-Gavagai - Revista Interdisciplinar de Humanidades

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GAVAGAI REVISTA INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES VOLUME UM | NÚMERO DOIS NOV.DEZ 2014 UFFS ERECHIM ISSN 23580666

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  • G AV A G A I R E V I S T A I N T E R D I S C I P L I N A R D E H U M A N I D A D E S

    VOLUME UM | NMERO DOI SNOV.DEZ 2014

    UF

    FS E

    RE

    CH

    IM IS

    SN

    23

    58

    06

    66

  • Gavagai: Revista Interdisciplinar de Humanidades/Universidade

    Federal da Fronteira Sul - Campus Erechim. - Vol. 1, n. 1

    (mar./abr. 2014). - Erechim: [s.n.], 2014.

    Semestral

    1 . Per idico. 2 . Interdisc ipl inar. 3. Cincias Humanas.

    4. Humanidades. I. Universidade Federal da Fronteira Sul.

    II. Ttulo.

    CDD: 300

    BIBLIOTECRIA RESPONSVEL: TANIA ROKOHL CRB10/2171

    GAVAGAI: REVISTA INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES

    GRUPO DE TRABALHO DO MESTRADO DE CINCIAS HUMANAS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, CAMPUS ERECHIM

    ENDEREO PARA CORRESPONDNCIA / DIRECCIN POSTAL / MAILING ADDRESS

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA FRONTEIRA SUL, CAMPUS ERECHIM

    GAVAGAI - REVISTA INTERDISCIPLINAR DE HUMANIDADES

    AV. DOM JOO HOFFMANN, 313,

    BAIRRO FTIMA, JUNTO AO SEMINRIO NOSSA SENHORA DE FTIMA

    ERECHIM / RS . CEP 99700.000

    FONE: (54) 3321-7050

    E-MAIL: [email protected]

    IMAGENS: CAPA / ARTIGOS SRIE HERITAGE MARIE HUDELOT

    ISSN 23580666

    DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP)

    02

  • 03

  • A T I L I O B U T T U R I J U N I O R

    E D I T O R - C H E F E / E D I T O R J E F E / E D I T O R - I N - C H I E F

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D E S A N T A C A T A R I N A ( U F S C )

    E D I T O R E S E X E C U T I V O S / E D I T O R E S E J E C U T I V O S / E X E C U T I V E

    E D I T O R S

    A N I C A R L A M A R C H E S A N

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    C H A P E C ( U F F S )

    C A S S I O B R A N C A L E O N E

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    E R E C H I M ( U F F S )

    F B I O F R A N C I S C O F E L T R I N D E S O U Z A

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    E R E C H I M ( U F F S )

    J E R Z Y A N D R B R Z O Z O W S K I

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    E R E C H I M ( U F F S )

    R O B E R T O C A R L O S R I B E I R O

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    E R E C H I M ( U F F S )

    R O B E R T O R A F A E L D I A S D A S I L V A

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A F R O N T E I R A S U L , C A M P U S

    E R E C H I M ( U F F S )

    D E S I G N G R F I C O / D I S E O / G R A P H I C D E S I G N - P E D R O P A U L O V E N Z O N F I L H O

    I M A G E N S / I M G E N E S / I M A G E S - M A R I E H U D E L O T R E V I S O / R E V I S I N /

    R E V I S I O N - A N I C A R L A M A R C H E S A N R O B E R T O C A R L O S R I B E I R O C A S S I O

    B R A N C A L E O N E R O S N G E L A P E D R A L L I F B I O F R A N C I S C O F E LT R I N D E S O U Z A

    J E R Z Y A N D R B R Z O Z O W S K I

    04

  • A R M A N D O C H A G U A C E D A - U N I V E R S I D A D V E R A C R U Z A N A ( M X I C O ) B I A N C A S A L A Z A R G U I Z Z O

    . U N I V E R S I D A D E L U T E R A N A D O B R A S I L ( U L B R A ) C A R L A S O A R E S - P O N T I F C I A U N I V E R S I D A D E

    C A T L I C A ( P U C - R J ) D A N I E L A M A R Z O L A F I A L H O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E

    D O S U L ( U F R G S ) D C I O R I G A T T I - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E D O S U L ( U F R G S ) /

    U N I R I T T E R D U R V A L M U N I Z A L B U Q U E R Q U E J U N I O R - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O

    G R A N D E D O N O R T E ( U F R N ) E L I A N A D E B A R R O S M O N T E I R O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O V A L E

    D O S O F R A N C I S C O ( U N I V A S F ) E L I O T R U S I A N - U N I V E R S I T D E G L I S T U D I D I R O M A L A

    S A P I E N Z A ( I T L I A ) F B I O L U I S L O P E S D A S I L V A - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D E S A N T A C A T A R I N A

    ( U F S C ) F E L I P E S . K A R A S E K - I N S T I T U T O D E D E S E N V O L V I M E N T O C U L T U R A L ( I D C )

    F E R N A N D A R E B E L O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D A B A H I A ( U F B A ) G I Z E L E Z A N O T T O -

    U N I V E R S I D A D E D E P A S S O F U N D O ( U P F ) J O S A L V E S D E F R E I T A S N E T O - U N I V E R S I D A D E D E

    C A M P I N A S ( U N I C A M P ) K A N A V I L L I L R A J A G O P A L A N - U N I V E R S I D A D E D E C A M P I N A S

    ( U N I C A M P ) M A R G A R E T H R A G O - U N I V E R S I D A D E D E C A M P I N A S ( U N I C A M P ) M A R I A A N T O N I A D E

    S O U Z A - U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L D E P O N T A G R O S S A ( U E P G ) / U N I V E R S I D A D E T U I U T I D O

    P A R A N ( U T P ) M A R I A B E R N A D E T E R A M O S F L O R E S - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D E S A N T A C A T A R I N A

    ( U F S C ) N A T L I A P I E T R A M N D E Z - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E D O S U L

    ( U F R G S ) N E L S O N G . G O M E S - U N I V E R S I D A D E D E B R A S L I A ( U N B ) P A T R C I A G R A C I E L A D A

    R O C H A - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O M A T O G R O S S O D O S U L ( U F M S ) P A T R I C I A M O U R A

    P I N H O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O P A M P A ( U N I P A M P A ) P A U L A C O R R A H E N N I N G -

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E ( F U R G ) P E D R O D E S O U Z A - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L

    D E S A N T A C A T A R I N A ( U F S C ) R A F A E L J O S D O S S A N T O S - U N I V E R S I D A D E D E C A X I A S D O S U L

    ( U C S ) R A F A E L W E R N E R L O P E S - I N S T I T U T O D E D E S E N V O L V I M E N T O C U L T U R A L ( I D C ) R A U L

    A N T E L O - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D E S A N T A C A T A R I N A ( U F S C ) R I C A R D O A N D R M A R T I N S

    - U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L D O C E N T R O - O E S T E ( U N I C E N T R O ) R O B E R T O M A C H A D O -

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O D E J A N E I R O ( U F R J ) R O D R I G O S A N T O S D E O L I V E I R A -

    U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O R I O G R A N D E ( F U R G ) R O S N G E L A P E D R A L L I - U N I V E R S I D A D E

    F E D E R A L D E S A N T A C A T A R I N A ( U F S C ) S U Z A N A G . A L B O R N O Z - U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O

    R I O G R A N D E ( F U R G ) V I V I A N E C A S T R O C A M O Z Z A T O - U N I V E R S I D A D E E S T A D U A L D O R I O

    G R A N D E D O S U L ( U E R G S )

    CO N S E J O E D I T O R I A L / E D I T O R I A L B O A R D

    CO

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    EL

    HO

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    N

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    C O N S E L H O E D I T O R I A L

    0 5

  • S U M R I O

    Ta b l a d e C o n t e n i d o s / Ta b l e o f C o n t e n t s

    A P R E S E N T A O

    / P r e s e n t a c i n / P r e s e n t a t i o n

    A t i l i o B u t t u r i J u n i o r. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 0 8

    A M E M R I A C I N Z A : C O N S I D E R A E S

    S O B R E O S A F O G A D O S E O S S O B R E V I V E N T E S ,

    D E P R I M O L E V I

    / L a m e m o r i a e s g r i s : c o n s i d e r a c i o n e s p a r a L o s

    H u n d i d o s y l o s S a l v a d o s , p o r P r i m o L e v i / T h e

    m e m o r y i s g r a y : c o n s i d e r a t i o n s f o r T h e D r o w n e d

    a n d t h e S a v e d , b y P r i m o L e v i

    F b i o L o p e s d a S i l v a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 1 0

    F O U C A U L T E O D I A G N S T I C O H I S T R I C O -

    F I L O S F I C O D A M O D E R N I D A D E

    / F o u c a u l t y e l d i a g n s t i c o h i s t r i c o - l o s c o d e

    l a m o d e r n i d a d / F o u c a u l t ' s h i s t o r i c a l -

    p h i l o s o p h i c a l d i a g n o s i s a b o u t m o d e r n i t y

    L u i z C e l s o P i n h o. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 1 8

    D A E N C E F A L I T E L E T R G I C A A O T R A N S T O R N O

    D E D F I C I T D E A T E N O C O M

    H I P E R A T I V I D A D E ( T D A H ) : E M E R G N C I A E

    C O N S O L I D A O D A S E X P L I C A E S

    B I O L G I C A S R E D U C I O N I S T A S

    / D e l a E n c e f a l i t i s L e t r g i c a a l T r a s t o r n o p o r

    D c i t d e A t e n c i n c o n H i p e r a c t i v i d a d ( T D A H ) :

    s u r g i m i e n t o y c o n s o l i d a c i n d e l a s e x p l i c a c i o n e s

    b i o l g i c a s r e d u c c i o n i s t a s / F r o m L e t h a r g i c

    E n c e p h a l i t i s t o t h e A t t e n t i o n D e c i t H y p e r a c t i v i t y

    D i s o r d e r ( A D H D ) : e m e r g e n c e a n d c o n s o l i d a t i o n o f

    r e d u c t i o n i s t b i o l o g i c a l e x p l a n a t i o n s

    F a b o l a S t o l f B r z o z o w s k i e S a n d r a C a p o n i. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 2 6

    0 6

  • SUMRIO

    / T

    AB

    LA

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    TS

    N E U R A T H E H . G . W E L L S : E M D I R E O A U M A

    C I N C I A S O C I A L U T P I C A

    / N e u r a t h y H . G . W e l l s : h a c i a u n a c i e n c i a s o c i a l

    u t p i c a / N e u r a t h a n d H . G . W e l l s : t o w a r d s a

    u t o p i a n s o c i a l s c i e n c e

    I v a n F e r r e i r a d a C u n h a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 4 0

