forma deter-

    1 Este artigo uma verso revista e aumentada de uma palestra proferida em novembro de 2011 no NARUA (Ncleo de Estudos Artes, Rituais e Sociabilidades Urbanas UFF/PPGA). O autor agradece o Professor Fernando Morais por ter discutido, numa palestra anterior, as paisagens sonoras de Schafer a partir do exemplo de Lisbon Story, o que motivou a elaborao da presente resposta.

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    minante as sensaes vividas pelos protagonistas em relao ao ambiente senso-rial. Na medida em que o re-encanto encontrado em Lisbon Story segue um ponto limite o desencanto encontrado no fim de Until The End Of The World , os dois filmes merecem ser considerados em seguida, numa continuidade narrativa.

    depois do road movie

    Tanto Until The End Of The World como Lisbon Story apresentam variaes sobre o tipo road movie embora com situaes diferenciadas e resultados distintos rela-tivos quilo que vai acontecer depois do road movie. Nos dois casos, chegamos a um destino, a um novo ponto de fixao. Um novo lugar de escolha para viver que se traduz em termos territoriais por uma reterritorializao mais ou menos bem sucedida. Esses momentos depois do road movie so radicalmente opostos: em Until the End of the World, o ponto de chegada um lugar obscuro, met-fora para o prprio fim do mundo representado por uma caverna-laboratrio na Austrlia, onde um gnio inventou uma tecnologia que permite gravar os sonhos das pessoas em formato vdeo para depois os sonhos poderem ser visualizados por outras pessoas. O filme construdo em duas partes (com intervalo musical entre as duas, concebido pelo prprio Wim Wenders): uma parte road movie de mais ou menos duas horas,2 decorrendo entre vrias cidades e autoestradas euro-peias; e uma segunda parte de fixao-territorializao na caverna-laboratrio no fim do mundo (na Austrlia). Nessa segunda parte bastante pesada e claustrof-bica, a leveza do road movie inicial se transforma numa experimentao que vira obsesso: a gravao dos sonhos, as dificuldades tcnicas, o sofrimento ocasio-nado pelos protagonistas sonhadores. Este fim do mundo sugere um acabamento justamente interminvel: o filme infinito feito de sonhos filmados, como se o fim do mundo estivesse precisamente encenado pelo desencanto, como se o sonho tecnolgico de ter a possibilidade de gravar os sonhos desse cada vez mais incio a um pesadelo sem fim.

    Por contraste, a histria de Lisboa contada em Lisbon Story uma histria de nova partida, de esperana renovada. O filme tambm comea com uma parte road movie, mas nesse caso o depois do road movie vem abrir espao para a pos-sibilidade do re-encanto. Um engenheiro de som alemo chega ao seu destino, Lisboa, com o projeto de documentar as paisagens sonoras justamente, depois de ter atravessado a Europa de carro vindo da Alemanha, e passando pelas autoes-tradas de Frana e de Espanha. A chegada ao novo lugar momento de abertura:

    2 Na sua edio europeia, a durao de Until The End Of The World de mais de trs horas.

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    aqui, o cu de Lisboa contraponto quase perfeito da caverna obscura do fim de Until The End Of The World. Assim, Lisbon Story sugere que preciso parar para se deixar encantar ou re-encantar pelo novo lugar de escolha. Portanto, temos aqui uma narrativa transversal juntando os dois filmes, cujas circumstncias, apesar de serem aparentemente semelhantes (as partes road movie, ambas ocorrendo na Europa), so radicalmente contrastadas.

    Se com efeito os dois filmes mostram uma Europa aberta e sem fronteiras, feita de autoestradas fluidas, de novas tecnologias interativas de tipo GPS, de teli-nhas de informao e comunicao integradas, de redes e terminais de computa-dores, eles sugerem tambm, no conjunto, uma forma de mediao integral, de hiper-realizao do mundo pela tecnologia. Datando de 1991, Until The End Of The World antecipa de fato a assinatura do Tratado de Maastricht em 1992, que vai con-sagrar a Europa dos cidados livres de movimento e circulao dentro do espao europeu. A parte road movie do filme encena claramente essa nova liberdade, mas o notvel entusiasmo do diretor alemo pelas virtudes supostamente emancipado-ras das novas tecnologias termina aqui. Com a ideia de caverna-laboratrio no fim do mundo da Austrlia onde uma tecnologia permitiria a gravao dos sonhos em vdeo, Wim Wenders considera tambm, alm do registro fico cientfica, uma potencialidade negativa: a da saturao, da exausto tanto da Europa como das tecnologias e o decorrente desencanto.

