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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES
CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
NEIVA ANDRÉA KLAGENBERG
MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:
NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO
Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski
Orientador
Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira Co-Orientador
Frederico Westphalen 2009
2
NEIVA ANDREA KLAGENBERG
MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:
NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen, pelo Departamento de Linguística, Letras e Artes. Orientadora: Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski Co-orientador: Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira
Frederico Westphalen, novembro, 2009
3
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões
Pró-Reitoria de Ensino Departamento de Lingüística, Letras e Artes
Campus de Frederico Westphalen – RS Mestrado em Letras - Área de Concentração: Literatura
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado
MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:
NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO
elaborada por NEIVA ANDREA KLAGENBERG
como requisito para obtenção do grau de
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________ Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – URI
(Presidente/Co-Orientador)
______________________________________________ Membro Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho –UEFS
____________________________________________
Membro Profª. Dr. Denise Almeida Silva – URI
Frederico Westphalen, 04 de novembro de 2009.
AGRADECIMENTOS
À família, especialmente Tarcísio e Arthur pela grande compreensão.
À equipe de professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração
em Literatura, pelos ensinamentos recebidos.
Ao professor André, pela ajuda dispensada na minha orientação.
Aos colegas Edevandro, Luciane, Marli e Miquela, pela cumplicidade e pelos
bons momentos juntos.
Um agradecimento especial à professora Ada Maria Hemilewski – minha
orientadora, pelas constantes motivações e principalmente pelo seu jeito de
ensinar literatura.
RESUMO
Esta dissertação investiga como duas obras da narrativa ficcional sulina processam o sentimento de exílio e a consciência nacional ao representarem histórias de imigrantes alemães e de teutobrasileiros estabelecidos no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, e no Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, abarcando o contexto da Segunda Guerra Mundial. A pesquisa centra-se nesses elementos, analisando um corpus formado pelos romances No tempo das tangerinas, de Urda Alice Klueger, e Um rio imita o Reno, de Clodomir Vianna Moog. O presente estudo será embasado fundamentalmente nas teorias de Benedict Anderson e Ernest Renan, quanto ao conceito de nação, e de Edward Said, em relação ao exílio, apoiando-se também nas considerações de Gérard Genette sobre o discurso da narrativa.
Palavras-chave: Clodomir Vianna Moog. Cultura Germânica. Exílio. Nação. Urda Alice Klueger.
7
ABSTRACT
The present thesis investigates how two Southern Brazilian literary works process the exile feeling and the national conscience when they represent the context of the Second World War, focusing histories of German inmigrants and Teuto-Brazilian who lived at the Southern Brazilian states of Santa Catarina and Rio Grande do Sul. This way, the mentioned elements are analyzed in a a corpus formed by the following novels: Urda Alice Klueger’s No tempo das tangerinas (1983) and Clodomir Viana Moog’s Um rio imita o Reno (1939). This study is mainly supported by Benedict Anderson and Ernest Renan's theories of nation, Edward Said’s ideas concerning to exile and Gérard Genette’s considerations about narrative and its discourse.
Keywords: Brazilian Novel. Clodomir Vianna Moog. German Culture. Exile. Nation. Urda Alice Klueger.
9
SUMÁRIO
1. FRONTEIRAS DA PALAVRA 10
1.1 O Discurso Literário 10 1.2 Nação e Narrativa 18
2 DESLOCAMENTOS E MIGRAÇÕES 24
2.1 O Exílio e Outros Processos 24 2.2 A Imigração Alemã no Brasil 32 2.3 Regiões Culturais 43
3. DICÇÃO GERMÂNICA NA PROSA SULINA 51
3.1 Uma Romancista à Esquerda do Verde Vale 51 3.2 No Vale dos Sinos, um Cidadão do Mundo 59
4. IMIGRANTES ALEMÃES NA FICÇÃO BRASILEIRA 67
4.1 No Tempo das Tangerinas 67 4.2 Um Rio Imita o Reno 85
5. NAÇÕES E NARRAÇÕES 99
5.1 Narrativas em Comunicação 99 5.2 Uma Região e suas Ficções 110
REFERÊNCIAS 116
10
1. FRONTEIRAS DA PALAVRA
Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira
é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.
MARTIN HEIDEGGER
1.1 O Discurso Literário
Este trabalho visa à análise da migração (e, dentro dela, do exílio) assim
como ao estudo da consciência nacional nas obras literárias No tempo das
tangerinas,1 de Urda Alice Klueger e Um rio imita o Reno,2 de Clodomir Vianna
Moog, dando ênfase à articulação entre as estratégias narrativas e as imagens
que revelam do Brasil e dos exilados. A justificativa para a realização desta
pesquisa centra-se, primeiro na inexistência de pesquisas confrontando o
primeiro desses romances, publicado em 1939, e o segundo, editado em 1983.
Em segundo lugar, o estudo das obras literárias permite o aprofundamento
de uma questão pela qual a autora deste trabalho se interessa há muito tempo: a
imigração alemã e o contexto da Segunda Guerra Mundial no Brasil. Por outro
lado, o tema da consciência nacional foi objeto de estudo de uma disciplina do
Mestrado em Literatura da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e
das Missões, campus Frederico Westphalen: Literatura Brasileira e Identidade
Nacional. Além disso, a dissertação é justificada pelo fato de se inserir numa das
1 KLUEGER, Urda. No tempo das tangerinas. Blumenau: Hemisfério Sul, 2003.
2 MOOG, Vianna. Um rio imita o Reno. Porto Alegre: Globo, 1957.
11
linhas de pesquisa mantidas pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da URI-
FW: Literatura, História e Imaginário.
Neste primeiro capítulo, introdutório, são apresentados o tema, os
objetivos, a estrutura do trabalho, assim como os aportes teóricos a serem
utilizados. Privilegiam-se as considerações acerca do discurso da narrativa e das
relações entre a nação e o discurso. O segundo capítulo enfoca as migrações e
deslocamentos em geral, especificamente, o sentimento de exílio e a imigração
tanto na América Latina quanto no Brasil. Nesse sentido, destacam-se as
reflexões, bastante aproximadas, de Clodomir Vianna Moog e Angel Rama, sobre
o conceito de regiões literárias, contraposto ao da homogeneidade das
literaturas nacionais.
O terceiro capítulo se constitui da fortuna crítica dos romancistas Urda
Alice Klueger e Vianna Moog, enquanto o quarto capítulo analisa os romances No
tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno, da autoria desses autores, quanto
à representação da imigração, do exílio e da nação. Finalmente, no quinto
capítulo, são expressas as conclusões às quais a pesquisa realizada permitiu
chegar.
Para tanto, começa-se por dizer que a narrativa é tão antiga quanto a
história da humanidade, estando presente em todos os povos e culturas, numa
grande variedade de gêneros. Para Walter Benjamim, “a narrativa é, ela própria,
num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está
interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação
ou um relatório. Ela mergulha na vida do narrador para em seguida retirá-la
dele”.3
A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. De
acordo com Benjamim, a origem da narrativa romanesca está no indivíduo isolado,
3 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo; Brasiliense, 1996. p. 205.
12
que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais
importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. A partir desse
pressuposto, o filósofo salienta que escrever um romance significa descrever
uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza da
vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de
quem a vive. O autor escolhe a perspectiva e, em conseqüência, estabelece o
sentido.
O romance, como toda narrativa ficcional, apresenta um discurso que
pode ser mais bem compreendido através dum olhar atento as suas categorias
básicas. De acordo com Gérard Genette,4 para evitar ambigüidades no
entendimento dos domínios da narrativa, é preciso distingui-la em três noções. A
primeira é o enunciado narrativo, que pode ser oral ou escrito. A segunda, menos
difundida, é a sucessão de acontecimentos, a ordem em que os fatos são
contados. Na terceira, aparentemente mais antiga, a narrativa designa um
acontecimento: já não, todavia, aquele que conta, mas que consiste em que alguém
conte alguma coisa é o ato de narrar em si mesmo.
Genette5 declara que o ponto de partida de sua teoria é a divisão
realizada por Tzvntan Todoróv em Les catégories du récit littétaire, a qual
classifica os problemas da narrativa em três categorias: 1) a do tempo, relação
entre o tempo da história e do discurso; 2) a do aspecto, maneira pela qual a
história é percebida pelo narrador; 3) a do modo, tipo de discurso utilizado pelo
narrador. Redistribuindo essas categorias, o autor organiza os problemas da
análise do discurso narrativo segundo as categorias tomadas da gramática do
verbo, constituindo, assim, as categorias do tempo, modo e da voz.
4 GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1995. p. 10. 5 Id. Ibid. p. 11.
13
A categoria do tempo é aquela que está ligada às relações temporais
entre narrativa e diegese, ou seja, a relação entre o tempo do discurso e o tempo
da história. O modo está vinculado às modalidades (formas e graus) da
representação narrativa. Ambas tratam das relações que se estabelecem entre
história e narrativa. A categoria voz é a forma pela qual se encontra implicada na
narrativa a própria narração, ou seja, a situação ou instância narrativa e seus
dois protagonistas: o narrador e seu destinatário.
Genette afirma que a análise do discurso narrativo é essencialmente a
análise das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração e
entre história e narração. A categoria tempo envolve critérios que dizem
respeito à ordem, duração e freqüência temporal formando uma sucessão de
acontecimentos na diegese: “A narrativa é uma seqüência duas vezes temporal; há
o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e do
significante)”.6 A ordem temporal da narrativa confronta a ordem da disposição
dos acontecimentos temporais do discurso narrativo com a ordem de sucessão
desses mesmos acontecimentos na história. As diferentes formas de
discordância são chamadas de “anacronias”, que se constituem de toda a inversão
de tempo da história, como ela foi contada, tempo e pseudotempo.
As anacronias podem ser dividas em dois grandes grupos: as “analepses” e
as “prolepses”. As analepses se referem a um tempo passado em relação à
narrativa primeira. As prolepses se referem a um tempo futuro. A anacronia
constitui, em relação à narrativa na qual se insere, uma narrativa temporalmente
segunda, mas subordinada à primeira. As analepses podem ser qualificadas de
externas e internas. As externas não têm relação direta com a narrativa, são
exteriores a ela e não interferem na narrativa primeira; sua função é esclarecer
o leitor sobre algum dado antecedente. As analepses internas têm seu campo
6 GENETTE, 1995, p. 31.
14
temporal inserido na narrativa primeira, podem ser homodiegéticas quando
ocorre uma volta dentro da história influenciando a seqüência dos fatos. A
analepse interna pode ainda ser heterodiegética, quando a mesma volta no tempo
não interfere na história; Geralmente, é a apresentação das personagens, mas em
relação com a voz que narra. Pode também existir a analepse mista, cujo ponto de
alcance é anterior ao ponto de amplitude e posterior ao começo da narrativa
primeira.
Quando as anacronias se antecipam, ou se referem a um tempo futuro,
são chamadas de prolepses. As prolepses não aparecem tanto nos textos como as
analepses, sendo mais características em textos narrativos em primeira pessoa
que assim autorizam seu narrador a fazer antecipações: “Elas não são muito
comuns na narrativa tradicional ocidental, entretanto, cada uma das três grandes
epopéias antigas, Ilíada, Odisséia e a Eneida, começa por uma espécie de sumário
antecipado que justifica numa certa medida a fórmula aplicada por Todorov à
narrativa homérica: intriga da predestinação”.7
Assim como as analepses, as prolepses podem ser internas, externas e
mistas. Dentro da narração, desempenham apenas o papel de anunciar um
assunto que será a seu tempo contado. As prolepses internas antecipam
informações inscritas no corpo da narrativa primeira assumindo o segmento
profético, já as prolepses externas têm a função de epílogo. Por sua vez, a mista
constitui uma modalidade em princípio apenas hipotética: “de fato para se
concretizar, teria que decorrer desde o interior da narrativa primeira até para
além do seu final, exigindo, por um lado, um segmento temporal inusitadamente
extenso e, por outro lado, a revelação extemporânea do desenlace e do epílogo”. 8
7 GENETTE, 1995, p. 65. 8 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 341.
15
A duração é a velocidade da narrativa; relaciona-se com a duração da
história medida em horas, dias, meses, e outras medidas de tempo e a extensão
do texto medida em linhas e páginas. Entre essas, não existe uma gradação
contínua desde a velocidade infinita a “elipse”, a qual tem a capacidade de
acelerar uma narrativa, até a lentidão, que é denominada de “pausa descritiva”,
onde o narrador interrompe momentaneamente o tempo da história e se
concentra em reflexões e descrições. Entre esses dois extremos, ocorrem dois
movimentos intermediários: a “cena” e o “sumário”.
O modo da narrativa diz respeito aos problemas da representação
narrativa, no que se refere à seleção quantitativa e qualitativa daquilo que é
narrado. A categoria gramatical do tempo se aplica com evidência no discurso
narrativo, de maneira que pode parecer a priori desprovida de pertinência, uma
vez que a função da narrativa não é dar ordem ou formular um desejo, mas,
simplesmente, contar uma história. Por isso, o seu modo único, ou pelo menos
característico, só pode ser o indicativo. No entanto, existem diferenças de grau
na afirmação, e essas diferenças se exprimem por variações modais. Pode-se
contar mais ou menos aquilo que se conta, e contá-lo segundo um ou outro ponto
de vista; é precisamente à tal capacidade e às modalidades de seu exercício que a
categoria de modo de Genette visa.
A voz narrativa está ligada à comunicação: quem anuncia é o narrador,
considerando suas relações com o sujeito. Esse sujeito não é somente aquele que
realiza a ação, mas também aquele que a relata e, eventualmente, todos aqueles
que participam, mesmo passivamente, nessa atividade narrativa. Assim, a voz diz
respeito à maneira como se encontra implicada a narrativa na narração,
envolvendo três domínios fundamentais da comunicação narrativa: “o tempo da
narração”, o “nível narrativo” e a “pessoa”. Genette afirma ser possível contar
uma história sem precisar o lugar (espaço) em que ela sucede, mas é impossível
não situar no tempo em relação ao ato narrativo, pois é preciso contá-la num
16
tempo presente, futuro ou passado. Por isso, estas marcas temporais são mais
importantes do que as espaciais. Do ponto de vista temporal, é possível distinguir
quatro tipos de narração: ulterior, anterior, simultânea e intercalada.
Mais freqüente, a narrativa ulterior é a posição clássica da narrativa no
pretérito. Ocorrendo em terceira pessoa, essa distância, geralmente como que
indeterminada, na qual o pretérito marca uma espécie de passado sem idade, não
indica distância temporal que separa o momento da narração da história.
Denomina-se narrativa anterior o ato narrativo que antecede a ocorrência dos
eventos a que se refere, compreendendo um processo de narração raro: ocorre
quando é anunciado um relato de tipo predicativo antecipado pela via de sonho,
profecia, especulação oracular etc. Ainda, uma narração intercalada constitui o
ato narrativo que elimina toda espécie de interferência e jogo temporal, pois
exige uma coincidência rigorosa da história e da narração.
Toda narrativa se estrutura em níveis diferentes, organizados de maneira
que todo acontecimento contado esteja num nível diegético imediatamente
superior àquele em que se situa o ato narrativo, produto dessa narrativa. Os
níveis narrativos são: extradiegético, intradiegético e metadiegético. A instância
narrativa de uma narrativa primeira é por definição extradiegética, como a
instância da narrativa segunda, metadiegética, é por definição diegética. A
mesma personagem pode assumir duas funções narrativas idênticas em níveis
diferentes. O nível intradiegético refere-se à localização das entidades
(personagens, ações, espaços) que integram uma história e, como tal, constituem
um universo próprio. No que se refere à distinção de níveis narrativos, as
entidades do nível intradiegético são as que se colocam no plano imediatamente
seguinte ao nível extradiegético.
A narrativa metadiegética pode se unir à narrativa primeira, na qual se
insere, por vários tipos de relação:
17
O primeiro tipo é causalidade direta entre os acontecimentos da metadiegese e os da diegese, o que confere à narrativa segunda uma função explicativa.... O segundo tipo consiste numa relação puramente temática, que não implica, pois, numa continuidade espaço-temporal entre diegese e metadiegese é uma relação de contraste e analogia. O terceiro tipo não comporta nenhuma relação explícita entre os dois níveis da história: o próprio ato da narração que desempenha a função na diegese, independentemente do conteúdo metadiegético; função de distração e/ou obscuração.9
A passagem de um nível narrativo para outro não pode, em princípio, senão
ser assegurada pela narração, ato que consiste em introduzir numa situação, por
meio de um discurso, o conhecimento de uma situação. Qualquer outra forma de
trânsito é uma transgressão. Dois tipos de narrativa podem ocorrer; uma de
narrador ausente da história que conta; heterodiegética. Outra, de narrador
presente como personagem na história que conta; homodiegética. O narrador
homodiegético pode ser o herói da história que conta ou desempenhar um papel
secundário, ser observador ou testemunha. Quando desempenha papel de herói, o
narrador homodiegético é chamado de autodiegético.
O discurso do narrador assume outras funções, distribuídas segundo
diversos aspectos da narrativa com que se relacionam. O primeiro é a história,
conectada à função narrativa. O segundo é o texto narrativo, no qual o narrador
pode referir-se por discurso de alguma maneira metalingüístico. O terceiro
aspecto é a própria situação narrativa, cujo protagonista é o narratário,
presente, ausente ou virtual, e o próprio narrador. A orientação ao narratário, a
preocupação de manter diálogo com ele, lembra as funções fática e conativa de
Roman Jakobson. Talvez por isso, deva-se designá-la como função de
comunicação. A orientação do narrador para ele próprio determina uma função
homóloga à que Jakobson chama de função emotiva.
9 GENETE, 1995, p. 231-232.
18
A relação do narrador com a história que conta, além de afetiva, é moral e
intelectual, determinando uma função testemunhal ou de atestação. As
intervenções do narrador a respeito da história podem tomar forma mais
didática, exercendo uma função ideológica. Assim como o narrador, o narratário é
um dos elementos da situação narrativa e se coloca, necessariamente, no mesmo
nível diegético. Se o narrador for intradiegético, o narratário será
intradiegético, com o qual o leitor virtual não pode se identificar. Já o narrador
extradiegético visa a um narratário extradiegético, que se confunde com o leitor
virtual e com o qual todo e qualquer leitor pode se identificar. Por meio do
discurso narrativo, seja ficcional ou não, podem ser reveladas as imagens de uma
nação e se refletir sobre o que de fato a constitui.
1.2 Nação e Narrativa
De acordo com o Dicionário Aurélio,10 a nação pode ser constituída por um
grupo de indivíduos que habitam um território e compartilham costumes e línguas,
ou pode ser uma comunidade politicamente organizada, ou ainda, um grande grupo
que compartilha interesses e afinidades. Com essa definição, o povo brasileiro,
para constituir-se como nação, tem em comum o território, uma língua (nem
sempre homogênea), um governo único. No entanto, as origens, a cultura, os
costumes são diversos. É preciso aos poucos criar uma unidade.
10 NAÇÃO. In: FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 449.
19
Ernest Renan11 afirma que uma nação não se compõe apenas de alguns
fatores, como a língua, a cultura, os costumes, a raça, as fronteiras naturais, as
quais, por muito tempo são consideradas as bases do nacionalismo, mas o mais
importante é a “alma”. Muitos estudiosos afirmam que uma nação se compõe
unicamente pela raça, entretanto, para Renan, isso constitui grave erro, porque
não existem mais as divisões artificiais, resultantes do feudalismo, dos
casamentos principescos, dos congressos de diplomatas. Para as sociedades
modernas, a preocupação etnográfica perde seu valor: “Não há raça pura e
basear a política na análise etnográfica é fazê-la numa quimera. Os países mais
nobres, Inglaterra, França, Itália, são aqueles em que o sangue é mais misturado.
A Alemanha é uma exceção a este respeito? É um país germânico puro? Que
ilusão!”.12
Pode-se justificar essa afirmação através da história, pois sendo a Europa
invadida pelos mais diversos povos, o que para muitos é considerado raça pura, lá
no passado, já sofreu muitas misturas. As nações são relativamente novas; na
antiguidade, não existiam, e o que caracteriza os diferentes estados é a fusão
das circunstâncias e populações que os compõem. Isso pode acontecer pela
imposição de uma língua, da religião, ou de aspectos culturais no geral. Para que
de fato ocorra a consolidação de uma nação, é necessário o esquecimento, de
modo que as nações se originam do resultado histórico produzido por uma série
de fatores.
A língua também não pode ser considerada fator determinante para a
estruturação de uma nação; embora seja importante, podendo impor-se de um
povo a outro, pois países distintos falam a mesma língua, como Estados Unidos e a
Inglaterra, mas não formam uma nação. Renan advoga que as línguas são
11 RENAN, Ernest. O que é uma nação? Cadernos da Pós/Letras, Rio de Janeiro, p. 12-43, 1997, p. 25. 12 RENAN, 1997, p. 27.
20
formações históricas, que pouco indicam acerca do sangue de seus falantes:
“Antes de ser confinado a tal ou qual língua, antes de ser membro de tal ou qual
raça, filiado a tal ou qual cultura, o homem é um ser dotado de razão e moral.
Antes da cultura francesa, da cultura alemã, da cultura italiana, há a cultura
humana”.13
Tampouco a religião poderia oferecer base suficiente para o
estabelecimento de uma nacionalidade moderna. Na sua origem, a religião estava
ligada à própria existência do grupo social, sendo uma extensão da família e uma
religião de Estado. Atualmente, não existem mais massas que crêem de modo
uniforme. A religião tornou-se algo individual; diz respeito à consciência de cada
um, não se divide mais uma nação em católica ou protestante. Também a
comunhão de interesses é um laço forte entre os homens, faz tratados
comerciais, estabelece relações, mas isso não basta para marcar uma nação.
Do mesmo modo, a geografia, as chamadas fronteiras naturais, têm papel
importante na divisão das nações. Os rios, as montanhas, desempenham papel
importante dentro dos movimentos históricos, porém, isso não é tudo. Renan
defende que os limites de uma nação não podem ficar restritos apenas a uma
demarcação nos mapas, ou ainda, que uma nação tome para si o que for necessário
para arredondar alguns contornos, para alcançar tal montanha, ou tal rio,
classificando essa tese como arbitrária e responsável por muitas violências
praticadas em virtude da posse de terras. Nem a terra nem a raça formam uma
nação; aquela fornece apenas o substrato, o campo da luta ou do trabalho. O
homem é que fornece a alma, mostrando-se importante à formação de um povo,
quando existe comunhão de idéias, de afetos de lembranças: “A nação é uma
alma, um princípio espiritual. Constituem essa alma, esse princípio espiritual, duas
coisas que, para dizer a verdade, são uma só. Uma delas é a posse em comum de
13 Id. Ibid. p. 34.
21
um rico legado de lembranças; a outra, o consentimento atual, o desejo de viver
juntos, a vontade de continuar a fazer valer a lembrança que recebemos”. 14
É possível constatar que a nação é o resultado de um passado de
esforços, de sacrifícios e devoções, sendo fundamental a valorização dos
ancestrais. As glórias comuns do passado, uma vontade comum no presente,
grandes feitos em conjunto e continuar a fazê-los, constituem a essência de um
povo. Assim, uma nação é uma grande solidariedade, constituída pelos sacrifícios
e glórias que um povo tem em comum: “Uma grande agregação de homens, de
espírito são e coração caloroso, cria uma consciência moral que se chama nação”15.
A nação se constitui também através de um rico legado de lembranças,
pertencendo ao campo imaterial da mentalidade e, para isso, é necessário que se
exteriorize através de símbolos, tornando-se concreta, passando da abstração a
uma realidade mais sensível.
Para Benedict Anderson,16 o sentimento nacionalista que forma uma nação
deve ser compreendido quando posto lado a lado com os sistemas culturais amplos
que o precederam. Os dois sistemas culturais relevantes para a compreensão do
sentido de nação são a comunidade religiosa e o reino dinástico, isto porque
ambos são aceitos como verdadeiros quadros de referência. A decadência das
comunidades, línguas e linhagens sagradas, aliada a uma mudança nos modos de
apreensão do mundo, representada pelo surgimento do jornal e do romance,
possibilita o nascimento da nação.
O romance representa idéia de um organismo sociológico homogêneo e
vazio, que se move através do tempo. Porque possui uma analogia precisa com a
idéia de nação, é entendido como uma comunidade que se move firmemente
através da história. Já os acontecimentos encontrados no jornal estão ligados
14 RENAN, 1997, p. 39. 15 RENAN, 1997, p. 43. 16 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. p. 21.
22
pelo calendário, pois acontecem num só dia e tem relação direta com os leitores
em diferentes locais. Assim, o romance e o jornal criam a segurança de
comunidade anônima, garantia das nações modernas.
Por causa da impossibilidade de unificação lingüística, o capitalismo,
dentro dos limites impostos pela gramática e pela sintaxe, agrupando línguas
vulgares correlatas, cria línguas impressas passiveis de disseminação pelo
mercado editorial. Para Anderson, essas línguas impressas lançam as bases da
consciência nacional. Criando campos de comunicação abaixo do latim e acima das
línguas vulgares faladas, são uma possibilidade de se comunicar através do papel,
formando um campo lingüístico ao qual pertenciam co-leitores, e apenas eles
formavam o embrião da comunidade nacionalmente imaginada.