    C R E N A S E A T I T U D E S S O B R E E N S I N A R E

    A P R E N D E R L N G U A S - A L G U M A S

    P O N D E R A E S

    / C r e e n c i a s y a c c t i t u d e s s o b r e e n s e a r y

    a p r e n d e r l e n g u a s - a l g u n a s p o n d e r a c i o n e s /

    B e l i e f s a n d a t t i t u d e s a b o u t t e a c h i n g a n d l e a r n i n g

    l a n g u a g e s - s o m e c o n s i d e r a t i o n s

    L u c i m a r A r a u j o B r a g a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 5 4

    E P I S T E M E E O P R O B L E M A D A C O N T I N G N C I A

    E M A R I S T T E L E S

    / E p i s t e m e y e l p r o b l e m a d e c o n t i n g e n c i a e n

    a r i s t t e l e s / E p i s t e m e a n d t h e p r o b l e m o f

    c o n t i n g e n c y i n a r i s t o t l e

    A n d r e i P e d r o V a n i n. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 6 6

    G R A F I T E I R O S E P I C H A D O R E S : M U L T I V D U O S

    C O N T E M P O R N E O S N A S M E T R P O L E S

    / G r a t e r o s e t a g g e r s m u l t i v d u o s e n m e t r p o l i s

    c o n t e m p o r n e a s / G r a t i a r t i s t s a n d g r a t i

    v a n d a l s m o d e r n m u l t i v i d u a l s i n m e t r o p o l i s e s

    E l o e n e s L i m a d a S i l v a. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 7 9

    O R A P P A L E S T I N O D O G R U P O D A M :

    I D E N T I D A D E E E S P A O S D O N O - L U G A R

    / E l g r u p o d e r a p P a l e s t i n o D A M : i d e n t i d a d e s y

    e s p a c i o s d e n o - l u g a r / T h e p a l e s t i n i a n r a p g r o u p

    D A M : i d e n t i t i e s a n d s p a c e s o f n o n - p l a c e

    F e l i c i a M a r c h i B e l t r o C a m p o s. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 0 8 8

    0 7

  • 0 8

  • AT

    ILIO

    B

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    EN

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    O

    O segundo nmero de Gavagai - Revista Interdisciplinar de Humanidades

    - surge sob os auspcios de um acontecimento: a aprovao, pela CAPES, do

    Mestrado Interdisciplinar em Cincias Humanas da Universidade Federal

    da Fronteira Sul, do campus Erechim, a raison d'tre da criao do prprio

    peridico.

    Este nmero, pois, traz consigo uma espcie de festejo, a se rememorar. Os

    artigos, estabelecendo uma prtica, provm das mais variadas leituras de

    temas e objetos caros s ditas Humanidades.

    Gavagai abre com o texto de Fbio Lopes da Silva, A memria cinza:

    consideraes dobre Os Afogados e Os Sobreviventes, de Primo Levi, que se

    debrua sobre a impossibilidade da memria inscrita nos textos do autor

    italiano, notadamente na chamada Trilogia de Auschwitz, trazendo tona

    um questionamento sobre a prpria experincia moderna e seu

    "acontecimento" esvaziado.

    O segundo artigo, Foucault e o diagnstico histrico-losco da modernidade,

    de autoria de Luiz Celso Pinho e reconstri a tarefa de diagnosticar o

    presente, cara ao lsofo francs e retomada, em certa medida, de

    Nietzsche, segundo trs perspectivas: a negao do sujeito fundante, a

    perspectiva blica dada leitura da histria e a subordinao da verdade aos

    discursos tico-polticos.

    O terceiro artigo de autoria de Fabola Stolf Brzozowski e Sandra

    Caponi. Intitulado Da Encefalite Letrgica ao Transtorno de Dcit de Ateno

    com Hiperatividade (TDAH): emergncia e consolidao das explicaes biolgicas

    reducionistas, o escrito critica a ontologizao contempornea do

    conhecido TDAH, a partir do ocaso das descries nosolgicas e do

    recorrente apelo a "explicaes biolgicas reducionistas" para a produo

    de denies universalizantes do suposto "transtorno".

    O quarto artigo, Neurath e H.G. Wells: em direo a uma cincia social utpica,

    de Ivan Ferreira da Cunha, relaciona as tecnologias sociais utpicas e ideias

    de Neurath e a co cientca de Wells, segundo a crena do primeiro de

    que tanto a cincia quanto a arte so resultado de processos imaginativos e

    que, portanto, as utopias das cincias sociais (e da arte) poderiam contribuir

    para uma transformao positiva das sociedades.

    O quinto artigo, Crenas e atitudes sobre ensinar e aprender lnguas algumas

    ponderaes, de Lucimar Araujo Braga, volta-se para o debate das polticas

    lingusticas e da produo das identidades docentes, analisando as prticas e

    os discursos de uma professora de lngua espanhola na rede estadual de

    ensino do Paran, materializados na forma de dirios de campo.

    O sexto artigo, Episteme e o problema da contingncia em Aristteles de Andrei

    Pedro Vanin e versa sobre o conceito clssico do Estagirita, segundo dois de

    seus fundamentos - a necessidade e a causalidade -, interrogando o

    problema dos (futuros) contingentes em relao episteme na losoa

    aristotlica e sua discusso da natureza do conhecimento cientco.

    O stimo artigo, Grateiros e pichadores: multivduos contemporneos nas

    metrpoles, de Eloenes Lima da Silva, apresenta uma pesquisa etnogrca

    que tem como objeto as "culturas juvenis" contemporneas, representadas

    por pichadores e grateiros da cidade de Porto Alegre/ RS, e cuja

    caracterstica seria a de expandir conceitos como sujeito, indivduo e

    espacialidade.

    Este nmero dois de Gavagai encerra-se com a contribuio de Felcia

    Marchi Beltro Campos, o artigo O rap palestino do grupo DAM: identidades e

    espaos do no-lugar, cujo objetivo apresentar e discutir os modos pelos

    quais os discursos presentes nas msicas do grupo de rap palestino DAM

    contestam e recriam as identidades de palestinos e israelenses, evocando a

    necessidade de outros espaos de dilogo e resistncia.

    Por m, cabe agradecer aos autores, ao corpo editorial e aos pareceristas da

    edio - e a seus leitores em devir -, que tm contribudo de forma efetiva

    para a consolidao desta ainda novidadeira Gavagai.

    AT IL I O B U T T U R I J U NI O R

    A P R E S E N T A O | G A V A G A I : N M E R O D O I S

    0 90 9

  • 0 1 0

    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 0 - 1 7 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    Resumo: Neste artigo, trata-se de reetir sobre algumas repercusses

    do conceito de zona cinzenta, elaborado pelo escritor judeu italiano

    Primo Levi no terceiro livro de sua Trilogia de Auschwitz. Em

    particular, tentarei compreender como essa noo rebate sobre as

    meditaes de Primo Levi a respeito da mendacidade da memria. A

    ideia mostrar que se, como Levi indica, a memria provm da

    zona cinzenta, onde a condio de que se sobreviva a de que um

    outro morra em seu lugar o nico acontecimento narrvel, isto , o

    que o sobrevivente viveu, se constitui mas tambm se descompleta

    em uma relao ntima e indissolvel com o que sucedeu aos que

    morreram, esse enigma inenarrvel que o sobrevivente, estando na

    zona cinzenta, tangenciou mas no experimentou.

    Palavras-chave: Testemunho. Holocausto. Zona Cinzenta.

    A MEMRI A CINZ A:

    CONSIDER AES SOBRE OS AFOGAD OS

    E OS SOBREVIVENT ES ,

    DE PRIMO LEVI

    FBIO LOPES DA SILVA

    PROFESSOR ADJUNTO IV DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA E

    DIRETOR-EXECUTIVO DA EDUFSC. E-MAIL: [email protected]

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    Primo Levi acabara de se formar em qumica pela Universidade

    de Turim quando, na tentativa de unir-se a grupos guerrilheiros

    que lutavam contra o fascismo, foi capturado pelas milcias da

    Repblica de Sal. 1 Inicialmente confinado em um campo de

    prisioneiros na prpria Itlia, foi em seguida remetido a Buna-

    Monowitz, uma das unidades do complexo de Auschwitz.

    Fisicamente frgil e, de resto, bem pouco apto a comunicar-se

    nas lnguas mais faladas no campo, Levi era um forte candidato

    s cmaras de gs ou morte por extenuao ou fome. Salvou-se,

    contudo, graas a uma sucesso de acontecimentos inesperados e

    coincidncias.

    Ainda em Auschwitz, comeou a escrever. Libertado pelos russos

    em 1944, retomou febrilmente o exerccio de tentar compreender

    em letra de forma a experincia por que ele e seus companheiros

    de desdita haviam passado. Comeava, assim, uma carreira literria

    brilhante, que, ao longo dos quarenta anos seguintes, estendeu-se

    por quase todos os gneros e produziu aquela que talvez seja a

    mais inquietante reflexo a respeito do nazismo e dos campos de

    extermnio.

    Da larga bibliografia assinada por Primo Levi, destacarei aqui a

    sua famosa Trilogia de Auschwitz, um conjunto de textos no-

    ficcionais em que o autor recorda e analisa o perodo que vai de

    sua deteno aos meses que se seguiram liberao.

    O mais antigo ttulo da Trilogia que tambm o primeiro livro

    lanado por Primo Levi chama-se isto um homem?. Trata-se de

    uma obra espantosamente reflexiva, tanto mais se se considera que

    foi escrita por um jovem de 26 anos, em um momento em que

    ainda se contavam os mortos cados durante a guerra. O livro veio

    a pblico em 1947, sob o selo da modesta De Silva, de Turim. Dos

    2,5 mil exemplares produzidos, a maior parte permaneceu nos

    estoques da editora, at ser destruda em uma enchente, em 1966.

    A obra s veio de fato a circular a partir de 1958, quando umas

    das maiores casas editoriais italianas, a Einaudi, que inicialmente

    rejeitara os originais, decidiu public-la. 2

    O segundo livro da srie, A trgua, de 1963, narra o retorno de

    Primo Levi Itlia, uma viagem absurda e comovente, repleta de

    encontros e despedidas, que durou perto de um ano.

