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A AÇÃO PENAL POR CRIME TRIBUTÁRIO: NATUREZA JURÍDICA DA REPRESENTAÇÃO FISCAL E SEUS PRINCIPAIS EFEITOS THE CRIMINAL ACTION FOR CRIME TRIBUTARY: LEGAL NATURE OF THE FISCAL REPRESENTATION AND ITS MAIN EFFECT Plínio Antônio Britto Gentil Ana Paula Jorge RESUMO Relativamente aos crimes tributários definidos no art. 1º da Lei n. 8137/90, tratando-se de delitos materiais, ou de resultado, há exigência de previamente configurar a existência do crédito tributário como requisito necessário do possível crime. Essa configuração decorre da decisão final de um procedimento administrativo, conduzido pela autoridade fiscal, ou fazendária, seguindo-se a representação por ela oferecida, a fim de que possa ter início a persecução penal em juízo, com a propositura da ação penal, por meio da denúncia, e, conforme o caso e se houver necessidade de uma prévia investigação pela polícia, com a instauração do inquérito policial. Ocorre que as variadas maneiras de interpretar as normas que determinam a conclusão desse procedimento administrativo e da representação para validar o processo criminal conduzem a entendimentos diversos a respeito da natureza de tais atos administrativos, a que correspondem consequências jurídicas também diferentes. Assim é que a representação fiscal pode ser vista como condição de procedibilidade, de questão prejudicial ou de condição de punibilidade e, dependendo da ótica empregada, estarão fixados os seus efeitos jurídicos, bem como o caráter da respectiva ação penal, pública condicionada, ou pública incondicionada. Ainda na dependência do entendimento adotado, estará ou não autorizada a prisão em flagrante, suspender-se-á ou não o curso da prescrição, além de outros aspectos. PALAVRAS-CHAVES: CRIME TRIBUTÁRIO, AÇÃO PENAL, REPRESENTAÇÃO FISCAL. ABSTRACT Relatively to the crimes tributaries defined in art. 1º of Law N. 8137/90, being to material delicts, or result, has requirement previously to configure the existence of the credit necessary tributary as requisite of the possible crime. This configuration elapses of the final decision of an administrative procedure, lead for the authority fiscal, or financial, following it representation for offered it, so that it can have beginning the criminal persecution in judgment, with the bringing suit of the criminal action, by means of the denunciation, and, as the case and will have necessity of a previous inquiry for the policy, with the instauration of the police inquest. The one occurs that the varied ways to interpret the norms that determine the conclusion of this administrative 5698

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A AÇÃO PENAL POR CRIME TRIBUTÁRIO: NATUREZA JURÍDICA DA REPRESENTAÇÃO FISCAL E SEUS PRINCIPAIS EFEITOS

THE CRIMINAL ACTION FOR CRIME TRIBUTARY: LEGAL NATURE OF THE FISCAL REPRESENTATION AND ITS MAIN EFFECT

Plínio Antônio Britto Gentil Ana Paula Jorge

RESUMO

Relativamente aos crimes tributários definidos no art. 1º da Lei n. 8137/90, tratando-se de delitos materiais, ou de resultado, há exigência de previamente configurar a existência do crédito tributário como requisito necessário do possível crime. Essa configuração decorre da decisão final de um procedimento administrativo, conduzido pela autoridade fiscal, ou fazendária, seguindo-se a representação por ela oferecida, a fim de que possa ter início a persecução penal em juízo, com a propositura da ação penal, por meio da denúncia, e, conforme o caso e se houver necessidade de uma prévia investigação pela polícia, com a instauração do inquérito policial. Ocorre que as variadas maneiras de interpretar as normas que determinam a conclusão desse procedimento administrativo e da representação para validar o processo criminal conduzem a entendimentos diversos a respeito da natureza de tais atos administrativos, a que correspondem consequências jurídicas também diferentes. Assim é que a representação fiscal pode ser vista como condição de procedibilidade, de questão prejudicial ou de condição de punibilidade e, dependendo da ótica empregada, estarão fixados os seus efeitos jurídicos, bem como o caráter da respectiva ação penal, pública condicionada, ou pública incondicionada. Ainda na dependência do entendimento adotado, estará ou não autorizada a prisão em flagrante, suspender-se-á ou não o curso da prescrição, além de outros aspectos.

PALAVRAS-CHAVES: CRIME TRIBUTÁRIO, AÇÃO PENAL, REPRESENTAÇÃO FISCAL.

ABSTRACT

Relatively to the crimes tributaries defined in art. 1º of Law N. 8137/90, being to material delicts, or result, has requirement previously to configure the existence of the credit necessary tributary as requisite of the possible crime. This configuration elapses of the final decision of an administrative procedure, lead for the authority fiscal, or financial, following it representation for offered it, so that it can have beginning the criminal persecution in judgment, with the bringing suit of the criminal action, by means of the denunciation, and, as the case and will have necessity of a previous inquiry for the policy, with the instauration of the police inquest. The one occurs that the varied ways to interpret the norms that determine the conclusion of this administrative

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procedure and the representation to validate the criminal proceeding they lead the diverse agreements regarding the nature of such administrative acts, that also correspond different legal consequences. Thus it is that the fiscal representation can be seen as condition of procedibility, prejudicial matter or condition of punshability and, depending on the used optics, will be fixed its legal effect, as well as the character of the respective criminal action, public conditional, or not conditioned public. Still in the dependence of the adopted agreement, she will be or not authorized the caught in the act, will suspend or not it course of the lapsing, beyond other aspects.