    Por contraste ainda, assistimos em Lisbon Story a um investimento ativo, uma territorializao afetiva do espao numa cidade pouco conhecida da Europa. Lisbon Story convida a um descobrimento lento, progressivo de Lisboa-cidade misteriosa e secreta, o que tambm precisamente condio de possibilidade para um re-en-canto europeu. Na Europa da livre circulao, unificada pelas redes e vias expressas e outras estradas da informao, Lisboa no ficaria muito longe da Alemanha, mas ao mesmo tempo ela representa um lugar distante em relao Europa mais moderna, mais conectada com o Norte. Chegando a Lisboa, o engenheiro de som alemo vai encontrar uma outra Europa, dentro dos limites do prprio espao europeu, com uma temporalidade diferente, e uma espacialidade diferente tambm; no conjunto, uma cidade um tanto afastada dos padres reconhecidos da Europa moderna e tecnocrtica. Ele vai descobrir esse outro ponto da Europa: uma espcie de quintal dos fundos, por assim dizer. Tanto como a Austrlia representava o fim do mundo em Until the End of the World, a Lisboa de Lisbon Story um pouco como o fim da Europa, onde a terra acaba e o mar comea como disse Cames. Ser que a possi-bilidade de re-encanto (ou o desencanto) se encontra justamente na chegada a um lugar limite simblico, onde uma transformao radical vai ser experimentada sem que, no entanto, a finalidade ltima estivesse bem definida?

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    Em Until the End of the World, o sentido dessa transformao no deixa espao para qualquer ambiguidade: a profuso tecnolgica do dispositivo de gra-vao dos sonhos acaba com a vida social. Assistimos ao fechamento definitivo do indivduo que vai se perdendo em si prprio na caverna simblica dos sonhos em comparao, a caverna de Plato era at prefervel. A este indivduo-monadizado custa-lhe lembrar e sonhar, ele tem que se concentrar para que os sonhos possam ser gravados adequadamente; ele vai ficar obcecado e cada vez mais afastado da realidade. O prprio mundo fora deixa de existir, dando espao integral ao dis-positivo tecnolgico de gravao puramente virtual, que vai fazer do indivduo sonhador um hbrido cansado, uma espcie de cmera subjetiva hipersubjetiva no caso , pela qual o indivduo reduzido a um crebro conectado aos seus pr-prios sonhos, mediados pelas telas de vdeo. Um mero crebro deprimido, exausto que vai sonhar gravando, e que vai gravar sonhando. Considerando o desencanto proporcionado, a brutal des-corporealizao dos indivduos nesse fim do mundo de Until the End of the World, o re-encanto que vamos encontrar em Lisbon Story no poderia ter sido mais oposto.

    lisboa, madredeus: o re-encanto wendersiano

    Entre outras cidades (Berlim, Londres, Paris...), Wim Wenders ter filmado cenas em Lisboa, para a realizao da parte road movie de Until the End of the World. Encantar-se por Lisboa, e ter decidido l voltar para dedicar um filme cidade branca. Nessa reterritorializao no quintal dos fundos da Europa, o realizador ale-mo tambm ter descoberto a msica que iria acompanhar e refletir de forma to compacta a narrativa do re-encanto que a cidade mais afastada ao Sul da Europa Ocidental vai-lhe proporcionar: a msica de Madredeus, e particularmente o disco Ainda, trilha sonora do filme (Madredeus, 1995). Literalmente, Wim Wenders vai imaginar a cidade de Lisboa atravs da msica de Madredeus. O filme representa de fato uma dupla e inseparvel homenagem cidade de Lisboa e msica de Madre-deus. De forma idealizada, esta ltima vai ocupar todo o cu de Lisboa, as sua ruas e sua gente, seus mistrios e seus segredos. De forma indissocivel, a msica de Madredeus causa e efeito do re-encanto wendersiano em Lisbon Story.