Ainda seguindo a reflexão de Anderson, a nação é referida como uma
sociedade imaginária. Isso estabelece concordância com as idéias de Renan, para
o qual a nação foi criada para o homem situar-se como indivíduo. Outra marca que
condiz com a nação está nos os heróis da pátria: “Não há símbolo mais
impressionante da moderna cultura do nacionalismo do que os cenotáfios e os
túmulos de soldados desconhecidos.”17 Esses monumentos públicos são marcas de
um ritual que permite continuar viva nas pessoas o momento histórico que
representam.
Por isso, afirma Homi K. Bhabha: “As origens das nações, assim como das
narrativas, perdem-se nos mitos do tempo e apenas na memória seus horizontes
se realizam plenamente. Esta imagem da nação - ou - narração- pode parecer
excessivamente metafórica, mesmo desesperadamente romântica, mas é a partir
das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge,
17 ANDERSON, 1989, p. 17.
23
no Ocidente, como poderosa idéia histórica”.18 Definida como um sistema de
significação cultural, representação da vida social, a nação precisa ter um objeto
em comum na sociedade. Estudá-la através do discurso narrativo a seu respeito
não apenas tem como objeto chamar atenção para sua língua e sua retórica, sendo
ao mesmo tempo uma tentativa de entender sob outra forma o próprio conceito
de nação, do qual não podem ser excluídas suas margens e fronteiras, nem seus
exilados, expatriados, refugiados ou seres “diaspóricos”.
.
18 BHABHA, Homi K. Narrando a nação. Cadernos da Pós/Letras, Rio de Janeiro, p. 48-59, 1997, p. 48.
24
2. DESLOCAMENTOS E MIGRAÇÕES
Siempre estábamos llenos de exilados así se escribia en tiempos suaves Ahora en cambio somos exiliados
Pero la diferencia no reside en la i.
MARIO BENEDETTI
2.1 O Exílio e Outros Processos
O estudo dos deslocamentos humanos insere-se em termos geográficos no
ramo da geografia da população, área que se torna relevante em meados do
século XX, tendo como objeto o estudo da evolução dos padrões mundiais de
distribuição da população, tanto em termos de quantidade quanto de suas
características. Na ótica da espacialidade, os deslocamentos humanos são
estudados no campo da migração,19 termo que apresenta várias significações,
sendo a mais comum a de uma movimentação que culmina em mudança de
domicílio. Contudo, a definição é extremamente restritiva por ignorar os
deslocamentos que envolvem viagens diárias ou periféricas, constituídas das
movimentações temporárias de turistas, dos deslocamentos sazonais e do
caminhar das populações nômades.
Dentro dos estudos geográficos, existe a necessidade de que a palavra
migração abranja a mobilidade populacional em todas as suas formas. Numa
perspectiva geográfica, todo o grupo ou indivíduo que, por causa das mais
19 Cf. TREWARTHA, Glenn. T. Mobilidade e migração. In: TREWARTHA, Glenn. T. Geografia da população: padrão mundial. São Paulo: Atlas, 1974. p. 167-177.
25
diversas circunstâncias, sai de sua terra de origem em direção a outros
territórios, pode considerar-se migrante. É uma característica da população
mundial a mobilidade através das mais diversas razões: ecológicas, econômicas,
religiosas ou até políticas. Mesmo que a grande maioria dos indivíduos permaneça
em seu lugar de origem, uma grande parcela troca de residência ou se submete a
viagens periódicas.
A questão dos deslocamentos é muito antiga, tão antiga quanto a própria
humanidade; já se desencadeava com os povos pré-históricos, obrigados a se
deslocarem por questões ecológicas. Os fatores econômicos também se fazem
responsáveis por muitos deslocamentos, sendo a era moderna um grande exemplo
desse tipo, que ocorre inclusive através do êxodo rural, na mudança de regiões
agrícolas às grandes cidades, em busca de melhores oportunidades.
Também a religião responsabiliza-se pela movimentação populacional, tendo
como exemplo as Cruzadas, ocorridas no período que cobre o intervalo entre os
séculos XI e XIII, as quais se constituíam de expedições religiosas e militares
dos cristãos, normalmente a pedido do papa, com objetivo de recuperar a Terra
Santa, sob o domínio dos muçulmanos. Para Campos e Oliveira,20 fatores políticos
também provocam deslocamentos humanos, como nos governos ditatoriais, quando
o exílio forçado se torna uma prática comum para as pessoas contrárias à
ideologia imposta. É o que ocorre no Brasil do Estado Novo ou das ditaduras
militares dos anos de 1960-1980.
Importante salientar que há uma grande dificuldade em distinguir os
fatores causadores de um deslocamento populacional, porque as migrações
também se motivam por mais de uma razão. Por exemplo, o fator econômico e
político podem estar diretamente relacionados, como nas Cruzadas, para as quais
20 CAMPOS, Giovana Cordeiro; OLIVEIRA, Maria Clara Castelões. Dimensões geográficas e tradutórias do exílio. Literatura em Debate, Frederico Westphalen, v. 2, p. 1-18, dez. 2008, p. 4.
26
foram relevantes os fatores econômicos, políticos e religiosos. Outro caso ocorre
durante a Segunda Guerra Mundial, quando a política anti-semita dos nazistas
obriga os indivíduos de origem judaica a fugir dos domínios alemães para
sobreviver. Entretanto, a própria situação destrutiva de uma guerra é suficiente
para induzir o deslocamento da população a locais que propiciem mais segurança e
condições de trabalho, independentemente da perseguição política, religiosa ou
racial.
O progresso tecnológico é o grande responsável pelo progresso migratório,
já que possibilita melhorias na rede de transporte e nos sistemas de
comunicação.21 As migrações caracterizam-se como específicas e particulares de
certos continentes, países, regiões, localidades e cidades, não sendo possível
comparar com exatidão a mobilidade populacional de todos os países do mundo.
Por isso, os estudos geográficos em geral tratam a questão no âmbito da
coletividade, destacando os tipos, causas, conseqüências e modos pelos quais as
migrações ocorrem. Trewartha,22 com base em estudos anteriores, propõe cinco
classes de migração: primitiva, forçada, impedida, livre e maciça.
A migração primitiva originou-se dos fenômenos climáticos, a partir do
momento em que as pessoas são obrigadas a sair de suas terras por causa da
interação homem x natureza. A migração forçada e a impelida ocorrem quando o
elemento que estimula a migração é o Estado ou uma instituição social. Isso
acontece, por exemplo, com o povo judeu na Segunda Guerra Mundial, a
representar essas duas formas de migração. Constitui uma migração forçada o
processo de aprisionar pessoas nos campos de concentração. Porém, aquele que
consegue escapar deles pode ser visto como representante da migração impelida.
21 Cf. TREWARTHA, 1974, p. 170. 22 Id. Ibid. p. 172.
27
A migração livre baseia-se na vontade do indivíduo e não envolve a
influência de fatores externos. Apresentando uma interação, norteada pela
relação entre o homem e suas normas, a força migratória determina-se pela
tendência do individuo ou de seu grupo e aspirações mais altas. Geralmente,
envolve pequenos grupos de pessoas, que buscam aventura ou desejo de
progresso pessoal, podendo transformar-se num fenômeno de massa e, assim,
passar à migração maciça, caracterizada como movimento social de
comportamento coletivo. Para representar essas duas formas, pode-se citar a
migração da Europa às Américas, num primeiro momento, livre, sendo os
primeiros migrantes formados por aventureiros e intelectuais em busca de seus
ideais. Depois, segue a migração maciça, quando grandes quantidades de pessoas
aportam ao Novo Mundo a fim de povoá-lo e urbanizá-lo.
Enquanto os estudos geográficos defendem a mobilidade espacial dos
grupos de pessoas como um processo de migração, os estudos sócio-históricos
interessam-se pelos deslocamentos humanos como processos exílicos, de ordem
não apenas coletiva, mas também individual. Em vez de se deterem na causa das
movimentações, as pesquisas voltam-se a seus efeitos nos indivíduos, sendo o
exílio abordado nem tão somente sob a perspectiva espacial e temporal, mas
também quanto aos efeitos psicológicos.
O exílio é uma das mais antigas manifestações humanas, ocorria na Grécia
antiga, onde o indivíduo era banido da sociedade através do voto secreto, e pode
ser observado no texto bíblico “Torre de Babel”, do Livro do Gênesis.23 Há pouco
tempo, era visto como punição ligada a uma noção de perda, idéia que passa a ser
vista de modo diferente, tendo um lado positivo no intercâmbio, no conhecimento,
na interação com outras culturas, sem que isso implique na perda de uma
identidade. Porém, Edward Said afirma que o exílio se define pelo extravio de
23 Gênesis. In: BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopedia Britânnica, 1980. p. 9. (Edição Ecumênica. Bíblia. A. T. ).
28
algo deixado no passado para sempre: “É uma fratura incurável entre um ser
humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar”.24
Não podendo colocar-se a serviço do humanismo, por causa de seu cenário
amplo e impessoal, é incompreensível tanto do ponto de vista estético quanto
humanístico. Na melhor das hipóteses, a literatura sobre o exílio objetiva uma
angústia e uma condição que a maioria das pessoas raramente experimenta em
primeira mão. Entretanto, pensar que o exílio é apenas benéfico ao mundo
literário significa banalizar as perdas dos que o sofrem, arrancados de sua
tradição, da família e da geografia:
O nacionalismo é uma declaração de pertencer a um lugar a um povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos. Com efeito, a interação entre nacionalismo e exílio é como a dialética hegeliana do senhor e do escravo, opostos que informam e constituem um ao outro.25
Em seus primeiros estágios, todos os nacionalismos se desenvolvem a
partir de uma situação de separação. As lutas pela independência dos Estados
Unidos, pela unificação da Alemanha e da Itália, pela libertação da Argélia, são
de grupos nacionais separados exilados daquilo que consideram seu modo de viver
legítimo. O nacionalismo triunfante justifica, retrospectiva e prospectivamente,
uma história amarrada de modo seletivo em forma narrativa. Todos os
nacionalismos têm como fundadores seus textos básicos, quase religiosos, uma
retórica do pertencer, marcos históricos e geográficos, inimigos e heróis
oficiais.
Com o tempo, os nacionalistas bem-sucedidos atribuem a verdade
exclusivamente a eles mesmos e relegam a falsidade e a inferioridade aos outros,
como a retórica do capitalismo contra o comunismo ou do europeu contra o
24 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Schwarcz, 2003. p. 46. 25 Id. Ibid. p. 49.
29
asiático. Said defende que os nacionalismos dizem respeito a grupos, mas, num
sentido muito agudo, o exílio é uma solidão vivida fora do grupo; é a privação
sentida por não estar com os outros na habitação comunal. Exílio e nacionalismo
não são termos neutros, “incluem tudo, do mais coletivo dos sentimentos à mais
privada das emoções privadas; dificilmente há uma linguagem adequada para
ambos, mas há certamente nada nas ambições públicas e abrangentes do
nacionalismo que toque no âmago da condição do exílio”.26
Ao contrário do nacionalismo, o exílio revela-se fundamentalmente como
um estado de ser descontínuo. Os exilados estão separados das raízes, da terra
natal, do passado; não têm exércitos ou Estados, ainda que estejam com
freqüência em busca deles. Entretanto, sentem uma necessidade urgente de
reconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma
ideologia triunfante ou de um povo restaurado. Uma situação de exílio sem
ideologia triunfante, criada para reagrupar a história rompida num todo novo, é
praticamente impossível. Para ilustrar esse caso, Said cita como exemplo o
destino dos armênios, judeus e palestinos.
A partir dos anos de 1940, o exílio passa a ser visto como fator de
resistência que, de alguma forma, estabelece um tipo de contato intercultural,
pois o “exilado chega ao país de destino com o olhar voltado para o país de
origem. Entretanto, o ser humano é um ser social por excelência e necessita
adaptar-se às condições que o cercam. O indivíduo exilado passa a conviver com a
ideologia e o modo de vida que o acolheu e algum tipo de troca nos parece
inevitável nessas condições”.27 Contudo, “adiante da fronteira entre ‘nós’ e os
‘outros’ está o perigoso território do não-pertencer, para o qual, em tempos
26 SAID, 2003, p. 49. 27 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 6.
30
primitivos, as pessoas eram banidas e onde, na era moderna, imensos agregados
de humanidade permanecem como refugiados e pessoas deslocadas”.28
Os exilados não nutrem interesses de absorver a nova cultura na qual se
inserem, mas lutam para não perder a herança cultural de seus países, como
acontece com muitos que processam artisticamente as vivências do exílio. Eles
não precisam reinventar o tempo porque, ao saírem da terra-natal, se vêem
isolados do grupo ao qual pertenciam, deixando de estar em contato direto com
as possíveis mudanças ocorridas no lugar de origem após a partida. Nesse caso, a
obra de Mário Benedetti permite concluir que a “literatura no exílio se
configuraria, assim, para o escritor uruguaio, como um espaço de afirmação
cultural no sentido de que considera o exílio também como um território onde
podem ser elaboradas estratégias de sobrevivência da cultura”.29
Campos e Oliveira30 propõem outra forma de exílio: o interior, em meio ao
qual, o deslocamento assume papel secundário frente ao que se passa no indivíduo
ou no grupo. Essa idéia se fundamenta não só no material, a exemplo de largar a
casa, sua cidade, ou terra, mas no deslocamento como uma condição mental.
Desse modo, o exílio tem início no subconsciente do indivíduo ou do grupo que, em
desajuste com a maioria, pode estar exilado sem mesmo deslocar-se
geograficamente. O processo ocorre no momento em que não há integração, mas
certo distanciamento, pois quando começa a se expressar, o exilado é
reconhecido como um estranho, pela maioria.
Dentro dos estudos socio-históricos, ainda é preciso distinguir o
“expatriado” do “exilado”:
Embora seja verdade que toda pessoa impedida de voltar para casa é um exilado, é possível fazer algumas distinções entre exilados, refugiados,
28 SAID, 2003, p. 50. 29 VOLPE, Miriam L. Geografias do exílio. Juiz de Fora: EdUFJF, 2005. p. 18. 30 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 8.
31
expatriados e emigrados. O exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um forasteiro. Por outro lado, os refugiados são uma criação do Estado do século XX. A palavra refugiado tornou-se política: ela sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada que precisa de ajuda internacional urgente, ao passo que o termo ‘exilado’, creio eu, traz consigo um toque de solidão e espiritualidade. Os expatriados moram voluntariamente em outro país, geralmente por motivos pessoais ou sociais.31
Embora semelhantes, os termos necessitam que se atente a suas
diferenças, sendo refugiado aquele que precisa de ajuda, da proteção dum outro
país, ao passo que emigrado representa apenas o indivíduo que busca um país,
seguindo motivações de ordem pessoal ou social. É preciso também lembrar que
“diáspora” tem “estreita relação com as migrações populacionais, entretanto seu
escopo de significação abrange muito mais do que o sentido original grego de
dispersão de um grupo. Por muito tempo, a palavra designou comunidades judaicas
exiladas que se organizaram em cada país de destino mantendo a religião e os
hábitos culturais de seu povo”.32
A partir dos anos de 1980, a noção se aplica ao fenômeno de dispersão dos
grupos que, mesmo fora da pátria, mantêm a coesão, valorizando seus costumes,
músicas, crença, língua e modo de vida: “São criados espaços de identidade
nacional na terra estrangeira, dissolvendo a noção de fronteira física... ser
membro de uma diáspora pressupõe uma adaptação ao país de destino, mas nunca
uma assimilação”.33 Atualmente, cada vez mais pessoas se exilam, se expatriam,
se refugiam ou se deslocam, formando ou não comunidades diaspóricas pelo
mundo afora.
Estado de ser descontínuo, o exílio constitui-se numa solidão vivida fora do
grupo, na privação sentida por não estar no lugar de origem. Os exilados
31 SAID, 2003, p. 54. 32 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 4. 33 Id. Ibid. p. 5.
32
necessitam reconstituir suas vidas rompidas para verem a si mesmos como povo
restaurado, mas a ideologia triunfante de reestruturar uma história no novo
mundo vê-se praticamente impossibilitada: “a diferença entre os exilados de
outrora e os de nosso tempo é de escala: nossa época, com a guerra moderna, o
imperialismo e as ambições quase teológicas dos governantes totalitários, é, com
efeito, e era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”.34
Os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem
contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro lugar: “O exílio
baseia-se na existência do amor pela terra natal e nos laços que nos ligam a ela -
o que é verdade para todo exílio não é a perda da pátria e do amor à pátria, mas
que a perda é inerente à própria existência de ambos”.35 Os exilados ocupam
grande parte do tempo em compensar a perda do mundo outrora vivido; é a vida
fora da ordem habitual. Adaptando-se, enraizando-se na cultura do país de
adoção, criam pontos de vista diversificados sobre a nação que, ao mesmo tempo,
engloba o passado cultural dos indivíduos, agrupando-os, e os aspectos culturais
do contexto em que se inserem, como acontece com os alemães que emigram para
o continente americano.
2.2 A Imigração Alemã no Brasil
A presença alemã nos países da América Latina durante o período colonial
segue um modelo muito similar. Nos três primeiros séculos, os alemães integram a
tripulação dos navios espanhóis e portugueses, exercendo as mais diversas
34 SAID, 2003, p. 47. 35 Id. Ibid. p. 59.
33
funções: peritos em navegação, canhoneiros, escrivães de bordo. Logo depois da
consolidação das primeiras praças de comércio, entram em cena, no Brasil,
comerciantes alemães: “Combinava-se um misto de espírito comercial e
aventureiro que fez com que as personagens mais conhecidas tenham sido
representantes paradigmáticos da mentalidade da época na prática comercial, na
implantação e consolidação dos empreendimentos mais diversos e na colocação
das bases que orientam, posteriormente, a gênese, a dinâmica e a evolução da
história da América Latina”.36
A conquista da América pelos portugueses e espanhóis, além dos
interesses econômicos e políticos, também objetiva uma conquista espiritual. É
nessa ação que entram os missionários das mais diversas ordens religiosas:
franciscana, dominicanos, mercedários e principalmente jesuítas. Silviano
Santiago,37 quando aborda o entre-lugar do discurso latino- americano, traz à
tona a violência que os conquistadores europeus aplicam sobre os conquistados, a
imposição brutal de uma ideologia. No Brasil colonial, o objetivo dos
colonizadores é evitar o bilingüismo, constituindo-se com isso uma forma de
dominação. O objetivo dos jesuítas não é apenas uma representação religiosa,
mas principalmente, impor a língua européia para os índios: “Evitar o bilingüismo
significava também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a
unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só rei, uma só língua: o
verdadeiro Deus, o verdadeiro rei, a verdadeira língua”.38
A América transforma-se em cópia pelo extermínio constante dos traços
originais, pelo esquecimento da origem. O fenômeno da duplicação se estabelece
como única regra válida de civilização. É assim que nascem por todos os lados
36RAMBO, Arthur Blásio. A presença alemã na América Latina no período colonial. História Unisinos, São Leopoldo, v. 6, n. 5, p. 88-121, jan./jun. 2002, p. 91. 37 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 11. 38 Id. Ibid. p. 14.
34
cidades de nome europeu cuja única originalidade é o fato de trazerem antes do
nome de origem o adjetivo “novo” ou “nova”: Nueva España, Nova Friburgo, etc.
Como há uma proibição imperial que impede a entrada de estrangeiros nas
colônias espanholas, eleva-se consideravelmente o número de jesuítas alemães
para as atividades missionárias nas colônias do Prata e demais regiões do
continente. Responsáveis pela transmissão de tecnologias e conhecimentos
artísticos de toda espécie, oriundos da Europa, seu trabalho dos jesuítas é
excepcional e colabora para a implantação de um projeto de modernização
tecnológica, de elevação do nível cultural através de escolas e colégios e à
difusão de conhecimentos técnicos e artísticos, dos estudos etnográficos,
etnológicos, lingüísticos e históricos.
Outro aspecto que possibilita a entrada de alemães na América Latina é o
comércio, a participação em empreendimentos que exigem a aplicação de
tecnologias das quais as colônias necessitam na mineração, na instalação de
portos, abertura de estradas, construção naval e navegação fluvial e marítima.
Considerável número de cientistas é atraído para a América Latina por causa das
diversidades naturais: botânicos, zoólogos, geógrafos. Eles percorrem as mais
diversas regiões do continente inventariando, descrevendo, classificando plantas,
animais, minérios, climas, paisagens e participando das Bandeiras. Muitos outros
alemães colaboram em obras de saneamento, organização das guarnições
militares e demais atividades.
Há traços semelhantes em todos os países da América Latina que têm
influência alemã no período colonial: os desbravadores são indivíduos, ou no
máximo, de uma ou outra equipe menor, que se desincumbem das tarefas nas
colônias. A presença e a participação alemã nesse período é fundamental, e em
alguns casos, decisiva na condução político-administrativa de vários países,
principalmente, Argentina, Chile e Brasil. Entretanto, um aspecto muito
interessante é que os alemães não chegam a construir grupos maiores estáveis,
35
muito menos, comunidades étnicas. Muitos desses colonizadores permanecem no
continente e têm filhos com portuguesas, espanholas, crioulas ou índias. Seus
nomes sofrem mudanças nos registros por causa das influências do português e
do espanhol, ou são simplesmente substituídos. Por isso, Rambo39 salienta que, se
fosse rastreada a origem de inúmeras famílias importantes e decisivas na vida
nacional destes três paises, descobrir-se-ia sua ascendência alemã.
Os primeiros imigrantes alemães são trazidos ao Brasil a mando do rei Dom
João VI. Em 1818, estas famílias são assentadas nas serras fluminenses, lugar
onde mais tarde se funda o município de Nova Friburgo. No mesmo ano, alguns
colonos alemães são também enviados para a Bahia. Depois de proclamada a
independência do Brasil, em 1822, o governo imperial inicia a fundação de colônias
alemãs no sul do país, por questões estratégicas, as quais deveriam garantir a
segurança militar das fronteiras do Império brasileiro na região platina. O
governo acredita que a colonização com imigrantes alemães na porção sul do
Brasil não somente traria vantagens militares e demográficas, mas que, através
do exemplo dos imigrantes, o trabalho braçal poderia recuperar sua dignidade e
importância entre a população luso-brasileira.
Outra esperança do governo é que a imigração dos colonizadores alemães
estabeleça uma classe média, pois até aquele momento, no Brasil, existem
grandes proprietários de terras, trabalhadores submetidos a eles e escravos: “D.
João VI, através da colonização européia, procura diminuir a assustadora
percentagem da população escrava pela introdução de colonos europeus;
substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre, a grande propriedade pela
pequena, criando no país uma classe média” 40. No ano de 1822, quando acaba o
domínio de Portugal sobre o Brasil, apenas o litoral e parte da região central do
39 RAMBO, 2002, p. 93. 40 LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia. Caxias do Sul: EST/UCS, 1980. p 31.
36
Rio Grande do Sul são conhecidos. O restante do território está pouco povoado, a
maioria da população que ali vive é composta de imigrantes açorianos, enviados à
região no final do século XVIII pelo governo português. Sua economia baseia-se
na criação de gado e animais de carga que abastecem principalmente São Paulo e
Minas Gerais. Produtos de primeira necessidade, como alimentos, precisam ser
importados.
Com o propósito de conseguir pessoas para povoar essas regiões, o
imperador Dom Pedro I e sua esposa, Leopoldina de Habsburg, enviam agentes
aos países alemães, com a recomendação de agenciar imigrantes, oferecendo-lhes
inúmeras promessas. Muitas famílias migram para o Brasil, porque a situação na
Alemanha não lhes é muito favorável. Por que alemães e não outra nacionalidade?
Giralda Seyferth41 tem uma explicação convincente para o caso: “A predominância
de alemães nos primeiros projetos mais consistentes de colonização pode ser
explicada pela presença influente de indivíduos de ascendência germânica junto
ao Governo imperial brasileiro, e seu papel na orientação da política imigratória
nos seus primórdios”.
Na virada do século XVIII para o XIX, a Europa é arrasada pelas guerras
napoleônicas. Poucas esperanças sobram no meio de tanta devastação, fome e
pobreza. Há uma pesada carga de impostos sobre bens e produtos agrícolas, além
disso, as terras também estão desgastadas, pois ainda não se conhecem os
adubos químicos. Esses são alguns dos motivos da vinda dos colonizadores para o
Brasil, em busca de uma vida melhor. Pela sua vastidão, o país é difícil de ser
ocupado e explorado, faltam pessoas que queiram trabalhar. Há interesse em
ocupar os espaços para dificultar a entrada de estrangeiros e conquistadores.
Quando Dom João VI deixa na corte brasileira seu filho, D. Pedro I,
casado com a nobre austríaca Maria Leopoldina, inicia-se o processo de ocupação
41 SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Brasil: etnicidade e conflito. In: FAUSTO, Boris (Org.). Fazer a América. São Paulo: EdUSP, 1999. p. 277.