    1 Deposto em junho de 1943 pelo Grande Conselho do Fascismo, Mussolini encarcerado em uma priso no Gran Sasso. Assume o poder em seu lugar o General Pietro Badoglio, que imediatamente declara lealdade s foras aliadas. Em ao espetacular, o Duce libertado pelos nazistas e, ato contnuo, conduzido ao norte da Itlia. L, em outubro de 1943, funda a Repblica Social Italiana, tambm chamada de Repblica de Sal, merc do nome da cidade em que a sede do governo foi instalada. Mussolini, quela altura, nada mais era do que um ttere Hitler. A Itlia mergulha em uma guerra civil. Trata-se do perodo em que os judeus italianos passam a ser sistematicamente deportados para os campos de extermnio. (MACGREGOR-HASTIE, 1977, cap. VIII)

    2 Com algumas modificaes no texto e um captulo a mais, chamado O canto de Ulisses (PATRUNO, 1995, p. 8)

    Fecha a Trilogia um volume originalmente publicado em 1986

    sob o ttulo de Os afogados e os sobreviventes. Concludo s vsperas

    da morte de Primo Levi provavelmente um suicdio 3 , o livro

    uma sucesso de ensaios em que o autor retoma e desenvolve os

    temas levantados nas obras precedentes.

    Neste artigo, debruo-me sobre esses trs livros com nfase

    no primeiro e, principalmente, no ltimo a propsito de

    fazer avanar algumas notas a respeito daquilo que os move: a

    memria e o testemunho. Em particular, trata-se de refletir sobre

    um certo fracasso que, de acordo com Primo Levi, atravessa e

    constitui o exerccio de recordar a experincia vivida. Procurarei

    mostrar que, medida que a obra de Primo Levi se desdobra,

    as meditaes sobre a mendacidade da memria se depuram,

    at atingir sua formulao mais aguda e consequente em Os

    afogados e os sobreviventes. Tentarei argumentar que, no centro de

    tal depurao, est a proposio, em 1986, do conceito de zona

    cinzenta, com o qual o autor pretende recobrir todo um imenso,

    intrincado e heterogneo domnio de prticas e subjetividades

    que se interpe entre os nazistas e aqueles que, no jargo do

    campo eram chamados de muulmanos, isto , os prisioneiros

    que, sucumbindo completamente escravido, transformavam-se

    em vermes ocos e sem alma. (LEVI, 1988, p. 56)

    Na zona cinzenta, esto os canalhas totais, a comear pelos

    capatazes arregimentados entre os presos para vigiar e punir os

    seus semelhantes. Mas nela figuram tambm indivduos mais

    ou menos comuns que, em nome da sobrevivncia, cometeram

    pequenas maldades ou simplesmente aceitaram passivamente

    nfimas vantagens. O prprio Primo Levi tem clareza de que

    suas habilidades de qumico que lhe renderam uma funo

    menos penosa na fbrica de borracha do campo lanaram-no

    na zona cinzenta e, no limite, possibilitaram que ele fosse um dos

    18 prisioneiros a sobreviver entre os mais de 600 que com ele

    dividiram o trem em que foi deportado para Auschwitz. 4 O caso

    de Primo Levi no excepcional: da zona cinzenta que provm

    a maior parte dos que escaparam da morte nos campos. Entre os

    sobreviventes, escreve Primo Levi, so muito mais numerosos os

    que na priso gozaram de algum privilgio (LEVI, 2005, p. 18).

    A histria dos campos, se h uma, a histria contada por eles.

    Notvel contraste: em isto um homem?, Auschwitz ,

    indistintamente, para todos os prisioneiros, o fundo o ltimo

    estgio da degradao humana. J em Os afogados e os sobreviventes,

    3 On 11 April 1987, Primo Levi died at the age of sixty-eight. Many believe it was suicide [Em 11 de Agosto de 1987, Primo Levi morreu, aos 68 anos. Muitos acreditam que tenha sido suicdio, traduo minha]. (PATRUNO, 1995, p. 6)

    4 A rigor, cerca de 500 deles j estavam mortos dois dias depois da chegada a

    Auschwitz. (LEVI , 1988, p. 18)

    Resumo: Neste artigo, trata-se de reetir sobre algumas repercusses

    do conceito de zona cinzenta, elaborado pelo escritor judeu italiano

    Primo Levi no terceiro livro de sua Trilogia de Auschwitz. Em

    particular, tentarei compreender como essa noo rebate sobre as

    meditaes de Primo Levi a respeito da mendacidade da memria. A

    ideia mostrar que se, como Levi indica, a memria provm da

    zona cinzenta, onde a condio de que se sobreviva a de que um

    outro morra em seu lugar o nico acontecimento narrvel, isto , o

    que o sobrevivente viveu, se constitui mas tambm se descompleta

    em uma relao ntima e indissolvel com o que sucedeu aos que

    morreram, esse enigma inenarrvel que o sobrevivente, estando na

    zona cinzenta, tangenciou mas no experimentou.

    Palavras-chave: Testemunho. Holocausto. Zona Cinzenta.

    A MEMRI A CINZ A:

    CONSIDER AES SOBRE OS AFOGAD OS

    E OS SOBREVIVENT ES ,

    DE PRIMO LEVI

    FBIO LOPES DA SILVA

    PROFESSOR ADJUNTO IV DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA E

    DIRETOR-EXECUTIVO DA EDUFSC. E-MAIL: [email protected]

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 0 - 1 7 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    o autor conclui que, na realidade, ele e os outros que habitaram

    a zona cinzenta no conheceram verdadeiramente o fim da

    linha no chegaram at o fundo (LEVI, 2005, p.18). S os

    muulmanos o fizeram, mas estes morreram todos ou voltaram

    em silncio, marcados que estavam por ofensas que a nossa lngua

    no tem palavras para expressar. (LEVI, 1988, p. 24)

    Vejamos, pois, como esses ajustes na obra de Primo Levi rebatem

    sobre a questo da possibilidade e dos limites da memria.

    1 A MNADA INOMINVEL E MUDA

    Campo de Fssoli, nas cercanias de Mdena, fevereiro de 1944. Ao

    ser conduzido a um trem apinhado de outros prisioneiros judeus

    italianos, Primo Levi tinha clareza de que seguia rumo morte.

    Ns j conversramos com os fugitivos poloneses e croatas,

    escreve ele. Sabamos, portanto, o que significava partir (LEVI,

    1988 p.13). Ainda assim, uma sensao de alvio percorreu-lhe

    o corpo to logo o destino final da viagem Auschwitz foi

    anunciado aos deportados. que, como Primo Levi observa em

    seguida, um nome mesmo aquele, do qual ele, at ento, jamais

    ouvira falar deve sempre corresponder a algum lugar deste

    mundo (LEVI, 1988, p 16). O que tem nome Primo Levi parece

    presumir pode muito bem ser atroz ou injusto, mas continua a

    existir entre as coisas, continua a guardar alguma semelhana com

    elas, continua a poder ser medido, analisado, compreendido e, no

    limite, assimilado. Auschwitz, de resto, quase um homfono de

    Austerlitz, o que, no calor da hora, levou Primo Levi a imaginar

    que o lugar para onde o levavam provavelmente ficasse nas

    imediaes do palco da famosa Batalha dos Trs Imperadores, que

    ele conhecia dos livros de Histria. Nas circunstncias tenebrosas

    em que a viagem transcorria em vages selados e sem janelas,

    onde faltava tudo, a comear por gua e comida , era um consolo

    nada desprezvel agarrar-se ideia de que, por terrvel que fosse, o

    futuro dos deportados pudesse caber nos mapas decorados desde

    a infncia.

    Primo Levi no tardou a concluir que se enganara completamente:

    Auschwitz no designava algum lugar na Bomia, 5 nas

    vizinhanas de Austerlitz, como ele inicialmente supusera. Dir-

    se-ia que, a rigor, aquele trem macabro em que ele e os outros

    permaneceram encerrados por oito dias no se dirigia nem

    mesmo Alta Silsia, na Polnia, mas a uma geografia fantstica,

    um territrio parte. [E]stamos fora do mundo, observa, com

    efeito, Primo Levi acerca de sua chegada ao campo de extermnio

    (LEVI, 1988 p. 21).

    5 Essa passagem foi retirada de um documentrio chamado Back to Auschwitz (PRIMO..., 1983), em que se registra uma visita de Primo Levi a Auschwitz quase quarenta anos depois da liberao. A obra foi produzida e exibida em 1983 pela RAI, rede estatal de televiso italiana. O excerto destacado encontra-se aos 7min 05seg.

    Fora do mundo: Auschwitz a casa dos mortos (LEVI, 1988, p.

    29), o limiar do inferno (LEVI, 1988, p. 27), o fundo (LEVI,

    1988, p. 15). Ora, ingressar em Auschwitz ser lanado nessa

    descida ao fundo perder tudo: Nada mais nosso: tiraram-nos

    as roupas, os sapatos e at os cabelos. Esse processo de destituio

    subjetiva cujo saldo um ser vazio, reduzido a puro sofrimento

    e carncia, esquecido de dignidade e sofrimento atinge em

    cheio a linguagem: se falarmos, [os nazistas e seus colaboradores]

    no nos escutaro e, se nos escutarem, no nos compreendero.

    Roubaro tambm o nosso nome [...] (LEVI, 1988, p. 25). A bem

    da verdade, o drama narrado por Primo Levi desenrola-se, em

    grande medida, no terreno da linguagem: para o autor, o assalto

    nazista subjetividade dos prisioneiros decorre certamente de

    um conjunto de violncias e privaes fsicas e psicolgicas, mas

    no se completa nem talvez alcance os seus mais insidiosos efeitos

    sem saturar a linguagem. No por acaso, como se desde logo

    quisesse indicar essa importncia do processo de destruio da

    linguagem no esvaziamento subjetivo dos prisioneiros, Primo Levi

    descreve o prprio traslado ao campo de extermnio como uma

    sucesso de toponmicos cada vez mais estrangeiros, espinhosos e

    impronunciveis: Pela fresta [da porta do vago], alguns nomes

    conhecidos e outros estranhos de cidades austracas, Salzburg,

    Viena; depois tchecas; por fim polonesas (LEVI, 1988, p. 16). Isso

    que se passa fora dos vages o eclipse progressivo da linguagem

    encontra o seu exato correspondente no interior do trem:

    Ningum tentava mais comunicar-se com o mundo externo.

    Quando o comboio finalmente completa a viagem emudecido

    o ritmo dos trilhos e todo som humano, anota sintomaticamente

    Primo Levi , tudo o que h uma plancie escura e silenciosa

    (LEVI, 1988, p. 17).

