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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA NEIVA ANDRÉA KLAGENBERG MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO: NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski Orientador Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira Co-Orientador Frederico Westphalen 2009

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA

NEIVA ANDRÉA KLAGENBERG

MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:

NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO

Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski

Orientador

Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira Co-Orientador

Frederico Westphalen 2009

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NEIVA ANDREA KLAGENBERG

MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:

NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Letras na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen, pelo Departamento de Linguística, Letras e Artes. Orientadora: Profª. Dr. Ada Maria Hemilewski Co-orientador: Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira

Frederico Westphalen, novembro, 2009

3

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

Pró-Reitoria de Ensino Departamento de Lingüística, Letras e Artes

Campus de Frederico Westphalen – RS Mestrado em Letras - Área de Concentração: Literatura

A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado

MIGRAÇÃO, EXÍLIO E NAÇÃO:

NO TEMPO DAS TANGERINAS, UM RIO IMITA O RENO

elaborada por NEIVA ANDREA KLAGENBERG

como requisito para obtenção do grau de

Mestre em Letras

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________________________ Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – URI

(Presidente/Co-Orientador)

______________________________________________ Membro Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho –UEFS

____________________________________________

Membro Profª. Dr. Denise Almeida Silva – URI

Frederico Westphalen, 04 de novembro de 2009.

4

À família

AGRADECIMENTOS

À família, especialmente Tarcísio e Arthur pela grande compreensão.

À equipe de professores do Mestrado em Letras, Área de Concentração

em Literatura, pelos ensinamentos recebidos.

Ao professor André, pela ajuda dispensada na minha orientação.

Aos colegas Edevandro, Luciane, Marli e Miquela, pela cumplicidade e pelos

bons momentos juntos.

Um agradecimento especial à professora Ada Maria Hemilewski – minha

orientadora, pelas constantes motivações e principalmente pelo seu jeito de

ensinar literatura.

RESUMO

Esta dissertação investiga como duas obras da narrativa ficcional sulina processam o sentimento de exílio e a consciência nacional ao representarem histórias de imigrantes alemães e de teutobrasileiros estabelecidos no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, e no Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, abarcando o contexto da Segunda Guerra Mundial. A pesquisa centra-se nesses elementos, analisando um corpus formado pelos romances No tempo das tangerinas, de Urda Alice Klueger, e Um rio imita o Reno, de Clodomir Vianna Moog. O presente estudo será embasado fundamentalmente nas teorias de Benedict Anderson e Ernest Renan, quanto ao conceito de nação, e de Edward Said, em relação ao exílio, apoiando-se também nas considerações de Gérard Genette sobre o discurso da narrativa.

Palavras-chave: Clodomir Vianna Moog. Cultura Germânica. Exílio. Nação. Urda Alice Klueger.

7

ABSTRACT

The present thesis investigates how two Southern Brazilian literary works process the exile feeling and the national conscience when they represent the context of the Second World War, focusing histories of German inmigrants and Teuto-Brazilian who lived at the Southern Brazilian states of Santa Catarina and Rio Grande do Sul. This way, the mentioned elements are analyzed in a a corpus formed by the following novels: Urda Alice Klueger’s No tempo das tangerinas (1983) and Clodomir Viana Moog’s Um rio imita o Reno (1939). This study is mainly supported by Benedict Anderson and Ernest Renan's theories of nation, Edward Said’s ideas concerning to exile and Gérard Genette’s considerations about narrative and its discourse.

Keywords: Brazilian Novel. Clodomir Vianna Moog. German Culture. Exile. Nation. Urda Alice Klueger.

8

9

SUMÁRIO

1. FRONTEIRAS DA PALAVRA 10

1.1 O Discurso Literário 10 1.2 Nação e Narrativa 18

2 DESLOCAMENTOS E MIGRAÇÕES 24

2.1 O Exílio e Outros Processos 24 2.2 A Imigração Alemã no Brasil 32 2.3 Regiões Culturais 43

3. DICÇÃO GERMÂNICA NA PROSA SULINA 51

3.1 Uma Romancista à Esquerda do Verde Vale 51 3.2 No Vale dos Sinos, um Cidadão do Mundo 59

4. IMIGRANTES ALEMÃES NA FICÇÃO BRASILEIRA 67

4.1 No Tempo das Tangerinas 67 4.2 Um Rio Imita o Reno 85

5. NAÇÕES E NARRAÇÕES 99

5.1 Narrativas em Comunicação 99 5.2 Uma Região e suas Ficções 110

REFERÊNCIAS 116

10

1. FRONTEIRAS DA PALAVRA

Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira

é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.