    importante lembrar que, nos dois filmes, o dispositivo tecnolgico de cap-tao, de gravao da realidade ocupa um lugar central, seja ele voltado para o mundo objetivo (a gravao dos sons da cidade de Lisboa pelo engenheiro de som alemo), ou pelo mundo subjetivo (a gravao dos sonhos pelo gnio na caverna-laboratrio no fim do mundo da Austrlia). Embora com resultados

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    obviamente opostos, a mediao tecnolgica e sua omnipresena so determinan-tes nos dois casos para a emergncia de novos sentidos e de novos significantes. Ser que poderemos de fato gravar um dia os nossos sonhos em formato vdeo? Ser possvel sonhar em paz? Ou no ser esse precisamente o fim do mundo, um fim impossvel, infinito? tecnologia de um futuro assustador vem responder a tecnologia do presente que, pela gravao dos sons, pela criao (to schaferiana) de paisagens sonoras na cidade, vai abrir espao para um re-encanto eventual, cuja traduo afinal muito simples: preciso estar atento, despretensiosamente e sem preconceito, pelo aqui e agora.

    Podemos ento estabelecer uma oposio ponto por ponto, entre os dois fil-mes, particularmente no que diz respeito aos momentos do depois do road movie, que resumimos na tabela seguinte (Tabela 1).

    tabela 1: Oposio entre Until The End Of The World e Lisbon Story

    Until The End Of The World (1991) Lisbon Story (1994)

    Caverna-laboratrio na Australia Cu de Lisboa, mar, rio Tejo

    O fim do mundo O fim da Europa

    O comeo do fim O comeo de algo de novo

    Dispositivo de gravao dos sonhos Dispositivo de gravao dos sons do mundo fora

    Pesadelo, desencanto Re-encanto

    Sons obscuros, torturados A msica de Madredeus

    Desterritorializao Reterritorializao

    Regresso no ventre maternal simblico da caverna, procura dos sonhos per-

    didos. A caverna obscura enquanto no lugar, simples laboratrio cuja vocao incentivar a dispora mental no universo dos sonhos tecnologicamente mediados; a caverna-laboratrio enquanto pseudoter-ritrio, cuja vocao a des-territorializa-

    o dos indivduos sonhadores

    procura de novos pontos de referncia no mundo real ali fora

    O prprio dispositivo de gravao dos sonhos representa um sonho tecnol-

    gico: sonho de transparncia perfeita a si prprio atravs da mediao tecnolgica, embora ao custo do desaparecimento da

    realidade fora

    Centralidade dos sons e da sua captao no processo exploratrio da cidade, que

    vai levar ao re-encanto

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    Hipersubjetividade, perda em si prprio, no labirinto do eu, do self, do prprio. A procura infinita e regressiva dos sonhos esquecidos. Mesmo quando re-encon-trados e por consequencia gravados,

    mediados, os sonhos sempre escapando qualquer noo de verdade, que no pode ser re-encontrada e ainda menos

    gravada. Contudo, a sensao de solido, o sofrimento

    A objetividade da gravao de sons enquanto atitude de abertura para o

    mundo

    Nessa narrativa transversal aos dois filmes, a viso de Wim Wenders fica bas-tante clara. O re-encanto no pode surgir da hipersubjetividade (que as novas tec-nologias tambm possibilitam); se re-encanto houver, ele s poder surgir quando o protagonista (o engenheiro de som alemo em Lisbon Story, no caso) estiver disposto a olhar de novo para os seus arredores, e escutar, estar atento ao mundo fora. O descobrimento ou redescobrimento do ambiente prximo a condi-o wendersiana para o re-encanto; a possibilidade para o re-encanto est contida (embora talvez escondida) na cidade: nas suas ruas e jardins, nas suas praas e largos, com sua gente, seus sons, seus sentidos.