    Plancie escura e silenciosa: estranho lugar. Melhor dizendo, no

    se trata propriamente de um lugar, mas de um no-lugar, feito de

    pura negatividade: nada de relevo, nada de luz, nada de som. Uma

    perturbadora regra-de-trs articula-se, ento, no texto de Levi: se,

    como ele acreditava desde o incio, um nome corresponde sempre

    a um lugar, um no-lugar corresponder a algo assim como um

    antinome. Com efeito, Auschwitz , no dizer de Primo Levi, o

    vrtice de uma pirmide de nomes inumanos e sinistros (LEVI,

    1988, p. 72).

    Ao menos isso o que ressalta de isto um homem?, do qual

    todas as citaes acima foram retiradas. O fato, contudo, que,

    quatro dcadas mais tarde, em Os afogados e os sobreviventes, Primo

    Levi j no parece to certo da ideia de que ser enclausurado

    em Auschwitz , necessariamente, permanecer em uma espcie de

    mnada inominvel e muda, fora do mundo: o campo, diz ele

    logo nas primeiras pginas do livro de 1986, no era um universo

    fechado (LEVI, 2005, p. 15).

    Ao expressar-se nesses termos, o que Primo Levi tem

    imediatamente no horizonte o fato de que a economia

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    alem estava profundamente implicada no funcionamento de

    Auschwitz e congneres: grandes e pequenas indstrias, assim

    como propriedades agrcolas e fbricas de armamentos, tiravam

    proveito do trabalho escravo dos prisioneiros ou lucravam com

    o fornecimento de matrias primas, de bens de consumo, de

    alimentos e, claro, das imensas quantidades de gases venenosos de

    que dependia a vida e principalmente a morte nos campos.

    Do que se segue em Os afogados e os sobreviventes, pode-

    se depreender, ademais, que, de acordo com o autor, o universo

    concentracionrio a despeito das pretenses nazistas de que ele

    existisse como um mundo parte era vazado ainda por falhas de

    ordem operacional em sua intrincada e complexa maquinaria: at

    a mais perfeita das organizaes tm algum defeito, e a Alemanha

    de Hitler, sobretudo nos meses anteriores sua derrocada, estava

    longe de ser uma mquina perfeita (LEVI, 2005, p.11).

    Mas h um sentido ainda mais sutil e rico de consequncias em

    que, segundo a reflexo desenvolvida no livro, cabe contestar a

    ideia de que os campos formavam um espao totalizvel. o que

    procurarei esclarecer a seguir.

    2 A ZONA CINZENTA

    Um famoso texto de Jorge Lus Borges trata de cartgrafos que,

    querendo propor um mapa perfeito do Imprio a que servem,

    acabam por construir uma rplica exata do Imprio sobre o

    Imprio. Ora, um mapa que reproduza a complexidade e a

    opacidade do real completamente inutilizvel: permaneceramos

    to perplexos diante dele quanto o estamos frente a seu referente.

    Conhecer o real ou mesmo simplesmente falar dele parece exigir

    necessariamente uma certa dose de simplificao. Na clebre

    frmula do filsofo ingls John Langshaw Austin, a simplificao

    a doena profissional dos filsofos, se no for a sua profisso

    (AUSTIN, 1961, p. 293). Posio muito semelhante expressa

    quase nas mesmas palavras de Austin, se bem que sem a graa delas

    defendida por Primo Levi: O que entendemos comumente

    por compreender coincide com simplificar (LEVI, 2005, p.42).

    Essa vontade de simplificao, seja dito, no se lhe afigura como

    uma contingncia: suas origens, ele especula, teriam relao com a

    prpria estrutura da linguagem e do pensamento conceptual. Um

    coisa, no entanto, dizer que estamos condenados simplificao

    e, portanto, a uma certa falsificao do real; outra, completamente

    diferente, querer da fazer tabula rasa de todas as tentativas de

    compreender a realidade: [o] desejo de simplificao est justificado;

    a simplificao nem sempre o est (LEVI, 2005, p. 43). Primo Levi

    est particularmente preocupado com os fenmenos histricos,

    que, em suas prprias palavras, frequentemente no so simples,

    ou no so simples com a simplicidade que queremos (LEVI,

    2005, p. 43). Mais especificamente ainda, interessa-lhe criticar o

    gesto recorrente de reduzir o caudal de acontecimentos humanos

    aos conflitos, e os conflitos aos combates, o que certamente abre

    as portas para que o mundo seja grosseiramente dividido em dois

    lados que se ope radicalmente e se excluem reciprocamente. Em

    que pesem os sentimentalismos e maniquesmos de costume, nem

    mesmo os campos de extermnio podem ser esquematicamente

    escandidos em blocos de vtimas e verdugos (LEVI, 2005, p. 44).

    Isso comeava a ficar claro j no ingresso dos deportados em

    Auschwitz e congneres: os primeiros golpes, as primeiras ordens

    gritadas, as primeiras ofensas, no vinham de nenhum soldado

    da SS mas de prisioneiros recrutados para receber os calouros.

    Atacados de surpresa, e justamente por indivduos dos quais

    esperavam acolhimento e solidariedade, muitos dos que chegavam

    no resistiam investida e j adentravam o campo sombra da

    mais profunda prostrao. Mas o fogo amigo no parava por a e

    tampouco se limitava ao de um pequeno grupo de prisioneiros

    abertamente corrompidos pelos nazistas. Nos dias seguintes

    chegada de novas levas de deportados, a totalidade dos veteranos

    mantinha com os novatos uma relao tensa, que facilmente

    dava lugar hostilidade e mesmo violncia fsica: a multido

    desprestigiada dos antigos tendia a ver no recm-chegado algum

    em quem desafogar sua humilhao, a encontrar a suas custas

    uma compensao, a criar a suas custas um indivduo de menor

    valor a quem repassar o peso dos ultrajes recebidos de cima

    (LEVI, 2005, p. 47). Os que, ainda assim, guardavam um mnimo

    de foras s excepcionalmente o utilizavam na constituio de

    redes de solidariedade. No campo, s se sobrevive no lugar de um

    outro: o que consome ainda menos alimento, o que adoece em

    funo do frio porque no consegue os meios para se proteger das

    intempries, o que padece de sede ou destrudo pelo trabalho

    sem descanso, o que vtima das selees dirias para as cmaras

    de gs. Em tais condies, cada camarada no seno um inimigo,

    e isso que alhures chamamos eufemisticamente de convivncia d

    lugar a uma luta desesperada, oculta e contnua (LEVI, 2005, p.

    45). Ora, sobretudo da da vida convertida em luta de todos

    contra todos que nasce a zona cinzenta.

    A condio de prisioneiro, escreve Primo Levi, no exclui

    a culpa, e esta com frequncia objetivamente grave (LEVI,

    2005, p. 53). Contudo, no o aspecto moral que lhe interessa

    ressaltar na discusso a respeito da zona cinzenta. 6 Para ele, h

    uma exorbitncia nas condies do campo, 7 um excesso que, salvo

    excees, parece suspender toda possibilidade de juzos morais a

    6 De acordo com, Cytrynowicz (no prelo), a participao de judeus na rotina dos campos e no nazismo em geral nada tem quer com cumplicidade, mas com a natureza poltica do totalitarismo, conforme Hannah Arendt mostrou extensivamente. O sistema nazista de discriminao, excluso, deportao, confinamento e extermnio imps populao judaica um sistema de destruio que inclua subjugar as vtimas com funes e tarefas que implicavam em sua insero forada na prpria engrenagem de confinamento em guetos e de extermnio nos seis campos instaurados em solo polons.

    7 Segundo Primo Levi, os prprios nazistas tinham conscincia desse excesso: muitos sobreviventes [...] recordam que os soldados da SS divertiam-se em advertir cinicamente os prisioneiros: [...] Ainda que alguma prova [do genocdio] chegasse a subsistir e que algum de vocs chegasse a sobreviver, dir-se-ia que os fatos contados so muito monstruosos para que se creia neles [...]. (LEVI, 2005, p.9-10)

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 0 - 1 7 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    respeito do comportamento dos detentos: no conheo tribunal

    humano ao qual atribuir sua [dos prisioneiros] avaliao (LEVI,

    2005, p. 53). Aos olhos de Primo Levi, isso parece valer at mesmo

    para certos casos limite de colaborao (LEVI, 2005, p.53),

    como a dos integrantes dos Sonderkommandos, responsveis, entre

    outras coisas, por limpar as cmaras de gs, arrancar os dentes de

    ouro dos mortos, cortar-lhes os cabelos e enterr-los: difcil,

    quase impossvel, imaginar como esses homens viveram dia a dia

    (LEVI, 2005, p. 63).

    No que se refere conduta dos prisioneiros, conclui Primo Levi,

    [d]eve estar claro que a mxima culpa recai sobre o sistema, sobre

    a estrutura mesma do Estado totalitrio (LEVI, 2005, p. 22). ,

    pois, principalmente como um fenmeno intrnseco ao modo de

    funcionamento do campo que o autor pretende considerar a zona

    cinzenta e os que de l emergiram para contar a sua histria e a

    histria dos que tombaram.

    Um elemento importante nas digresses de Primo Levi a

    respeito da zona cinzenta est em que, ao contrrio do que se

    poderia supor, a presena de soldados alemes em Auschwitz

    era muito pequena. De acordo com ele, no restava aos nazistas

    outra alternativa, dada a quantidade imensa de homens exigida

    nas frentes de batalha e no controle da parte ocupada da Europa.

    Em tais condies, o regime hitlerista no podia seno recorrer

    a terceiros na execuo de uma mirade de tarefas formais e

    informais das quais dependia a rotina do campo 8. A zona cinzenta

    , ento, uma condio indispensvel para a implementao da

    chamada soluo final. Mas, por isso mesmo, ela deve ser vista

    como algo da ordem da falta, da falha na estrutura do campo:

    a mquina de aniquilao, a fim de poder funcionar, precisava,

    paradoxalmente, manter alguns vivos. Ora, esse paradoxo, em

    larga medida, que viabiliza a constituio de uma memria do

    horror: foi, afinal, pelo buraco que a zona cinzenta introduziu

    no campo que seu segredo escabroso pde escapar, na forma de

    sobreviventes que tiveram a chance testemunhar a respeito do que

    viveram e dos que morreram.