MARTIN HEIDEGGER

1.1 O Discurso Literário

Este trabalho visa à análise da migração (e, dentro dela, do exílio) assim

como ao estudo da consciência nacional nas obras literárias No tempo das

tangerinas,1 de Urda Alice Klueger e Um rio imita o Reno,2 de Clodomir Vianna

Moog, dando ênfase à articulação entre as estratégias narrativas e as imagens

que revelam do Brasil e dos exilados. A justificativa para a realização desta

pesquisa centra-se, primeiro na inexistência de pesquisas confrontando o

primeiro desses romances, publicado em 1939, e o segundo, editado em 1983.

Em segundo lugar, o estudo das obras literárias permite o aprofundamento

de uma questão pela qual a autora deste trabalho se interessa há muito tempo: a

imigração alemã e o contexto da Segunda Guerra Mundial no Brasil. Por outro

lado, o tema da consciência nacional foi objeto de estudo de uma disciplina do

Mestrado em Literatura da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e

das Missões, campus Frederico Westphalen: Literatura Brasileira e Identidade

Nacional. Além disso, a dissertação é justificada pelo fato de se inserir numa das

1 KLUEGER, Urda. No tempo das tangerinas. Blumenau: Hemisfério Sul, 2003.

2 MOOG, Vianna. Um rio imita o Reno. Porto Alegre: Globo, 1957.

11

linhas de pesquisa mantidas pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da URI-

FW: Literatura, História e Imaginário.

Neste primeiro capítulo, introdutório, são apresentados o tema, os

objetivos, a estrutura do trabalho, assim como os aportes teóricos a serem

utilizados. Privilegiam-se as considerações acerca do discurso da narrativa e das

relações entre a nação e o discurso. O segundo capítulo enfoca as migrações e

deslocamentos em geral, especificamente, o sentimento de exílio e a imigração

tanto na América Latina quanto no Brasil. Nesse sentido, destacam-se as

reflexões, bastante aproximadas, de Clodomir Vianna Moog e Angel Rama, sobre

o conceito de regiões literárias, contraposto ao da homogeneidade das

literaturas nacionais.

O terceiro capítulo se constitui da fortuna crítica dos romancistas Urda

Alice Klueger e Vianna Moog, enquanto o quarto capítulo analisa os romances No

tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno, da autoria desses autores, quanto

à representação da imigração, do exílio e da nação. Finalmente, no quinto

capítulo, são expressas as conclusões às quais a pesquisa realizada permitiu

chegar.

Para tanto, começa-se por dizer que a narrativa é tão antiga quanto a

história da humanidade, estando presente em todos os povos e culturas, numa

grande variedade de gêneros. Para Walter Benjamim, “a narrativa é, ela própria,

num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está

interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação

ou um relatório. Ela mergulha na vida do narrador para em seguida retirá-la

dele”.3

A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. De

acordo com Benjamim, a origem da narrativa romanesca está no indivíduo isolado,

3 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo; Brasiliense, 1996. p. 205.

12

que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais

importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. A partir desse

pressuposto, o filósofo salienta que escrever um romance significa descrever

uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza da

vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de

quem a vive. O autor escolhe a perspectiva e, em conseqüência, estabelece o

sentido.

O romance, como toda narrativa ficcional, apresenta um discurso que

pode ser mais bem compreendido através dum olhar atento as suas categorias

básicas. De acordo com Gérard Genette,4 para evitar ambigüidades no

entendimento dos domínios da narrativa, é preciso distingui-la em três noções. A

primeira é o enunciado narrativo, que pode ser oral ou escrito. A segunda, menos

difundida, é a sucessão de acontecimentos, a ordem em que os fatos são

contados. Na terceira, aparentemente mais antiga, a narrativa designa um

acontecimento: já não, todavia, aquele que conta, mas que consiste em que alguém

conte alguma coisa é o ato de narrar em si mesmo.