KEYWORDS: CRIME TRIBUTARY, CRIMINAL ACTION, FISCAL REPRESENTATION.

Introdução

Esta pesquisa tem por objetivo analisar os principais aspectos que envolvem a representação da autoridade fiscal na hipótese de que o processo administrativo demonstre a ocorrência de um delito consistente na supressão ou redução de tributo. Refere-se a investigação àqueles crimes definidos no art. 1º da Lei n. 8137/90. Como a jurisprudência vem entendendo que tanto a representação quanto o processo administrativo são requisitos necessários para a propositura da ação penal, é preciso determinar as possibilidades de qual é verdadeiramente a natureza jurídica desses atos e, além disso, qual é o tipo de ação penal utilizada no processo decorrente da prática de um crime contra a ordem tributária.

É necessário ter ainda presente que não é só a jurisprudência que fixa a necessidade do procedimento administrativo fiscal como condição da ação penal: trata-se também de uma exigência legal, contida expressamente no art. 83 da Lei n. 9430/96. Essa exigência vem solucionar uma dúvida, antes existente, sobre a necessidade de esgotamento da via administrativa para, aí sim, iniciar-se a marcha do processo judicial.

Se, entretanto, lei e jurisprudência resolveram afirmativamente a questão de ser preciso um processo administrativo finalizado, com uma decisão definitiva constituindo o crédito tributário e, portanto, determinando a existência do tributo e da obrigação pendente do contribuinte, não há consenso acerca da natureza desses atos administrativos que obrigatoriamente antecedem o início da ação penal.

Desde logo se apresentam três alternativas: a representação fiscal constitui condição de procedibilidade, formalidade necessária para a propositura válida da ação; configura questão prejudicial, que, mesmo hipoteticamente não exigível, obstaria o início da ação, porque o tema do eventual processo depende da solução que a ela se der; ou então a representação da autoridade fiscal, após a decisão final do processo administrativo, é condição de punibilidade, sem a qual, mesmo ante uma hipotética condenação criminal, seria impossível aplicar pena ao agente do crime.

A verdade é que, dependendo do caráter que se reconhecer a tais atos administrativos, dever-se-ão admitir consequências jurídicas diferentes, com repercussão no processo e

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até mesmo na compreensão do direito material. Hipóteses haverá em que o curso da prescrição poderá ficar suspenso e também em que a ausência do procedimento administrativo anterior impedirá o aperfeiçoamento do crime enquanto tal.

Porque diante de tão variadas possibilidades o tema se apresenta, é que se justifica a investigação do assunto, visto sob a ótica doutrinária e jurisprudencial, de onde já se verifica a origem do principal referencial teórico buscado, valendo ainda frisar que o método utilizado na pesquisa é o dedutivo, considerando que a base para o estudo é a generalidade do tratamento dado à matéria, fazendo-se uma tentativa de se encontrar soluções para questões de natureza particular e específica, nem sempre com resultados conclusivos, já que muitas vezes a inclinação por uma solução não será capaz de excluir completamente a adoção de outra.

Ação penal em crime contra a ordem tributária: aspectos gerais

A Lei n. 8137/90, em seu art. 1º, define as infrações penais tributárias a que se refere o presente trabalho, assim entendidas como aquelas que têm por objeto a obrigação tributária, fruto de uma relação jurídica entre o contribuinte e a fazenda pública, decorrente da existência de um fato gerador. Este é “o conjunto dos pressupostos abstratos descritos na norma de direito material, de cuja concreta realização decorrem os efeitos jurídicos previstos”, na definição de Ruy Barbosa Nogueira (1976:121).

A aplicação concreta das normas incriminadoras, que descrevem os tipos penais e atribuem pena a seus agentes, depende do exercício do direito de ação. Tal direito de acionar alguém materializa-se no processo. Este contém a lide, que se caracteriza por uma pretensão e seu oposto: a resistência a ela. Nos termos do modelo adotado no mundo jurídico ocidental, o processo consiste numa relação triangular entre as partes, cujos interesses são conflitantes, e o juiz. Tendo superado o momento em que cada um exigia diretamente do outro o que entendia por seu direito, as partes vão ao juiz e a ele formulam as suas postulações. O juiz, agente do estado, devendo manter imparcialidade e equidistância das partes, aplica a norma ao caso, resolvendo a lide.

O direito de ação, em matéria criminal, é exercido principalmente pelo Ministério Público, que é o titular da ação penal pública e que, via de regra, não depende de condição alguma para apresentar a peça inicial do processo, provocando o juízo e fazendo mover-se a máquina judiciária. Se ocorrer da ação penal pública estar vinculada a uma manifestação de vontade do interessado, ou vítima, esta ação estará condicionada a um ato chamado representação. Normalmente é a própria norma penal incriminadora que determina a necessidade de representação, quando se trate deste ou daquele crime, assim tornando a ação penal pública em ação penal pública condicionada. Como sabido, a ação penal também pode ser de iniciativa privativa do ofendido ou, o que é incomum, ser subsidiária da ação pública, quando a vítima, ante a inércia do Ministério Público, exerce, ela mesma, o direito da ação.

A ação penal pública começa com o oferecimento da denúncia, peça que contém a acusação formal contra o réu. Ela deve descrever a conduta empregada por este e

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classificá-la de acordo com o dispositivo legal incriminador. No caso da ação penal pública condicionada, a representação da parte ofendida é requisito para que a ação seja validamente iniciada. Ela é tida, sob essa ótica e para uma parcela da doutrina, por condição de procedibilidade.