    re-encanto, esttica etrea, cosmopolitismo

    Para Wenders, a msica lmpida de Madredeus, a voz cristalina de Teresa Salgueiro so significantes centrais que permitem recriar um sentido de lugar especfico, aqui representado pela cidade de Lisboa. J no so os sons annimos das mquinas, carros, caminhes, ou rudos de trnsito, que Schafer poderia ter gravado em qual-quer cidade do mundo, lamentando o fato de os sons das grandes cidades ficarem cada vez mais uniformizados. Aqui o realizador alemo est mais interessado em documentar os afetos sonoros que rementem para um sentido de pertencimento especfica ao lugar, da forma mais inequvoca possvel (logicamente, este tambm um exerccio tecnologicamente mediado). O fado new age de Madredeus vem informando o sentido de pertencimento direto e imediato cidade de Lisboa, que por isso tambm vai encantar o engenheiro de som alemo. Nesta Europa dos cidados do meio dos anos 1990, o sentimento de pertencimento dos cosmopolitas europeus a qualquer cidade sempre possvel, at desejvel. E Madredeus est de fato cantando para o mundo; o pertencimento ou seu sentido no remetem para uma propriedade exclusiva ao lugar. Wenders consegue transmitir a ideia de que o mundo os Alemes, Japoneses, Franceses, Espanhis,... vo descobrir Lisboa

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    atravs da msica de Madredeus. O que de fato aconteceu durante os anos 1990, auge do sucesso mundial da banda portuguesa, tanto como da cidade de Lisboa que, em 1998, hospedou a Exposio Universal.

    Nesse perodo, surge a ideia de que o fado, de uma forma geral, sobretudo sentido: ele fala, para alm do sentido das palavras cantadas em portugus incom-preensveis para o engenheiro de som alemo tanto como para qualquer mel-mano cosmopolita. Ele fala e por qualquer um, como j falava a voz de Amlia Rodrigues antes de Madredeus, ou como fala hoje em dia a voz de Mariza. Em Lisbon Story, a msica de Madredeus e a cidade de Lisboa so ao mesmo tempo inseparveis e para todo o mundo sentir e se identificar. Assim especificado, o espao sonoro da cidade e a dimenso dos afetos localizados, territorializados remetem para a magia do lugar. Mas eles tambm remetem para uma dimenso cosmopolita representada aqui pelo fado new age numa esttica que David Toop caraterizaria de etrea (TOOP, 1995).

    das paisagens sonoras aos territrios sonoros?

    Talvez tenhamos aqui uma dimenso paradoxal do territrio sonoro de Lisboa, mais uma vez mediado pela msica de Madredeus, e que valeria a pena explo-rar em outros contextos. Os processos de territorializao e de reterritorializao podem (e talvez devem) interessar qualquer um, seja ele ou no do lugar. Essa parece ser a narrativa, a histria de Lisboa de Wim Wenders, que tambm uma leitura sonora, indissociavelmente. Alm da viso/escuta de Lisboa/Madredeus, teriamos espao, em qualquer cidade, para um re-encanto acessvel a todos, com a participao de todos. Em outros termos, uma leitura idealizada (e tecnologica-mente mediada) do territrio em termos sonoros.

    As implicaes dessas formas de reterritorializao mereceriam ser questio-nadas. Para comear, questionemos a prpria forma do territrio sugerido aqui: um territrio flexvel? E que forma de ocupao? Uma ocupao sensvel, festiva? Estamos assistindo emergncia de uma passagem talvez irreversvel, das paisa-gens sonoras para os territrios sonoros, por enquanto eles so e sero cada vez mais territrios identificveis, previsveis, e planejados at. Em termos schaferia-nos, os sons do territrio j no seriam tanto uniformizados ou annimos (os sons de mquinas ou de carros em qualquer cidade). Eles se tornariam de repente significantes novos, de um aqui e agora numa cidade determinada (e no qual-quer cidade). Para Lisboa (e dentro de Lisboa a Alfama, a Mouraria, todos os bairros tradicionais do fado tradicional): a lngua portuguesa cantada, o estilo

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    e a harmonia do fado, que vo transmitindo inequivocavelmente o sentido de pertencimento ao lugar to procurado, pelos moradores e talvez mais ainda pelos turistas em busca de autenticidade... De fato, o fado em Lisbon Story que vai constituindo um territrio de significaes e de afetos, inclusive, e talvez sobre-tudo, atravs da mediao tecnolgica. As tecnologias, nesse sentido, so tambm tecnologias de imerso e de encanto.