37
das terras. Por sugestão da arquiduquesa, começa a imigração alemã. O primeiro
grupo de 39 pessoas, proveniente do Hunsrück, chega a São Leopoldo, Rio Grande
do Sul, em 25 de julho de 1824. Como essa colônia alemã dá certo, logo vêm
outras. Para despertar o interesse dos alemães em migrarem a uma terra tão
longínqua e desconhecida, muitas são as promessas: terras (quase de graça),
animais domésticos, sementes, diárias, isenção de impostos por dez anos, além de
muitas outras: “Para alcançar os objetivos da imigração, o governo promete aos
colonos europeus que quisessem se estabelecer no Brasil gratuidade no
transporte, doação de um lote rural, instrumentos de trabalho, sementes, ajuda
em dinheiro para os primeiros anos, assistência médica, religiosa e outras
vantagens”.42
Entretanto, todas essas vantagens nem sempre são cumpridas. O
“Eldorado” que os alemães encontram não tem escolas, igrejas, assistência à
saúde, nada, ficam entregues à própria sorte no meio das matas. A colônia de São
Leopoldo, em 1824, é a primeira colonização alemã subvencionada que dá certo no
Brasil. Milhares de imigrantes alemães vêm para o Rio Grande do Sul e ocupam a
região central do Estado, sempre no sistema de pequenas propriedades situadas
em pontos estratégicos: “As primeiras colônias foram estabelecidas em pontos
estratégicos entre o planalto e o litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a
fim de garantir de alguma forma as vias de penetração. Em Santa Catarina,
principalmente, não havia comunicação entre a capital Desterro e o planalto e foi
com esta finalidade que se deu estímulo à colonização alemã no vale do Itajaí”.43
As empresas colonizadoras preferem os vales, pelas inúmeras vantagens
que possibilitam para comunicação, comércio e até controle das colônias. Um
exemplo concreto é o vale do rio dos Sinos no Rio Grande do Sul e o vale do rio
42 LAZZARI, 1980, p. 32. 43 SEYFERTH, 1999, p. 31.
38
Itajaí, em Santa Catarina. As regiões de relevo mais elevado são colonizadas
pelos italianos. As primeiras gerações nascidas no Brasil ajudam na ampliação das
áreas ocupadas pelos alemães: “A colonização alemã foi efetuada por dois
elementos: os alemães natos Bundesdeutsche ou Reichdeutsche, que vinham aos
milhares, e os teuto-brasileiros- Deutschbrasilianer, que eram os brasileiros
descendentes de imigrantes alemães”.44
Essas colônias formadas pelos alemães não são todas iguais. Existem as
colônias governamentais, que são fundadas pelo governo Federal em São
Leopoldo, no Rio Grande do Sul, São Pedro Alcântara e Santa Isabel, em Santa
Catarina. Também, as organizadas pelo governo provincial ou estadual, em Santo
Ângelo, Santa Cruz do Sul e Monte Alverne, todas no Rio Grande do Sul. Há ainda
as colônias organizadas pelos governos municipais no interior do estado do Rio
Grande do Sul: São Luís e Santo Ângelo. Colônias fundadas por particulares se
formam quando algumas pessoas adquirem uma gleba grande e promovem a sua
colonização com fins lucrativos. É o que ocorre, por exemplo, com Blumenau,
Santa Catarina, fundada por Otto Blumenau em 1849. Existem ainda as colônias
fundadas por entidades lucrativas, como a empresa Chapecó-Peperi LTDA,
responsável pela colonização do Extremo Oeste catarinense. E ainda, as colônias
fundadas por entidades filantrópicas, as quais são financiadas por agências
bancárias.
Os imigrantes alemães que vêm para o Rio Grande do Sul são pessoas
pobres, a maioria com pouca ou nenhuma instrução. Têm vontade de possuir um
pedaço de chão, para criarem seus filhos com escola, religião e patriotismo. Para
as colônias de Blumenau e Hansa-Harmonia, em Santa Catarina, a vinda de
profissionais com variados graus de instrução é mais numerosa do que a
registrada no Rio Grande do Sul. Em Santa Catarina, surgem várias colônias de
44 JUNGBLUT, Roque. Porto Novo: um documentário histórico. Porto Alegre: Suliane, 2005. p. 29.
39
imigrantes. Em 1849, Hermann Bruno Otto Blumenau compra uma gleba de terra
do governo e promove a colonização de Blumenau em caráter privado. A partir de
1860, fica como diretor, e o governo federal assume sustentar a colônia. Um
outro grupo privado da Alemanha compra a região de Joinville e a coloniza a
partir de 1852. O que há de diferente nesse estado é que grandes áreas de terra
são de propriedade das irmãs de D. Pedro II e de outros nobres da coroa. O vale
do Capivari pertence ao Conde d’ Eu; a região de Joinville, à Dona Francisca, irmã
de D. Pedro I, casada com o príncipe de Joinville.
No texto A corrente migratória alemã e a formação urbana, Maria da
Graça Sebben45 defende que, até 1860, a Alemanha conserva o regime do
artesanato místico. A partir de 1870, com o desenvolvimento da industrialização,
a economia do país absorve um grande contingente de mão-de-obra. Ao mesmo
tempo, artesãos e trabalhadores da indústria doméstica não conseguem competir
com as grandes empresas e se arruínam. Muitos desses artesãos partem ao Novo
Mundo em busca de melhores condições de vida. Os primeiros colonos chegados
ao Rio Grande do Sul, em sua maioria, vem das cidades marítimas de Hamburgo,
Bremen, Holstein e Hannover. Mais tarde, chegam também famílias das
províncias renanas, do Hesse, do Palatino e do Hunsrück. A maior parte desses
imigrantes vive na Alemanha em aldeias, onde é costume cada terreno ter um
espaço no qual se cultiva uma horta e um pomar. No Brasil, esses imigrantes
tentam igualar o máximo possível suas vidas com a Alemanha, e uma
característica mantida, além da parte cultural é o cultivo da horta e do pomar
perto de casa.
Como já citado anteriormente, o governo brasileiro promete uma série de
regalias. A primeira leva de imigrantes que chega ao Brasil em 1824 consegue
suas terras, porém, quando outras chegam, as áreas não haviam sido demarcadas,
45 SEBBEN, Maria da Graça. A corrente imigratória alemã e a formação urbana. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 7, n. 5, p. 89-133, jun. 2001. p. 95.
40
e são obrigados a se instalar em “albergues”, os quais não passam de ranchos
abandonados pelos escravos.46 Os demais imigrantes se instalam na casa de
colonos já estabelecidos, com o mesmo propósito: aguardar a hora de tomar
posse da terra prometida. Outro agravante enfrentado pelos colonos é a
dificuldade de adaptação, porque muitos não são agricultores, e nada entendem
do cultivo de terras. Inclusive aqueles que possuem conhecimentos na Alemanha
sobre agricultura têm dificuldades, porque o clima e o solo são diferentes
daqueles aos quais estão habituados.
Como resultado das irregularidades no processo migratório, o governo
alemão intervém, e a partir de 1830, se interrompe a corrente migratória Europa
Brasil. Um fator que contribui para que essa interrupção ocorra é a Revolução
Farroupilha, entre 1830 a 1845. Nesse período, praticamente anula-se a
imigração estrangeira para o Brasil, até que um ato adicional promulgado pela
regência transfere a competência em matéria de colonizar para as próprias
províncias. Santa Catarina é a única província que se sente estimulada pelo Ato
Adicional a promover a colonização de seu território. No ano de 1836, a província
autoriza a fundação de duas colônias, nos vales dos rios Itajaí-Açu e Itajaí
Mirim. Mesmo que, nessa época as imigrações acalmem, é possível realizá-las de
fato: “Não desapareceu, contudo, a idéia de que era necessário promover a
imigração para desenvolver as regiões remotas do país, e precaver a economia do
Estado diante da inevitável crise a ser provocada, cedo ou tarde, pela suspensão
46 Josué Guimarães aborda a história da família de Daniel Abrão Schneider, que chega ao Brasil em julho de 1824, junto com outro grupo, destinado à extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, atual São Leopoldo. Nesse local, vivem em condições precárias de sobrevivência, justamente o contrário da propaganda feita na Alemanha sobre a recepção no Brasil. Cf. GUIMARÃES, Josué. A ferro e fogo. Porto Alegre: L & PM, 2006. 2 v.
41
definitiva do tráfico de escravos. As vias para a promoção é que deviam ser
outras que não onerassem ainda mais as já comprometidas finanças do império”.47
Durante o período da regência, há uma dupla política em relação à
imigração. Procura-se estimular as iniciativas imigratórias particulares, existindo
também um esforço no estabelecimento de medidas que preparem as próximas
imigrações. Em outubro de 1832, é aprovada uma lei que prevê a legalização dos
estrangeiros, propondo a naturalização para todos que residam no Brasil há pelo
menos quatro anos. Além dessa, em 1836, se estabelece outra lei que objetiva a
diminuição do preço das passagens aos imigrantes, tendo em vista que a
embarcação que traga a qualquer porto do país mais de cem imigrantes está livre
de impostos de ancoragem. Já em outubro de 1843, a lei número 317, que fixa
orçamento para os exercícios de 1844 e 1845, renova essa vantagem,
estabelecendo uma redução proporcional do imposto de ancoragem dos navios de
acordo com o número de colonos que carreguem. Há também, no Brasil, um
conflito por jogos de interesses: de um lado, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
Gerais, interessados em conseguir trabalhadores para a produção do café, em
processo de expansão; de outro lado, o governo central, preocupado em promover
a colonização do sul do país, através de distribuição de pequenas propriedades
agrícolas.
Na Alemanha, a imigração passa a ser tratada de maneira diferente. Nos
anos de 1820, o processo migratório é visto como uma questão sócio-política
interna de cada Estado. A partir de 1840, passa a ser encarada como pertinente
e de grande significado para a nação alemã. O nacionalismo crescente daquela
época (que objetiva a Unificação da Alemanha em Estado Nacional) abarca a
questão emigratória. Não se tolera mais que os alemães emigrados sejam
47 CUNHA, Jorge Luiz da. Conflitos de interesses sobre a colonização alemã do Sul do Brasil na segunda metade do século XIX. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, vol. XXVI, n. 1, p. 183-232, jul. 2000. p. 184.
42
perdidos para os interesses nacionais do povo alemão. Essa concepção se origina
porque os alemães que emigram aos Estados Unidos, Canadá, Rússia ou Austrália
rompem laços com a pátria, transformado-se em consumidores para nações
estrangeiras, daí o “desejo de que os imigrantes mantivessem e desenvolvessem
suas ligações culturais e econômicas com a Alemanha”.48
Essa idéia se estabelece no sentido de os emigrados alemães garantirem,
no estrangeiro, a formação de um mercado consumidor para os produtos de sua
nascente indústria, suprindo assim a falta de colônias. Objetiva-se também as
ligações culturais, garantindo entre os emigrados a preservação de sua língua e
de seus costumes, ou seja, de uma identidade nacional alemã. Os alemães não têm
interesse nas regiões brasileiras que já estão colonizadas: “Era preciso
direcionar a migração para uma região onde os imigrantes pudessem continuar
alemães em proveito na Alemanha.”49 Eles devem povoar a região garantindo, para
a produção alemã, o fornecimento de matérias primas, e constituindo um forte
mercado consumidor.
Tal concepção é aceita no Brasil, pois a abolição da escravatura ameaça a
agricultura, única fonte de renda do Império. Portanto, torna-se imprescindível
apoiar esse setor primário, não para favorecer poucos proprietários de escravos,
mas para o interesse do trono e do Estado: “A política oficial da colonização é
neste período, desviada da política original proposta por D. João VI e evidencia
um objetivo primordial que é o de garantir, pelo trabalho livre, a substituição do
braço escravo. A estratégia usada é atrair, pelas vantagens da colonização, maior
número de imigrantes que se dediquem a lavoura carente de elementos de
trabalho”.50
48 CUNHA, 2000, p. 186. 49 Id. Ibid. p.187. 50 LAZZARI, 1980, p. 37.
43
A política oficial da colonização tem como objetivo o desenvolvimento
econômico e social brasileiro. Assim, suprindo os interesses dos dois países,
Brasil e Alemanha, um tem suas terras produtivas e o outro consegue
estabelecer colônias que poderão, no futuro, manter relações comerciais e
culturais com a antiga pátria. Nascem as bases da pequena propriedade rural no
sul do país, que mesmo depois de quase dois séculos, ainda conserva traços
culturais germânicos e tem por base a pequena propriedade rural, mantendo a
cultura de subsistência. Tanto econômicas como afetivas, essas relações traçam
uma idéia de nação formada por características que variam entre diferentes
regiões.
2.3 Regiões Culturais
Se dois sistemas culturais dialogam entre si, uma nação marcada por
migrações deve sempre contar com o diferente, não constituindo um conceito
fixo. É o quadro brasileiro, formado a partir de várias culturas e tradições:
se a construção imaginária de uma identidade implica uma atribuição de sentido, este encadeamento de sentido, no caso brasileiro, seria dado não apenas na articulação espaço e tempo, que resgataria as dimensões da natureza, do meio e da história, mas pela possibilidade de compatibilização da diversidade na unidade. Não-continente, a identidade brasileira seria dada pela capacidade ou não de absorção dos elementos díspares e aparentemente de referência. É preciso afirmar que esta totalidade não é a América Latina, é o Brasil que se visualiza como o conjunto significativo em si próprio, ao mesmo tempo distinto dos hispano-americanos e dos europeus.51
51 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Literatura, história e identidade nacional. Vidya, Santa Maria, v. 19, p. 9-27, jan./jun. 2000. p. 12.
44
Portanto, a nação brasileira resultaria de uma construção do imaginário
coletivo que não pressupõe a integração social. Mesmo no contraponto entre a
identidade e a alteridade, assim como na identificação de um modo de ser
próprio, o outro ora é primeiro mundo, como um horizonte a ser atingido; ora são
os subalternos, presença desagradável para as elites, revelando os problemas
nacionais não-resolvidos. Questões como essas ocupam boa parte da ficção
narrativa desde o século XIX e, principalmente, durante o século XX, quando as
diferenças entre culturas e regiões se tornam mais evidentes.
Questionando se o Brasil realmente produziu uma nação, Sandra Jatahy
Pesavento considera as distinções entre as regiões brasileiras como, por
exemplo, o Nordeste do país e o Rio Grande do Sul, o qual sofre influências, dos
países vizinhos, por causa das áreas fronteiriças, constituindo assim a única zona
brasileira que apresenta um sentimento de pertencimento a uma realidade latino-
americana, porém platina. O estado gaúcho sente-se mais próximo do Rio do
Prata do que do Nordeste, região da qual pode diferir em hábitos, costumes e
linguagem. A identificação com os platinos ocorre por causa da semelhança de
formação histórica, que possibilita a construção de discursos semelhantes,
criando identidades muito próximas, baseadas na civilização pastoril e guerreira,
nas atitudes guerreiras e militares.
Na literatura brasileira, a chamada geração de 1930 é capaz de mostrar a
realidade nacional na sua condição de complexidade e conflito, de uma maneira
muito mais perceptiva do que aquela apresentada pela narrativa histórica. Essa
visão enunciada será aproveitada pelo Estado Novo, que emerge nos anos 30 como
a ditadura verde-amarela, capaz de conduzir o país rumo a um patamar de auto-
suficiência. O nacional-desenvolvimento, enquanto projeto para o país, estabelece
como contraponto da dependência externa a autonomia nacional, a valorização do
natural da terra, da brasilidade. Busca-se justamente a brasilidade e não a
americanidade. O Estado Novo compreende o país como um arquipélago cultural
45
único, original, visto como o maior país da América Latina em pleno avanço na
indústria pesada e que não pode ser confundido com o atraso da América Latina.
Nos anos 50, a vivência dos regimes democráticos do pós-guerra, associada
a projetos de desenvolvimento industrial autônomo, acentuam a singularidade
brasileira, mas aliada a um aprofundamento do sentido social. No contexto do
populismo de massas, a matriz inspiradora da interpretação brasileira, inclusive
literária, revela-se estrangeira enquanto concepção. No entanto, sua análise é
voltada para as contradições da sociedade nacional, procurando compreendê-las.
Em meados da década de 1970, o consumo da literatura latino-americana
se intensifica no Brasil e autores como Borges, Vargas Llosa e Julio Cortázar
começam a ser mais respeitados e lidos no país. Havendo certa correlação entre
as modalidades de pensamento brasileira e latino-americana, o que se percebe no
Brasil contemporâneo é uma não identificação com os outros países da América
Latina, porque o horizonte de nação é dado pelo contorno urbano, e não o rural
brasileiro ou ameríndio. O brasileiro constrói uma visão distinta acerca de nação,
para com a qual a abertura política dos anos 80 vai contribuir, desenvolvendo
essa idéia do urbano. O “Brasil como grande potência” e o “milagre brasileiro” dos
anos 70 cede lugar a uma nação que busca sair da crise através da modernização.
O país começa a ser reconhecido através de suas representações, ou de como as
práticas sociais construídas historicamente são produzidas em termos culturais.
A distinção entre as diferentes regiões brasileiras, no que se refere ao
povo, ao modo de vida, aos aspectos culturais, embasam os trabalhos de Clodomir
Vianna Moog52 e Angel Rama53 sobre a literatura brasileira. Já em 1943, Vianna
Moog defende as diferenças regionais, numa conferência no Rio de Janeiro, a
convite da Casa do Estudante do Brasil, sob o título: Uma interpretação da
52 MOOG, Clodomir Vianna. Uma interpretação da literatura brasileira. Porto Alegre: CORAG, 2006. 53 RAMA, Angel. Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001.
46
Literatura Brasileira. O autor propõe um confronto da literatura brasileira com
as literaturas européias, para afirmar que o Brasil não possui em seu acervo uma
unidade homogênea e definida como os países europeus. Por tal razão, deve-se
renunciar ao intento de abrangê-la como um todo e estudá-la a partir de seus
núcleos culturais.
Moog aborda a literatura brasileira como um complexo heterogêneo,
formado por núcleos culturais, constituídos nas diferentes regiões que integram
o território brasileiro. Essas mantêm diferenças importantes na formação
histórica, na organização social, nos usos e costumes. O escritor divide a nação
em sete regiões culturais e as relaciona com suas respectivas produções
literárias. Assim, ele instaura “uma visão essencialmente contrastiva e moderna
para a sua época”.54
O pensador denomina essas divisões das diferentes regiões como
arquipélagos culturais. Por ordem geográfica, a primeira ilha é a Amazônia,
formada pelo Amazonas, pelo Pará, parte de Mato Grosso e por trechos
territoriais de mais de seis países. A grandiosidade também reflete na literatura
e influencia grandemente os escritores, nascidos ou não na região: “A Amazônia
como a Antinéia na lenda da perdida Atlântida, depois de se apossar da
imaginação de um pobre mortal, tê-la-á para sempre presa à sua trágica sedução
e aos seus sortilégios”.55
Quando Viana Moog aborda a literatura nordestina, parte da seca que
aflige os habitantes do sertão e do litoral. As diferentes classes sociais, os
contrastes entre o rico e o pobre, a casa grande e a senzala, também são
elementos propícios que remetem a uma literatura social e de classe, polemística
e panfletária ou condoreira e revolucionária, em seu dizer. Se a literatura do
54 Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. In: MOOG, Clodomir Vianna. Uma interpretação da literatura brasileira. Porto Alegre: CORAG, 2006. (Prefácio). p. 5-11. p. 9. 55 Id. Ibid. p. 26.
47
Nordeste se preocupa com o social, a baiana se mostraria como uma literatura de
eruditos e humanistas, ainda conforme as palavras do autor.
Minas seria muito distinta por causa dos quadrantes geográficos, uma
sucessão de montanhas que divide o território, criando regiões isoladas. A
preocupação principal é somente com a própria região e não com o exterior,
oscilando em dois pólos: a inconfidência e a supervalorização da cultura local, que
possibilita obras do século XVIII chegarem até a contemporaneidade podendo
ser consideradas como atuais. Assim se estabelece um núcleo cultural mineiro.
A literatura paulista se manteria fiel à tradição legada pelos bandeirantes,
ao sentido imperial de conquista. Tão logo o paulista se apossa da idéia, quer vê-la
propagada por todo o país. É o que ocorre com Monteiro Lobato quando cria o
símbolo nacional do Jeca Tatu. Além disso, o movimento Modernista ocorrido em
São Paulo se espalha no país. A literatura do Rio Grande do Sul, centrada em suas
coxilhas, mostra que o ser humano comunga com a natureza fazendo dela um
objeto de culto e devoção panteísta.
O complexo de superioridade do gaúcho passa a mudar quando Gilberto
Freire escreve Uma cultura ameaçada, onde mostra o lado do Rio Grande do Sul
composto por imigrantes açorianos, alemães e italianos que, para além das
coxilhas, povoavam os vales dos rios. Aí surgira um novo tipo de civilização,
composta de novas realidades, originando um novo tipo de cultura, por contraste,
mais voltado ao universal do que ao regional: “Só então passou a admitir, com
evidência da transição, as oscilações entre o regional e o universal que
caracterizam a atividade do núcleo cultural riograndense nos dias que correm”.56
Por fim, Moog fala da então capital do Brasil – Rio de Janeiro – que deveria
ser o grupo mais alto e forte, de maior expressão da literatura brasileira. Não é
o que acontece, já que pesa sobre o Rio de Janeiro a situação de viver
56 CHAVES, 2006, p. 47.
48
subordinado a outras províncias e ter, como conseqüência, uma literatura de
costumes. Os escritores cariocas preferem a crônica e o conto. Em lugar de
fazerem a história, sofrem-na e, para sofrê-la com resignação, invocam a ironia.
De acordo com Moog, o que falta ao Rio de Janeiro é o estilo dos outros núcleos:
um estilo imperial, a arrogância, a convicção de sua supremacia. Isso em partes
ocorre pela demasiada vontade de corrigir e muito pouco da vontade de criar.
Esses sete núcleos não são sete chaves apenas da literatura, mas de toda
uma sociogênese. Através deles, os fenômenos sociais se aclaram a si mesmos, os
históricos, como os econômicos, os políticos como os literários. As sete ilhas
culturais são capazes de explicar tanta as lutas de tendência separatista, com as
grandes rivalidades no domínio das letras, tanto a revolução riograndense de
1835, como a paulista de 1932, e ainda o indianismo nascido no Norte com ímpeto
social, como o movimento modernista partido de São Paulo. Assim, os escritores
sempre agem dentro de seus núcleos culturais e, fora deles, correm o risco de
corromper-se: “O homem sem núcleo cultural, como o sem região e o sem pátria,
é uma utopia, quando não é uma indignidade. Ai dos que se deixam moralmente
desenraizar, dos que não trazem em suas vestes a poeira de cultura que não está
somente nos livros que lemos”.57
Descontando-se a ideologia e a marca discursiva da época, a afirmação de
Moog possibilita uma reflexão atualizada, pois ele defende o núcleo cultural em
que cada indivíduo se insere. O escritor destaca o quão importante é frisar os
valores locais e valorizar o contexto regional, no que tangem a seus aspectos
culturais, sociais ou até mesmo naturais. Os lugares então se mostram
importantes no processo de constituição da identidade, tanto individual quanto
coletiva.
57 MOOG, 2006, p. 56.
49
Como Viana Moog, Ángel Rama defende a existência de regiões culturais,
afirmando que a divisão em regiões dentro de qualquer país tem uma tendência
multiplicadora que, em casos, produz a desintegração da unidade nacional. O
mesmo se pode dizer das vastas regiões dentro de um país, passiveis de divisão
em sub-regiões com a mesma tendência desintegradora, como ocorre com
Guimarães Rosa quando traça o perfil de Minas Gerais. Essas regiões podem
abranger, do mesmo modo, diversos países contíguos ou recortar dentro deles
áreas com traços comuns, estabelecendo um mapa cujas fronteiras não se
ajustam às dos países independentes.
Assim constituído, o mapa latino-americano seria mais verdadeiro do que
o oficial. O Rio Grande do Sul, por exemplo, demonstra maiores vínculos com o
Uruguai, ou a região argentina dos pampas, do que com o Nordeste do Brasil. As
semelhanças são neutralizadas pelas normas nacionais que dominam as regiões
internas de cada país, impondo-lhes língua, educação, desenvolvimento econômico
e sistema social. Cada região latino-americana teria diferentes tipos de meio
físico, população variada e composição étnica:
Dentro da estrutura global da sociedade latino-americana, o regionalismo acentuava as particularidades culturais que haviam sido forjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir seu perfil diferencial. Por isso mostrava propensão pela conservação daqueles elementos do passado que haviam contribuído para o processo de singularização cultural, procurando transmiti-los ao futuro como modo de preservar a configuração adquirida. O elemento tradição, incluído como um dos vários traços de toda definição de ‘cultura’, era realçado pelo regionalismo (com evidente esquecimento das modificações que em sua época ele introduzira na herança recebida) tanto no campo dos valores como no das expressões literárias.58
O regionalismo lança-se à incorporação de novas articulações literárias,
buscadas, às vezes, no panorama universal, embora o faça com mais freqüência no
contexto urbano latino-americano mais próximo, evitando a substituição de suas
58 RAMA, 2001, p. 211.
50
bases. Até o momento em que uma mensagem é transmitida com relativa
facilidade aos conglomerados urbanos, é necessário adequá-la às novas condições
estéticas que ali são idealizadas. Isso, porque os centros urbanos não são mais
uma ampliação da imigração interna, que as constitui e leva, às cidades, enormes
contribuições de culturas rurais, as quais respondem aos traços peculiares da
evolução humana, que as absorve e as desintegra, tornando-se obediente aos
modelos estrangeiros.