Genette5 declara que o ponto de partida de sua teoria é a divisão

realizada por Tzvntan Todoróv em Les catégories du récit littétaire, a qual

classifica os problemas da narrativa em três categorias: 1) a do tempo, relação

entre o tempo da história e do discurso; 2) a do aspecto, maneira pela qual a

história é percebida pelo narrador; 3) a do modo, tipo de discurso utilizado pelo

narrador. Redistribuindo essas categorias, o autor organiza os problemas da

análise do discurso narrativo segundo as categorias tomadas da gramática do

verbo, constituindo, assim, as categorias do tempo, modo e da voz.

4 GENETTE, Gerard. Discurso da narrativa. Lisboa: Vega, 1995. p. 10. 5 Id. Ibid. p. 11.

13

A categoria do tempo é aquela que está ligada às relações temporais

entre narrativa e diegese, ou seja, a relação entre o tempo do discurso e o tempo

da história. O modo está vinculado às modalidades (formas e graus) da

representação narrativa. Ambas tratam das relações que se estabelecem entre

história e narrativa. A categoria voz é a forma pela qual se encontra implicada na

narrativa a própria narração, ou seja, a situação ou instância narrativa e seus

dois protagonistas: o narrador e seu destinatário.

Genette afirma que a análise do discurso narrativo é essencialmente a

análise das relações entre narrativa e história, entre narrativa e narração e

entre história e narração. A categoria tempo envolve critérios que dizem

respeito à ordem, duração e freqüência temporal formando uma sucessão de

acontecimentos na diegese: “A narrativa é uma seqüência duas vezes temporal; há

o tempo da coisa contada e o tempo da narrativa (tempo do significado e do

significante)”.6 A ordem temporal da narrativa confronta a ordem da disposição

dos acontecimentos temporais do discurso narrativo com a ordem de sucessão

desses mesmos acontecimentos na história. As diferentes formas de

discordância são chamadas de “anacronias”, que se constituem de toda a inversão

de tempo da história, como ela foi contada, tempo e pseudotempo.

As anacronias podem ser dividas em dois grandes grupos: as “analepses” e

as “prolepses”. As analepses se referem a um tempo passado em relação à

narrativa primeira. As prolepses se referem a um tempo futuro. A anacronia

constitui, em relação à narrativa na qual se insere, uma narrativa temporalmente

segunda, mas subordinada à primeira. As analepses podem ser qualificadas de

externas e internas. As externas não têm relação direta com a narrativa, são

exteriores a ela e não interferem na narrativa primeira; sua função é esclarecer

o leitor sobre algum dado antecedente. As analepses internas têm seu campo

6 GENETTE, 1995, p. 31.

14

temporal inserido na narrativa primeira, podem ser homodiegéticas quando

ocorre uma volta dentro da história influenciando a seqüência dos fatos. A

analepse interna pode ainda ser heterodiegética, quando a mesma volta no tempo

não interfere na história; Geralmente, é a apresentação das personagens, mas em

relação com a voz que narra. Pode também existir a analepse mista, cujo ponto de

alcance é anterior ao ponto de amplitude e posterior ao começo da narrativa

primeira.

Quando as anacronias se antecipam, ou se referem a um tempo futuro,

são chamadas de prolepses. As prolepses não aparecem tanto nos textos como as

analepses, sendo mais características em textos narrativos em primeira pessoa

que assim autorizam seu narrador a fazer antecipações: “Elas não são muito

comuns na narrativa tradicional ocidental, entretanto, cada uma das três grandes

epopéias antigas, Ilíada, Odisséia e a Eneida, começa por uma espécie de sumário

antecipado que justifica numa certa medida a fórmula aplicada por Todorov à

narrativa homérica: intriga da predestinação”.7

Assim como as analepses, as prolepses podem ser internas, externas e

mistas. Dentro da narração, desempenham apenas o papel de anunciar um

assunto que será a seu tempo contado. As prolepses internas antecipam

informações inscritas no corpo da narrativa primeira assumindo o segmento

profético, já as prolepses externas têm a função de epílogo. Por sua vez, a mista

constitui uma modalidade em princípio apenas hipotética: “de fato para se

concretizar, teria que decorrer desde o interior da narrativa primeira até para

além do seu final, exigindo, por um lado, um segmento temporal inusitadamente

extenso e, por outro lado, a revelação extemporânea do desenlace e do epílogo”. 8