Nos crimes de supressão ou redução de tributo, previstos no art. 1º da Lei n. 8137/90, a decisão final no âmbito do procedimento administrativo fiscal, com a configuração definitiva do crédito tributário, assim como a representação ofertada pela autoridade fiscal, constituem requisito indispensável para o início da ação penal, ou mesmo do inquérito policial, para quem entende tais atos administrativos como condição de procedibilidade.

Dir-se-ia, portanto, que essa é uma espécie de ação penal pública condicionada. Condicionada, neste caso, à representação da autoridade fiscal, dirigida ao promotor, ou, mais provavelmente, ao delegado de polícia, a fim de que este fique legitimado a instaurar o inquérito e dessa maneira investigar a possível existência de infração penal, assim como sua autoria e circunstâncias. A autoridade policial não estará autorizada a promover tal investigação se não for provocada pela parte interessada, que, nessa hipótese, é a autoridade da fazenda pública que conduziu o procedimento administrativo fiscal. Caso a polícia, diligenciando a respeito de outro fato qualquer, tome conhecimento de elementos que possam configurar um delito tributário, deverá primeiramente encaminhar os dados de que dispõe à autoridade fiscal, a fim de que esta, se entender cabível, promova o processo administrativo, ao cabo do qual poderá evidenciar-se a prática de um crime, cuja materialidade estará em princípio demonstrada pela constituição do crédito tributário.

Vista a questão sob tal ângulo e considerando a ação penal decorrente de crime tributário como sendo da espécie pública condicionada, a representação da autoridade fiscal configura aquela condição de procedibilidade de que se falou, sem a qual não é possível instaurar o processo penal.

Mas a inclusão desse tipo de ação no elenco das ações penais públicas condicionadas não é um ponto pacífico, havendo quem, atribuindo outra natureza à representação da autoridade fiscal, a considere como ação pública incondicionada. Além disso, também existindo quem tenha tal representação por condição de punibilidade, pode-se acabar entendendo que a ação penal é condicionada, mas a um fato sem o qual não há interesse em agir do Ministério Público, que não pode, em consequência disso, dar início à formulação de sua pretensão em juízo. Ante todas essas possibilidades, adequado é investigar qual é, afinal, a natureza jurídica dessa representação e do fato que obrigatoriamente a antecede, que é o processo administrativo fiscal, definitivamente decidido e tendo assim formalizado a existência do crédito tributário.

A natureza jurídica da representação

1. Representação: condição de procedibilidade

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Dessa representação deve-se dizer que ela não decorre simples ou automaticamente da lavratura do auto de infração, pelo agente fiscal; ou seja, esta não é suficiente para a instauração da ação penal.

A representação, na verdade, é um ato administrativo vinculado, que contém a manifestação de vontade da fazenda pública, e para cuja validade é necessário um procedimento investigativo tendente a apurar a existência do delito. A representação, assim, somente é oferecida após o término de tal procedimento e quando dele decorra a constatação da existência de um crédito tributário pendente. Dir-se-ia que a representação é uma condição de procedibilidade que, por sua vez, tem a sua própria condição para existir validamente.

Vale dizer, para que a autoridade fiscal possa representar, visando à instauração do inquérito policial e do processo penal, é necessário que ela realize, no curso de um procedimento administrativo, no qual está assegurado ao contribuinte o exercício de ampla defesa, exame relativo à autoria do fato e à conduta do agente, agregando indícios do comprometimento da vontade deste com o resultado da sua atividade.

O legislador pareceu mesmo querer classificar a representação fiscal como condição de procedibilidade para a ação penal, eis que, fazendo coro com tal entendimento, advém, em 17 de dezembro de 1996, a Lei n. 9.430, com o claro propósito de frear a propositura indiscriminada de ações penais baseadas apenas em autos de infração, sem qualquer decisão administrativa.

Tudo indica que esse diploma foi editado com a finalidade de nortear o entendimento jurisprudencial e não deixar dúvida quanto à necessidade do prévio exaurimento da via administrativa. In verbis:

Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária, definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.

Parágrafo único. As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.

O reconhecimento da representação da autoridade fiscal como condição de procedibilidade e da decisão final do processo administrativo como condição daquela ensejou inúmeras discussões, tendo sido utilizado o argumento de que o dispositivo legal, ao confirmar a existência de uma condição de procedibilidade para a ação penal, estaria em conflito com o art. 16 da Lei n. 8137/90 e notadamente com o art. 129, I, da Constituição Federal[1], o qual estabelece que, competindo privativamente ao Ministério Público promover a ação penal pública, é a essa instituição que cabe apreciar

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a existência de crime, não devendo, para tanto, sujeitar-se às conclusões da autoridade administrativa para o eventual oferecimento da denúncia.

Ações para cuja propositura são exigidas condições de procedibilidade são forçosamente ações condicionadas. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, aparentemente decidindo contra legem, julgou no sentido de que o dispositivo do art. 83 da Lei n. 9430/96 não criava a imaginada condição de procedibilidade, reconhecendo que o Ministério Público poderia desencadear, desde que presentes os elementos suficientes, a ação penal antes do término do procedimento administrativo fiscal. E, mais ainda, editou súmula, de número 609, a estabelecer que “é pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal”.