Opondo-se à fragmentação regional, a pulsão modernizadora conta com
normas unificadoras, por baixo das culturas européias que a conduzem, sobretudo
nos dois últimos séculos correspondentes à vida independente da América Latina.
Rama destaca ainda que, quanto mais isoladas as regiões, maiores são as formas
de aculturação. Uma maior integração à nacionalidade, ao permitir o
desenvolvimento das tendências culturais regionais, levaria a um progresso
harmônico, resguardando as tradições, adaptando-as às novas circunstâncias.
Esse processo, juntamente com o sentimento do exílio, parece ser nitidamente
representado na obra de Urda Alice Klueger e Clodomir Viana Moog.
51
3. DICÇÃO GERMÂNICA NA PROSA SULINA
O mundo é feito de todas as etnias, de todas as gentes,
temos a obrigação de aceitar isso.
URDA ALICE KLUEGER No tempo das tangerinas
3.1 Uma Romancista à Esquerda do Verde Vale
Urda Alice Klueger nasce em 16 de fevereiro de 1952. O sobrenome
alemão é resultado da união, selada na igreja católica, de Minervina de Souza e
Ronald Klueger. O mais interessante é que não compartilham a mesma
descendência e religião, motivos de sobra para despertar preconceito em
Blumenau. O relacionamento dos pais de Urda é problemático, sofre muitas
pressões nos anos 40 do século passado. Essa situação inspira a escritora a
elaborar a história de amor entre Guilherme e Teresinha em seu romance No
tempo das tangerinas. Do casamento, nascem três meninas, sendo Urda a do
meio. Sua infância é muito significativa, sofrendo influências das duas etnias:
italiana, da mãe, e alemã, do pai. O nome incomum é idéia de dona Minervina, em
homenagem a uma amiga, uma mulher bastante avançada para aqueles tempos.
Na infância de Urda, a família administra um restaurante em Balneário
Camboriú. Quando ocorre a volta para Blumenau, as matrículas escolares já estão
encerradas. A solução é a menina estudar com a primeira série repetente no
Grupo Escolar São José, colégio situado no bairro Garcia, sob responsabilidade
das religiosas da Providência de GAP. A única imposição é que a menina precisa
saber ler um pouco e, diante disso, a mãe alfabetiza a filha para que possa
freqüentar os bancos escolares. Urda gosta de imaginar histórias e, quando
52
aprende a ler, seu principal prazer é a literatura, razão pela qual não gosta muito
de brincar em turma. Já naquela época, escreve as mais diversas histórias, que
abordam a imigração alemã, oriundas dos encontros com a avó paterna. Esse
assunto mais tarde origina um romance: Verde vale.
Seu maior sonho quando criança é completar logo 12 anos para se tornar
sócia da Biblioteca Municipal Doutor Fritz Muller e tomar emprestado qualquer
tipo de livro. Muitas de suas aventuras são narradas em crônicas abrigadas, por
exemplo, nos livros Crônicas de Natal e Histórias da minha vó, em que conta
com detalhes os costumes da etnia alemã, rituais natalinos, ou até mesmo as
trapalhadas, como um tombo de bicicleta.
Outras situações também dão motivo a seu trabalho literário posterior,
como escreve Camila Morgana Lourenço em Retrato literário: Urda Alice Klueger
e o fazer literário.59 Até então, os adultos com quem convive – pai, amigos, tios –
são remanescentes do campo, filhos dos colonos, que haviam saído da agricultura
por causa da Segunda Guerra Mundial, mas acabaram não servindo ao exército.
Essa situação é retratada na obra literária No tempo das tangerinas quando a
personagem Guilherme e seus irmãos são obrigados a ficar todos os dias no
quartel. É a história do pai de Urda, Roland Klueger, que não chegou a ir para a
guerra, impedido por problemas comuns.
Urda cresce ouvindo a família falar da guerra e, quando ocorre o golpe
militar de 1964, observa todos os conhecidos incondicionalmente a favor do
governo. Os poucos comunistas de Blumenau são presos e torturados. Portanto, a
politização da garota, com 14 anos, ocorre no momento em que os pais e a irmã
menor se transferem à praia e ela passa a morar como pensionista no colégio das
freiras, onde havia cursado o primário e no qual fica por dois anos, sem notícias
59 LOURENÇO, Camila. Retrato literário: Urda Alice Klueger e o fazer literário. Itajaí: UNIVALI, 2004.
53
do que sucede no país. A mudança ocorre quando sai da pensão e vai morar com
uma prima da mesma idade, porém, mais esclarecida. Em plena ditadura militar, as
primas começam a se questionar sobre o real sentido do comunismo.
O primeiro trabalho informal de Urda consiste em ajudar o pai no
restaurante do litoral. Os primeiros empregos têm curta duração, até que a
trajetória empregatícia vai firmar raízes quando a futura escritora entra na
Agência da Receita Federal de Blumenau no ano de 1973. Também é nesse
período que ela acompanha de perto o movimento hippie, experiência relatada em
Te levanta e voa. Uma das pessoas que contribuem para seu desenvolvimento é a
irmã Maria Adalgisa, sua professora no quarto ano primário, e por ela
considerada como a personalidade mais importante em sua formação pessoal,
sendo mais confidente do que a própria mãe.
Quando adulta, outra pessoa relevante para Urda é seu colega de trabalho,
o fiscal da fazenda Evaristo Paulo Gouveia, grande leitor, um homem cultíssimo,
responsável por apresentar-lhe os clássicos da literatura, como: Thomas Mann,
Dostoievski, Frantz Kafka e Saint-Exupéry: “O que percebo é que, lendo Kafka,
Urda tem sua singeleza ferida para priorizar seu crivo mais racional.
Anteriormente, a escritora parecia rebelar-se exacerbadamente idealista”.60
Outros autores, que a marcam, os existencialistas Simone de Beauvoir e Jean-
Paul Sartre, alimentam-na da euforia da libertação bem como da recusa às
normas convencionais, aos valores consagrados, às estruturas da sociedade e do
Estado.
Depois da experiência de trabalhar com Gouveia na Agência da Receita
Federal, Urda se transfere para o então desejado núcleo dos bancários em 1978,
a Caixa Econômica Federal. Ali, faz muitas amizades e passa a maior parte de
seus dias. Por duas décadas, é um trabalho que a realiza profissionalmente, em
60 LOURENÇO, 2004, p. 87.
54
especial, porque tem o confronto diário com realidades diferentes, que se tornam
fonte de inspiração para escrever um romance:
Os contatos serviam, sobretudo, como base para a criação de muitos personagens dos romances da escritora. Em especial, no livro Cruzeiros do Sul, ‘que é um livro com muitos personagens, são 20 gerações, mais ou menos, de catarinenses, uma sucedendo a outra’ [...] casou-se a linda mulata clara chamada Luizinha com o alemão aventureiro chamado Willy Horn. O próprio Padre Genésio oficiou o casamento [...] ganharam corpo na sede da agência bancária. Saíram da Caixa Econômica, da minha mesa de abertura de cadernetas de poupança’.61
Apesar de atender por escritora, Urda tem se envolvido mais diretamente
com os movimentos políticos da região do que com as manifestações culturais. É
possível constatar isso através de suas participações nos fóruns sociais mundiais,
em greves, ou recentemente nas campanhas em prol dos flagelados da enchente
em Blumenau. Ela milita em defesa de causas nas quais acredita, como é possível
constatar na crônica “Europa brasileira – Abrigos”. Nesse texto, escrito a 23 de
janeiro de 2009, faz severas críticas às doações que vêm de todo país e,
principalmente, ao dinheiro doado aos flagelados da grande enchente, mas que
ninguém mostra onde é investido. Até os 21 anos de idade, é uma pessoa de
direita, mas hoje sente os reflexos da transformação sofrida nos tempos de
economiária: “Eu vou me engajar assim, politicamente pra esquerda, quando eu
sou bancária”.62
Depois de ler e acampar, o passatempo predileto de Urda é conhecer
lugares e culturas diferentes. Sua primeira viagem fora do circuito Camboriú-
Florianópolis é para Foz do Iguaçu, a qual abre o leque a tantas outras que se
seguem depois pelo Brasil, a América Latina, Europa e África. Muitas dessas
experiências são narradas depois em livros e, ao ser questionada sobre o local de
61 LOURENÇO, 2004, p. 62. 62 KLUEGER. In: LOURENÇO, 2004, p. 69.
55
sua preferência, ela afirma: “A Bahia é o melhor lugar do mundo! A Bahia tem
tudo; a arte e as religiões e a magia”.63
Aos 27 anos, a escritora catarinense compõe sua primeira obra romanesca,
depois de mais de um ano escrevendo e pesquisando em livros de história,
arquivos históricos e almanaques. Nasce assim Verde vale, romance histórico
publicado em 1979 pela editora Lunaderlli, de Florianópolis, que trata da
colonização alemã no Vale do Rio Itajaí. A primeira pessoa que o lê é seu amigo
Marcos Konder Reis, e a família só fica sabendo de sua existência depois de
publicado. A jovem escritora não imagina tanta repercussão: “As pessoas liam,
liam, liam, e eu comecei a receber cartas enviadas por leitores e telefonemas; eu
não esperava tudo aquilo”.64
Embora se confunda em Verde vale, ao utilizar o termo “palmiteiro”, como
pé de palmito, enquanto a palavra significa a pessoa que trabalha com palmitos, a
história de desbravadores de Blumenau conduz a escritora ao reconhecimento.
Elogios do público e da crítica fazem com que ela se sinta na obrigação de
escrever outro romance: As brumas dançam sobre o espelho do rio. Esse livro
trabalha ficcionalmente um episódio real, ocorrido no Vale do Rio Itajaí durante
a Guerra do Paraguai, e obtém sucesso, da mesma forma que a primeira de suas
narrativas romanescas.65
No tempo das tangerinas (1983) enfoca também o vale catarinense do rio
Itajaí Açú. Esse romance é criado a partir de um fato histórico - a Segunda
Guerra Mundial - e de um flash da infância: as carroças que passavam pelos pés
de tangerinas. “A carroça deu um solavanco inesperado e ele olhou para a trilha
marcada no meio do pasto e achou que teria que vir ali qualquer hora acertar as
63 KLUEGER. In: LOURENÇO, 2004, p. 96. 64 Id. Ibid. p. 118. 65 JUNKES, Lauro. A literatura de Santa Catarina: síntese informativa. Escritores contemporâneos. Florianópolis: EdUFSC, 1992. p. 84.
56
valetas que as rodas e as chuvas haviam aberto pelo chão”.66 A autora elege como
protagonista Guilherme Sonne, descendente de Humberto Sonne que, em Verde
vale, é um dos primeiros colonos vindos para a região no século XVIII.67
No contexto da Segunda Guerra Mundial, um filho dos Sonne parte às
frentes de batalha da Europa. A nacionalização obrigatória, verificada no
período, responsabiliza-se por mudanças constatadas nas personagens. Segundo
relato da própria escritora,68 a inspiração para escrever sobre o assunto tem
origem na própria família, nas histórias contadas pela avó paterna acerca de seus
antepassados alemães que emigraram para o Brasil no século XIX. Desde a
infância, Urda escuta histórias do próprio pai que, por ficar doente, acabou não
indo à guerra.
Também o amor proibido remete à história dos Klueger, ele de origem
alemã e ela, brasileira. A avó paterna da romancista, Emma Klueger, serve de
fonte à personagem Lucy que, na obra literária, se mostra extremamente
preconceituosa e tenta impedir a todo custo a união de seu filho Guilherme e de
Teresinha, uma brasileira. Entretanto, o amor do casal supera todo preconceito.
Mesmo com raízes germânicas, Urda “admite, de bom grado, somar
particularidades de muitos lados: ‘Eu sou brasileira, uma brasileira com
certeza’”.69
66 KLUEGER, 2003, p. 7. 67 Essas informações sobre as recordações da infância, Klueger fez questão de mostrar pessoalmente numa reunião que a autora deste trabalho teve com ela no dia 09 jan. 2009, em Blumenau. Esse encontro foi muito importante, pois a escritora fez questão de mostrar o atual bairro Garcia que, em sua infância, se compunha de paisagens rurais, onde ela e os primos brincavam. O riacho, a colina, inclusive a pedra em que a personagem Guilherme senta na noite de tempestade para chorar estão lá até hoje, são baseadas no mundo real, entretanto, a paisagem mudou. Onde outrora existiam pastos verdejantes, atualmente apenas se observa ruas asfaltadas, prédios e casas. 68 Cf. LOURENÇO, 2004, p. 44. 69 Id. Ibid. p. 108.
57
É no segundo semestre de 1995 que a escritora recebe convite para
publicar suas crônicas no jornal A Notícia, com periodicidade semanal. Veicula-as
também em Portugal, a fase cronista acaba quando inicia o curso de graduação em
História. Atualmente, Klueger acumula várias participações em antologias, é
membro da Academia Catarinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico
de Santa Catarina, da Associação de Jornalistas Escritoras do Brasil, da União
Brasileira de Escritores e da Sociedade dos Escritores de Blumenau.
A intelectual é notada como uma das principais referências da prosa
catarinense, não apenas pela quantidade de livros, mas pela qualidade e a
originalidade dos trabalhos. Prova disso, em 1987, recebe o título de melhor
romancista do Estado, pela Associação Profissional de Escritores de Santa
Catarina. Sua especialidade declarada é o romance histórico, a que se dedica de
corpo e espírito, através de intensas pesquisas. Seu último trabalho, Sambaqui, é
fruto duma vasta investigação histórica e, naquela mencionada conversa informal,
ela declara que já realiza estudos para compor seu próximo livro, o qual terá
como ponto de partida a catástrofe ocorrida em Blumenau no ano de 2008.
A literatura de Urda revela um espírito sensível, a visão de uma alma
feminina e lírica marcada pela ternura. Suas narrativas, ainda que enfoquem
situações difíceis, conservam otimismo, sendo muito importantes para o convívio
humano.70 Essa situação é bem retratada em seus romances Verde vale e No
tempo das tangerinas. Depois desses trabalhos que abordam a imigração alemã
em Santa Catarina, a ficcionista inova em sua produção literária e lança, em 1988,
Blumenau, a loira cidade do sul. É um livro turístico, publicado em português,
inglês e alemão, que focaliza a história da cidade catarinense.
Em 1992, a escritora publica Cruzeiros do sul, seu livro mais encorpado
até o momento, constituindo-se por 480 páginas, nas quais não deixa de tratar do
70 Cf. JUNKES, Lauro. O mito e o rito: uma leitura de autores catarinenses. Florianópolis: EdUFSC, 1987. p. 308.
58
preconceito étnico, já abordado em Verde vale. Essse romance histórico de
trabalhosa pesquisa evolui a uma espécie de epopéia, aparentando-se a O tempo
e o vento. No entanto, ao passo que Erico Verissimo aborda a saga colonizadora
no Rio Grande do Sul, Urda procura esmiuçar as mais diversas regiões
catarinenses, sem se deter na etnia alemã, enfocando os diversos tipos de
colonização e raças humanas.71 Além dos romances que tematizam a imigração em
Santa Catarina, Klueger edita vários outros livros, sobre os mais diversos
assuntos, que abarcam desde suas viagens pelo mundo aos povos primitivos que
viveram no litoral brasileiro.72
O presidente da Sociedade Escritores de Blumenau, Tchello d’ Barros,
identifica o perfil engajado da autora nos livros que ela vem produzindo durante
os últimos tempos. Entre condores e lhamas e Lembranças de amar em Cuba
II tornam visíveis sua preocupação social, política, histórica e cultural. Em seus
primeiros romances, Verde vale, As brumas dançam sobre o espelho do rio e
No tempo das tangerinas, a ficcionista não demonstra o mesmo tempero
político-ideológico, no entanto, reconhecido em Cruzeiros do sul. Na obra da
escritora catarinense, existe “uma emotividade sadia, a harmonia nos conflitos e
a simplicidade natural, que são um atrativo popular”.73
A linguagem usada revela-se como ideal para quem quer se comunicar com
grandes massas, necessitando ter essa simplicidade como traço marcante, pois
seu público alvo compõe-se principalmente por estudantes de Ensino Médio, os
71JUNKES, 1992, p.84. 72 Livros publicados: Vem, vamos remar (1986); Te levanta e voa (1988); Recordações de amar em Cuba (1995); A Vitória de Vitória (1998); Entre condores e lhamas (1999); Amada América (2003); O povo das conchas (2004); Histórias de além mar (2005); Viagem ao umbigo do mundo (2006); Encontro com a infância (2005); Sambaqui ( 2008). 73 JUNKES, op. cit., p. 70.
59
quais ainda não têm grande iniciação literária.74 A própria Urda tem conhecimento
de que sua literatura se direciona aos que lêem por entretenimento. A força
narrativa, a construção das personagens, humanas e autênticas, o cuidadoso e
minucioso trabalho de delinear os cenários e personalidades, o engendramento da
trama, consistente e verossímil, fazem dela a romancista catarinense mais
importante do momento.75
Escritora bastante popular, Klueger prende o leitor da primeira à última
página. Independente da jovial mentalidade ou do tema a ser abordado, seus
narradores são daqueles que se posicionam como um avô ou uma avó, os quais
estivessem pessoalmente contando uma história: de maneira coloquial, mas com
vasta emoção e nobres sentimentos. Quando colocam personagens de ascendência
germânica a se enamorarem de criaturas negras ou mulatas, seus livros quebram
tabus relacionados à história da imigração alemã, possibilitando rever antigas
tradições.76
3.2 No Vale dos Sinos, um Cidadão do Mundo
Clodomir Vianna Moog nasce a 28 de outubro de 1906 em São Leopoldo,
filho de pai teuto-brasileiro e mãe luso-brasileira, Marcos Moog e Maria da
Glória Fialho Moog. Ele passa a primeira infância em São Leopoldo, sendo
alfabetizado pela mãe e recebendo educação religiosa da Irmã Agostina, no
74 Cf. HOLFELDT, Antonio. Urda Alice Klueger. In: HOLFELDT, Antonio. A literatura catarinense em busca de identidade: o romance. Porto Alegre. Movimento, 1994. p. 248. 75 Cf. AMORIM, Luis Carlos. Urda e o romance na literatura catarinense. Disponível em: <http://www.riototal.com.br/coojornal/amorim008.htm>. Acesso em: abr. 2009. 76 COSTA, Viegas Fernandes da. A historiadora Urda Alice Klueger. Disponível em: <http://www.viegasdacosta.hpg.ig.com.br/urda/historiadoraurda.htm>. Acesso em: abr. 2009.
60
Colégio São José. Em 1912, inicia o curso primário no Colégio Nossa Senhora da
Conceição e, em 1914, sua mãe falece devido ao nascimento do sexto filho. Nesse
período, Moog é matriculado no Colégio Interno de Canoas, enfrentando
situações dolorosas, narradas mais tarde em suas obras ficcionais. No ano de
1918, então com onze anos, transfere-se a Porto Alegre e ingressa no Ginásio
Julio de Castilhos, onde conclui os estudos preparatórios.
Clodomir torna-se um aluno rebelde e necessita de aulas particulares com
o professor Carlos Cruz, para ser aprovado em matemática. Em 1924, viaja ao Rio
de Janeiro, para tentar o ingresso na Escola Militar do Realengo, mas não é bem
sucedido e se vê obrigado a voltar para o Rio Grande do Sul. Nessa época,
encontra o tio Guilherme, o qual é considerado o homem mais rico de são
Leopoldo, que com a intenção de ajudar o sobrinho se compromete pagar seus
estudos até a formatura. Um ano depois, Moog ingressa na Faculdade de Direito
de Porto Alegre, além de ser nomeado guarda-fiscal interino da Repressão e do
Contrabando na Fronteira, desempenhando tal função em Santa Cruz do Sul e Rio
Grande.
Em 1926, Viana Moog é nomeado fiscal de Imposto de Consumo, em Santa
Cruz do Sul. A 9 de janeiro de 1930, forma-se em Direito, sendo o orador da
turma. No dia 18 de fevereiro, casa-se em São Lepoldo com Frigga Câmara. Dessa
união, nascem Anna Maria, Gilberto e Geraldo. No ano de 1930, ele participa na
campanha política da Aliança Liberal, na Revolução de Outubro e inicia suas
atividades jornalísticas no Jornal da noite. Dois anos depois, participa da
Revolução Constitucionalista, é preso e removido para a Amazônia, até receber
anistia pelo Congresso.
No exílio, o escritor produz Heróis da decadência, trabalho em que
defende a idéia de que em épocas de decadência surgem pessoas notórias, a se
destacarem não pelos atos que normalmente convém aos grandes heróis, mas pela
coragem e a inteligência de analisar com humor essa derrocada. No ensaio Ciclo
61
do ouro negro, o intelectual procede a uma interpretação da realidade
amazônica. Em 1934, retorna a Porto Alegre, onde é nomeado o último agente
fiscal exilado pela Revolução de 1932, e segue para Venâncio Aires, onde
permanece durante um ano.
Em 1936, Viana Moog assume o cargo de diretor do jornal Folha da Tarde,
nele permanecendo alguns meses. Surge Novas Cartas persas, obra editada pela
Livraria do Globo, na qual examina de modo crítico os problemas sociais e
políticos da época. Em 1938, lança pela Globo Eça de Queirós e o século XIX,
considerada a melhor biografia do escritor português até então. No ano de 1939,
publica Um rio imita o Reno, que repercute em todo o país, esgotando a edição
de cinco mil exemplares em apenas três semanas, por abordar o racismo e o
isolacionismo, tornando evidente o choque ideológico entre as nacionalidades
alemã e brasileira. Em Porto Alegre, o romance é convertido em novela
radiofônica, mas a embaixadora alemã exige a apreensão de suas edições,
considerando-o pernicioso e ultrajante.
Esse romance consagra seu autor nacionalmente, com a obtenção do Prêmio
Graça Aranha. Logo após sua publicação, nazistas e pró-nazistas desprezam o
romance, por seu nacionalismo e pela denúncia contra o alemanismo sulino. O
embaixador do Reich ensaia um protesto junto ao governo brasileiro, no sentido
de sustar sua circulação do livro: “Esta foi uma das minhas maiores vitórias na
vida: a de ter colocado Hitler em perigo. Frase típica de seu permanente bom
humor, da sua constante ironia e da sua verve inesgotável”.77 O livro traz novas
temáticas, revitaliza o regionalismo, tratando de política, filosofia e
discriminação racial.
Em sua narrativa, Blumental é uma pequena cidade imaginária, o laboratório
onde se misturam os novos elementos que integram o romance urbano. A seu
77 Cf. MORAES FILHO, Evaristo. In: MOOG, Clodomir Vianna. Bandeirantes e pioneiros. Porto Alegre: Graphia, 1999. p. 323-338 (Posfácio). p. 330.
62
redor, as colônias de imigração germânica, pontos de conflitos culturais e raciais,
fazem com que se identifique tanto com São Leopoldo e Santa Cruz do Sul quanto
com outros municípios de traços semelhantes, em torno ao Rio dos Sinos. O
horizonte de seus habitantes se expande e capitais do mundo, como Paris e
Londres, pesam nos debates políticos e nas conversas do povo local.
A história conta o encontro de Geraldo, um engenheiro descendente de
portugueses e índio, com Lore, moça de origem alemã. A trama resulta num
desenlace infeliz, pois sobre eles pesa o fanatismo dos preconceitos. A paisagem
e os hábitos imitam a Europa, nesse espaço também se movimentam: Frau Marta;
Paulo Wolff; Krentzer, o viajante Rubem; Bem-Turpin, o italiano; Armando
Seixas, fiscal de consumo de Blumental. Numa estrutura subjacente, o autor
apresenta conflitos históricos como o dos Muckers,78 também, a política do
Estado Novo, o nazismo, o fascismo, o comunismo e o regime democrático,
diferenciando-se da maioria de outros romances sul-rio-grandenses, focada nas
regiões de economia pecuária, e marcada pelo linguajar gauchesco.