7 GENETTE, 1995, p. 65. 8 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2002. p. 341.

15

A duração é a velocidade da narrativa; relaciona-se com a duração da

história medida em horas, dias, meses, e outras medidas de tempo e a extensão

do texto medida em linhas e páginas. Entre essas, não existe uma gradação

contínua desde a velocidade infinita a “elipse”, a qual tem a capacidade de

acelerar uma narrativa, até a lentidão, que é denominada de “pausa descritiva”,

onde o narrador interrompe momentaneamente o tempo da história e se

concentra em reflexões e descrições. Entre esses dois extremos, ocorrem dois

movimentos intermediários: a “cena” e o “sumário”.

O modo da narrativa diz respeito aos problemas da representação

narrativa, no que se refere à seleção quantitativa e qualitativa daquilo que é

narrado. A categoria gramatical do tempo se aplica com evidência no discurso

narrativo, de maneira que pode parecer a priori desprovida de pertinência, uma

vez que a função da narrativa não é dar ordem ou formular um desejo, mas,

simplesmente, contar uma história. Por isso, o seu modo único, ou pelo menos

característico, só pode ser o indicativo. No entanto, existem diferenças de grau

na afirmação, e essas diferenças se exprimem por variações modais. Pode-se

contar mais ou menos aquilo que se conta, e contá-lo segundo um ou outro ponto

de vista; é precisamente à tal capacidade e às modalidades de seu exercício que a

categoria de modo de Genette visa.

A voz narrativa está ligada à comunicação: quem anuncia é o narrador,

considerando suas relações com o sujeito. Esse sujeito não é somente aquele que

realiza a ação, mas também aquele que a relata e, eventualmente, todos aqueles

que participam, mesmo passivamente, nessa atividade narrativa. Assim, a voz diz

respeito à maneira como se encontra implicada a narrativa na narração,

envolvendo três domínios fundamentais da comunicação narrativa: “o tempo da

narração”, o “nível narrativo” e a “pessoa”. Genette afirma ser possível contar

uma história sem precisar o lugar (espaço) em que ela sucede, mas é impossível

não situar no tempo em relação ao ato narrativo, pois é preciso contá-la num

16

tempo presente, futuro ou passado. Por isso, estas marcas temporais são mais

importantes do que as espaciais. Do ponto de vista temporal, é possível distinguir

quatro tipos de narração: ulterior, anterior, simultânea e intercalada.

Mais freqüente, a narrativa ulterior é a posição clássica da narrativa no

pretérito. Ocorrendo em terceira pessoa, essa distância, geralmente como que

indeterminada, na qual o pretérito marca uma espécie de passado sem idade, não

indica distância temporal que separa o momento da narração da história.

Denomina-se narrativa anterior o ato narrativo que antecede a ocorrência dos

eventos a que se refere, compreendendo um processo de narração raro: ocorre

quando é anunciado um relato de tipo predicativo antecipado pela via de sonho,

profecia, especulação oracular etc. Ainda, uma narração intercalada constitui o

ato narrativo que elimina toda espécie de interferência e jogo temporal, pois

exige uma coincidência rigorosa da história e da narração.

Toda narrativa se estrutura em níveis diferentes, organizados de maneira

que todo acontecimento contado esteja num nível diegético imediatamente

superior àquele em que se situa o ato narrativo, produto dessa narrativa. Os

níveis narrativos são: extradiegético, intradiegético e metadiegético. A instância

narrativa de uma narrativa primeira é por definição extradiegética, como a

instância da narrativa segunda, metadiegética, é por definição diegética. A

mesma personagem pode assumir duas funções narrativas idênticas em níveis

diferentes. O nível intradiegético refere-se à localização das entidades

(personagens, ações, espaços) que integram uma história e, como tal, constituem

um universo próprio. No que se refere à distinção de níveis narrativos, as

entidades do nível intradiegético são as que se colocam no plano imediatamente

seguinte ao nível extradiegético.