É importante observar que o teor daquela decisão encontra-se hoje superado, não quanto à natureza da representação fiscal, mas quanto à sua inegável exigibilidade como pressuposto da ação penal. Também é preciso considerar que a súmula 609, ao qualificar como incondicionada a ação penal, está possivelmente recusando o caráter de condição de procedibilidade à representação fiscal, mas não negando a sua necessidade, nem tampouco do processo administrativo como instrumento de formalização do crédito tributário e requisito necessário à propositura da ação, não se contrapondo, portanto, ao disposto no mencionado art. 83 da Lei n. 9430/96.

2. Representação: Questão prejudicial

Ao comentar o posicionamento do STF que dispensava o processo fiscal e a representação como condição do oferecimento válido da denúncia, Hugo de Brito Machado fez as seguintes considerações:

Ainda na vigência da Lei nº 4.729/65, firmou-se a jurisprudência no sentido de que "é pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal." Ocorre que a referida lei definia a sonegação fiscal como crime formal ou de mera conduta, e por isto não era necessário determinar-se a ocorrência da existência de um tributo devido e não pago em razão do procedimento fraudulento do autor[2].

Assim foi que, a partir do enunciado da mencionada súmula 609, formou-se uma jurisprudência que, dizendo mais do que dizia a súmula, considerava desnecessária a decisão administrativa. Isso ocorreu, segundo tal autor, justamente porque se confundiu condição de procedibilidade com questão prejudicial[3].

Condição de procedibilidade é circunstância que se refere exclusivamente ao procedimento, constituindo requisito formal necessário para a movimentação da máquina judiciária no rumo de uma decisão final sobre a lide. Questão prejudicial, diversamente, relaciona-se com o direito material; vale dizer, no âmbito criminal diz

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respeito à existência do crime. A questão prejudicial pode ser entendida como uma pendência acerca de determinada matéria, a cuja solução está vinculada outra matéria; na hipótese da infração penal tributária, seria como considerar a constatação da existência do crime condicionada a outra providência, relacionada a um requisito do crime, qual seja, a formalização da existência de um crédito tributário, dependente de uma verificação por parte da instância administrativa fiscal. Neste caso, a infração penal está condicionada à verificação quanto à existência de uma infração tributária, o que é medida a cargo da autoridade administrativa.

Assim é que, segundo tal entendimento, contraposto àquela posição inicial do stf, relativamente aos crimes tributários previstos no art. 1º da Lei n. 8137/90, a propositura válida da ação penal depende da representação da autoridade fiscal. Não porque se trate de condição exigida como formalidade para o oferecimento da denúncia, mas porque, tendo natureza de questão prejudicial, não faria sentido intentar a ação penal antes de sua solução na via adequada, que é a administrativa. De tal sorte, conclui-se que a súmula 609 não deve ser aplicada para fundamentar decisões de matéria prejudicial tributária, de onde derivou a conduta delitiva, ou seja, não pode ser utilizada para afastar a necessidade da decisão que considera existente determinado tributo, que é requisito para a existência do crime.

Desta maneira, somente depois de esgotadas as instâncias recursais no procedimento administrativo é que se poderá verificar a ocorrência de supressão ou redução de tributos, momento em que se terá por caracterizada a materialidade delitiva, ou seja, o resultado do crime; em outras palavras, somente quando, tendo surgido a exigibilidade, resiste o contribuinte em efetuar o pagamento do tributo.

O entendimento doutrinário que conclui dessa maneira tem como pressuposto que a representação da autoridade fiscal após o término do processo administrativo que constitui o crédito tributário possui a natureza não de condição de procedibilidade, mas de questão prejudicial. De tal modo, a constituição do crédito tributário pela via própria não se relaciona à sequência de atos processuais capazes de levar à instauração de um processo válido, mas à própria existência do fato que pode justificar tal processo: o crime. Sendo assim, não seria logicamente possível reconhecer o crime – e iniciar o processo penal – antes que a única instância com capacidade técnica para isso, a administração tributária, demonstrasse a presença de um crédito para com a fazenda pública, que só ficará formalmente configurado por meio da decisão tomada no processo administrativo.

O caráter de questão prejudicial implica, segundo já se viu, em que o processo penal, antes de ter início, deve obrigatoriamente esperar por sua solução na instância administrativa. Mais ainda que isso, como a pendência de uma questão prejudicial impede a propositura da ação penal, é necessário concluir que, enquanto ela não for resolvida, não pode fluir, contra o estado, o prazo prescricional de tal ação, como verte do disposto no art. 116, I, do Código Penal, a literalmente estipular que “a prescrição não corre: I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime”.

Fazendo referência aos crimes contra a ordem tributária, o juiz federal Nélson Bernardes de Souza[4] compara o resultado consistente na supressão ou redução de tributo ao corpo de delito, que afinal se materializará com a decisão final do processo

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administrativo, requisito para o oferecimento (e recebimento) da denúncia, ao considerar que

Dispõem os arts. 158 e 167 do Código de Processo Penal sobre a indispensabilidade do exame de corpo de delito nas infrações que deixam vestígios. Nos crimes contra a ordem tributária, o resultado, seus vestígios (sua materialidade) se comprovam com a apuração final da existência de crédito tributário suprimido ou reduzido após o término do procedimento administrativo Seria o mesmo que, diante de um Boletim de Ocorrência em que se mencionasse que o indiciado efetuou seis disparos de arma de fogo contra alguém, se dispusesse o Ministério Público, desde logo, a ofertar denúncia por homicídio consumado, sem mesmo ter às mãos o laudo necroscópico, comprobatório da materialidade do delito[5].