78 A revolta "Mucker" ocorreu entre 1868/1874 em São Leopoldo, primeira colônia alemã fundada no Rio Grande do Sul, prolongando-se alguns incidentes até 1898. A palavra "mucker era usada como sinônimo de "beato", "fanático" e "santarrão". Assim, os adversários designavam, na época, pejorativamente, os rebeldes. A revolta envolveu imigrantes alemães que se reuniram em torno do curandeiro João Carlos Maurer e de sua mulher Jacobina, inicialmente para obter esclarecimentos e, mais tarde, com fins religiosos: acreditavam-se eleitos por Deus para fundar na Terra uma nove era, e começaram a trabalhar concretamente neste sentido. Perseguidos pelas autoridades locais, foram presos mas libertados por falta de provas condenatórias. Em 1873, registraram-se em São Leopoldo numerosos incidentes, como assassinatos e atentados, sendo os "mucker" considerados seus autores. O clima tornou-se extremamente tenso, com acusações de parte a parte. Em junho de 1874, os adeptos de jacobina promoveram um ataque em massa contra os principais adversários. Foram deslocadas tropas do exército e da Guarda Nacional para a região. Os rebeldes resistiram a três ataques, matando o comandante das tropas legalistas. A 2 de agosto de 1874 a maior parte dos "mucker" foi morta; os restantes foram condenados a penas altas. Os impronunciados mudaram-se para outras colônias onde, anos depois, foram trucidados pela população local. MILLARCH, Aramis. Estado do Paraná, Curitiba, p. 4, 23 fev. 1978. Ver também o livro de: AMADO, Janaína. A revolta dos Mucker. 2. ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.
63
Ao lado da denúncia, o romance de Moog descreve os costumes e a maneira
de viver e fazer política naquela zona sulina de imigração germânica. Somando-se
a Canaã, de Graça Aranha ou, indiretamente, a Marco zero, de Oswald de
Andrade, e A fazenda, de Luís Martins, é uma das poucas obras literárias que,
naquela época, tomam a imigração como tema: “Assim mesmo Augusto Mayer, seu
conterrâneo, em crítica ao livro, admite-o somente como ‘tímida exceção’ da
empobrecida expressão literária do regionalismo gaúcho, que poderia ser rico e
numeroso na ficção contemporânea”.79
Um rio imita o Reno obtém sucesso imediato. A primeira edição, de cinco
mil exemplares, é de setembro de 1939 e, já em novembro, aparece a segunda
edição, com mais cinco mil exemplares, tiragens excepcionais para aquele tempo.
A vasta cultura do autor é comprovada a todo instante, através de referências
geográficas, históricas e literárias, num texto dominado com a maior
naturalidade, não lhe sendo estranha a facilidade descritiva de paisagens, coisas
e pessoas.
Num estilo agradável, fluente, sem qualquer rebuscamento, Moog fala do
nazismo em ascensão, denunciando também a intolerância vivida no Brasil,
particularmente, no meio familiar cuja filha se apaixona por um engenheiro
amazonense, que chega a cidade para supervisionar a construção de uma
hidráulica. O conflito é inevitável, mas seu final resulta irônico, pois a família
Wolff descobre ter ascendência judaica, o que torna as personagens mais
conscientes, mas não a ponto de mudar perante a sociedade. O orgulho não lhes
permite tomar atitudes de tamanho porte.80
79 MORAES FILHO, 1999, p. 330. 80SCLIAR, Moacyr. Um intérprete do Brasil. Disponível em: <http://academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=11&infoid=4837&sid=554>. Acesso em: jun. 2009.
64
Viana Moog passa a colaborar no diário La Prensa, além de proferir
conferências em Montevidéu e São Paulo. No ano de 1942, torna-se membro do
Segundo Congresso Constituinte, mas desiste para ingressar no quadro de
agentes fiscais do Distrito Federal. Nesse mesmo ano, profere no Itamarati, a
convite da Casa do Estudante, a conferência Uma interpretação da literatura
brasileira, publicada em inglês, alemão e espanhol. Convidado pela Fundação
Guggenheim, fica oito meses nos Estados Unidos, onde escreve artigos para o
New York Herald e algumas revistas. Em 1943 Um rio imita o Reno é traduzido
para o espanhol e publicado em Buenos Aires.
Eleito membro da Academia Brasileira de Letras no dia 20 de setembro de
1945, o escritor ocupa a cadeira número 4, anteriormente utilizada por Alcides
Maya, e publica seu discurso: Mensagem de uma geração. No ano de 1946, parte
a Nova York, para trabalhar na Delegacia do Tesouro Brasileiro, onde dá início a
uma biografia de Lincoln. Em 1950, é nomeado representante do Brasil junto à
Comissão de Questões Sociais das Nações Unidas. Dois anos mais tarde, o
Conselho Interamericano Cultural elege-o para representar o Brasil na Comissão
de Ação Cultural da Organização dos Estados Americanos, localizada no México.
Em 1954, o ilustre gaúcho publica Bandeirantes e pioneiros. Traduzido
para o francês, inglês e espanhol, esse importante estudo sociológico-histórico
tenta compreender os povos brasileiro e norte-americano, bem como analisar as
diferenças no desenvolvimento de seus países. Em 1959, o diplomata viaja a Porto
Rico, como chefe da Delegação do Brasil, para a terceira Reunião do Conselho
Interamericano Cultural. A 22 de julho, recebe da França a Condecoração Palmas
Acadêmicas e publica Uma jangada para Ulisses, romance com várias
personagens situadas no meio diplomático. Países e embaixadas aí mencionados
servem de contraponto para exaltar o Rio Grande do Sul, entre tantas idas e
vindas no espaço e no tempo, as quais se entretecem a diversos acontecimentos
pessoais e políticos.
65
Em 1961, Viana Moog é nomeado para a Comissão Social das Nações Unidas.
Um ano depois, publica sua última obra ficcional, Tóia, em que narra a história de
amor dum diplomata por uma mestiça mexicana, analisando a história do México,
para explicar a tristeza do povo desse país.81 Fato importante acontece em 1963,
quando se transfere a Genebra, ao ser eleito pela Comissão de Ação Cultural da
OEA para integrar o Conselho Superior do Instituto Internacional da Pesquisa
para o Desenvolvimento Social. Nessa época publica Bandeirantes e pioneiros.
Devido a suas participações na Comissão Social das Nações Unidas, no ano de
1965, edita ONU e os Grandes problemas sociais do nosso tempo.
Em 1966, a editora Delta reúne suas obras completas em dez volumes,
permitindo a revisão dos vários caminhos seguidos pelo romancista, ensaísta e
biógrafo que, dois anos mais tarde, lança Em busca de Lincoln, biografia cuja
escrita começara no intervalo de 1946 a 1950. Em 1969, o escritor renuncia ao
mandato na Comissão da OEA, aposentando-se no cargo de fiscal do Imposto de
Consumo. No dia 28 de outubro de 1976, é homenageado pelo Jornal Correio do
povo, pelos 70 anos, sendo-lhe dedicado o Caderno de sábado. Um ano depois, no
dia 16 de novembro, toma posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Em 1985, o “cidadão do mundo” recebe a Comenda da Ordem do Ponche
Verde no grau de Grande Oficial, integrando as comemorações do
Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Na biblioteca do Sport Club
Internacional, em Porto Alegre, ele inaugura a Estante Vianna Moog, homenagem
prestada ao ex-atleta juvenil da agremiação fuebolística. O escritor e diplomata
Vianna Moog falece a 15 de janeiro de 1988, no Rio de Janeiro, com 81 anos. A
dimensão e o valor de sua obra podem ser atestados por meio das constantes
reedições de seus trabalhos nas décadas seguintes.
81 Cf. MORAES FILHO, 1999, p. 336.
66
Na análise que segue, privilegia-se a imigração germânica no Brasil,
conforme representada em No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno.
Ambos tematizam a situação dos imigrantes alemães durante anos 30 e 40 do
século passado, nos estados sulinos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Os
assuntos que giram em torno ao tema principal são os mesmos nos dois romances:
o sentimento do exílio, a saudade da pátria, a idéia de nação, entretanto, seus
desfechos se revelam bastante distintos, especialmente, quanto à integração dos
germânicos à cultura brasileira e à convivência com outras etnias.
67
4. IMIGRANTES ALEMÃES NA FICÇÃO BRASILEIRA
O que faz com que os homens formem um povo é a lembrança das grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.
ERNEST RENAN
4.1 No Tempo das Tangerinas
O romance No tempo das tangerinas apresenta as personagens principais
exiladas no Brasil de forma voluntária, que tecem uma série de considerações a
respeito da nação e do nacionalismo aguçado. Entretanto, por parte de algumas
personagens, como a matriarca da família, a idéia de nação é totalmente voltada à
Alemanha, o que estabelece diálogos e indagações sobre a pátria distante,
principalmente, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Essas perguntas
expressam um painel dos dois países, a abundância que os imigrantes desfrutam
no Brasil, a pobreza e a guerra enfrentadas em solo alemão.
Além disso, percebe-se como as famílias alemãs que vivem no Brasil na
época do conflito são por ele afetadas. Assim, a família Sonne tem um filho
convocado para guerra, contra a Alemanha. As vidas individuais, os costumes da
época, ou seja, dos anos 40 do século passado, com toda sua atmosfera social,
política, econômica e cultural, através de situações de conflito e, diferentes
posições ideológicas, são contempladas pela narrativa em estudo.
Desse modo, o tempo da história narrada relaciona-se a um outro tempo,
real, histórico. Não fica clara a temporalidade exata coberta pela história
narrada, mas é possível perceber seu princípio através de menções à perseguição
aos judeus na Alemanha, desencadeada na década de 1940. O narrador
68
reconstrói esse período ficcionalmente, por meio das famílias que vivem no Brasil,
mas ligadas à Alemanha, por laços afetivos e de sangue. Muitos membros da
família Sonne partem às frentes de batalha, movendo-se no cenário da ditadura
de Hitler e do Holocausto. Essas referências ao tempo real constituem um pano
de fundo para as ações relatadas na obra literária, permitindo que o leitor
acompanhe não apenas a vida familiar das personagens, mas as situe numa época
determinada.
O romance se desenvolve de maneira linear, sendo que a família não passa
por grandes conflitos. Seus membros são unidos e trabalhadores, prósperos e
bem estruturados, deixando evidente o sucesso de sua migração para o Brasil. O
êxito se observa na descrição da casa e inclusive da energia elétrica da qual
dispõem, além de um rádio, artefato de luxo nos anos de 1940:
Era uma sala grande e aconchegante. Havia um grande tapete persa cobrindo todo o chão Rebilhante de tão encerado... duas ricas iluminaduras com letras góticas, uma com bons votos aos visitantes, e a outra contendo uma oração de agradecimento a Deus..., mas, indubitavelmente, a peça mais importante, mais luxuosa de todas era o rádio. Colocado sobre um móvel especialmente feito para ele, o grande rádio era orgulho de filhos de Humberto Sonne e de toda a sua família. Com aquele rádio eles podiam saber de tudo que acontecia no mundo.82
Através do rádio, a família e os vizinhos se reúnem para ouvir notícias da
guerra, as quais refletem muito em quase todos os habitantes do Vale do Rio
Itajaí, cuja maioria é composta de imigrantes alemães. Para eles, principalmente
para Lucy, mãe de Guilherme, pátria quer dizer Alemanha. Essa personagem é a
que mais sofre, pois enquanto o marido e os filhos nascem no Brasil, ela nasce na
Alemanha e sente na pele os dissabores da guerra, sobretudo, as conseqüências da
derrota alemã na primeira Guerra Mundial, como a miséria e a fome.
Lucy e a irmã sobrevivem, pois são resgatadas por um tio e trazidas ao Sul
do Brasil. Talvez por causa de seu sofrimento pela pátria. Ela defende a Alemanha
82 KLUEGER, 2003, p. 14.
69
com todas as forças e, até mesmo, o ditador nazista, salientando inúmeras vezes
que: “era um homem assim que estava faltando para a Alemanha, em 1918 - ela não
escondia a admiração pelas idéias arrojadas de Adolph Hitler”.83 À luz da teoria de
Renan, o sentimento nacionalista se fundamenta a partir da alma, constituindo-se
de um princípio que se estrutura através de vários fatores oriundos de um
passado de esforços, sacrifícios e devoções. Para os alemães que emigraram ao
Brasil, o passado volta-se à Alemanha, a seus ancestrais, sua cultura, suas
tradições. Blumenau, no Vale do Rio Itajaí, pode servir de exemplo, já que passou a
imitar a arquitetura alemã, manteve língua, cultura e hábitos germânicos, até
mesmo, consentindo matrimônios apenas entre alemães.
Renan afirma que uma nação se constitui através de um rico legado de
lembranças que pertencem ao campo imaterial da mentalidade. Nesse caso, a
personagem Lucy, sob hipótese nenhuma aceita outra cultura e, para ela, o Brasil é
apenas um lugar para viver, mas o coração continua alemão.84. O exagero da
matriarca frente às tradições provoca acaloradas discussões em família, pois o
sogro e o marido defendem e entendem o Brasil como sua pátria e nação,. Seu
esposo, Julius Humberto, deixa os filhos escutarem rádio quando as transmissões
são dadas em português; os filhos menores freqüentam a escola e o processo
ensino-aprendizagem se fundamenta na língua portuguesa. Julius acredita que,
escutando os sons desse idioma, todos os integrantes da família podem se
familiarizar, porque os lugares que freqüentam e na casa onde moram só se fala o
alemão. Inclusive, é freqüente o pai pedir que os filhos lhe ensinem o pouco do
português que sabem.
Julius sabe que, se o Brasil entrar na Guerra, eles terão problemas por
causa da língua alemã, como já havia vivenciado antes:
83 KLUEGER, 2003, p 01. 84 RENAN, 1997, p 34.
70
Eu me lembro bem do que aconteceu na última guerra. Eu era garoto ainda e a nossa escola foi fechada só porque não ensinava português. O alemão foi proibido, as pessoas evitavam falar qualquer coisa, a não ser que fosse em casa, com medo de serem presas. Você vai ver o que acontecerá se a guerra que você tanto espera vier: vão proibir o alemão de novo.85
O pai sempre deixa evidente que a família deles é a terceira geração de
brasileiros, mas a mãe pensa que seus filhos têm puro sangue alemão e isso é o que
importa para ela. Lucy sente-se como uma exilada no Brasil, necessita manter a
cultura alemã a todo custo. O sentimento nacionalista, de amor à pátria, é
realizado em devoção à Alemanha, sua família, suas raízes são daquele chão. Por
outro lado, Julius defende que seus filhos são brasileiros e que essa é sua pátria.
Ele inclusive faz premonições para o futuro, salientando que, se a guerra persistir,
ocorrerá uma nacionalização obrigatória, a qual se fará responsável pela mudança
de costumes dos alemães e, principalmente, da língua. O medo de perder a
tradição cultural se agrava quando os efeitos da guerra atingem os habitantes do
Vale do Rio Itajaí.
No conturbado período abordado por Klueger, há uma grande preocupação
das personagens que habitam a região representada com a língua. Existe uma
preocupação geral em falar o português, porque militares de outras regiões do
país instalam-se no Vale do Itajaí com ordens de promover a nacionalização e
evitar que o povo demonstre simpatia pela Alemanha. Também a polícia tem as
mesmas ordens, há instruções do governo Federal ordenando a nacionalização. Se
o Brasil esteve contra a Alemanha na outra guerra, ninguém sabe como será dessa
vez:
Os militares que vinham do Norte não aceitavam a tradicional hospitalidade daquele povo pacífico. Não faziam amizades, não se interessavam em namorar as moças loiras da cidade, o que teria sido natural, sendo eles recém chegados e na sua grande maioria, solteiros, mas
85 KLUEGER, 2003, p. 16.
71
o que encheu de alívio inúmeros pais: misturar o sangue com aqueles estrangeiros e escuros homens não agradava nenhum alemão.86
As personagens que moram na região temem esses homens, que se
aproximam de qualquer grupo que estiver conversando para ouvir o que falam, e
quem ousa desrespeitar as normas sofre sérias conseqüências. Os soldados vão às
escolas fiscalizar se os alunos estão aprendendo português. Eles agem como
senhores da terra e despertam o ódio nos habitantes de Blumenau. De tudo, o
mais constrangedor são as piadas para com os alemães que se esforçam para falar
o português com seu sotaque carregado.
Nessa época de conflitos, Guilherme entrega produtos do sítio na cidade;
leite e seus derivados, além de legumes e frutas. A nacionalização forçada
também o atinge, pois ele é obrigado a usar todos os seus conhecimentos da língua
portuguesa dos quais dispõe para atender seus fregueses em locais públicos.
Quando completa dezoito anos e serve ao exército, sofre muito com as
brincadeiras dos outros soldados por causa do sotaque. Torna-se motivo de
zombaria, assim como grande parte dos rapazes que não falam fluentemente a
língua portuguesa.
O fato de os alemães serem proibidos de falar sua língua natal demonstra
que as personagens vão perdendo uma parte da cultura germânica, uma vez que a
língua é um dos meios de caracterização da imagem nacional. Assim, a
nacionalização obrigatória deixa marcas profundas nas personagens germânicas
que povoam o romance de Klueger, comprovando as reflexões de Edward Said,87 o
qual afirma que o exílio é um extravio de algo deixado no passado para sempre.
Desse modo, o personagem Julius preocupa-se em preservar suas origens, mas
86 KLUEGER, 2003, p. 32. 87 SAID, 2003, p. 46.
72
sabe a importância de valorizar a pátria que os abriga, buscando integrar as duas
culturas, quando demonstra interesse em aprender a língua portuguesa.
Contudo, na região representada, de colonização alemã, a maioria das
personagens não altera a idéia que tem da Alemanha como nação-mãe. Mesmo que
sejam descendentes dos alemães vindos para o Brasil no século XIX, e nascidos no
Brasil, vários personagens se esforçam por manter os costumes e as tradições
culturais germânicos. Elas não aceitam outra cultura, formando comunidades nas
quais a única língua falada é a alemã, e a religião, evangélica protestante. O Brasil
representa a terra para sobreviver, mas o coração está na antiga pátria. Contudo,
a partir da nacionalização obrigatória, os teutos não se dão conta da realidade e,
aos poucos, se integram à nova cultura, tornando-se brasileiros de forma
involuntária. Também os poucos casamentos que ocorrem entre diferentes etnias,
provocam integração, representados no romance através do enlace de Guilherme e
Teresinha.
O imigrante é obrigado a se adaptar ao novo espaço, ocasionando uma
troca cultural por meio da qual os imigrantes e seus descendentes desenvolvem
formas variadas de integração, alterando a própria idéia de nação no país em que
se inserem. No tempo das tangerinas, mesmo estabelecido no Brasil, o
imigrante tem essa terra como pátria, mas sua memória se volta à terra-natal. Há
uma defasagem entre o país real e o das lembranças. Outra manifestação da
busca do reforço de referências nacionais, por parte de seres afastados de seu
país, diz respeito às receitas de cozinha e outros elementos culinários.
A comida é descrita como abundante, farta e variada: “Naquele domingo, a
mãe assara dois gordos marrecos recheados com farofa e miúdos moídos. Havia
um pastelão de galinha, arroz branco, purê de batatas com bastante manteiga
derretida escorrendo de cima, couve flor em vinagre, beterrabas com açúcar
branco”. Ou ainda: “Guilherme trouxe para fora dois tabuleiros de cuca de farofa
73
e dois de cuca de banana, e voltou para buscar as tortas de queijo e a massa de
bolo”.88
A culinária, segundo abordada no romance em análise, faz vir à tona
aspectos significativos da terra natal: “A referência à cozinha (às lembranças de
sabores e odores e os mistérios, dessas ‘artes de fazer’) não poderia ser gratuita
em textos de migrantes, pois além de fazer parte do patrimônio cultural de um
povo, a cozinha constitui um lugar privilegiado de misturas, de reciclagens, de
transformações em aberto que remetem ao devir dos próprios imigrantes”.89
Adquirir ou produzir alimentos e receitas típicas consiste numa maneira de
os imigrantes compensarem a saudade da pátria mãe, ou até de reforçarem os
vínculos com seu país de origem. Além desses valores, é no plano lingüístico que
se manifestam as principais dificuldades dos teutos: “A experiência do entre-
dois os impulsiona a explorar os recursos da atividade tradutória que, segundo
muitos teóricos, supõe a criação de uma terceira língua, marcada por negociações
plurais capazes de resolver impasses e impossibilidades”.90 Nota-se assim, que há
uma grande preocupação para com a língua alemã, como visto, principalmente, por
parte da personagem Lucy. Ela somente se dispõe a aprender o português devido
a questões da política brasileira, demonstrando que o domínio da língua é
imprescindível à manutenção da consciência nacional, como afirma Anderson.
Ainda com relação às diferenças entre Brasil e Alemanha, a rotina da
família Sonne é muito abalada com a Segunda Guerra Mundial, pois com ela vem a
notícia da perseguição aos judeus, através de uma carta de Kurt Durrel,
solicitando abrigo para a filha. Esse é descendente direto da família, filho dum
88 KLUEGER, 2003, p. 21 e 34. 89 PORTO, Maria Bernadette. Negociações identitárias e estratégias de sobrevivência em textos de migrações nas Américas. In: BERND, Zilá (Org.). Americanidade e transferências culturais. Porto Alegre: Movimento, 2003. p. 47-63. p. 59. 90 Id. Ibid. p. 60.
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francês com uma herdeira do pioneiro Humberto, a qual fora pianista famosa na
Europa. A grande preocupação de Kurt é quanto a sua ascendência judia, por isso
envia ao Brasil sua única filha, Cristina.
A chegada da prima torna-se motivo de orgulho, porém desperta
curiosidade, pois como ela vem da Europa, tem um jeito bem diferente de ser,
principalmente manifesto através do vestuário. Numa época em que poucas
mulheres ousam vestir calças compridas, Cristina as utiliza para cavalgar. A roupa
de banho que usa no ribeirão em nada se assemelha à que usaria uma moça da
região, de boa índole. Demonstra ainda, ser uma mulher objetiva, prática, ao
chegar da Alemanha com jóias e dinheiro para adquirir terras no Brasil, o que,
para ela, seria o método mais seguro de investir dinheiro. Além disso, naturaliza-
se brasileira, em processo que considera natural.
Ao contrário de Lucy, que ignora o português, Cristina solicita aos primos
que lhe ensinem tudo o que sabem dessa língua. Entretanto, a grande preocupação
dela é com o pai, o qual fica na Europa e corre o risco de ter sua origem
descoberta. Num dia de apreensão, chega a desabafar: “Por que ninguém tem a
coragem de matar um animal como Hitler? O mundo tornar-se-ia melhor”.91 O
desabafo é motivo de admiração para a família, principalmente para a mãe, para
quem Hitler representa um ídolo. Ela considera Cristina louca por cogitar tal
absurdo, seu patriotismo é tão grande que não existiria Alemanha sem o führer.
Sua glória é imensa quando a Alemanha invade a Noruega, a Holanda, a Bélgica e
também Luxemburgo, países neutros.
Lucy sempre encontra argumentos para defender sua terra, o que se torna
motivo de grandes discussões em família, pois o pai e o avô são contra a guerra:
- Ah opa, a Alemanha precisa de espaço vital. O senhor não ouviu o discurso do Fürer no rádio.
91 KLUEGER, 2003, p. 21.
75
-Ah Lucy, não há espaço vital que justifique a invasão de países que não queriam a guerra.
Opa, o que eu acho é que vocês homens deveriam estar do lado da sua pátria e fazer parte do partido nazista.
Lucy, você parece se esquecer que a nossa pátria é esta aqui- o pai rebatia .
A terra pode ser esta, mas o sangue de todos vocês é alemão! Vocês não podem negar o sangue que tem! Aqui é muito bom e tudo, mas vocês são alemães.
Ora Lucy, se nós não fossemos brasileiros, Humberto- Gustav não estaria servindo o exército!
-Que sirva já que é dever dele por haver nascido aqui. Mas você não vai querer negar que seu filho é tão alemão quanto qualquer soldado dos que estão agora na Holanda ou na Bélgica.92
Essas discussões mexem com a opinião dos filhos. Humberto-Gustav,
soldado brasileiro diariamente doutrinado no quartel, sempre apóia o argumento
dos homens da família e aconselha a mãe a mudar. Guilherme não opina, não tem
idéia formada sobre qual lado defender, entretanto, conforme vai avançando sua
idade, e observando o mundo a sua volta, os argumentos do pai e do avô parecem-
lhe mais convincentes. A cada nova informação, sua opinião vai se formando,
principalmente no que se refere às invasões alemãs e à perseguição aos judeus.
Outro fato decisivo para Guilherme é saber de seu avô, porque a família não
se relaciona com os Westarb, seus parentes próximos. Descobre que sua mãe é
responsável pela proibição, a qual, aos poucos, faz com que toda a família passe a
ignorar esses parentes, já que, sob hipótese nenhuma, ela admite que seus filhos
“de puro sangue alemão” se relacionem com “negros”. Apenas o avô continua se
relacionando na clandestinidade com os parentes: “Guilherme sentiu um nó na
garganta, uma coisa na sua vida, como se a mãe lhe tivesse roubado um direito
92 KLUEGER, 2003, p. 45-46.
76
inalienável: o de ser plenamente ele, o de participar plenamente da realidade de
sua família”.93
Conforme o rapaz amadurece, essas questões lhe perturbam, contudo, o
fator determinante que lhe dá coragem para enfrentar sua mãe é apaixonar-se
por uma moça muito bonita e trabalhadora, porém não adequada aos quesitos da
família, principalmente, da matriarca, por ser brasileira católica e de outra etnia.