    Se Schafer tinha medo da homogeneizao sonora das cidades (SCHAFER, 1994), ele provavelmente no teria medo desta paisagem sonora de Lisboa. O soundscape wendersiano de Lisboa tudo menos uniformizado: ele o especfico do lugar, ou pelo menos representado como tal o que talvez criaria em Schafer uma outra forma de medo: o medo da idiofonia, da (iluso de uma) correspon-dncia perfeita e hiper-realizada entre som e lugar. Mas o medo contemporneo no decorreria tanto dos sons ou do barulho (sejam eles uniformizados), tanto como do silncio. O silncio que parece ser ameaador hoje em dia. como se um territrio sem som tivesse uma dimenso a menos. O territrio silencioso seria vulnervel, susceptvel de ser invadido, literalmente ocupado por qualquer som alheio. Refletindo esse medo do silncio, o territrio contemporneo precisa ser ocupado, sonorizado. A reinveno do territrio contemporneo tem que ter a sua trilha sonora correspondente.

    Na equao Madredeus = Lisboa, a especificidade obviamente imaginada. Supe-se que, efetivamente, dimenso mgica da msica e dos afetos deve cor-responder uma dimenso equivalente da prpria cidade. Idealmente, a mise-en-scne (encenao) de Wim Wenders constri, atravs dos afetos da msica, uma Lisboa resignificada para o mundo e, se for possvel, mais ainda uma Lisboa para qualquer turista se re-encantar, fosse ele engenheiro de som alemo ou mesmo lisboeta, turista da sua prpria cidade.

    fora da esquizofonia: um aqui e agora feito som

    Nos olhos (e ouvidos) de Wenders e nos nossos tambm, a copresena espec-fica representada pela dupla portuguesa dos anos 1990 Lisboa e Madredeus sugere uma sincronia perfeitamente idealizada, hiper-realizada entre son e lugar. Tudo portanto menos a esquizofonia de Shafer, onde o som gravado est para sempre afastado do som original, no espao como no tempo. Aqui, pelo contrrio, a msica Lisboa e Lisboa a msica. Lisboa, cidade idealmente e integralmente representada pela msica de Madredeus. Alm da dimenso esquizofnica das paisagens sonoras, esta forma nova de reterritorializao hipermediada (e por isso

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    tambm hipereficaz em termos de imaginrio mercantil) implicaria o regresso a uma imaginao do territrio sonoro enquanto espao idiosincrtico idiofnico por assim dizer.3

    Para Wenders (e ao contrrio de Schafer, que no estava to preocupado em criar sentidos de lugares propriamente ditos), a resignificao do lugar, o poss-vel re-encanto so precisamente possibilitados pelo conjunto idiofnico lugar / som. Em Lisbon Story, essa idiofonia vai reproduzir (no sentido performativo) a cidade de Lisboa enquanto territrio sonoro, com os vrios significados associados: cidade luminosa, cidade a cu aberto, etc. Apesar (e talvez pelo fato) de ela ser tambm secreta e misteriosa, a prpria cidade aberta para o mundo: a msica de Madredeus prova disso. Estamos aqui longe da esquizofonia schaferiana, tam-bm materializada nos filmes de Wenders quando ouvimos, por exemplo, na parte road movie de Until The End Of The World, uns cantos pigmeus ou qualquer outra msica do mundo ou de rock alternativo, no rdio do carro que vai se deslocando com velocidade numa autoestrada qualquer. Esquizofonia schaferiana doravante banalizada pela profuso das paisagens sonoras privadas, cujo dispositivo tecno-lgico (iPod, celular...) permitiria uma forma renovada de experincia urbana (BULL, 2007). O que talvez afinal no est de fato muito longe do futuro assustador imaginado por Wenders no fim de Until The End Of The World: o futuro agora prximo dos hbridos monadizados que so os neoflneurs atuais com iPod, perdi-dos eles tambm num xtase tecnolgico pelo qual eles so sonhados mais do que sonham, a liberdade de circulao e de territorializao num espao urbano por eles flexibilizado. Mais do que uma experincia urbana, essa dispora mental nas paisagens sonoras privadas aparenta-se a um tecnossolipsismo: a virtualizao da experincia social assim consagrada, e podemos questionar o que que o hbrido flneur-iPod teria para dizer ao mundo.