Esse raciocínio ganha vigor ainda maior diante do disposto no art. 14 da Lei 8.137/90, combinado com o art. 34 da lei n. 9.249/1995, que obsta a instauração, ou a continuidade, da ação penal se o contribuinte devedor pagar o tributo e seus acessórios antes do recebimento da denúncia. É que, frente a essa norma, não há como reconhecer a validade de uma inicial acusatória oferecida antes do término do procedimento administrativo, o que levaria ao absurdo de se reconhecer uma obrigação tributária não satisfeita ainda na pendência de uma decisão que determine a existência de tal obrigação; seria algo como o contribuinte ter que pagar um tributo independentemente de o estar devendo.

Não cabe ao juiz criminal apurar a existência de tributos ou contribuições reduzidos ou suprimidos, mas à autoridade administrativa. A redução ou supressão, conforme analisado, é elementar do tipo, e uma vez que não há ação típica, não há que se falar em existência de crime, ou seja, não há crime tributário sem que seja reconhecida a existência do débito tributário.

Deve-se considerar que por meio de procedimento administrativo, no qual são observados os princípios do contraditório e da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), existe a possibilidade de discussão sobre a regularidade da constituição do crédito, com a garantia de duplo grau, o que reduziria, de uma certa forma, o estado de insegurança do contribuinte, certo que a sua inobservância poderia acarretar nulidade por cerceamento de defesa.

A propósito, o Supremo Tribunal Federal, (através do julgamento do HC 82.390, rel. Min. Sepúlveda Pertence) entendeu que o citado artigo 83 reconheceu a imprescindibilidade da declaração de exigibilidade do crédito tributário[6], por decisão final na esfera administrativa, podendo ensejar a anulação ou o trancamento da ação penal caso tais requisitos não sejam observados. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, II, C.C. ART. 11, DA LEI 8.137/90. AÇÃO PENAL. ART. 83 DA LEI N.º 9.430/96.

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CRÉDITO FISCAL. PENDÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE LANÇAMENTO DEFINITIVO. DELITO NÃO CONSUMADO. FALTA DE JUSTA CAUSA. TRANCAMENTO. PRAZO PRESCRICIONAL QUE NÃO SE INICIA. PRECEDENTES DO STF.

1. É cediça a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a decisão final na esfera administrativa, a teor do art. 83, da Lei n. 9.430/96, não é condição objetiva de procedibilidade para a propositura da ação penal por crime contra a ordem tributária.

2. Todavia, recentemente, nos autos do HC n. 81.611/DF, o Supremo Tribunal Federal, com sua composição renovada, por decisão plenária majoritária, reformou o entendimento até então prevalecente sobre o tema.

3. Acolhendo os judiciosos argumentos esposados pela Corte Suprema, tem-se que não há justa causa para a persecução penal dos crimes previstos na Lei n.º 8.137/90, quando o suposto crédito fiscal ainda pende de lançamento definitivo, uma vez que a inexistência deste impede a configuração do delito e, por conseguinte, o início da contagem do prazo prescricional.

4. A chamada "'representação fiscal para fins penais' ordenada à administração fiscal pelo dispositivo atacado [art. 83, da Lei n. 9.430/96], é mera notitia criminis, posto que obrigatória, e não condição necessária da propositura da ação penal"; e, sem ferir essa premissa, tem-se que "antes de constituído definitivamente o crédito tributário, não há justa causa para a ação penal quando se cuide de tipo penal misto alternativo do art. 1º da Lei 8137/90, que constitui crime de resultado" (ADIn n. 1.571-1, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 30/04/2004; ref. voto-vista do Min. Sepúlveda Pertence, grifo nosso)

5. Recurso desprovido. (STJ, REsp 660680 / SP RECURSO ESPECIAL 2004/0066960-8 Ministra LAURITA VAZ (1120), 19/05/2005, DJ 20.06.2005 p. 356).

2.1. Infrações tributárias: crimes materiais

É significativo que o aresto haja mencionado posicionamento anterior, embora modificado, a descaracterizar a decisão administrativa (e, consequentemente, a representação da autoridade fiscal) como condição de procedibilidade, e mais ainda que, para justificar a necessidade dessas providências administrativas, haja fixado o caráter do delito tributário em questão como crime de resultado, o que remete o estudo ao tema da classificação dos crimes quanto ao resultado da conduta. Assim, quando o agente produz, com a sua atuação, uma modificação no mundo físico se diz que o crime é material, porque, em outras palavras, provocou um resultado naturalístico; tal resultado é elementar do tipo penal, que não se verificará se ele não acontecer; ocorrendo, porém, de o tipo legal do delito contentar-se com uma conduta, tendente ou não a um resultado naturalístico, diz-se que o delito é, respectivamente, formal, ou de mera conduta.

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Ora, pressuposto do entendimento que considera a decisão administrativa e a representação como questão prejudicial – e também dos demais entendimentos aqui mencionados - é que as infrações definidas no art. 1º da Lei n. 8137/90 têm natureza de crimes materiais, isto é, que para se configurarem há necessidade de um resultado concreto. É porque será esse resultado que, no mais das vezes, justificará o reconhecimento do crédito tributário. Assim, por exemplo, se o sujeito suprimiu imposto, por deixar de emitir nota fiscal, é a importância suprimida que constituirá o objeto do crédito tributário, requisito da existência da infração penal.

Isto significa que, para a configuração do crime não basta que o agente tenha procedido de modo tendente a suprimir ou reduzir tributo, mas que tal supressão ou redução tenha efetivamente acontecido. Cuida-se de tratamento diferente do que a lei anterior (n. 4729/65) dava ao crime denominando de sonegação fiscal, em que o tipo penal definia uma conduta sem resultado e acrescentava um elemento subjetivo do tipo, como por exemplo através da expressão”com a intenção de eximir-se do pagamento de tributos...”, o que não exigia o resultado lesivo ao fisco, configurando-se o delito com a simples conduta tendente à obtenção do resultado financeiro desejado, ainda que este não fosse alcançado.