    Mas essa fenda instalada no corao de Auschwitz e dos outras

    unidades de extermnio no operava apenas no sentido de cavar

    um certo fracasso no projeto nazista, de estiol-lo, digamos, de

    dentro para fora, de barrar-lhe o impulso de totalizao. Essa

    mesma fenda comparece tambm para tambm estiol-lo no

    discurso dos sobreviventes. Explico.

    3 A MEMRIA CINZA

    Em Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi se refere natureza

    8 Ou, como anota Levi (2005, p. 51), a zona de poder, quanto mais restrita, mais necessita de auxiliares externos.

    mendaz da memria, o que, a certa altura, ele liga aos limites

    da cognio humana e s debilidades de nossa psicologia, que

    reinventa o passado a fim de, por exemplo, se proteger do que ele

    pode ter de aterrador e doloroso. Penso, no entanto, que no seja

    da isto , das questes cognitivas ou psicolgicas que venham

    as mais instigantes terminaes do pensamento de Primo Levi

    sobre o tema.

    J o disse: a memria, ele o indica em Os afogados e os sobreviventes,

    deriva da zona cinzenta. a memria no custa repetir de

    quem, diferena dos que morreram em seu lugar, no tocou o

    fundo. Nesse sentido, o que ento se rememora? O acontecido,

    claro. Mas, por outro lado, sobressai da escrita de Levi que a

    rememorao s possvel aos sobreviventes na medida em

    que algo no lhes aconteceu; na medida em que, se quiserem,

    o acontecido se encontra fendido por um no-acontecido; na

    medida em que esse no-acontecimento a experincia radical

    de Auschwitz se inscreve como falta no interior do acontecido

    narrado. Para jogar um pouco com as palavras, cabe dizer que, no

    campo da memria, h uma zona cinzenta, uma fenda, mas no

    apenas, nem principalmente, porque algo no meio do caminho

    entre o passado e o presente foi esquecido ou distorcido. O

    buraco, como se diz frequentemente por a, mais embaixo: a

    fenda estrutural, esteve desde sempre l estava j na prpria

    cena do acontecimento, na medida em que esse acontecimento

    no se completou, no aconteceu inteiramente, vazado que

    sempre esteve pela morte ou o silenciamento total de um outro,

    isto , pelo que, tendo acontecido a esse outro, no aconteceu

    ao sobrevivente. Para diz-lo ainda de uma outra maneira: no

    se trata propriamente de afirmar que a narrativa do sobrevivente

    refere-se a algo que lhe aconteceu em lugar do que lhe deveria

    ter acontecido; trata-se, antes, de dizer que o nico acontecimento

    narrvel o que o sobrevivente viveu se constitui mas tambm

    se descompleta em uma relao ntima e indissolvel com o que

    sucedeu aos que tocaram o fundo, esse enigma inenarrvel que o

    sobrevivente, estando na zona cinzenta do campo, tangenciou mas

    no experimentou.

    Dramtica tenso: no h testemunho acerca do campo seno

    o cinza. A nica memria possvel da iniquidade a memria

    dos que, justamente no tendo conhecido Auschwitz at o talo,

    podem falar dele, podem narrar o (no) acontecido.

    Pergunto-me, em todo caso, se isso que, a partir do texto de

    Primo Levi, pode-se concluir a respeito da memria do campo

    no se estende, em alguma medida, a toda experincia humana,

    ou, pelo menos, para no ser to ambicioso em minha proposio,

    experincia moderna. No estamos ns, pela vida toda e neste

    exato momento, na zona cinzenta do mundo, no limiar das grandes

    injustias, das excluses, das matanas? No esse o nosso posto

    entre as coisas? No , portanto, a ns que cumpre testemunhar

    em nome daqueles que morrem ou so reduzidos ao silncio em

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    nosso lugar?

    bem verdade que, at o fim da vida, Primo Levi guardou

    alguma reserva diante das tentativas, to difundidas, de equiparar

    a poltica nazista de extermnio a outras formas de violncia e

    aviltamento de seres humanos por outros seres humanos: o

    sistema concentracionrio nazista permanece ainda um unicum,

    em termos quantitativos e qualitativos, escreve ele a esse

    propsito em Os afogados e os sobreviventes (LEVI, 2005, p. 23).

    Mas tambm Primo Levi quem, no mesmo texto, observa:

    Com o poder compactuamos todos, de boa ou de m vontade,

    esquecendo-nos de que todos estamos no gueto, de que o gueto

    est cercado, de que fora do recinto esto os senhores da morte,

    de que um pouco mais adiante espera o trem (LEVI, 2005, p.

    88). De resto, Primo Levi quem, em A trgua, transmite a lio

    que aprendeu com um esplndido e exasperante personagem com

    quem conviveu durante sua longa viagem de regresso Itlia: A

    guerra sempre.

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 0 - 1 7 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    REFRENCIAS

    AUSTIN, J. Philosophical papers. The Clarendon Press:

    Oxford, 1961.

    BORGES, J. L. Do rigor da cincia. In: BORGES. J. L. O fazedor.

    So Paulo: Cia. das Letras, 2008.

    CLYNYTOWICZ, R. Prefcio. In: WINOGRAD, L. Um

    testemunho do sculo 20. guerras, revolues, holocausto,

    imigrao. Florianpolis, Editora da UFSC, no prelo.

    LEVI, P. isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

    ______. A trgua. So Paulo: Companhia das Letras, 2010.

    ______. Los hundidos y los salvados. Barcelona: El Aleph

    Editores, 2005.

    MACGREGOR-HAY, R. O dia do leo. Rio de Janeiro: Nova

    Fronteira, 1977.

    PATRUNO, N. Understanding Primo Levi. Columbia, SC:

    The University of South Carolina Press, 1995.

    PRIMO Levi: Back to Auschwitz. Produo: Rai Italia,

    983. Disponvel em:< https://www.youtube.com/

    watch?v=cPOKXfHOuw4>. Acesso em: 22 dez. 2014.

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    Resumen: En este artculo, voy a tratar de reexionar sobre algunas

    implicaciones del concepto de zona gris, redactados por los italianos

    escritor judo Primo Levi en el tercer libro de su triloga de

    Auschwitz. En particular, ententarei compreender cmo esta nocin

    no opne a las de Primo Levi sobre la mendacidad de memoria. La

    idea es mostrar que - si, como se indica Levi, la memoria proviene de

    la zona gris, donde la condicin es que sobrevivir implica que otro

    muera en su lugar - el nico evento narrables, es decir, la duracin

    sobrevivir , constituye sino tambin descompleta en una relacin

    ntima e indisoluble con lo que pas a los que murieron, este

    rompecabezas indecible que el sobreviviente, al estar en la zona gris,

    tangenciou pero no experimentado.

    Palabras clave: Testimonio. Holocausto. Zona gris.

    L A M E M O R I A E S G R I S :

    C O N S I D E R A C I O N E S P A R A L O S H U N D I D O S

    Y L O S S A L V A D O S , P O R P R I M O L E V I

    Abstract: In this article, I make an attempt to reect on some

    implications of the concept of gray zone, proposed by the Italian Jew

    writer Primo Levi in the third book of his Auschwitz Trilogy.

    Particularly, the task is to understand the mendacity of memories

    along with the fact that almost all of the survivors emerged from the

    gray zone. In Auschwitz, the survivors the inhabitants of the gray

    zone always survive in someone else's shoes. In fact, the condition

    of survival is the death of another prisoner. Thus, the events that can

    be narrated the ones experienced by the survivor are both

    constituted by but, at the same time, ruined by an intimate and

    insoluble relationship to the unspeakable experience of the prisoners

    who died in the camp.

    Keywords: Testimony. Holocaust. Gray Zone.

    T H E M E M O R Y I S G R A Y :

    C O N S I D E R A T I O N S F O R T H E D R O W N E D

    A N D T H E S A V E D , B Y P R I M O L E V I

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 8 - 2 5 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    Resumo: Michel Foucault realizou um diagnstico da cultura ocidental ao

    longo de seus ditos e escritos. Esse preceito de subordinar a reexo losca

    atividade diagnosticadora se inspira, do ponto de vista programtico, na

    anlise nietzschiana da moral. Mas a originalidade das pesquisas foucaultianas

    consiste em terem incidido basicamente no projeto de repensar os processos

    histricos, o estatuto do sujeito e a produo da verdade. Da ser possvel

    assinalar trs momentos distintos, porm complementares: na arqueologia,

    ocorre a denncia de toda e qualquer ideologia humanista; na genealogia

    dos anos 70, as Cincias do Homem so vinculadas s prticas de

    normalizao dos pensamentos e das condutas; nalmente, nos anos 80,

    Foucault subordina a Filosoa tarefa de transgurar o mundo, o que implica

    necessariamente em repensar o que entendemos por produo de verdade,

    prtica poltica e conduta tica.

    Palavras-chave: Diagnstico. Histria. Sujeito. Verdade.

    FOUCAULT E O DI AGNST I CO

    HI STRI CO-FI LOSFI CO

    DA MODERNIDADE

    LUIZ CELSO PINHO

    PROFESSOR ADJUNTO IV DO DEPARTAMENTO DE F ILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL

    DO RIO DE JANEIRO. PESQUISADOR DO CNPQ. E-MAIL: LUIZ [email protected].

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    1 FILOSOFIA E DIAGNSTICO

    Em termos programticos, Friedrich Nietzsche subordina

    a atividade filosfica a uma dupla exigncia. Por um lado, a

    desconfiana sistemtica em relao a tudo o que at ento fora

    considerado superior, elevado ou de mais alto valor. Deste modo,

    a prpria cultura moderna atravs de suas manifestaes de

    ordem artstica, moral, religiosa, poltica, cientfica e filosfica

    aparece como resultante de um longo processo de decadncia. Por

    outro lado, Nietzsche leva a filosofia a interagir com domnios at

    ento estrangeiros ou, pelo menos, fronteirios. Da a adoo das

    perspectivas filolgica, psicolgica, fisiolgica, histrica e mdica. nesse

    sentido que enfatiza o quanto se faz necessrio [alm de aplicar

    a cincia da linguagem aos estudos histrico-morais] [] transformar

    a relao entre filosofia, fisiologia e medicina, originalmente

    to seca e desconfiada, num intercmbio dos mais amistosos e

    frutferos, ao que se deve adicionar tambm a clarificao e

    interpretao psicolgica (NIETZSCHE, 1988 [1887]) 1. Tal

    projeto interdisciplinar leva Nietzsche a reivindicar para si a

    rubrica de mdico da civilizao (NIETZSCHE, 1991 [1872-

    1873], # 175, p. 113).