Lucy tem seu orgulho ferido por causa da paixão do filho:
- Já lhe disse por que. Cabocla, católica, outro sangue, outro tipo de gente. Se você começa a sair com ela, acaba namorando, acaba casando-se, e aí, então? Não, nem quero pensar! Um filho meu misturando-se com uma brasileira! Não, Guilherme, pode esquecer! Ela não serve para você. Você precisa de alguém de sua raça, da sua gente! Acha que seria feliz ao lado de uma mulher desse tipo? Não, não e não!94
Nota-se novamente, nessa fala de Lucy, a preocupação com os laços
sanguíneos. É inadmissível, para ela, ver o filho relacionar-se com alguém de outra
“raça”. A preocupação com a Alemanha e seus costumes, os quais parecem
inquestionáveis até aquele momento, são justamente ignorados por alguém de seu
sangue. Sob os xingamentos da mãe, pela primeira vez, um membro da família ousa
retrucar-lhe, inclusive, abandonando a mesa, verdadeiro ato de rebelião na casa.
Com o desespero de Lucy, o pai e o avô mostram-se conscientes de sua situação no
Brasil, tentam confortá-la, alegando que todos eles são brasileiros e que esses
encontros podem acontecer, na verdade, o que vale é o amor entre o casal e não
apenas os traços sanguíneos.
Enquanto tais episódios ocorrem, a Segunda Guerra Mundial também avança.
Todas as noites, escuta-se rádio na casa da família Soenne e a notícia do avanço
alemão contenta a todos. O pai e o avô são contra a guerra, mas já que ela ocorre
93 Id. Ibid. p. 53. O preconceito também foi abordado por Klueger em seu romance anterior, Verde vale, comprovando que a obra literária em análise é uma continuação daquele livro. 94 KLUEGER, 2003, p. 87.
77
e a velha Alemanha faz um avanço meteórico no grande território, regozijam-se
com a boa sorte do povo do qual provêm. Nessa época, uma surpresa para toda
família á a gravidez de Lucy, contudo, seu fanatismo pelo líder alemão é tão
grande que anuncia para toda a família: se nascer um menino, ela o chamará de
Adolph, em homenagem a Hitler.
No mesmo ano, os Estados Unidos declaram guerra ao Japão e a seus
aliados, Itália e Alemanha. Os estadunidenses na guerra e o frio na Rússia deixam
Lucy apreensiva, mas ela não demonstra a menor dúvida sobre a vitória alemã. Em
28 de janeiro de 1942, o Brasil rompe relações com o Eixo. A Alemanha passa da
condição de uma ameaça para a de inimiga. O exército que está na Rússia vai de
mal a pior. A grande preocupação da família Sonne é para com o pai de Cristina,
Kurt Durrel, que ainda está no país em guerra e, por sua parcela de sangue judeu,
pode sofrer perseguições. A posição brasileira perturba a matriarca:
Não está certo isso de o Brasil se colocar contra nós!- Opinava ela. – O Brasil, que tanto recebeu da nossa gente, olhem, olhem só esta cidade, o progresso desta região! Se não fossem os alemães, isto aqui ainda seria puro mato, estaria cheio de bugres. Viemos, domamos a terra, a região se tornou rica, e agora o Brasil nos declara inimigos! Inimigos uma ova! Tem é que agradecer por tudo o trabalho do nosso povo!95
Nesse questionamento, observa-se a visão que Lucy tem do Brasil,
principalmente, da região em que vive, responsabilizando apenas os alemães pelo
progresso e pela pujança da terra. Fica visível a opinião do avô, sempre definido
como “sábio”: “Tem outra coisa, Lucy. Tirando você e Cristina, ninguém mais nesta
casa é alemão. Todos nós outros já nascemos no Brasil, somos filhos desta terra. –
Opa, mas o sangue de todos vocês é alemão! Não importa onde tenham nascido,
somos todos alemães”.96 Com esses conselhos, o avô tenta convencer a nora a ser
95 KLUEGER, 2003, p. 111. 96 KLUEGER, loc. cit.
78
mais discreta, a nunca usar argumentos desse tipo com pessoas estranhas, já que
podem trazer grandes complicações.
À época, procura-se nacionalizar o Vale do Itajaí com maior rapidez. As
escolas são vigiadas para conferir se realmente estão ensinando a língua
portuguesa. As pessoas nunca estão à vontade fora de casa, temendo que, quando
abordadas por algum policial, não saibam expressar-se adequadamente no
português. Inclusive, há uma mudança nos costumes dos Sonne: seu hábito
rotineiro de ouvir emissoras alemãs de rádio é interrompido, pois, em caso de
flagrante, poderão ter o aparelho confiscado e problemas maiores.
Nota-se também uma atitude corajosa de Terezinha, a namorada de
Guilherme. Quando Lucy dá à luz seu décimo filho “brasileiro”, aquela enche-se de
coragem e visita a sogra no hospital, leva-lhe flores, mostra-se muito corajosa,
provando que também pode ser uma pessoa de bom caráter e amar Guilherme. Ela
surpreende quando afirma que seu pai também não aprova muito a idéia da mistura
de raças e não gosta do namorado alemão: “De novo Terezinha criou coragem.
Olhou para a sogra e disse: - é exatamente o que meu pai diz – que pena que seu
namorado é alemão”.97 Jamais passara pela cabeça da matriarca da família Sonne
que os alemães pudessem ser alvo de preconceito no Brasil.
O medo na região torna-se eminente: “A 15 de fevereiro, ainda em pleno
verão, o primeiro navio brasileiro havia sido afundado por torpedos alemães. E daí
por diante, um atrás do outro, os navios brasileiros estavam sendo atingidos e
afundados por submarinos alemães, criando no país uma total revolta a tudo que
fosse germânico”.98 Nesse período, os alemães do Vale do Rio Itajaí ainda
demonstram dificuldades com a língua portuguesa, priorizam a cultura alemã,
ouvem constantemente notícias de seus ancestrais por emissoras radiofônicas,
97 KLUEGER, 1983, p. 117. 98Id. Ibid. p. 119.
79
porém, já estão suficientemente nacionalizados para saberem que, se a nação
brasileira entrar na guerra, eles com certeza apoiarão o país que os acolheu.
Contudo, sempre existem exceções e, na região também há simpatizantes do
partido nazista, os quais não passam de um grupo de idealistas obcecados pelo
brilho dourado que vem do grande führer. Essa minoria desperta preocupações no
governo federal e provoca atitudes drásticas, medidas restritivas para a
população em geral. Com isso, bons e maus, culpados e inocentes, são tratados do
mesmo modo.
A situação atinge diretamente os Sonne: “Na casa onde Lucy defendia
verbalmente a Alemanha idolatrada, mas onde também nada ela falou contra o
Brasil que um dia a recebera, apesar do desgosto de ver os dois países como
inimigos, pois bem, até na casa que não representava nenhuma ameaça para a
segurança nacional, até lá as repressões anti-nazistas chegaram”.99 Não existe
nada que possa incriminá-los por adesão ou simpatia ao nazismo: na parede, há
apenas desenhos e panos brancos que representam cenas da vida rural e
doméstica, nos quais se registram ditados ingênuos e singelos, de motivação para o
dia-a-dia, como “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Costume de famílias alemãs,
essas frases nunca poderiam prejudicar a integridade brasileira, mas colocam a
família, pela primeira vez, frente a frente com a polícia.
Os panos são queimados e considerados como propaganda nazista. Enquanto
os guardas agem, Lucy não consegue reagir e muito menos falar, pois a língua
portuguesa lhe é totalmente estranha. Contudo, a partir desse episódio Lucy, de
tão radical e preconceituosa, passa a se interessar pela língua portuguesa, talvez
por medo. Além disso, a situação fica cada vez mais complicada para os alemães do
Vale do Rio Itajaí porque, em 18 de agosto de 1942, cinco navios brasileiros são
99 KLUEGER, 2003, p 120.
80
afundados em águas nacionais, ocasionando a morte de 600 pessoas, e causando
revolta em todo o país.
O Brasil declara guerra ao Eixo, situação que castiga e angustia os
habitantes da colônia, devido às expectativas de os soldados irem ou não para a
guerra. A circunstância ocasiona grande mudança em Lucy que, pelo medo de ver
um filho morto ou infeliz na guerra, chega a aceitar o namoro de Guilherme e
Terezinha, permitindo ao filho viajar com a namorada para conhecer os pais dela.
O rapaz também sente na pele a diferença dos costumes, tanto na forma de
comemorar o Natal quanto na religião: “Na igreja, permaneceu de pé, enquanto as
outras pessoas se ajoelhavam, o que lhe valeu uma conversa com o sogro, no dia
seguinte”.100 É possível constatar que o preconceito é recíproco: o pai de Terezinha
revela-se tão, ou até mais, preconceituoso do que Lucy: “Eu não gostaria de ver
minha filha casando-se numa igreja qualquer muito menos mudando de religião”.101
Em seu romance No tempo das tangerinas, Klueger expõe dois tipos
diferenciados de vida, em seus mínimos detalhes, desde a culinária ao jeito de
cuidar da lavoura, da casa, dos animais. Entretanto, ao demonstrar um sentimento
considerado tipicamente brasileiro, Guilherme responsabiliza-se por aproximar as
culturas: “Apesar de estar se sentindo bem, queria voltar, abraçar a sua terra e a
sua gente que morava no seu coração desde que se lembrava”.102 As objeções do
futuro sogro à religião e às tradições do rapaz fazem com que esse fique
apreensivo quanto à aliança de culturas tão diferentes.
À medida que a história avança, a situação dos alemães piora, por causa da
nacionalização forçada. Como Guilherme está servindo ao exército, sua irmã Ema é
quem distribui o leite da propriedade rural aos clientes na cidade. Pega em
flagrante ao falar alemão com uma freguesa, algo expressamente proibido, ela é
100 KLUEGER, 2003, p. 127. 101 KLUEGER, loc. cit. 102 KLUEGER, op. cit., p. 128.
81
presa sob acusação de conspiradora. A família não mede esforços para libertá-la,
tentando provar que se trata de uma boa cidadã brasileira. Um dos argumentos
mais convincentes reside no fato de os irmãos servirem às Forças Armadas
brasileiras.
A prisão da filha modifica ainda mais as convicções nacionalistas da
matriarca: “Novamente Lucy Sonne sentiu-se amedrontada e, talvez pensando na
sua própria segurança, ou mais provavelmente, na segurança dos filhos, capitulou e
passou a querer aprender o português. Guilherme achava assaz estranho ver a mãe
entremeando palavras portuguesas no seu alemão clássico, com jeito indiferente
de quem não se sentia humilhada”.103
Começam a ocorrer grandes mudanças nessa personagem, conforme o
andamento da Guerra que, antes vista por ela como uma glória para sua antiga
pátria, agora é responsável por várias transformações. Assim, ela permite
inclusive que seu filho Guilherme case com Teresinha, a moça brasileira que tanto
havia rejeitado. Entretanto, não deixa de alertá-la: “Estou depositando toda a
minha confiança em você, Teresinha. Você sabe que não sou a favor dessa mistura
de raças. Se você quer mesmo casar-se com meu filho, eu a intimo a fazê-lo feliz.
Não quero depois que ele se arrependa”.104
Lucy inclusive recebe os pais da Teresinha para organizar o casamento,
porém, ela e o pai da noiva não chegam a um consenso em matéria de religião. Por
fim, cada um tem que ceder um pouco e entendem que todas as “raças” têm
personalidade e pensamento próprios: “No decorrer daqueles dias, os dois
contendores acabaram passando a se respeitar. Lucy Sonne sentiu que o
‘brasileiro’ podia ter tanta opinião quanto ela; seu Adolfo concluiu que a ‘alemoa’
103 KLUEGER, 2003, p. 132. 104 Id. Ibid. p. 140.
82
era feita do mesmo material que ele. Acabaram despedindo-se com sorrisos e
efusivos apertos de mão”.105
Com a aprovação das famílias, ainda há um outro fator que pode estragar o
casamento: a guerra. O exército brasileiro deixa os soldados na expectativa de
participarem das batalhas: “Guilherme era um soldado brasileiro e não iria
desmerecer a farda que usava e nem a confiança na pátria”.106 O mesmo ocorre
com Kurt Durrel na Alemanha, que decide alistar-se em favor da nação. Contudo,
sua origem judia é descoberta e, provavelmente, seu destino seja um campo de
concentração, mas consegue fugir para a Suíça.
A guerra traz grandes surpresas à família Sonne. O maior abalo, para Julius
e Lucy, é ver seu filho Humberto e seu genro partirem às frentes de batalha, além
de tudo, para lutarem contra a Alemanha. Entretanto, as dificuldades fazem
nascer uma nova Lucy, que nem se importa muito com a mistura de sangue. Quando
Guilherme lhe dá a notícia de que será pai, apenas se limita a fazer um breve
comentário e, ao saber de que o filho é convocado pelo exército, compartilha a
mesma dor com a nora: “Os meus dois filhos! - chorava a mãe, pela primeira vez
abraçando Teresinha. – A gente os cria, minha filha, dá-lhes todo o amor que tem,
para depois vê-los ir embora assim para a guerra! Oh! Meu Deus, os meus dois
filhos!”.107
Para Lucy, não importa mais se a Alemanha vai perder ou ganhar. O
sentimento materno vence o patriotismo. Ela se esquece do ferrenho orgulho
nacional, pois os filhos lhe importam mais. O sofrimento por ter um filho na guerra
se agrava a partir do momento em que o outro também espera para lutar na
Europa. As raras cartas escritas por Humberto-Gustav, seu primogênito, custam a
chegar e, quando as lê, não tem a mínima certeza de que o rapaz possa estar vivo.
105 Id. Ibid. p. 143. 106 KLUEGER, 2003, p. 122. 107 Id. Ibid. p. 147.
83
Em 1945, fica nítida a derrota das nações do Eixo e, assim, da Alemanha. Mesmo
preocupada com os filhos, a matriarca sabe que, ao perder mais uma batalha, os
alemães acabarão derrotados: “Lucy Sonne tapava os ouvidos com as mãos ao ouvir
as notícias. Mesmo com o coração sangrando pelo filho e pelo genro que estavam
na luta, ela sentia que ele sangrava um pouco mais ao saber que sua terra estava
prestes a, mais uma vez, sofrer a humilhação da derrota”.108
Klueger encerra seu romance associando o fim da guerra ao nascimento da
filha de Guilherme e Teresinha, ocorrido em maio de 1945, mesmo período em que
Berlin é tomada e Hitler comete o suicídio. Marcando um despertar, um renascer,
a criança gerada da miscigenação de etnias diferentes provoca a mudança final em
Lucy. Agora, ela dá valor à nação que a acolheu e onde tem condições de viver
tranqüila, evitando falar da guerra. “Nunca esqueceria a terrível angústia provinda
do medo de perder os filhos. A Alemanha passara a ser coisa do passado, ela
agradeceria a Deus por estar no Brasil e ter todos os filhos à sua volta”.109
No final do romance, Lucy apresenta-se como uma mulher informada, capaz
de aceitar as diferenças, algo que, no passado, era fora de cogitação. O processo
de integração à realidade no exílio demora a ocorrer, realizando-se,
principalmente, devido à guerra, que modifica sua maneira de pensar. Aceitando,
por fim, o Brasil como nação adotiva, ela passa a entender que os laço afetivos
com sua família brasileira são mais fortes do que qualquer sentimento relacionado
a sua antiga pátria.
Por fim, a conversa de Guilherme e Herman, já no ano de 1969, procede a
uma retrospectiva de toda a história narrada no romance. Nesse capítulo final, é
possível conhecer o desfecho de cada personagem, sobretudo, de Guilherme,
Teresinha e seus dois filhos. O pequeno diálogo entre os primos não deixa de
108 KLUEGER, 2003, p. 149. 109 Id. Ibid. p. 153.
84
mostrar o contexto da década de 60, recorrendo ao vestuário: “Vive dizendo que
é falta de vergonha Marina andar com essas calças compridas que as mulheres
estão usando agora... É a moda deles deixe que eles se divirtam. Eu também não
gostei quando os meus dois resolveram não mais cortar os cabelos”.110
Guilherme relembra, juntamente com Herman, todos os acontecimentos
tristes que suas famílias viveram durante a Segunda Guerra Mundial. No meio do
assunto que vêm travando, eles são surpreendidos: “Trazia a camisa da escola, o
rosto e os braços cheios de emblemas e frases feitas a guache e a caneta – Filho
– perguntou Guilherme. -Que fantasia é esta? - Ah pai, nós fizemos uma
manifestação contra a guerra do Vietnã na saída da escola. A tinta foi para
impressionar mais”.111
A partir da fala do menino, Guilherme conclui que os conflitos sempre
renascem em algum lugar do mundo. Enquanto pensa nisso, a personagem dirige
sua camionete pela rua, que agora é asfaltada, e onde quase não há mais pastos
para olhar. Sente então um cheiro característico de sua infância, algo conhecido,
familiar, trazendo saudades: “A guerra nunca acabava, mas o tempo das
tangerinas voltava sempre”.112 A fruta que simboliza sua infância, e cujo odor
indica estar pronta para ser degustada, relaciona-se à maturação das idéias de
Lucy. Apoiando o movimento hippie, ela se torna aberta às mudanças enfrentada
pela sociedade ocidental no Pós-Guerra.
Do início ao fim do romance em estudo, transcorrem mais de trinta anos.
Muda a paisagem ao redor de Blumenau, as ruas são asfaltadas, as pessoas
modificam seus pontos de vista, guerras terminam e outras recomeçam. No meio
de mudanças tão rápidas, a fragrância do fruto cítrico desperta o passado, às
110 KLUEGER, 2003, p. 156. 111 Id. Ibid. p. 160. 112 KLUEGER, loc. cit.
85
vezes, bastante amargo. Apesar das tristezas sentidas pelos personagens, a
esperança renasce, simbolizada por um cheiro que retorna a cada estação.
4.2 Um rio imita o Reno
Assim como No tempo das tangerinas, o romance Um rio imita o Reno
aborda o contexto histórico dos anos 30 e 40 do século passado. Essa obra
literária se desenrola na cidade ficcional denominada Blumental, que se localiza
no Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul. A maioria dos personagens do
romance é de origem germânica, visivelmente influenciada pelo contexto europeu,
principalmente, a família de Lore Wolff. A vinculação dos fatos históricos à
narrativa literária confere um cunho de verossimilhança aos personagens e aos
eventos narrados. As referências ao tempo histórico constituem pano de fundo
para as ações narradas, permitindo que o leitor se situe em uma época
determinada.
Abordando personagens alemães ou teutobrasileiros, o narrador tenta
retratar suas apreensões durante a II Guerra Mundial, que tem por cenário a
antiga pátria, com a qual eles mantêm laços afetivos. Entretanto, o romance
detém-se na vida de Geraldo Torres, um engenheiro oriundo do Norte do país que
se desloca à colônia germânica, mostrando os conflitos por ele vividos, desde a
ascendência indígena, do trabalho do pai como produtor de borracha, à própria
questão de exilado, numa terra com costumes tão diferentes dos seus. Mesmo
tão distinta da terra-natal, Blumental lhe inspira saudade e reflexões: ele
compara o rio que corta a cidade aos da Amazônia; as figueiras locais, às sequóias
de lá; as crianças nas portas lembram os indiozinhos parados nas barrancas
amazonenses: “Geraldo vê agora o pai em pleno seringal. Ao seu lado uma mulher
86
bronzeada, de olhos brandos, cabelos corridos, um belo exemplar de índia
descendente dos nhengaíbas”.113.
Inúmeras vezes, a descrição é tão bem feita, abarcando a geografia, as
lendas, os costumes, que dá idéia de o autor da obra literária em estudo ser
nativo dessa região. Vianna Moog, na verdade, morou por algum tempo na
Amazônia, onde teve contato com os costumes da região e de seu povo. Isso
transparece no ensaio Uma interpretação da literatura brasileira, no qual
divide o país em sete núcleos culturais, dentre eles, o núcleo amazonense e sulino.
Vivendo na região sulina, mas pertencendo à amazonense, e sendo
descendente de indígenas, Geraldo se esforça para, ao menos, entender os
teutos. Ele se dedica a ler diversos autores alemães, entretanto, sente-se
perdido naquele mundo que parece uma Europa incrustada no Brasil. Seu único
objetivo passa a ser o trabalho, porém apaixona-se por Lore Wolff, filha de uma
tradicional família alemã:
Nas veias de Frau Martha não corria sangue nobre, mas ela tinha orgulho de sua raça. Orgulho de descender de alemães, de haver casado com um filho de alemão. Ela mesma se considerava alemã. A raça nada tinha a ver com o lugar do nascimento. Não, não havia de tolerar a ameaça de um intruso na família, um negro. Para Frau Martha quem não tivesse sangue ariano puro estava irremediavelmente condenado: era negro. Lore havia de casar com um filho de alemão, se possível com um alemão... mesmo que não fosse possível casar a filha com um alemão, tinha de ser com um filho de alemão, como ela.114
A proibição vinha perturbando Geraldo: “No ponto que as coisas tinham
chegado, só lhe restava uma coisa: reagir. Aquele namoro vinha tirar-lhe a paz de
espírito de que precisava. E um vago pressentimento lhe dizia que aquilo não ia
terminar bem”.115 O personagem atribui as insatisfações à superstição e, embora
tente ignorá-la, as conveniências lhe instigam a acreditar: “Não, aquilo não
113 MOOG, 1957, p. 93. 114 Id. Ibid. p. 112. 115 Id. Ibid. p. 55.
87
acontecera por mero acaso, advertia ele. Era o resultado da combinação do
maldito número 13 com a sexta-feira do dia da chegada. Uma combinação que não
falhava nunca. Inexorável: tardava às vezes, mas não falhava”.116 O contato entre
as duas culturas, indígena e germânica, começa a se manifestar na descrição da
fisionomia dos personagens: “Seus olhos de tapuio se encontravam com os da
feiticeira branca”.
Conformado, pacífico, o amazonense não encontra forças para lutar pelo
amor ou para defender sua terra ou seu povo, quando os alemães de Blumental
defendem a independência do Rio Grande do Sul e demais estados do Sul, pois
acreditam que sua região precisa sustentar as outras. A partir dessa discussão, o
amazonense empolga-se e começa a discorrer sobre fatores positivos do Norte
do país, argumentando que muitas questões governamentais, independentes do
povo, são as responsáveis pela situação de sua terra. Contudo, percebe-se total
descaso daqueles que estão a sua volta, no momento, preocupados em exaltar o
Sul.
O promotor valoriza a “mistura de raças” verificada no Sul do país que, por
ser composta de açorianos, charruas, bandeirantes, alemães e italianos, tornaria
impossível estabelecer comparações com a “mestiçagem do norte”.117 A questão
mexe com o orgulho de Geraldo que, para não comprometer seu emprego, deixa
insultarem sua terra e sua gente, mas lhe dói a lembrança de que o pai integra a
“sub-raça” à qual os blumentalenses se referem de forma preconceituosa. Para
ele, a imagem do velho será a de um batalhador, que fugiu da seca no Ceará e
conseguiu vencer no Amazonas.
Os teutos consideram-se o povo mais trabalhador do Brasil; dizem que,
graças a eles, chegou o progresso. Ao mesmo tempo, o “velho Cordeiro jurara
116 MOOG, 1957, p. 68. 117 Id. Ibid. p. 74.
88
ódio aos alemães. O velho Treptuw jurara ódio aos brasileiros. Eram todos
solidários com sua gente... Karl Wolff defendia os Muckers, defendia Hitler,
defenderia com bravura os seus dolicéfalos loiros de olhos azuis, contra tudo
contra todos”.118 Geraldo acredita que, defendendo suas raízes como podem,
todos mais fortes do que ele, pois não briga, não discute por questão nenhuma,
não pode odiar em nome dos outros: “Era o sangue dos nhengaíbas que lhe corria
nas veias como sua mãe, não distinguia entre brancos, judeus, sírios, pretos e
caboclos. Aceitava ou repelia instintivamente a cada um individualmente, mas não
sabia compreender um ódio universal contra o povo”.119
Enfrentando todas essas situações, o personagem tenta entender os
habitantes de Blumental. Para tanto, lê vários estudiosos alemães, sobretudo, o
filósofo Friedrich Nietzsche:
Geraldo reconstituía o raciocínio de Nietzsche. Era necessário ser germano, fazer parte da raça para deduzir a respeito de todos os valores e não valores in historicis... Alemão é um argumento [...] a Alemanha acima de tudo, um princípio; os germânicos são a ordem moral na história, os depositários da liberdade [...] os restauradores da moral, do imperativo categórico.120
As reflexões sobre a cultura germânica no Sul do Brasil vêm à tona
durante um kerb. A partir do comportamento das pessoas, o protagonista tira
várias conclusões, relacionando-as à necessidade de ter um führer, capaz de
conduzir o povo para o bem ou para o mal, e ao fenômeno messianista dos
Muckers. A realidade da colônia sulina formaria um microcosmo representativo
da cultura alemã como um todo. Assim, o patriotismo do povo de Blumental volta-
se para a Alemanha; seu orgulho é sentir-se responsável pelo progresso da
região.