Agora, na disciplina do art. 1º da Lei n. 8137/90, o resultado configura questão prejudicial, no sentido de que sua solução exerce influência na análise da matéria subsequente e, portanto, precisa ser definida antes de se partir para o enfrentamento desta última. Falando do tema, é o mesmo Machado quem chama a questão de pré-judicial, no sentido óbvio de que, além de prejudicial, ela se resolve numa fase cronologicamente anterior à do processo judicial (2008:365).

Considere-se, por fim, que, em se cuidando de crimes de resultado, o qual somente será determinado com a decisão do processo administrativo, não é possível cogitar de estado flagrancial, ao menos no que respeita ao seu tipo mais comum, denominado flagrante real (art. 302, I e II, do CPP), eis que nem mesmo poderá haver convicção quanto à existência de uma infração penal.

2.2. Ação penal: pública incondicionada

Note-se ainda que, na esteira desse raciocínio, a ação penal por delito tributário não é pública condicionada, mas incondicionada, isto é, o Ministério Público não fica na dependência de uma manifestação de vontade do ofendido para oferecer a denúncia. A representação, em seguida à decisão final do processo administrativo, não é daquelas representações exigíveis a partir de dispositivos incriminadores, que sinalizam o tipo de ação penal para determinados crimes, sempre que esta não seja pública incondicionada. Diversamente disso, ela tem o caráter de solução de uma questão prejudicial. Por isso, é necessária não porque a lei exija como condição formal do procedimento, mas porque não há lógica em iniciar uma ação penal se a configuração do crime ainda não está definida.

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Ser a ação penal incondicionada não dispensa o Ministério Público de verificar a presença de requisitos que sustentem racionalmente a formulação de sua pretensão em juízo. Assim, partindo-se da premissa de que não há motivo razoável para a propositura da ação penal na ausência da representação da autoridade administrativa, deve-se concluir que falta justa causa para o recebimento da denúncia, a qual, se ainda assim for oferecida, será rejeitada pelo juiz, nos termos do art. 395, iii, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n. 11.719/08.

3. Representação: condição de punibilidade

Sempre entendendo ser necessário o esgotamento da via administrativa para intentar a ação penal por crime tributário, veem-se decisões considerando a constituição do crédito tributário pela autoridade fiscal como condição de punibilidade. Confira-se este julgado do Superior Tribunal de Justiça, que vai ao ponto de estender até mesmo ao inquérito policial o requisito da finalização do processo fiscal:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS [...] TRANCAMENTO POR AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA QUE SE IMPÕE.

I - O Plenário do Pretório Excelso ao julgar o HC 81.611/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJU de 13/05/2005, firmou o entendimento, que posteriormente veio a ser seguido também nesta Corte, de que nos crimes contra a ordem tributária a constituição definitiva do crédito tributário e consequente reconhecimento de sua exigibilidade (an debeatur) e valor devido (quantum debeatur) configura uma condição objetiva de punibilidade, ou seja, se apresenta como um requisito cuja existência condiciona a punibilidade do injusto penal. (Precedentes do Pretório Excelso e desta Corte).

II - Dessarte, o início da persecutio criminis in iudicio, ou até mesmo a instauração de inquérito policial somente se justificam após a constituição definitiva do crédito tributário, sendo flagrante o constrangimento ilegal decorrente da inobservância deste dado objetivo.

III - Na presente hipótese, conforme consta dos autos à época da instauração do inquérito policial atacado o crédito tributário não tinha sido constituído definitivamente, eis que não concluído na esfera administrativa o processo administrativo fiscal instaurado em face do auto de infração e imposição de multa lavrado em face da sociedade empresária relacionada com o paciente. Habeas corpus concedido. (STJ, 5ª T., HC 98318 / SP, HABEAS CORPUS, 2008/0003874-2 Ministro FELIX FISCHER (1109), 27/03/2008, DJ 05.05.2008 p. 1, grifo nosso).

E ainda:

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RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL [...] 1. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário, não há justa causa para a instauração de Inquérito Policial com base no art. 1o. da Lei 8.137/90, tendo em vista que os delitos ali tipificados são materiais ou de resultado, isto é, somente se consumam com a ocorrência concreta do resultado previsto abstratamente (redução ou elisão do tributo).

2. Devidamente comprovada nos autos a existência de discussão administrativa pendente a respeito da exigibilidade do débito, é de rigor o trancamento do Inquérito Penal, com a respectiva suspensão do prazo prescricional, haja vista a ausência de materialidade delitiva. [...] (STJ, 5ª T., RHC 22300 / RJ RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS 2007/0252460-3, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133), 17/04/2008, grifo nosso).

E mais ainda:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. DELITO MATERIAL. [...].

1. Antes de constituído definitivamente o crédito tributário, não há justa causa para a instauração de Inquérito Policial com base no art. 1o. da Lei 8.137/90, tendo em vista que os delitos ali tipificados são materiais ou de resultado, isto é, somente se consumam com a ocorrência concreta do resultado previsto abstratamente (redução ou elisão do tributo).

[...]