    Essa ltima imagem do filsofo que avalia o estado de sade

    da cultura seguramente guarda maior proximidade com as

    pesquisas arqueogenealgicas de Michel Foucault. Isso fica

    patente nas entrevistas que se sucedem publicao de As palavras

    e as coisas (1966), quando Foucault reiteradamente insiste na ideia

    que Nietzsche descobriu que a atividade particular da filosofia

    consiste no trabalho do diagnstico: O que somos ns, hoje?

    Qual esse hoje no qual vivemos? Tal atividade de diagnstico

    comportou um trabalho de escavao sobre seus prprios ps

    para estabelecer como se constituiu antes dele todo esse universo

    de pensamento, de discurso, de cultura que era seu universo

    (FOUCAULT, 1994a, p. 612).

    preciso salientar, contudo, que, num primeiro momento,

    o projeto de elaborar um diagnstico histrico-filosfico da

    atualidade aparece intimamente relacionado noo de Estrutura,

    tendo em vista que ela permite explicitar um acontecimento geral

    que atravessa a Era Moderna em toda a sua extenso. Atravs dela,

    tericos, no especialistas, se esforam em definir relaes atuais

    que podem existir em tal ou qual elemento de nossa cultura, tal

    ou qual cincia, tal domnio prtico ou tal domnio terico etc.

    [...] Trata-se de um tipo de estruturalismo generalizado e no mais

    limitado a um domnio cientfico preciso [...] que diria respeito

    [...] a ns, ao nosso mundo atual, ao conjunto de relaes prticas

    ou tericas que definem nossa modernidade.(FOUCAULT,

    1994b, p.581, grifos meus)

    Com isso, tal acontecimento pode ser notado em diversos

    1 Primeira Dissertao, # 17, nota.

    registros: seja no mago das Cincias do Homem, com a irrupo

    do conceito de estrutura na psicanlise lacaniana, na etnologia

    de Lvi-Strauss e na lingustica de Saussure; seja na literatura, no

    caso do primado das palavras no nouveau roman francs; seja na

    oposio entre Ser da Linguagem e Ser do Homem; seja na Lgica

    Simblica (de Russel e Wittgenstein), na qual as proposies so

    convertidas em operaes puramente algbricas; seja na obra

    do matemtico Nicolas Bourbaki que, cabe ressaltar, designa o

    pseudnimo adotado por um grupo de matemticos franceses dos

    anos 1930, cujo objetivo era elaborar livros atualizados sobre todos

    os ramos da matemtica, que pudessem servir de referncia para

    estudantes e pesquisadores (ROQUE, 2012, p. 428) 2. O interesse

    de Foucault nessa coletividade annima no reside propriamente

    no contedo terico inovador dela, mas sim na capacidade de

    tornar ainda mais difusa a noo de autoria.

    No entanto, seu intuito no se limita a destacar que a Era do

    Homem retrata um episdio bem delimitado da histria do

    pensamento ocidental, cujas condies de possibilidade devem

    ser explicitadas sem recorrer a um referencial antropolgico, a

    uma subjetividade constituinte e, muito menos, a representaes

    sociais. A postura crtica de Foucault para com a modernidade

    passa, obrigatoriamente, pela tarefa de diagnosticar o presente,

    dizer o que o presente, dizer em que diferente e absolutamente

    diferente de tudo o que no ele, isto , nosso passado

    (FOUCAULT, 1994c, p.665). Ressalte-se que tal conjuno

    ocorre exclusivamente em entrevistas ou debates e se estende ao

    longo das trs principais fases da obra de Foucault: a arqueologia

    do saber, a genealogia do poder e a genealogia da tica.

    Essa tendncia pode ser verificada logo aps o lanamento de

    Vigiar e punir (1975), quando Foucault defende que seus estudos

    sobre a priso tm por objetivo diagnosticar a situao em que

    nos encontramos a partir do que existe de estratgico e instvel

    nas relaes de poder (FOUCAULT, 1994d, p.799). Dois anos

    depois, e agora tendo como referncia as anlises de A vontade de

    saber (1976), Foucault considera a si mesmo um diagnosticador do

    desejo moderno de decifrar o sexo (FOUCAULT, 1994e, p.261).

    Em ambos os casos, a atividade filosfica deve estar centrada

    no presente e no na eternidade: estamos atravessados por

    processos, movimentos, foras; no conhecemos esses processos e

    essas foras, e o papel do filsofo consiste em ser, sem dvida,

    o diagnosticador dessas foras, de diagnosticar a atualidade

    (FOUCAULT, 1994f, p.573). nesse sentido que o trabalho

    histrico-filosfico de Foucault sobre a priso e a sexualidade,

    nos anos 70, tem por objetivo dar conta do modo de ser da

    Modernidade, tanto no que diz respeito a saberes relativos ao

    homem quanto em relao ao seu aspecto tico-poltico.

    2 Sobre a apologia do anonimato atravs da rubrica Bourbaki, ver Sur les faons dcrire

    lhistoire (entrevista a R. Bellour), Dits et crits, I, p. 597 e Quest-ce quun auteur? (conferncia), Dits et crits, I, p. 797.

    Resumo: Michel Foucault realizou um diagnstico da cultura ocidental ao

    longo de seus ditos e escritos. Esse preceito de subordinar a reexo losca

    atividade diagnosticadora se inspira, do ponto de vista programtico, na

    anlise nietzschiana da moral. Mas a originalidade das pesquisas foucaultianas

    consiste em terem incidido basicamente no projeto de repensar os processos

    histricos, o estatuto do sujeito e a produo da verdade. Da ser possvel

    assinalar trs momentos distintos, porm complementares: na arqueologia,

    ocorre a denncia de toda e qualquer ideologia humanista; na genealogia

    dos anos 70, as Cincias do Homem so vinculadas s prticas de

    normalizao dos pensamentos e das condutas; nalmente, nos anos 80,

    Foucault subordina a Filosoa tarefa de transgurar o mundo, o que implica

    necessariamente em repensar o que entendemos por produo de verdade,

    prtica poltica e conduta tica.

    Palavras-chave: Diagnstico. Histria. Sujeito. Verdade.

    FOUCAULT E O DI AGNST I CO

    HI STRI CO-FI LOSFI CO

    DA MODERNIDADE

    LUIZ CELSO PINHO

    PROFESSOR ADJUNTO IV DO DEPARTAMENTO DE F ILOSOFIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL

    DO RIO DE JANEIRO. PESQUISADOR DO CNPQ. E-MAIL: LUIZ [email protected].

    G A V A G A I

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 8 - 2 5 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    A partir de 1980, seus estudos se concentram no perodo greco-

    romano. Mas no h propriamente um retorno antiguidade

    clssica por dois motivos: em primeiro lugar, no Curso do Colgio

    de Frana de 1971 (Lies sobre a vontade de saber) ocorre uma

    minuciosa leitura das filosofias platnica e aristotlica, alm do

    manifesto interesse na sabedoria de dipo (que tambm ocupar

    lugar de destaque nas conferncias A verdade e as formas jurdicas);

    em segundo lugar, Foucault recorre aos antigos, visando superar

    a Era Moderna atravs da constituio de um estilo de existncia

    que permita a ruptura com as convenes, os hbitos, os valores,

    da sociedade ocidental (FOUCAULT, 2009, p.170). Esse anseio

    por superao, que o prprio Foucault identifica como expresso

    de uma atitude revolucionria, resulta, pois, da necessidade de

    avaliar criticamente o modo como somos, pensamos e agimos na

    atualidade.

    A proposta de realizar um diagnstico histrico-filosfico est

    ancorada, pelo menos no que diz respeito s suas diretrizes

    programticas, a um triplo preceito: deixar de lado o carter

    fundante do sujeito; conceber os processos histricos a partir de

    uma dinmica blica; subordinar a noo de verdade a elementos

    polticos e ticos.

    2 A INVENO DO SUJEITO

    O termo inveno designa, numa perspectiva foucaultiana, a

    inexistncia de essncias; de ideias, noes ou conceitos pr-

    existentes; em suma, ausncia de um ponto de partida ancorado

    em evidncias ou certezas. Tambm remete a uma concepo

    descontinuista dos processos histricos, pois desfaz a iluso

    retrospectiva de que houve um aprimoramento linear ou

    cumulativo de saberes. Nesse sentido, tanto no adequado falar

    em progresso da racionalidade quanto de uma finalidade implcita.

    Mais ainda, o mtodo arqueogenealgico rompe com a iluso

    antropolgica (e mesmo metafsica) de resgatar unidades ou

    totalidades ao promover uma historizao radical que fragmenta

    tudo aquilo que se acreditava ser idntico a si mesmo e envereda

    pelo campo do mltiplo e da heterogeneidade.

    Aplicando essa perspectiva ao caso do sujeito, nos deparamos com

    a estratgia metodolgica de repensar os processos de subjetivao.

    Da Foucault ressaltar a importncia de tentar ver como se d,

    atravs da histria, a constituio de um sujeito que no dado

    definitivamente, que no aquilo a partir do que a verdade se

    d na histria, mas de um sujeito que se constitui no interior

    mesmo da histria, e que a cada instante fundado e refundado

    na histria (FOUCAULT, 1996 [1974], p.10). Essa perspectiva o

    leva a afirmar, em Vigiar e punir, que o sujeito no passa de um

    tomo fictcio (FOUCAULT, 1975, p.227), o que nos remete

    diretamente desconfiana, inaugurada por Nietzsche, em relao

    aos valores humanistas da Era Moderna, mais exatamente queles

    que colocam o homem na base de tudo o que podemos saber, que

    o consideram responsvel por sua liberdade, que o tornam senhor

    de sua linguagem, que fazem a histria gravitar em torno dele.

    Porm, o martelo destruidor das verdades eternas no o mesmo

    nos dois filsofos de linhagem diagnosticadora.

    Enquanto Nietzsche, por exemplo, constata que o sentido de toda

    cultura amestrar o animal de presa homem, reduzi-lo a um

    animal manso e civilizado, domstico (NIETZSCHE, 1988 [1887],

    # 11, p.40), tolhendo seu potencial criador e afirmador; para

    Foucault, seria mais apropriado falar de tecnologias que tm por

    meta aumentar a eficincia dos indivduos, distribuindo-os em

    espaos bem delimitados, cronometrando suas atividades, fazendo-

    os evoluir atravs de exerccios que maximizam suas foras.