    Mais uma vez, a dimenso voluntariamente idiofnica do processo de reter-ritorializao est perfeitamente refletida na escolha wendersiana unvoca de Madredeus para a trilha sonora de Lisbon Story, que contrasta com o impressio-nante ecletismo musical de Until The End Of The World. Talvez Wim Wenders quisesse sugerir com Lisbon Story, que o re-encanto s pode chegar quando acon-tecerem ressignificao e reterritorializao duas dimenses que, por definio, remetem para uma essencial centralidade do lugar especfico. Chegamos portanto ao momento idiofnico, s territorializaes sonoras que ilustram a reinveno de uma identidade forte entre lugar e som (apesar do prprio territrio ser de natu-

    3 Clment Rosset referiu idiotice do real: s existe um real, autossuficiente neste sentido, e em todo caso, sem equivalente a partir do qual ns poderamos compar-lo ou confront-lo (ROS-SET, 1977).

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    reza flexvel, aberto para o mundo, cosmopolita neste sentido). Em outras pala-vras, chegamos a um momento ps-esquizofnico, quando as paisagens sonoras so reinvestidas e reterritorializadas.

    Passamos ento de uma dimenso contemplativa das paisagens sonoras, a uma dimenso participativa dos territrios sonoros, ilustrada pelos processos de reterritorializao, apropriao, e corpo-realizao. A oposio entre paisagem e territrio pode ser resumida da forma seguinte (Tabela 2).

    tabela 2: Oposio entre paisagem sonora e territrio sonoro

    Paisagem sonora Territrio sonoro

    Contemplao Participatio

    Escapismo Apropriao

    Externo Interno

    Objetivo Subjetivo

    No momento em que a ocupao sonora do espao se torna metfora para uma ocupao integral, passamos do medo schaferiano da homogeneizao dos sons das cidades ao medo do silncio. Um silncio que representa uma ameaa, pois ele coloca o territrio em perigo de ser invadido, ocupado por qualquer som estrangeiro. Nessa conjurao de um silncio supostamente ameaador, as paisa-gens sonoras se tornam reterritorializaes sonoras via uma ocupao territorial particular: a ocupao sonora do territrio.

    referncias bibliogrficas

    BULL, M. Sound Moves: iPod Culture and Urban Experience. New York: Routledge, 2007.ROSSET, C. Le rel: trait de lidiotie. Paris: Minuit, 1977.SCHAFER, R. M.The Soundscape: Our Sonic Environment And The Tuning Of The World.

    Rochester, Vermont: Destiny Books, 1994.______. The Tuning Of The World. New York: Knopf, 1977.TOOP, D. Ocean of Sound: Aether Talk, Ambient Sound and Imaginary Worlds. London:

    Serpents Tail, 1995.

    referncias discogrficas e filmogrficasLisbon Story (DVD). Direo de Wim Wenders. Portugal/Alemanha: Madragoa Filmes/

    Road Movies Filmproduktion, 1994.Madredeus. Ainda (CD). EMI Portugal/Valentim de Carvalho, Lda. c1995.

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    Until The End Of The World (DVD). Direo de Wim Wenders. Alemanha/Frana/Austra-lia: Road Movies Filmproduktion/Argos Films/Village Roadshow Pictures, 1991.

    Until The End Of The World (CD). Trilha Sonora. Warner Bros/WEA. c1991.

    Recebido em 15.12.2011Aceito em 13.03.2012