4. Recurso provido, em que pese o parecer ministerial, para determinar o trancamento da Ação Penal instaurada em relação ao recorrente, suspendendo-se o prazo prescricional, até julgamento definitivo do processo administrativo fiscal. (STJ, 5ª T., RHC 22300 / RJ, RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS, 2007/0252460-3, Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133), Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO (1133), DJ 05.05.2008 p. 1, grifo nosso).

Assim, tanto nos crimes contra a ordem tributária como nos crimes previdenciários, a denúncia deve conter, além dos requisitos gerais previstos no artigo 41 do Código de Processo Penal, a prova constitutiva definitiva do crédito tributário. Ressalte-se que o crédito não pode se encontrar extinto.

O auto de infração não constitui prova suficiente da materialidade nem da autoria do crime, sendo necessária a apuração regular da existência de indícios suficientes entre a

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vinculação do réu com o delito cometido, a ser feita através de procedimento administrativo. A propósito, vale lembrar que o fato de figurar no contrato social como gerente ou administrador não caracteriza justa causa para o oferecimento da denúncia – mas este não é exatamente o tema do presente trabalho.

Sem que se tenha encerrado o procedimento administrativo, fica inviabilizada a comunicação da notitia criminis ao Ministério Público pela administração, uma vez que, para o oferecimento da denúncia, o crédito tributário deve estar definitivamente constituído, requisito designado como condição objetiva de punibilidade.

3.1. Punibilidade como elemento do crime e a descaracterização do delito

A hermenêutica que vê na representação fiscal e no necessário processo administrativo uma condição de punibilidade traz um elemento que aumenta a complexidade do assunto: conforme determinado entendimento doutrinário, a punibilidade constitui algo inerente ao próprio crime, já que não se pode falar de crime se, por qualquer motivo, o fato, ou o agente, for impunível.

Quer dizer que, sob esse prisma, a punibilidade é elemento do próprio delito, que não se aperfeiçoa sem ela. Assim, se a constituição do crédito tributário, por conta da decisão definitiva do processo administrativo, é condição da punibilidade do crime, significa dizer que ela é, na realidade, elemento do próprio crime, valendo observar que, nesse caso, a infração penal somente se consuma com a configuração do crédito tributário, isto é, com um fato completamente independente da conduta do agente e sobre o qual ele não tem nenhum controle. A questão, posta nesses termos, remete ao tema da responsabilidade penal objetiva e, por isso mesmo, é capaz de suscitar profundas controvérsias doutrinárias.

Há outro ponto a considerar: especialmente sob a ótica de quem entende a punibilidade como elemento do crime, a configuração do delito tributário complica-se a partir da regra, inscrita na Constituição e no Pacto de S. José da Costa Rica, segundo a qual não pode haver prisão por dívida. Ora, o correlato necessário das infrações penais tributárias definidas no art. 1º da Lei n. 8137/90 é uma dívida – do possível criminoso com o poder público - e por conta dela é que se cogita do reconhecimento de um crime tributário.

Tanto a dívida é uma realidade concreta no cenário de um delito dessa natureza que o pagamento do tributo e seus acessórios, isto é, da dívida, extingue a punibilidade do agente. Então o problema passa a ser como conciliar – se é que é possível uma conciliação – a pretendida existência do crime tributário com a vedação da prisão por dívida, conteúdo de normas jurídicas hierarquicamente superiores à lei ordinária, que capitula os delitos contra o fisco. Diz-se que o tema é particularmente delicado para os adeptos da tese de que a punibilidade faz parte do crime porque, se a pena for inaplicável, por força da interpretação das normas que proíbem a prisão por dívida, pode-se concluir que não há delito ante a ausência de um de seus elementos, qual seja, a possibilidade de punição, considerando que esta consiste em prisão e que se trata de medida vedada segundo dispositivo de estatura constitucional.

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3.2. Falta de interesse de agir na ausência da punibilidade

Tratando-se a representação fiscal como condição de punibilidade, a sua ausência importa necessariamente numa omissão que impedirá a concretização do jus puniendi, após um hipotético processo criminal em que se estabeleça a materialidade e a autoria do delito, assim como a culpabilidade do agente.

Isso quer dizer que o titular da ação penal não tem razão alguma para movimentar o juízo criminal, pois estará em busca de algo que sabe de antemão que não poderá obter. Essa desnecessidade de provocação do juízo leva a concluir que falta ao titular da ação o mínimo interesse em atuar no sentido de propor a instauração de um processo, considerando que tal processo hipotético não resultará na imposição de pena ao agente, mesmo que se provem os fatos e as circunstâncias que forem contra si alegadas.

Em termos estritamente processuais, dir-se-á que falta a essa pretensa ação penal um dos pontos de apoio capazes de mantê-la de pé. A tais pontos de apoio se dá o nome de condições da ação e, como sugere o vocábulo, trata-se de requisitos para o que de mais elementar se deve esperar do exercício do direito de ação: sua sustentabilidade.

Dentre essas condições da ação desponta o chamado interesse de agir, significando que, como a ação é o meio adequado, necessário e suficiente para a concretização do jus puniendi, do qual o estado é o titular, o agente estatal legitimado para perseguir esse objetivo, que, no caso da ação penal pública, é o Ministério Público, irá atuar no sentido de provocar o juízo, oferecendo denúncia contra quem entende ser o agente do delito. Significa, em outros termos, que o titular da ação tem interesse em agir, pois esse agir é o meio apropriado para a materialização do direito de punir.