    Em sua genealogia da alma moderna (FOUCAULT, 1975,

    p.38), ressalta que o julgamento dos delinquentes se faz a partir do

    que permanece na sombra e no do ato propriamente dito. Com

    isso, punem-se as agresses, mas, atravs delas, as agressividades;

    as violaes, mas, ao mesmo tempo, as perverses; os homicdios,

    que so, tambm, os impulsos e os desejos (FOUCAULT, 1975,

    p.25), ou seja, o que h de mais profundo na mente humana.

    O diagnstico foucaultiano inspirado na tese nietzschiana de

    que houve uma interiorizao dos impulsos espontneos dos

    indivduos pela ao repressora do Estado e/ou da Religio

    nos mostra que a priso refora uma tecnologia altamente

    eficaz sobre os corpos, cujos principais efeitos so uma alma a

    conhecer e uma sujeio a manter (FOUCAULT, 1975, p.345).

    Porm, essa dinmica no fica restrita ao universo do criminoso,

    pois se encontra disseminada por toda a sociedade: da sala de

    aula aos consultrios, passando pelo ambiente de trabalho e

    pelo treinamento militar. Verificamos semelhante mecanismo

    entrar insidiosamente em ao tambm quando surgem discursos

    normatizadores, notadamente no campo pedaggico e psi,

    que impelem os indivduos a assumirem identidades sexuais

    a histrica, o perverso, o masturbador, o casal reprodutor, o

    homossexual etc. A fabricao de sujeitos a forma quase que

    despercebida pela qual o poder se manifesta na modernidade, pois

    medida que o poder se torna mais annimo e mais funcional,

    aqueles sobre os quais ele se exerce tendem a ser mais fortemente

    individualizados (FOUCAULT, 1975, p.226).

    3 POR UMA COMPREENSO GENEALGICA DOS

    PROCESSOS HISTRICOS

    No ensaio Nietzsche, a genealogia, a histria (1971), Foucault

    considera que o discurso histrico deve recusar a pesquisa

    metafsica da origem, o que o leva a lhe atribuir as funes de:

    1. inquieta[r] o que se percebia imvel, fragmenta[r] o que se

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    pensava unido, mostra[r] a heterogeneidade do que se imaginava

    conforme a si mesmo; 2. explicitar os diversos sistemas de

    sujeio, o jogo casual de dominaes (FOUCAULT, 1994g,

    p.142-143). Em A verdade e as formas jurdicas, dois anos depois,

    volta a manifestar sua insatisfao para com a tradio Metafsica

    ao defender que os processos histricos envolvem rupturas e

    invariavelmente revelam algo que possui um pequeno comeo,

    baixo, mesquinho, inconfessvel (FOUCAULT, 1996 [1974],

    p.15). Atravs da ideia de baixas origens, Foucault denuncia a

    concepo idealista de que existe um estado anterior a tudo o

    que externo, acidental, sucessivo, que se situa antes da queda,

    antes do corpo, antes do mundo e do tempo, retratando, por

    isso, um momento imaculado, perfeito, superior (FOUCAULT,

    1994g, p.139) 3. Do ponto vista genealgico, o devir encontra-se

    regido por uma combinao de foras atuantes a cada momento

    que no obedecem nem a uma destinao, nem a uma mecnica,

    mas ao acaso da luta (FOUCAULT, 1994g, p.148).

    A leitura de Nietzsche serve de referncia para Foucault abordar a

    reconstituio histrica dos saberes a partir de uma perspectiva de

    base no-metafsica, na qual o projeto de busca de uma origem ideal

    deixado de lado. Cabe destacar ainda que a tarefa de remontar

    ao passado implica a utilizao de um instrumental terico capaz

    de dar conta dos mecanismos polticos atuantes no momento

    presente, isto , na atualidade. Ao se falar de um diagnstico da

    modernidade, contudo, devemos evitar transposies diretas

    entre a histria genealgica de Foucault e a Genealogia da moral

    do filsofo alemo 4. Da ser importante ressaltar que o projeto

    foucaultiano se caracteriza por realizar uma genealogia do atual

    complexo cientfico-judicirio (FOUCAULT, 1975, p.30). Isso o

    leva a se interessar por

    uma multiplicidade de processos sempre menores, de origem

    diferente, de localizao esparsa, que se recortam, se repetem ou

    se imitam, se apiam uns sobre os outros, se distinguem segundo

    seu domnio de aplicao, entram em convergncia e desenham,

    pouco a pouco, o esquema de um mtodo geral. (FOUCAULT,

    1994g, p.162-163)

    A constituio do dispositivo disciplinar, em relao a uma

    tecnologia do poder de punir e confessional, no caso da

    necessidade de extrair uma verdade sobre a sexualidade do

    indivduo , obedece a uma diretriz genealgica no somente

    porque reconhece que lida com pergaminhos desordenados,

    apagados, reescritos (FOUCAULT, 1994g, p.136), mas tambm

    porque coloca em cena relaes de fora ao mesmo tempo

    3 preciso duvidar, adverte Nietzsche (2000 [1876], # 1, p. 15) , de que haja

    para as coisas de mais alto valor uma origem miraculosa, diretamente do mago e da essncia da coisa em si (Humano, demasiado humano, Das coisas primeiras e ltimas).

    4 Este livro, alis, fornece os mais diversos subsdios tericos: desde as bases morais do

    nascimento do indivduo (Histria da loucura) at o estabelecimento de um modelo de escrita da histria (Vigiar e punir e A vontade de saber), passando, claro, pela crtica do sujeito e pela instaurao de um espao filolgico-filosfico (As palavras e as coisas).

    desequilibradas, heterogneas, instveis e tensas. nesse sentido

    que a atividade filosfica em Foucault adquire uma funo

    diagnosticadora.

    Em oposio ao projeto humanista de tomar o sujeito como

    origem e fundamento do Saber, da Liberdade, da Linguagem, e

    da Histria (FOUCAULT, 1994h, p.788), de nele situar, enfim,

    sua prpria verdade; as anlises empreendidas por Foucault

    caracterizam-se pela tentativa de confrontar o homem, sua

    conscincia, sua racionalidade, com aquilo que ao invs de o

    conduzir tranquilamente ao abrigo do que lhe familiar, o torna

    personagem de uma histria na qual ele s pode reconhecer os

    contornos de sua imagem por um breve instante.

    4 POLTICA DA VERDADE CORAGEM DA VERDADE

    No incio da dcada de 70, na aula inaugural do Colgio de

    Frana A ordem do discurso lemos que os discursos (num

    sentido abrangente) no circulam ou proliferam de modo

    livre e espontneo nas sociedades ocidentais: eles so regidos

    por um conjunto de mecanismos de controle, delimitao e

    ordenamento. O perodo arqueolgico estava norteado pelo

    princpio metodolgico de que no importa quem fala, ou seja,

    h uma dissociao entre conhecimento e sujeito. Agora,

    sem prejuzo dessa perspectiva anti-humanista, verificamos a

    sobreposio de outro preceito: para entender o alcance de

    uma fala verdadeira faz-se necessrio situ-la em relao a

    modalidades de governo de si mesmo (fator tico) e dos outros

    (fator poltico).

    Alm disso, a adoo de um referencial genealgico tambm impele

    Foucault a renunciar a toda uma tradio que permite imaginar

    que s pode haver saber onde as relaes de poder esto suspensas

    e que o saber s pode se desenvolver fora de suas injunes, de

    suas exigncias e de seus interesses (FOUCAULT, 1975, p.36).

    Para alm de uma concepo tradicional do par saber-poder, que

    remonta a Plato e que encontra em Nietzsche seu principal

    adversrio, devemos reconhecer que no h heterogeneidade

    entre a esfera poltica e a esfera do saber. nesse sentido que se

    quisermos realmente conhecer o conhecimento, saber o que ele ,

    aprend-lo em sua raiz, em sua fabricao, devemos nos aproximar

    no dos filsofos, mas dos polticos, devemos compreender quais

    so as relaes de luta e de poder (1996 [1974], p.23).

    A partir dessa concepo blica de conhecimento, o genealogista

    estrutura seu diagnstico da sociedade disciplinar que se consolida

    no sculo XX. Mas no se trata de supor uma gradao: quanto

    mais saber mais poder. As anlises de Foucault retratam uma

    pressuposio recproca ou a uma espcie de reforo mtuo

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 1 8 - 2 5 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    entre Poltica e Verdade. Isso fica patente no modo como articula

    o funcionamento de instituies corretivas, militares, mdicas,

    escolares e industriais, tendo em vista que o ritmo da marcha da

    tropa e a habilidade no manejo das armas, por exemplo, envolvem

    no apenas controle e obedincia, mas tambm uma distribuio

    rigorosa do tempo e do espao que tem como correlato a eficcia

    produtiva nas fbricas, a complexidade crescente das tarefas nas

    instituies de ensino e o planejamento arquitetnico de hospitais

    e prises no sentido de tanto limitar a circulao das pessoas

    quanto favorecer os mecanismos de fiscalizao e ordenao das

    massas humanas.

    A concepo foucaultiana de corpo ilustra bem como se d a juno

    dos dispositivos de poder com a produo de conhecimentos:

    existe um saber do corpo que no exatamente a cincia de seu

    funcionamento, e um domnio de suas foras que mais do que

    a capacidade de venc-las: esse saber e esse domnio constituem

    aquilo que poderemos chamar de tecnologia poltica do corpo

    (FOUCAULT, 1975, p.31). O que Foucault pretende ressaltar

    que, do ponto de vista genealgico, seria pobre e insuficiente

    conceber um poder que s teria a potncia do no; fora do

    estado de nada produzir, apto somente a colocar limites, seria

    somente antienergia; tal seria o paradoxo de sua eficcia: nada

    poder, seno fazer com que aquele que ele submete nada possa

    fazer, seno o que ele lhe deixa fazer (FOUCAULT, 1976, p.112).

    Tal poder opressor certamente existe (Vigiar e punir inclusive o

    associa explicitamente aos regimes monrquicos), s que o poder

    estudado por Foucault tem uma positividade, ou seja, uma eficcia

    poltica (minimizar o potencial de revolta), econmica (aumento

    da fora de trabalho) e epistemolgica (surgimento das Cincias

    do Homem).