A narrativa metadiegética pode se unir à narrativa primeira, na qual se

insere, por vários tipos de relação:

17

O primeiro tipo é causalidade direta entre os acontecimentos da metadiegese e os da diegese, o que confere à narrativa segunda uma função explicativa.... O segundo tipo consiste numa relação puramente temática, que não implica, pois, numa continuidade espaço-temporal entre diegese e metadiegese é uma relação de contraste e analogia. O terceiro tipo não comporta nenhuma relação explícita entre os dois níveis da história: o próprio ato da narração que desempenha a função na diegese, independentemente do conteúdo metadiegético; função de distração e/ou obscuração.9

A passagem de um nível narrativo para outro não pode, em princípio, senão

ser assegurada pela narração, ato que consiste em introduzir numa situação, por

meio de um discurso, o conhecimento de uma situação. Qualquer outra forma de

trânsito é uma transgressão. Dois tipos de narrativa podem ocorrer; uma de

narrador ausente da história que conta; heterodiegética. Outra, de narrador

presente como personagem na história que conta; homodiegética. O narrador

homodiegético pode ser o herói da história que conta ou desempenhar um papel

secundário, ser observador ou testemunha. Quando desempenha papel de herói, o

narrador homodiegético é chamado de autodiegético.

O discurso do narrador assume outras funções, distribuídas segundo

diversos aspectos da narrativa com que se relacionam. O primeiro é a história,

conectada à função narrativa. O segundo é o texto narrativo, no qual o narrador

pode referir-se por discurso de alguma maneira metalingüístico. O terceiro

aspecto é a própria situação narrativa, cujo protagonista é o narratário,

presente, ausente ou virtual, e o próprio narrador. A orientação ao narratário, a

preocupação de manter diálogo com ele, lembra as funções fática e conativa de

Roman Jakobson. Talvez por isso, deva-se designá-la como função de

comunicação. A orientação do narrador para ele próprio determina uma função

homóloga à que Jakobson chama de função emotiva.

9 GENETE, 1995, p. 231-232.

18

A relação do narrador com a história que conta, além de afetiva, é moral e

intelectual, determinando uma função testemunhal ou de atestação. As

intervenções do narrador a respeito da história podem tomar forma mais

didática, exercendo uma função ideológica. Assim como o narrador, o narratário é

um dos elementos da situação narrativa e se coloca, necessariamente, no mesmo

nível diegético. Se o narrador for intradiegético, o narratário será

intradiegético, com o qual o leitor virtual não pode se identificar. Já o narrador

extradiegético visa a um narratário extradiegético, que se confunde com o leitor

virtual e com o qual todo e qualquer leitor pode se identificar. Por meio do

discurso narrativo, seja ficcional ou não, podem ser reveladas as imagens de uma

nação e se refletir sobre o que de fato a constitui.

1.2 Nação e Narrativa

De acordo com o Dicionário Aurélio,10 a nação pode ser constituída por um

grupo de indivíduos que habitam um território e compartilham costumes e línguas,

ou pode ser uma comunidade politicamente organizada, ou ainda, um grande grupo

que compartilha interesses e afinidades. Com essa definição, o povo brasileiro,

para constituir-se como nação, tem em comum o território, uma língua (nem

sempre homogênea), um governo único. No entanto, as origens, a cultura, os

costumes são diversos. É preciso aos poucos criar uma unidade.

10 NAÇÃO. In: FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 449.

19

Ernest Renan11 afirma que uma nação não se compõe apenas de alguns

fatores, como a língua, a cultura, os costumes, a raça, as fronteiras naturais, as

quais, por muito tempo são consideradas as bases do nacionalismo, mas o mais

importante é a “alma”. Muitos estudiosos afirmam que uma nação se compõe

unicamente pela raça, entretanto, para Renan, isso constitui grave erro, porque

não existem mais as divisões artificiais, resultantes do feudalismo, dos

casamentos principescos, dos congressos de diplomatas. Para as sociedades

modernas, a preocupação etnográfica perde seu valor: “Não há raça pura e

basear a política na análise etnográfica é fazê-la numa quimera. Os países mais

nobres, Inglaterra, França, Itália, são aqueles em que o sangue é mais misturado.