Ora, se não há possibilidade de punição, porque ausente a punibilidade, ante a falta de uma condição necessária para a sua existência, claro que não haverá, para o titular da ação, interesse em agir, ou seja, em provocar o juízo, já que previamente se sabe que tal provocação não será capaz de resultar numa punição, ainda que demonstradas tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

A qualificação da representação fiscal como condição de punibilidade conduz, portanto, ao reconhecimento de que, na sua falta, inexiste condição da ação, o que torna inócuo o agir do seu titular, valendo lembrar que, na eventualidade de ser assim oferecida uma denúncia, o juiz deverá rejeitá-la, fundamentado no art. 395, II, do Código de Processo Penal, conforme a redação ditada pela Lei n. 11.719/08.

Por idênticas razões dificilmente se conceberá hipótese de estado de flagrância, ao qual faltará o requisito do fato punível, a justificar a excepcional supressão do direito à liberdade sem ordem judicial, consubstanciado na prisão em flagrante.

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Conclusão

Da análise do tema que este trabalho se propôs a investigar, resultam algumas constatações. Em síntese, são elas:

1. A ação penal promovida em razão da ocorrência de um delito contra a ordem tributária, dentre os previstos no art. 1º da Lei n. 8137/90, estará sempre dependente de uma representação da autoridade fiscal, que a fará depois da decisão final do respectivo processo administrativo.

2. O processo administrativo fiscal, de competência das autoridades fazendárias, é o conjunto de atos capazes de validamente reconhecer e constituir o crédito tributário, determinando a existência de um tributo devido e a respectiva obrigação tributária a cargo do contribuinte, o que configura requisito indispensável para a existência de um possível crime tributário. Daí a classificação do delito como crime material.

3. O processo fiscal e a representação fiscal, embora constituindo requisito essencial para a configuração do crime contra a ordem tributária, não têm necessariamente a natureza jurídica da representação do ofendido, exigível no caso da ação penal pública condicionada, nem implica em se reconhecer uma ação penal dessa espécie. Na verdade, esta é apenas uma das três possibilidades existentes, conforme se verá a seguir.

4. Para quem vê o processo e a representação fiscais como condição de procedibilidade, eles possuem o mesmo caráter da representação à qual se refere o art. 100, § 1º, do Código Penal. Neste caso, a ação penal será da modalidade pública condicionada. O inquérito policial não poderá ser instaurado se não houver a representação, a exemplo do que sucede nas hipóteses de ação penal pública condicionada, regulada pelo Código Penal.

5. Se o entendimento for de que o processo e a representação fiscais constituem questão prejudicial, sua ausência importará na rejeição da denúncia por falta de justa causa, nos termos do disposto no art. 395, III, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n. 11.719/08. A ação penal será do tipo pública incondicionada e não fluirá o prazo de prescrição penal enquanto não se resolver definitivamente na via administrativa a existência do crédito tributário (art. 116, I, do Código Penal).

6. Caso se entenda que o processo administrativo e a representação da autoridade fiscal são condição de punibilidade, a falta dessas providências significará a inexistência de uma das condições da ação, que é o interesse de agir, hipótese em que eventual denúncia deverá ser rejeitada com base no art. 395, II, do Código de Processo Penal, com a redação que lhe deu a Lei n. 11.719/08. A ação penal será da espécie pública incondicionada.

7. Dentre as possíveis consequências de se adotar algum desses entendimentos, veja-se, por exemplo, que nas hipóteses enunciadas nos itens 5 e 6, não

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será viável a prisão em flagrante – ou será extremamente rara uma hipótese de flagrância -, haja vista que a falta do processo administrativo fiscal, instrumento capaz de determinar a existência do crédito tributário, impedirá a plena configuração do crime.

8. Por fim, fica consignado que, diante dos elementos colhidos na doutrina e na jurisprudência, não se pode concluir definitivamente pelo acerto da adoção exclusiva de qualquer uma das hipóteses referidas, bastando, por ora, conhecer os efeitos jurídicos específicos de cada uma delas.

Bibliografia

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[1] Dispõe a Constituição Federal: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”;

[2] Machado, Hugo de Brito. A ação penal nos crimes contra a ordem tributária. Disponível em : <http://www.hugomachado.adv.br/estudosdoutrinarios>. Acesso em 22.04.2009.

[3] Entende-se por questão prejudicial o impedimento ao desenvolvimento normal e regular do processo penal. O Código de Processo Penal dedica os artigos 92 a 94 ao assunto.

[4] Que por vários anos atuou como promotor no I Tribunal do Júri de S. Paulo, tendo certamente tirado o exemplo de sua experiência profissional com processos por crimes de homicídio.

[5] SOUZA, Nelson Bernardes de. Crimes contra a ordem tributária e processo administrativo. Jus Navigandi, Teresina, ano 1, n. 8, mar. 1997. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1311>. Acesso em: 03.06.2008

[6] . Relembrando: “Em Direito tributário, crédito tributário é o vínculo jurídico que obriga o contribuinte ou responsável (sujeito passivo) ao Estado (sujeito ativo) ao pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária. O crédito tributário surge com a ocorrência do fato gerador descrito em lei tributária ou norma, ou seja, para que o Estado possa exigir o crédito tributário, é necessário que o Estado individualize e quantifique o valor a ser pago, com o lançamento. Uma vez detectados, em um fato ocorrido no mundo real, todos os aspectos definidos expressamente na norma vigente (a lei, o sujeito ativo, o sujeito passivo, o fato gerador da obrigação, a base de cálculo e o objeto da prestação definido na lei.), nasce para a Administração Pública o direito de efetuar o lançamento constituindo o crédito tributário e declarando a existência de uma relação jurídica tributária”.

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