118 MOOG, 1957, p. 92. 119 Id. Ibid. p. 98. 120 Id. Ibid. p. 157.
89
Tal sentimento é confrontado através da visão do Velho Cordeiro que, no
meio do discurso do deputado Eumolpo Peçanha, faz uso da palavra e aborda a
urgente campanha de nacionalização da colônia alemã no Rio Grande do Sul,
afirmando ser preciso acabar com os incensos a outra raça que não a brasileira:
Saibamos dizer aos descendentes de raça germânica- continua o velho Cordeiro- que fazem das lendas do Reno o motivo exclusivo de seus devaneios; aos de origem italiana, polonesa ou lusa, que só estremecem de civismo com as epopéias de seus antepassados, saibamos dizer aos representantes de todas as correntes humanas a quem o Brasil deu agasalho, que é preciso de uma vez por todas, varrer essa errônea concepção da pátria, para se firmar para sempre no Brasil a unidade nacional, pela identidade de tradições, pela unidade da língua, de cultura e de educação, coisas todas do mundo moral, asseguradoras da paz dentro da nação[...] Num só peito não cabem duas pátrias. O Brasil é bastante grande e glorioso para reclamar só para si o amor de todos seus filhos[...] legítimos e adotivos. 121
Cordeiro tem como ponto culminante de suas palavras a exaltação das
grandezas do Brasil, a necessidade de os alemães se assumirem como brasileiros,
de terem amor à pátria que os acolhe. Depois que ele discursa, forma-se um
pequeno tumulto, poucos o aplaudem. Muitas pessoas se retiram antes de
concluir. Eumolpo Peçanha inicia sua fala em alemão. Os teutos vibram de alegria,
pois se sentem honrados quando alguém que não é de origem alemã os saúda em
sua língua. Pensando no apoio das tradicionais famílias do lugar, o deputado
defende sua superioridade frente ao restante do país: “Ele entoava um novo hino
ao povo alemão, à disciplina da colônia, à ordem, ao seu espírito cívico. O Rio
Grande devia o seu progresso à colonização germânica. Por isso, o povo de
Blumental faz jus à gratidão imperecível de todos os brasileiros”.122
Por um lado, existem aqueles que almejam mudanças em Blumental,
revelando preocupações com a pátria que os abriga; por outro lado, a grande
maioria se nega a aderir e vê Blumental a cidade como uma continuação da
121 MOOG, 1957, p. 89. 122 Id. Ibid. p. 167.
90
Alemanha. Tudo segue criteriosamente os costumes e a ideologia alemã, inclusive,
realizam-se desfiles e homenagens a Adolph Hitller. As casas são construídas em
estilo germânico; a igreja, em estilo gótico. O rio é, por diversas vezes,
comparado ao Reno:
Tinha a impressão de que não fizera uma viagem de sete horas de trem; de que em sua vida se dera uma brusca parada, cujo remate era súbito despertar. Parecia-lhe que tinha cruzado os oceanos e estava longe da pátria... Onde estaria? Percorreu novamente os pontos que sua retina acabara de visualizar. Na praça, ranchos loiros de moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés universitários bebiam descansadamente a seu chope. Pareciam sentir-se ali tão à vontade, como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munique. Geraldo então atentou ainda mais para o quadro, retesando a atenção. Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco. Sentia saudades do Brasil.123
Em seus interiores, as casas também seguem os padrões germânicos. Além
dos panos de parede, com mensagens pintadas ou bordadas de boa sorte e
prosperidade, a decoração inspira-se no cotidiano da Alemanha: “O espelho do
guarda-chapéu resplandecia. Tudo limpo, escariolado. Não se notava ali o mais
longínquo sinal de poeira. Um cheiro característico de sândalo, que muitas vezes
Geraldo sentira nas casas alemãs, impregna o ambiente”.124 Ainda em relação à
cultura germânica, percebe-se o gosto pela música, quando da visita do violinista
Raul Machado à cidade: “Sua excursão a Blumental, como tinham previsto, não
seria perdida. Não o haviam enganado, ao afirmarem que ali encontraria um povo
de invulgar cultura musical”.125
A bebida apreciada em Blumental é o chope, segundo se observa no kerb:
“Trink, trink, Brüderlein, trink, Lass doch die Sorgen zu Haus. A melodia anima a
123 MOOG, 1957, p. 28. 124 Id. Ibid. p. 60. 125 Id. Ibid. p. 57.
91
festa e leva todos ao delírio. Convida a irmandade que bebesse. Deixasse em casa
cuidados e preocupações.”126 No tradicional festejo popular, a comida é descrita
como abundante e em grande variedade, relacionando-se às afirmações de
Porto127 sobre a culinária como herança cultural. Sendo uma parte do patrimônio
dos teutobrasileiros, os pratos típicos possibilitam ao imigrante ter contato com
suas origens; sabores e os odores os transportam afetivamente à terra-natal.
Logo após as sopas, servidas como entrada, pratos fartos e muito gordurosos
causam estranheza a Geraldo e seus amigos: “Foi servido o jantar. Grandes
travessas de galinha ao molho pardo, de salada de batatas com salsichas, de
repolho azedo, de arroz, de bife acebolado, tudo muito engraxado, flutuando na
banha. Depois os pratos de pepinos em conserva, de ovos em vinagre a de salada
de beterraba”.128
No romance Um rio imita o Reno, é possível notar outros aspectos
culturais relacionados aos costumes alemães, como o tiro ao alvo, os desfiles e as
quermesses. Inclusive, o bolão se converte numa das primeiras divergências
entre Geraldo e os teutos de Blumental, já que esses preferem tal jogo a assistir
ao concerto de Raul Machado, unicamente, devido ao fato de o pianista ser
brasileiro. Ainda, a predominância da religião evangélica protestante no mundo
representado faz com que a professora Alzira enfrente grande resistência a seu
trabalho. Contratada para lecionar no interior de Blumental, ela ensina o
português às crianças, dando motivo suficiente para que o pastor incentive os
colonos a colocarem seus filhos na escola municipal, onde se ensina o alemão:
Movia-lhe forte oposição, porque ela se recusara conceder-lhe as horas da manhã para o ensino da religião. Em verdade, não queria ensinar religião; a religião era a penas um pretexto para suas propagandas anti-
126 MOOG, 1957, p. 148. 127 PORTO, 2003, p. 56. 128 MOOG, op. cit., p. 153.
92
nacionalistas. Como sabia que os meninos tinham de ajudar os pais na roça, à tarde, queria a força que ela lhe concedesse a manhã.129
O rigor é tanto que até os cultos são realizados na língua alemã. O pastor
é capaz de se negar a celebrar um matrimônio em língua portuguesa. Entretanto,
alguns personagens demonstram certa consciência nacional em relação ao Brasil,
pois questionam acerca de sua possível brasilidade, pois vivem e nasceram no
Brasil. Especulam também se o germanismo não seria oriundo dos interesses
econômicos da própria Alemanha: “No dia em que a colônia se nacionalizar por
completo, eles não poderão mais vender os seus jornais e fazer propaganda
política, por conta da Alemanha - volveu Hans Fischer”.130
A narrativa do romance então se encontra com a narrativa histórica
sobre o mesmo tema. Nesse caso, defende Cunha131 que, a partir de 1840 o
governo alemão incentivou a imigração com o propósito principal de criar colônias
dependentes do país, as quais lhe possibilitam um mercado consumidor no futuro,
já que não disponibilizavam de outras colônias, como Espanha e Portugal. Os
universos romanesco e histórico se tornam paralelos em outro momento da obra
literária, mostrando coincidências entre a Alemanha e a colônia, através dos
aliados em grande escala que os nazistas encontram em Blumental.
No entanto, o doutor Stahl consegue a aprovação do nome de Geraldo para
sócio do Clube Ginástica, ainda que esse não seja de origem alemã, e convence os
demais sócios a não filiar a entidade ao Reich, alertando-lhes sobre o perigo que
isso poderia representar: “Já tinha percebido o que se passava. Tudo obedecia
aos planos da Verband Deutscher Vereine im Ausland, de Berlim, com o fim de
introduzir nas colônias alemãs o espírito nacional-socialista, por meio de escolas,
129 MOOG, 1957 p. 150. 130 MOOG, loc. cit. 131 CUNHA, 2000.
93
sociedades e igrejas, sob a direta orientação do Reich. Intercâmbio cultural,
remessa de instrutores de ginástica, era só para uso externo”.132
Diferenciando-se da maioria dos habitantes da cidade, doutor Stalh
admira o trabalho de Geraldo na Hidráulica e seu posicionamento enquanto
cidadão, centrado, inteligente, discreto, inclusive, cogita o nome dele para a
política local. Outros habitantes do lugar fazem de tudo para afastá-lo da
cidade, como é o caso da família Wolf, que influencia o prefeito a demitir o
engenheiro sem nenhum motivo justo e não se preocupa com a mortalidade que
volta a tomar conta do local, por causa da água contaminada. O amazonense
sente-se magoado e parte ao Rio de Janeiro, sem despedir-se de Lore:
Estranho destino o seu, pensou tristemente. Do Amazonas, onde todos o queriam, ele fugira. De Blumental, onde queria ficar, tinha sido expulso. Mas aquela terra misteriosa, de iaras e botos, de assombrações e mistério, ficara dentro dele, às vezes como um sonho doce, outras como um pesadelo terrível. Que recordações lhe deixaria Blumental.133
O personagem já se sentia um exilado em sua terra-natal, inserindo-se na
situação classificada por Campos e Oliveira134 como exílio interior. Dessa condição
que o submete ao isolamento, ao desajuste em relação à maioria, mas sem que
ocorra um deslocamento geográfico, passa a viver outra situação de exílio, que
muda sua forma de ver a realidade. Repetindo-se a situação em Blumental, o
personagem vê-se obrigado a deixar a cidade e, assim, o desejo de constituir
família, de fixar residência em algum lugar do mundo. A construção da hidráulica
então é interrompida, muitas pessoas adoecem e morrem durante o verão.
Lore também adoece, num período extremamente conturbado para sua
família, surpreendida por um telegrama de Otto que, vivendo na Alemanha,
informa aos Wolf de sua chegada ao Brasil, em poucos dias. Os primos acreditam
132 MOOG, 1957, p. 178. 133 Id. Ibid. p. 205. 134 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008.
94
que ele faz parte do Partido Nacional-Socialista e venha representá-lo no Brasil.
Imaginam receber em casa um homem forte, destemido, não aquele sujeito
homem de fala branda que está na frente deles: “Frau Martha ficou a contemplar
o primo. Estava decepcionada. Achava-o taciturno e sem aprumo marcial.
Esperava um rapagão de postura rígida, ar esportivo e ceio daquela alegria de aço
que tem a mocidade da nova Alemanha. Ali, entretanto estava um homem
prematuramente envelhecido, de olhos medrosos e ar arredio”.135
Frau Martha acha que o primo esconde algum segredo. De fato, ele
surpreende a todos quando afirma não pertencer ao partido de Hitler. A família
se decepciona, pois espera um emissário do führer e se depara com um inimigo do
regime que, interrogado, revela a verdadeira situação na qual a Alemanha se
encontra, ocultada pelos jornais censurados pelos nazistas, que circulam em
Blumental: “Vive-se num regime de apertos... tantos gramas de manteiga e de
carne por semana... Tudo rações medidas... É horrível”.136
Frau Martha e Karl enchem-se de ódio, não entendem o que Otto quer
dizer, descrevendo o ídolo deles dessa maneira. Desconfiam até que Otto seja
um traidor, expulso do Partido Nacional-Socialista. O primo, entretanto, mantém
a calma, tenta justificar sua posição:
“Os maiores pensadores da Alemanha estão exilados. Os nazistas ainda toleram Goethe, mas um dia ainda vão acabar descobrindo que ele era judeu... Frau Martha fuzilou sobre ele um olhar feroz: Goethe era ariano. Otto encolheu os ombros. Depois que descobriram que nós temos sangue judeu, não duvido de mais nada”.137
Os primos ficam estarrecidos frente à novidade, pois sempre acreditaram
que pertenciam à “raça” ariana. Otto revela todo seu sofrimento na Alemanha,
desde o preconceito até as precárias situações que o forçaram a abandonar o
135 MOOG, 1957, p. 218. 136 Id. Ibid. p. 219-220. 137 Id. Ibid. p. 222.
95
país. A descoberta atinge a todos, embora Frau Martha seja aquela que mais
sofre, já que costumava expressar seu ódio pelos judeus. Ao se descobrir casada
com um descendente desse povo, e que seus filhos carregam o sangue hebraico,
as intermináveis discussões com o doutor Stahl, sobre questões étnicas, acabam
perdendo valor.
Durante toda a sua vida, Frau Martha arquitetou planos para casar os
filhos com alemães, sentia-se orgulhosa de si mesma, por ter desposado um
alemão, e uma espécie de pena duas colegas do Catharinenschule que não tiveram
a mesma sorte sua, de se casar com um homem rico e deutsch. Uma das amigas
casou com um pastor; outra, com um modesto professor de canto. Há mais outra,
em quem evita pensar, por ter se unido com alguém que ela considerava inferior:
o escriturário da prefeitura, católico e brasileiro. Poderia até tolerar um
casamento entre protestante e católico, mas de alemã com negro, seria uma
afronta.
Esses pensamentos tomavam conta de sua rotina, principalmente, desde
quando ela descobriu o envolvimento da filha com Geraldo, ao qual tinha por
negro:
Uns pobres diabos. Uns pobretões. Nunca passaram de funcionários públicos e medíocres empregados de balcão, de operários turbulentos de péssima educação. Então havia de entregar a sua filha para um deles? Para aquele engenheiro bronzeado que ninguém sabia de onde vinha? Decerto havia de ser um aventureiro. Mandar um homem daqueles construir a hidráulica! Boa coisa sairia dali! E ainda por cima o diabo do mestiço tomava banho no rio. Ah daquela água é que ela não ia beber. Da água que ele se banhava. Viria cheia de sífilis.138
É assim que ela se referia a pessoas de outra “raça”, como doentes e sem
valor, principalmente, a Geraldo, por ter se apaixonado por sua filha Lore, a qual
se animou a enfrentar a mãe. Essa atribui tal atitude à educação dada à filha num
colégio católico, “contaminado” por meninas de outras “raças”. O preconceito de
138 MOOG, 1957, p. 113.
96
Frau Martha e seu marido não poupava nem as crianças: “Agora mesmo encontrei
aí na calçada o Paulinho brincando com os mulatinhos do Cardoso... Estava tão
alegre e não me parecia repugnado. Pelo contrário; nunca o vi tão contente.
Imaginem que nem quis vir comigo. – Vá já buscar o Paulchen, já, já, - Ordenou
Karl à mulher”.139
Dessa maneira, Um rio imita o Reno enfoca o exílio não apenas como o
afastamento da terra natal, mas também como a não adaptação, a discriminação,
a sensação de se sentir diferente das pessoas com as quais se convive, de não
pertencer a determinado espaço ou grupo social. Essa situação fica evidente no
caso da família Wolf e de outras famílias tradicionais, as quais se condicionam à
cultura alemã e só parecem modificar suas concepções ao final do romance.
Geraldo difere da visão de mundo de seu pai; sem o sentimento de
pertencer ao Norte do país, tampouco se encaixa na cultura da colônia sulina. Não
sendo branco nem alemão, deixa de se enquadrar no perfil esperado de um bom
cidadão dessa Blumental que deseja ser uma continuação da Alemanha no Brasil:
Voltar...- ruminou ele. Sim, a gente sempre acaba voltando. E o mais trágico é que não encontra o mundo sonhado nas horas da saudade. Lembrava-se dolorosamente de sua volta para a casa dos pais. Logo depois de formado. Estava enfadado do Rio, daquela vida artificial e inutilmente agitada... Ele precisava voltar à terra, tomar conta dos negócios do pai. Foi... Lembrava-se com uma precisão impressionante das emoções que sentira ao rever homens e coisas dos seus tempos de menino. E com que fúria se atirara ao trabalho. Tudo para verificar ao cabo de algum tempo que ele já não compreendia aquela terra, não se entendia com aquela gente - um desenraizado.140
Assim como Geraldo se vê sem lugar definido com o qual se identificar, a
família Wolff descobre sua ascendência judia e se sente perdida: “Frau Martha
ergueu os olhos para a filha. Mas seus olhos não exprimiam nada, estavam vazios,
tão vazios, que Lore teve medo. Sentiu necessidade de falar, de perguntar
139 MOOG, 1957, p. 131. 140 Id. Ibid. p. 203.
97
alguma coisa, de ver se a mãe estava viva, se a razão não havia desertado daquele
cérebro”.141 Depois das revelações de Otto, Frau Martha vai se modificando,
chega até a permitir algo inadmissível no passado: que seu neto brinque com as
crianças da rua, com os “negros, sujos, doentes e sem pátria”, como os
classificava: “Era como se cada palavra pronunciada correspondesse a um
dilaceramento interior. – Deixa que ele se crie de acordo com os seus instintos...
com a sua natureza”.142
Frau Martha, decidida e orgulhosa de sua origem, que acreditou uma vida
inteira na superioridade da raça alemã, parece modificar-se. No entanto, ela não
muda quanto ao orgulho e à preocupação com o entorno social, pois não deixa
ninguém na cidade ficar sabendo da ascendência judaica dos Wolff. Por sua vez,
Geraldo tem planos de trabalhar no interior do Mato Grosso, na verdade, outra
tentativa de encontrar seu lugar, ou melhor, de encontrar a si mesmo: “Nas
cidades pequenas leva-se uma vida mais concentrada. Tem-se mais tempo para os
exames de consciência”. 143
A história narrada em Um rio imita o Reno encerra-se juntamente com o
“Fim da primavera. O vento em fúria e a água que caía do céu em trombas
desencadeadas pareciam conjugados no empenho de encher o rio, deitar abaixo
as árvores, abalar os alicerces da cidade e levar para longe as flores, os brotos e
a alegria dos homens”.144 A primavera representa a renovação da natureza depois
das agruras do inverno e, assim, no final do romance, “Lore sorriu. E como que um
sortilégio desse primeiro sorriso naqueles dias sombrios, abriu-se uma clareira no
céu e o sol jorrou, trespassou os fios da chuva, clareou os telhados, manchou os
quintais, a rua, e aos poucos invadiu a cidade”.
141 MOOG, 1957, p. 258. 142 Id. Ibid. p. 260. 143 Id. Ibid. p. 247. 144 Id. Ibid. p. 257.
98
Chegam as mudanças, numa casa repleta de melancolia: “Lore estava
surpreendida... Como era possível as coisas na vida mudarem assim de repente!
Esta idéia lhe devolveu à alma algo que se assemelhava a uma esperança. Mas não
quis entregar-se a ela, lutou contra o próprio otimismo”.145 O momento em que o
menino Paulo entra na sala, todo sujo e contente, evidencia a transformação, do
dia cinzento, triste, chuvoso, à claridade do sol, que surge de repente, fazendo-
se metáfora da liberdade que a avó dá para o neto. Representando a iluminação
dos ciclos da vida, o sol mostra a transformação experimentada pela família
Wolff, principalmente, por Frau Martha. Essa questão será enfatizada no
próximo capítulo, centrado na análise das estratégias narrativas das quais Moog
e Klueger se utilizam, bem como nas lembranças das histórias familiares e nas
diferentes imagens de nação expressas nos romances desses autores sulinos,
estudados no presente trabalho.
145 MOOG, 1957, p. 258.
99
5. NAÇÕES E NARRAÇÕES
Ele aspirou profundamente e lembrou-se. Sim era maio.
A guerra nunca acabava,
mas o tempo das tangerinas voltava sempre.
URDA ALICE KLUEGER No tempo das tangerinas
5.1 Narrativas em Comunicação
A obra literária Um rio imita o Reno tem como referente um contexto
real. Ordenado de acordo com as estações do ano, o tempo narrativo marca o
período de aproximadamente um ano, em que Geraldo permanece na cidade
ficcional denominada Blumental. A alternância das estações do ano se torna mais
intensa a partir do capítulo XXI do romance, em que fica evidente o desfecho
reservado aos personagens. O protagonista chega no verão e, nesse tempo,
começa seu trabalho na construção da hidráulica, conhece as pessoas e faz
amizades, inclusive conhece Lore, a encantadora alemã que o seduz tocando piano.
Da mesma forma como o outono é uma época triste, as folhas caem, a
natureza se transforma para a chegada do inverno, também os personagens
passam por uma série de dificuldades, como a descoberta do namoro de Lore e
Geraldo, além do preconceito da família da moça, por ter ele sangue de índio, sua
transferência e, ainda, a doença da amada. Assim como a primavera traz vida, os
capítulos finais do romance representam o despertar da natureza, tendo-se na
história também um renascer: Lore consegue escapar da morte, os hábitos da
família sofrem modificações, pois o coração de frau Marta é amolecido ao saber
100
que a família possui sangue judeu. Ainda pode-se observar Geraldo no Rio de
Janeiro, cheio de esperanças para o futuro.
Essa clara divisão do tempo serve para situar o leitor e marcar os conflitos
abordados. Não fica explícito o tempo histórico abordado pelo romance de Moog,
mas é possível percebê-lo apelando ao contexto representado: a perseguição dos
judeus na Alemanha desencadeou-se nos anos 30 e 40 do século passado, época
da ditadura de Hitler. Na obra literária No tempo das tangerinas, é possível
situar, de maneira mais clara, a idade dos personagens e a época representada.
As informações sobre a idade de Guilherme surgem no primeiro capítulo, quando
o ano era 1940 e Guilherme contava com dezesseis anos, tinha saído naquele ano
da escola para ajudar a família na lavoura, bem como no último capítulo: “Num dia
ameno de 1969, Guilherme Sonne parou sua camioneta no estacionamento de uma
firma de automóveis”.146
Essa marcação permite fixar o espaço de tempo que o romance percorre:
29 anos. Porém, ao longo do texto, decorre uma série de eventos que o narrador
tem a preocupação de datar: 1940 - Natal com a presença de Cristina, que fugiu
da guerra na Alemanha e vivia com a família e, no mesmo ano, casamento de
Margeritha; 1941- Guilherme começa o namoro com Terezinha; 1942- Humberto
Gustav vai estudar no Rio de Janeiro, nasce mais uma irmã de Guilherme;
brasileiros vão para a Segunda Guerra mundial; 1943 - Guilherme serve ao
exército e inauguração da loja de Emma; 1944- casamento de Guilherme e
Terezinha, ele fica doente e, por isso, não vai à guerra; 1945 - fim da guerra e
nascimento da filha de Guilherme. No final da história, uma elipse reduz o tempo
e acelera a narrativa: 1969 – Guilherme relembra com os amigos a II Guerra
Mundial e todos agora se demonstram preocupados com a Guerra do Vietnã.
146 KLUEGER, 2003, p. 154.
101
A presença de eventos históricos relacionados ao destino individual dos
personagens é característica do romance histórico que se insere num contexto,
representando as condições históricas, sociais e políticas de uma época. Desse
modo, em ambas as obras analisadas, o narrador reconstrói o período da Segunda
Guerra Mundial, abordando famílias alemãs que vivem no Brasil, mas que estão
ligadas à Alemanha, por questões sanguíneas ou afetivas. Um rio imita o Reno
privilegia a família Wolf, enquanto No tempo das tangerinas se detém sobre a
família Sonne.
Membros dessa família partem para as frentes de batalha na Europa, mas
também ficam evidentes: a perseguição aos judeus e o sofrimento dos familiares
que permaneceram na antiga pátria. Assim, a vinculação de fatos históricos ao
universo diegético confere um cunho de verossimilhança aos personagens e aos
eventos narrados. O tempo histórico constitui um cenário onde se movem os
personagens da história narrada, permitindo que o leitor acompanhe não apenas
suas vidas ficcionais, mas se localize num contexto determinado:
Quando Guilherme entrou na sala, uma voz áspera, seca, feroz, fazia um discurso inflamado. Ele reconheceu imediatamente a voz de Hitler. Ficaram ouvindo atentamente por algum tempo, até que a mãe disse: - Era um homem assim que estava faltando para a Alemanha, em 1918 - elas não escondia a admiração pelas idéias arrojadas de Adolf Hitler.147
Nota-se a aprofunda admiração que Lucy, a matriarca da família, tem por
Hitler: da mesma forma, Frau Marta, de Um rio imita o Reno, também se vê
fascinada pelo führer. Abordando famílias alemãs, o narrador retrata o dia- a -
dia dos imigrantes no Brasil, vivendo as apreensões de um mundo em guerra,
tendo dissabores, como o fato de um filho que serve ao exército brasileiro ser
obrigado a lutar contra a Alemanha: “Em 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou
guerra ao Eixo, o que, para os nossos heróis, representava principalmente guerra
147 KLUEGER, 2003, p. 14.
102
contra a Alemanha... Humberto Gustav foi incorporado ao exército no Rio de
Janeiro, não tendo a mãe nem consolo de sabê-lo próximo naqueles dias
difíceis”.148.