    O diagnstico do presente explica a produo de um saber sobre

    o homem em termos de uma poltica da verdade, pois o

    discurso uma arma de poder, de controle, de assujeitamento,

    de qualificao e desqualificao [...] (FOUCAULT, 1994i,

    p.124). Com isso, o conhecimento adquire uma feio mundana,

    isto , deixa de remeter a um estado ideal de pureza e passa a

    fazer parte de relaes de fora modificveis, historicamente

    datadas e institucionalmente localizveis. Diagnosticar os efeitos

    produtivos do binmio saber-poder permite assinalar at que

    ponto, por exemplo, educadores, agentes de sade (mental e

    fsica), trabalhadores sociais, de modo geral, podem se constituir

    numa espcie de funcionrios da ortopedia mental. Esse tipo

    de indagao retrata justamente a postura crtica da genealogia

    foucaultiana em relao modernidade, ou ainda, quilo que nos

    tornamos a partir do momento em que as relaes sociais passam

    a ser envolvidas por uma rede de micro-poderes que atuam

    diariamente sobre os corpos e se respaldam no que se pode saber a

    respeito tanto de seu funcionamento quanto de sua capacidade de

    perpetuar os efeitos da mquina produtiva capitalista.

    No entanto, se se pretende abranger o campo genealgico

    percorrido por Foucault em sua mxima extenso, faz-se

    necessrio nos situarmos para alm do estudo dos mecanismos

    normalizadores que perpassam os discursos sobre o indivduo.

    preciso tambm levar em conta as anlises histrico-filosficas

    a respeito da problematizao da conduta individual, ou seja, o

    eixo tico das reflexes foucaultianas no qual temticas como

    bom uso da liberdade, vida como uma obra de arte, esttica

    da existncia, cuidado de si e dos outros, arte de governar,

    tornam-se a matriz a partir da qual o conceito de verdade adquire

    uma imagem renovada, pois deixa de remeter aos parmetros

    lgico-epistemolgicos tradicionais.

    Ao relacionar o termo grego parresia aos riscos de uma fala

    verdadeira, Foucault pretende investigar a questo da importncia

    de dizer a verdade, de saber quem est habilitado para dizer a

    verdade e por que deveramos dizer a verdade (FOUCAULT,

    2001, p.170, [Notas de concluso]). Tem-se aqui o primeiro

    passo no sentido de construir uma genealogia da atitude crtica

    da filosofia ocidental (FOUCAULT, 2001, p.170-171), entendida

    como a anlise de um tipo de discurso capaz de modificar o

    prprio modo de ser do indivduo e daqueles que com ele

    interagem. Logo no incio do curso A coragem da verdade, Foucault

    afirma que pretende retornar a certo nmero de problemas

    contemporneos (FOUCAULT, 2009, p.3). Estabelece, com isso,

    uma ponte entre a fala atrevida da antiguidade greco-romana e o

    que modernamente vivenciamos na militncia revolucionria e na

    transgresso artstica. Seu interesse reside em conjugar a questo

    do diagnstico da cultura a uma perspectiva emancipatria, tendo

    em vista que a conduta parresistica envolve necessariamente

    algum tipo de incmodo ou mesmo provocao.

    5 CONCLUSO

    As anlises arqueogenealgicas de Foucault tanto pretendem

    determinar como se deu a formao do conceito de homem na

    modernidade como tambm realizam um diagnstico nietzschiano

    das Cincias do Homem. Esto ancoradas, pois, em obras como

    O nascimento da tragdia e Assim falou Zaratustra, que despontam,

    respectivamente, o Nietzsche-mdico e o Nietzsche-legislador,

    ou seja, o filsofo que pretende restaurar o estado de sade da

    civilizao atravs da adoo de uma nova tbua de valores. Nos

    dois casos, a modernidade diagnosticada como decadente, sendo

    o humanismo a expresso recente desse movimento cultural.

    A dimenso judicativa das pesquisas foucaultianas envolvem

    questionamentos que, em vez de vislumbrarem o espao idlico

    das essncias ou o tempo imvel das ideias, despertam para a

    tarefa verdadeiramente crtica do diagnstico do presente. Assim,

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    as novas perguntas que se impem so do tipo: possvel pensar

    sem se remeter presena de uma conscincia soberana e unitria,

    fundamento de todo discurso que se pretenda rigoroso? possvel

    tornar-se agente da histria sem invocar um sujeito autnomo,

    responsvel por seu prprio destino e at mesmo pelos rumos da

    civilizao? possvel fazer um bom uso da liberdade para falar

    e agir de modo coerente e sem receio dos riscos iminentes? Na

    quarta capa da edio francesa de O uso dos prazeres e O cuidado de

    si, Foucault ilustra o que talvez seja o leitmotiv de seu diagnstico

    da cultura ocidental com uma frase do poeta Ren Char: A

    histria dos homens a longa sucesso de sinnimos de um

    mesmo vocbulo. Contradiz-la um dever (FOUCAULT, 2009,

    p. 212) 5. Alm de destruir evidncias, o filsofo-mdico instiga o

    desconforto em relao quilo que se mostra estagnado.

    5 Nota 33. Esse adendo de autoria de Daniel Defert.

    REFRENCIAS

    FOUCAULT, Michel. Le courage de la vrit. Le gouvernement de soi et des autres, II (Cours au Collge de France: 1984). Edio organizada por Frdric Gros. Paris: Gallimard-Seuil, 2009.

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    ______. La philosophie structuraliste permet de diagnostiquer ce quest aujourdhui [entrevista a G. Fellous]. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome I, (1954-1969). Paris: Gallimard, 1994b. p.580-585.

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    ______. Radioscopie de Michel Foucault [entrevista a J. Chancel] . In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome II, (1970-1975). Paris: Gallimard, 1994d. p.783-802.

    ______. Non au sexe roi [entrevista a B.-H. Lvy]. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994e. p.256-269.

    ______. La scne de la philosophie [entrevista a M. Watanabe]. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994f. p.571-595.

    ______. Nietzsche, la gnalogie, lhistoire. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome II, (1954-1969). Paris: Gallimard, 1994g. p.136-156.

    ______. La naissance dun monde [entrevista a J.-M. Palmier]. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome I, (1954-1969). Paris: Gallimard, 1994h. p.786-789.

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    ______. Le discours ne doit pas tre pris comme... [manuscrito datilografado]. In: FOUCAULT, M. Dits et crits, tome III (1976-1979). Paris: Gallimard, 1994i. p.123-124.

    ______. La volont da savoir (Histoire de la sexualit, t. I). Paris: Gallimard, 1976.

    ______. Surveiller et punir. naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975 (Coleo Tel, edio de bolso).

    ______. A verdade e as formas jurdicas conferncias de Michel Foucault na PUC-RJ de 21 a 25 de maio de 1973. Traduo de Roberto Machado e Eduardo Jardim. Rio de janeiro: Nau, 1996 [1a impr.: 1974].

    GIACIA JNIOR, Osvaldo. Filosofia como diagnstico do presente: Foucault, Nietzsche e a genealogia da tica. In: MARIGUELA, Mrcio (Org.). Foucault e a destruio das evidncias. Piracicaba, SP: Unimep, 1995, p. 81-100.

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    MACHADO, Roberto. Foucault, a cincia e o saber. 3. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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    Resumen: Michel Foucault realiz un diagnstico de la cultura occidental

    en todo sus dichos y escritos. Este precepto de subordinar la reexin

    losca hacia la actividad diagnosticadora se basa, desde un punto de vista

    programtico, en el anlisis de la moralidad nietzscheana. Sin embargo, la

    originalidad de las investigaciones foucaultianas consiste en centrarse

    principalmente en el proyecto de repensar los procesos histricos, el

    estatuto del sujeto y la produccin de la verdad. Por lo tanto, es posible

    sealar tres momentos distintos, aunque complementarios: en la

    arqueologa, se produce la denuncia de la ideologa humanista; en la

    genealoga de los aos 70, las Ciencias del Hombre estn vinculadas a las

    prcticas de la normalizacin de los pensamientos y comportamientos; por

    ltimo, en los aos 80, Foucault sostiene que la tarea de la losofa es

    transgurar el mundo, lo que necesariamente implica repensar lo que se

    entiende por la produccin de la verdad, la prctica poltica y la conducta

    tica.

    Palabras clave: Diagnstico. Historia. Sujeto. Verdad.

    F O U C A U L T Y E L

    D I A G N S T I C O H I S T R I C O - F I L O S F I C O

    D E L A M O D E R N I D A D

    Abstract: Michel Foucault carried out a diagnosis of the Western culture

    throughout his sayings and writings. In a programmatic point of view, such

    precept based on subordination of the philosophical reection towards a

    diagnostic activity has its roots in Nietzsche's analysis of morality.

    Nevertheless, the novelty in Foucault's studies consists in focusing primarily

    on the project of rethinking historical processes, the status of the subject

    and the production of truth. Hence it's possible to point out three

    distinguishable instants, yet complementary: in archeology, complaint of any

    humanist ideology occurs; in the 1970s genealogy, Human Sciences are

    bound to the practice of standardization of thoughts and behaviors; and

    nally, in the 1980s, Foucault entrusts to philosophy with the task of

    transguring the world, which necessarily implies rethinking what we

    understand by the production of the truth, political practice and ethical

    conduct.

    Keywords: Diagnosis. History. Subject. Truth.

    F O U C A U L T ' S

    H I S T O R I C A L- P H I L O S O P H I C A L D I A G N O S I S

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    G A V A G A I , E r e c h i m , v . 2 , n . 2 , p . 2 6 - 3 9 , n o v . / d e z . 2 0 1 4

    Resumo: Nosso objetivo descrever as diferentes entidades nosolgicas que hoje so relacionadas ao

    Transtorno de Dcit de Ateno com Hiperatividade (TDAH) e analisar de que forma as

    explicaes biolgicas foram se consolidando, at chegar ao ponto em que predominam as

    reducionistas. Foram analisados artigos de duas revistas cientcas: The American Journal of

    Psychiatry e Pediatrics, de 1950 a 2009, e as diferentes edies do Manual Diagnstico e Estatstico

    dos Transtornos Mentais (DSM). Apresentamos os nomes e conceitos relacionados ao TDAH, tanto

    os que aparecem no manual quanto os que aparecem somente nos artigos. Fazemos uma crtica s

    explicaes reducionistas, argumentando que, para compreendermos os sofrimentos e

    comportamentos humanos, necessrio levar em considerao vrios fatores. Defendemos que no

    h resultados cientcos atuais que garantam que o TDAH seja ontologicamente uma doena, como

    o discurso hegemnico em torno do transtorno aceita.

    Palavras-chave: Transtorno de Dcit de Ateno com Hiperatividade. Hipercinese. Disfuno

    Cerebral Mnima. Encefalite Letrgica. Explicaes reducionistas.

    DA