O tempo do discurso narrativo de No tempo das tangerinas segue uma
ordenação cronológica, utilizando algumas vezes analepse interna homodiegética,
a qual consiste numa volta dentro da história que influencia o andamento da
mesma. É o que ocorre com Lucy quando lembra do ano de 1918:
Já é tempo da Alemanha mostrar que ainda tem tutano. Não dá para esquecer o que aconteceu em 1918. Guilherme sabia muito bem a que a mãe se referia. Ela viera para o Brasil em 1918, depois da derrota, e estava tão magra e doente devido às privações passadas que a família pensara que fosse morrer logo. Seu pai morrera em combate, e sua mãe não suportara as privações e também se fora. Ela e a irmã tinham vindo para a casa de parentes, no Brasil, por não terem outro lugar para ir.149
Também ocorre uma analepse quando o avô conta para Guilherme a história
dos Westarb que, devido à cor da pele, são ignorados por Lucy, a qual proíbe os
filhos, o marido e o sogro de manterem qualquer vinculo com aquela família.”150 Já
o tempo do discurso de Um rio imita o Reno também segue uma ordem
cronológica, mas é profundamente marcado por analepses internas, as quais
fazem parte do conflito vivido por Geraldo, desde sua origem indígena, do
trabalho do pai como produtor de borracha, às lembranças da Amazônia: “Geraldo
vê agora o pai em pleno seringal. Ao seu lado uma mulher bronzeada, de olhos
brandos, cabelos corridos, um belo exemplar de índia descendente dos
nhengaíbas”.151
Pode-se constatar uma prolepse quando Lore tem pensamentos futuros
acerca de sua vida com Geraldo: “Não, primeiro fariam um passeio até o
148 KLUEGER, 2003, p. 122. 149 MOOG, 1957, p. 12. 150 Id. Ibid. p. 49. 151 Id. Ibid. p. 93.
103
Mampituba. Ele contaria histórias de sua terra, lendas de amor; ela lhe falaria
das cidades alemãs, da sua arte de seus costumes”.152. Também é possível
observar uma prolepse no romance de Klueger, quando Lucy prevê, para seu filho,
a profissão de veterinário.153. No tempo diegético, o narrador de No tempo das
tangerinas utiliza-se frequentemente de elipses, reduzindo o tempo e acelerando
o ritmo da narrativa. A maioria dela indica um curto lapso de tempo: “chegaram
os dias de grande calor”; Humberto Gustav partiu para o futuro no dia 2 de
janeiro de 1942”; “o pai disse para Guilherme que estava na hora de recomeçar a
colher as tangerinas”; “Num dia ameno de 1969”.
Em Um rio imita o Reno, as elipses são marcadas pelas mudanças das
estações do ano: “Um belo sol de outono esgueirava-se através das janelas”;
“Ouvia-se de dentro do quiosque o assobiar do minuano”; “As vidraças gotejavam
com o frio”; “Fim da primavera”. Entretanto, ao narrar os fatos que considera
mais relevantes, o autor lança mão de cenas com diálogos ou relatos minuciosos,
que tornam lento o ritmo da narrativa. Isso também ocorre, por exemplo, na
primeira parte de No tempo das tangerinas quando, para falar da rotina da
família, principalmente no que se refere ao trabalho, iniciado desde o final da
tarde até a hora do jantar, são utilizadas sete páginas.
Em Um rio imita o Reno, é possível constatar inúmeros diálogos entre as
personagens, acaloradas discussões entre o doutor Stahl e a família Wolff,
sobretudo, quando o assunto é o nacionalismo e defesa da pátria, como no
capitulo XXII, todo ele, ocupado por tais discussões. O narrador demonstra um
grau de conhecimento e interpretação da história que narra, muitas vezes
julgando antecipadamente eventos e personagens, o que mostra certa
manipulação no ato de narrar.
152 MOOG, 1957, p. 104. 153 KLUEGER, 2003, p. 58.
104
Se a principal determinação temporal da instância narrativa é sua posição
relativa em relação à história, as duas obras literárias analisadas são narrativas
de enunciação ulterior: Urda Klueger escreve seu romance em 1982, enquanto a
história narrada inicia em 1940. Além do mais, comprovam que o ato narrativo é
posterior à história: emprego dos verbos no pretérito; conhecimento do narrador
acerca de questões históricas da época que a narrativa representa; antecipação
daquilo que virá a ocorrer, como em: “Margueritha tornar-se-ia uma pessoa
amarga pelo resto da vida”.154
Um rio imita o Reno é também uma narrativa ulterior. Vianna Moog
escreve o romance em 1957, poucos anos após o período narrado. Aí são tratadas
questões históricas da época, como o louvor a Hitler e o preconceito dos alemães
para com outras raças. O narrador também demonstra conhecimento prévio de
algumas situações, como ocorre com a política de Blumental, cidade sob os
desmandos de um prefeito somente interessado em si e em seus aliados: “No fim
a colônia é sempre quem paga as despesas.... os homens da terra... os que entram
com o dinheiro, com que se enriquece a elite da cidade...”155
Para falar dos níveis narrativos, Genette afirma: “Todo acontecimento
contado por uma narrativa está num nível diegético imediatamente superior
àquele em que se situa o ato narrativo produto dessa narrativa”.156 Assim, a
história da família Sonne, contada por Urda Alice Klueger, e do engenheiro
Geraldo, por Vianna Moog, levadas ao cabo num primeiro nível, são, portanto,
extradiegéticas. Entretanto, nessas narrativas primeiras, inserem-se outras
narrativas, conduzidas por narradores que se situam no nível intradiegético, ou
seja, são personagens da diegese.
154 KLUEGER, 2003, p. 150. 155 MOOG, 1957, p. 239. 156 GENETTE, 1995, p. 227.
105
Essas histórias metadiegéticas podem se unir à narrativa primeira por
vários tipos de relações. Assim, em Um rio imita o Reno, a história dos Muckers
é contada a Geraldo pelo secretário da prefeitura quando mostra a cidade ao
engenheiro, principalmente, para lhe falar da provável origem de Frau Marta.
Algum tempo depois, num passeio de domingo, Armando, amigo de Geraldo, conta-
lhe a história em detalhes. De acordo com sua narração, os Muckers haviam
constituído uma seita de fanáticos protestantes na região de São Leopoldo,
liderados por Jacobina Maurer. Mulher de um curandeiro, ela se dizia
predestinada a formar um novo reino sobre a terra e, quem se opusesse, seria
condenado à morte, tendo suas casas incendiadas, sem poupar nem velhos nem
crianças.
Quando Armando conclui essa história, os amigos são surpreendidos por
rufos de tambores. O pelotão que canta uma canção guerreira faz um alto em
frente ao seminário evangélico, infla o peito e grita no grande coro: “Heil,
Hitler!” Sobre a cabeça de Geraldo, grasnam também os pardais. No meio de
tantos sons, a imaginação o transporta para a selva Amazônica, onde canta o
uirapuru. Esse canto faz cessar todos os ruídos da floresta, inclusive, de animais
maiores: “Faz-se silêncio para receber o canto do uirapuru, um pássaro feio,
encolhido, sem plumagem, o pássaro mais feio da floresta”.157
Entre as narrativas metadiegéticas dessa mesma obra literária, destaca-
se o momento em que o violinista Raul Machado, em companhia de Geraldo,
encontram-se na casa de Lore para organizar o concerto do qual ela participaria.
Em função do mau-humor da mãe da moça, algumas narrativas orais sobre a vida
de Goethe e Napoleão são contadas para entreter o grupo, fazendo o tempo
transcorrer de forma agradável. Quando o engenheiro fala do poeta alemão e do
rompimento desse com a namorada, olha para Lore e faz uma espécie de
157 MOOG, 1957, p. 40.
106
presságio ao futuro: “Kaetchen precisamos terminar o nosso namoro. Os nossos
caminhos aqui se separam. Tu vais casar, constituir família, ter muitos filhos,
construir a felicidade doméstica. O teu marido te fará feliz. E como lesse uma
pergunta no olhar assustado da moça continuou: - Eu? Eu sou Goethe. Tu já sabes
o que isto significa. Dizendo meu nome tenho dito tudo”.158
Quase ao final do romance, quando Lore ainda se recupera, essa citação
lhe atormenta, mas não é Goethe o nome que aparece; em seu lugar, Geraldo
refere-se às grandes dificuldades que se interpunham entre eles. Assim, o
fragmento relacionado a Goethe liga-se à narrativa primeira por uma relação
temática, pois fica evidente que existiam grandes diferenças entre os amantes,
as quais foram responsáveis pelo indesejado afastamento do casal. No capítulo
XX, ocorre um fato que traz esclarecimentos e, ao mesmo tempo, possibilita uma
mudança de atitude da família Woolf. É quando o primo Otto conta sobre as
raízes judaicas da família.
No tempo das tangerinas, observa-se uma narrativa metadiegética
quando o avô conta para Guilherme a história dos Westard, uma família de
negros, que tem as mesmas raízes de todos os Sonne. Alex, filho de Reno Sonne,
casou com uma menina negra, supera muitos tabus, tornando-se uma pessoa
admirada por toda colônia, devido a seu trabalho na marcenaria. Essa história,
contada para Guilherme pelo avô, é ignorada pela família dos mesmos, por causa
da mãe desse personagem, a qual, por ser extremamente preconceituosa, não
permitia a seus filhos terem contato com “gente de cor”. A relação que o avô
mantinha com os netos era clandestina.
Na página 145, também é possível identificar um narrativa metadegética,
quando Cristina recebe uma carta do pai que, depois dos alemães descobrirem
sua descendência judia, fugira para a Suíça. Na correspondência, ele relata para
158 MOOG, 1957, p. 61.
107
a filha a maravilha que é estar num país onde há comida “quase à vontade”, pão de
centeio e manteigas douradas. Nota-se, portanto, que a função temática da obra
literária em questão é falar da vida dos alemães no Brasil nos anos 40 do século
passado, fazendo descrições detalhadas dos costumes e da maneira de viver das
famílias de imigrantes.
Se o estatuto do narrador define-se ao mesmo tempo pelo seu nível
narrativo e pela sua relação com a história que narra,159 tanto em Um rio imita o
Reno quanto em No tempo das tangerinas, num primeiro nível, as histórias são
narradas por um narrador anônimo que narra acontecimentos dos quais está
ausente. É, portanto, extradiegético em relação ao nível e heterodiegético em
relação à história. Exprime-se predominantemente em terceira pessoa,
permitindo, dessa forma, que a história se narre a si mesma. Em ambas as
histórias estudadas, ocorrem narrativas situadas num nível intradiegético ou
metadiegético, narrativas segundas, conduzidas narradas por personagens do
texto e que se dirigem também a narratários intradiegéticos, ou melhor, a outros
personagens do texto.
Esse é o caso do avô que conta a história dos antepassados a Guilherme No
tempo das tangerinas, sendo, portanto, Guilherme o narratário. Na mesma obra
literária, observa-se durante o jantar, que Lucy conta para a família o sofrimento
pelo qual passara durante a guerra, numa história em que ela fora personagem:
“Ah! Opa, mas não dá para esquecer, não dá! Eu vi como minha mãe se acabou de
fome. Era só pele e osso, até cega ale ficou, no final”.160 Nesse caso, a narradora
homodiegética é a mãe e os narratários, os filhos o marido e o sogro.
Nas cartas, os narradores são os personagens que as escrevem e os
narratários, aqueles para os quais as cartas se destinam, como no caso das
159 Cf. GENETTE, 1995, p. 226. 160 KLUEGER, 1983, p. 15.
108
correspondências de Kurt Durrel para Cristina no Brasil. Assim, Kurt é o
narrador enquanto Cristina e os familiares são os narratários. Tanto o narrador
como os narratários são intradiegéticos, pois se situam num nível segundo da
narrativa. O narrador da carta ainda é homodiegético, porque conta uma história
da qual participa.
Em Um rio imita o Reno, têm-se vários momentos metadiegéticos. Um
deles ocorre quando Geraldo conta para o secretário e o promotor como é a vida
dos ribeirinhos da Amazônia. Nesse caso, Geraldo é o narrador e seus ouvintes
são os narratários. Outro caso de narração metadiegética acontece quando
Armando conta a história dos Muckers para Geraldo, sendo essa narrativa
segunda, conduzida por um personagem do texto e dirigida ao protagonista,
narratário intradiegético. Ainda, no último passeio de Geraldo por Blumental, ele
admira a lua e se lembra da lenda do surgimento da lua, contada pela cabocla que
vinha dormir em sua rede. Essa é uma história segunda, na qual a cabocla se
exerce como narradora e o personagem mencionado faz o papel de narratário
homodiegético.
Na mesma obra literária de Moog, aparecem várias cartas do pai de
Geraldo para esse e de Armando para o mesmo pesonagem. Em ambas, os
narradores e os narratários são personagens, portanto, narradores e narratários
intradiegéticos, sendo também narradores homodiegéticos, por contarem
histórias das quais participam. No que diz respeito à relação do narrador
extradiegético com essas narrativas intradiegéticas, é interessante observar
que, muitas vezes, as histórias relativas a Geraldo aparecem em seu pensamento
e, assim, quem as percebe é o narratário extradiegético. Apresentando a vida
desse personagem, elas possibilitam o melhor entendimento do porquê de seu
comportamento, algumas vezes, considerado “covarde” frente a situações às
quais o submetem.
109
A função ideológica do narrador está bem marcada nos dois romances em
estudo, através dos juízos que emite a respeito dos personagens. É possível
observar isso no comportamento das matriarcas das famílias Sonne e Wolff, as
quais se mostram extremamente preconceituosas e racistas, sendo válido, para
elas, apenas o puro sangue alemão; além disso, defendem as idéias de Hitler. Frau
Marta ainda expressa sua raiva pelos judeus, porém, sua estrutura é abalada pelo
fato de a filha Lore apaixonar-se por um “índio” e pela descoberta de que a
própria família tem sangue hebreu.
No diálogo travado entre ambas, fica evidente o desprezo que Frau
Martha sente por pessoas que não sejam alemãs ou descendentes:
- Não suporto a idéia de ver-te casada com um homem de raça inferior. Era só o que faltava- afirmou Frau Marta.
- Quem vê a mãe falar, há de pensar que temos sangue nobre: devíamos assinar von Wolff... – ensaiou Lore numa tentativa de gracejo.161
Depois desse diálogo, entra em cena o narrador extradiegético, para
explicar por que a mãe de Lore agia de tal modo, não permitindo o namoro com
uma pessoa de outra etnia. Transparece, na voz narrativa, o pensamento da
matricarca, de que teve sorte em casar com um alemão rico, ao contrário de suas
amigas de escola. Pelo mesmo recurso, aparecem as lembranças da época da
guerra, quando ela precisou sair de Blumental com os filhos pequenos, assim como
o desprezo sentido por aqueles que incluíram o nome de seus ancestrais na lista
dos Mukers.
Lucy, de No tempo das tangerinas, também é preconceituosa e acredita
que alemão não pode casar ou criar vínculos com pessoas de outros grupos
étnicos, inclusive, revela-se contrária a qualquer insinuação de nacionalização: “O
sangue das crianças é alemão! Não sei por que você vê tanta importância em que
161 MOOG, 1957, p. 112.
110
passem a falar português”,162 argumento sempre usado contra o marido, já que ele
defende o Brasil e a língua portuguesa. Para levar o leitor ao entendimento dos
motivos que fizeram Lucy agir de tal maneira, o narrador apresenta o passado
dela e as dificuldades que enfrentou durante a Primeira Guerra Mundial. Nesse
tempo, perdeu os pais e quase morreu de fome com a irmã, sendo trazida ao
Brasil pelo tio que já vivia no país.
Pode-se afirmar que tanto Urda Alice Klueger em No tempo das
tangerinas, quanto Clodomir Viana MOOG, em Um rio imita o Reno, conseguem
tornar viva uma época. Com o cruzamento do tempo da diegese e do tempo
histórico, o efeito de real é reforçado. Estabelecendo relações das personagens
e eventos diegéticos com o tempo histórico, o narrador os torna verossímeis, pois
reconstrói todo um contexto, que através das estratégias narrativas utilizadas
pelos autores marca o período representado. Nas duas obras é possível perceber
como as famílias alemãs viviam o contexto da Segunda Guerra Mundial no Brasil,
seus medos e anseios em prol da antiga pátria, a Alemanha, além das questões
familiares influenciadas diretamente através da guerra. Contudo, essa
transformação tem seu lado positivo, como é possível observar a seguir.
5.2 Uma Região e suas Ficções
No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno têm seus eixos
condutores na questão da nacionalidade. Traçando um verdadeiro painel dos anos
30 e 40 do século XX, os autores enfocam a nação brasileira, abordando
histórias de imigrantes alemães no Brasil, principalmente, os conflitos vividos no
contexto da Segunda Guerra Mundial. As duas obras literárias apresentam um
162 KLUEGER, 2003, p. 16.
111
imbricamento entre política e literatura, através da inclusão de personalidades
históricas que, de uma forma ou de outra, participam das narrativas, como por
exemplo, Hitler, idolatrado por alguns personagem em ambos os romances,
principalmente, por Lucy, personagem de Klueger, e Frau Martha, personagem de
Moog.
A partir da visão dessas personagens, é possível entender a teoria de
Renan quando afirma que nação é uma alma, um princípio espiritual. Assim, as
matriarcas das famílias de ambas as obras literárias vivem no Brasil, têm seus
filhos, uma boa estrutura familiar, contudo, seu coração, seu sentido de pátria,
voltam-se para a Alemanha. Além disso, em Um rio imita o Reno, os personagens
têm intensas discussões sobre questões políticas da época.
Moog se vale de outros recursos, como lendas e discursos políticos, para
dar sentido mais amplo a seu romance, fato que se percebe nas reflexões de
Geraldo, momentos em que muitas de suas atitudes são explicadas através de
lendas indígenas, provando assim, suas origens. Ainda, nas inúmeras citações de
Goethe e Napoleão, o autor visa transmitir as idéias desses pensadores sobre a
nação.
Tanto Urda Alice Klueger quanto Clodomir Viana Moog demonstram
conhecimentos pessoais em seus romances. A primeira reconhece que a
inspiração para escrever No tempo das tangerinas vem de histórias contadas
por sua avó paterna, sendo o cenário do romance, a Blumenau de sua infância.
Moog também fala de uma região que conhece muito bem, pois Blumental refere-
se ficcionalmente à cidade real de São Leopoldo, localizada em região gaúcha
colonizada por alemães. Além disso, as descrições que ele faz da Amazônia
somente podem ser realizadas por alguém que conhece essa região, como ele, que
viveu por alguns no Norte, quando exilado por questões políticas. Dessa estada,
provém o conhecimento da cultura e dos costumes do povo amazonense,
representado por Geraldo.
112
Nos dois romances analisados, os personagens vivem no exílio, situação que
Edward Said163 classifica como uma vida levada fora da ordem habitual. Para o
exilado, os hábitos da vida, a expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem
inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro
ambiente Dessa maneira, os dois ambientes vividos pelos personagens ocorrem
em paralelo nas narrativas, o que se constata por meio do comportamento dos
alemães no Brasil. Seu pensamento e a saudade são direcionados à Alemanha,
seus costumes e tradições são alemães. Eles imitam o estilo germânico na
arquitetura, nas roupas etc. e mantêm a língua, a religião luterana, a comida, da
pátria-mãe. Além disso, todos os personagens tem nomes alemães, como Karl,
Julius, Lore, Lucy, Hermann, entre outros.
Assim, há certo retorno sentimental à terra-natal. No entanto, e
principalmente na obra de Klueger, é possível notar alguns traços nacionais
brasileiros, sendo que a nacionalização obrigatória instituída pelo governo tem
muita importância para que os habitantes do Vale do Rio Itajaí falem a língua
portuguesa. Contudo, já existe um sentimento de amor pelo Brasil por parte de
alguns personagens, sobretudo, dos jovens convocados para lutar na guerra, os
quais têm a convicção de que sua pátria é o Brasil e, por isso, a defenderão.
Os dois romances analisados abordam histórias semelhantes, ambientadas
no mesmo contexto histórico, mas em espaços diferentes: No tempo das
tangerinas se passa no Vale do Itajaí e Um rio imita o Reno, no Vale dos Sinos.
Todavia, o núcleo cultural de que fala Moog é o mesmo, daí a razão pela qual os
conflitos das narrativas são bastante similares, trazendo casos amorosos que
envolvem alemães e outras etnias: no primeiro caso, a brasileira; no segundo, o
descendente de índios.
163 SAID, 2003, p. 60.
113
Através dessas histórias, percebe-se o quão preconceituoso é o alemão ou
teutobrasileiro, não admitindo casamentos dos seus com pessoas de outros
grupos étnicos, considerando-as de pouco valor. Por isso, os alemães atribuem o
desenvolvimento do Brasil, principalmente da região Sul, a si mesmos, a seu
trabalho com a terra. Isso pode ser notado mais em Um rio imita o Reno,
através de várias comparações entre a pujança das regiões brasileiras
colonizadas por alemães e outras. A miséria então vista no Nordeste seria
justificada por tal argumento.
As duas obras analisadas divergem quanto à união final das etnias. Moog
não realiza o casamento de Geraldo e Lore, enquanto Klueger já possibilita a seus
personagens um final feliz. Desse modo, Guilherme e Teresinha são autorizados a
casar. Inclusive Lucy, a mais radical no que se refere ao preconceito, modifica
suas concepções, fazendo-se amiga da nora brasileira. Essa matriarca, assim
como Frau Marta, proíbe o namoro do filho com uma moça de outra etnia, mas em
virtude de todo o sofrimento vivido durante a Segunda Guerra Mundial, e
também pelo medo de perder o rapaz em combate, acaba revendo seus pontos de
vista e atitudes.
Isso acontece com Frau Martha, de Um rio imita o Reno, a qual prefere o
sofrimento da filha a vê-la casada com uma pessoa de fora do circuito alemão.
Ela se abala quando descobre o sangue judeu em sua família e, a princípio, esse
fator parece não alterar seu comportamento. No final do romance, entretanto,
pode-se observar que ela vai revelando uma pequena abertura às outras culturas,
a partir do momento no qual permite que seu neto brinque com outras crianças.
Por sua vez, Lucy passa por grandes transformações, aparecendo ao final
da narrativa de No tempo das tangerinas como personagem bastante
esclarecida, capaz de discutira viagem do homem para a lua, com os mais jovens,
e de assistir a todos os noticiários. Na descrição do personagem Hermann: “É
uma das coisas que admiro em sua mãe. Ela não deixa a peteca cair. Lembra-se do
114
tempo da guerra, quando teve que enfrentar a derrota alemã? Pôs uma pedra em
cima, tocou a vida e arranjou novos interesses”.164
Durante as cenas, que predominam nas dois romances em estudo, as
personagens estabelecem diálogos nos quais prevalecem a cultura e política
alemãs. Sobretudo em Um rio imita o Reno, Goethe e outros pensadores alemães
são, inúmeras vezes, citados. Geraldo se dedica à leitura desses pensadores, a
partir dos quais, analisa o comportamento dos alemães e seus descendentes em
Blumental, para entender seus costumes e a maneira de viver, ou melhor, a
necessidade que eles têm de querer fazer da cidade uma imitação da Alemanha.
Nos dois romances analisados, também é possível perceber como o
contexto histórico da Segunda Guerra Mundial afeta as famílias alemãs. Assim, a
família Sonne experimenta a dor pela partida de um filho às frentes de batalha
na Europa, e o que é pior para eles, contra a Alemanha. Por sua vez, a família
Woolf descobre ter sangue dos mesmos judeus que a matriarca sempre afirmou
detestar. No decorrer das narrativas, as idéias, bem como os princípios étnicos e
nacionalistas dos personagens principais, são profundamente transformados.
A transformação alcança inclusive as diferentes concepções sobre nação,
de modo que o Brasil passa a ser visto pela maioria das personagens, de fato,
como uma pátria, como o país que não apenas acolheu e enriqueceu muitas
famílias, mas como nação verdadeira: sua casa, seu chão. Nota-se que as
estratégias narrativas utilizadas por ambos os autores dão conta dos modos de
vida e os costumes da época representada, ou seja, dos anos de 1930 e 1940, com
toda sua atmosfera social, política, econômica e cultural, realçando as situações
de conflito e diferentes posições ideológicas expressas pelos personagens.
O tema abordado pelos escritores é semelhante, mas o desfecho dado a
suas obras literárias é distinto, como se viu, talvez porque Moog escreveu Um rio
164 KLUEGER, 1985, p. 157.
115
imita o Reno nos anos 50, portanto, bastante próximo ao contexto utilizado
nesse romance. Já Klueger produz No tempo das tangerinas durante os anos
80, quando a sociedade brasileira passa por inúmeras mudanças, inclusive,
vivenciadas pela escritora. Isso torna possível deixar para trás, ao menos, em sua
ficção, certos posicionamentos tradicionais e atitudes preconceituosas. O texto
de sua autoria parece superar os maus momentos da época representada e
gravar, no presente, aquelas boas lembranças, pois “o tempo das tangerinas
voltava sempre”.165
165 KLUEGER, 2003, p. 160.
116
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