A Alemanha é uma exceção a este respeito? É um país germânico puro? Que

ilusão!”.12

Pode-se justificar essa afirmação através da história, pois sendo a Europa

invadida pelos mais diversos povos, o que para muitos é considerado raça pura, lá

no passado, já sofreu muitas misturas. As nações são relativamente novas; na

antiguidade, não existiam, e o que caracteriza os diferentes estados é a fusão

das circunstâncias e populações que os compõem. Isso pode acontecer pela

imposição de uma língua, da religião, ou de aspectos culturais no geral. Para que

de fato ocorra a consolidação de uma nação, é necessário o esquecimento, de

modo que as nações se originam do resultado histórico produzido por uma série

de fatores.

A língua também não pode ser considerada fator determinante para a

estruturação de uma nação; embora seja importante, podendo impor-se de um

povo a outro, pois países distintos falam a mesma língua, como Estados Unidos e a

Inglaterra, mas não formam uma nação. Renan advoga que as línguas são

11 RENAN, Ernest. O que é uma nação? Cadernos da Pós/Letras, Rio de Janeiro, p. 12-43, 1997, p. 25. 12 RENAN, 1997, p. 27.

20

formações históricas, que pouco indicam acerca do sangue de seus falantes:

“Antes de ser confinado a tal ou qual língua, antes de ser membro de tal ou qual

raça, filiado a tal ou qual cultura, o homem é um ser dotado de razão e moral.

Antes da cultura francesa, da cultura alemã, da cultura italiana, há a cultura

humana”.13

Tampouco a religião poderia oferecer base suficiente para o

estabelecimento de uma nacionalidade moderna. Na sua origem, a religião estava

ligada à própria existência do grupo social, sendo uma extensão da família e uma

religião de Estado. Atualmente, não existem mais massas que crêem de modo

uniforme. A religião tornou-se algo individual; diz respeito à consciência de cada

um, não se divide mais uma nação em católica ou protestante. Também a

comunhão de interesses é um laço forte entre os homens, faz tratados

comerciais, estabelece relações, mas isso não basta para marcar uma nação.

Do mesmo modo, a geografia, as chamadas fronteiras naturais, têm papel

importante na divisão das nações. Os rios, as montanhas, desempenham papel

importante dentro dos movimentos históricos, porém, isso não é tudo. Renan

defende que os limites de uma nação não podem ficar restritos apenas a uma

demarcação nos mapas, ou ainda, que uma nação tome para si o que for necessário

para arredondar alguns contornos, para alcançar tal montanha, ou tal rio,

classificando essa tese como arbitrária e responsável por muitas violências

praticadas em virtude da posse de terras. Nem a terra nem a raça formam uma

nação; aquela fornece apenas o substrato, o campo da luta ou do trabalho. O

homem é que fornece a alma, mostrando-se importante à formação de um povo,

quando existe comunhão de idéias, de afetos de lembranças: “A nação é uma

alma, um princípio espiritual. Constituem essa alma, esse princípio espiritual, duas

coisas que, para dizer a verdade, são uma só. Uma delas é a posse em comum de

13 Id. Ibid. p. 34.

21

um rico legado de lembranças; a outra, o consentimento atual, o desejo de viver

juntos, a vontade de continuar a fazer valer a lembrança que recebemos”. 14

É possível constatar que a nação é o resultado de um passado de

esforços, de sacrifícios e devoções, sendo fundamental a valorização dos

ancestrais. As glórias comuns do passado, uma vontade comum no presente,

grandes feitos em conjunto e continuar a fazê-los, constituem a essência de um

povo. Assim, uma nação é uma grande solidariedade, constituída pelos sacrifícios

e glórias que um povo tem em comum: “Uma grande agregação de homens, de

espírito são e coração caloroso, cria uma consciência moral que se chama nação”15.

A nação se constitui também através de um rico legado de lembranças,

pertencendo ao campo imaterial da mentalidade e, para isso, é necessário que se

exteriorize através de símbolos, tornando-se concreta, passando da abstração a

uma realidade mais sensível.

Para Benedict Anderson,16 o sentimento nacionalista que forma uma nação

deve ser compreendido quando posto lado a lado com os sistemas culturais amplos

que o precederam. Os dois sistemas culturais relevantes para a compreensão do

sentido de nação são a comunidade religiosa e o reino dinástico, isto porque

ambos são aceitos como verdadeiros quadros de referência. A decadência das

comunidades, línguas e linhagens sagradas, aliada a uma mudança nos modos de

apreensão do mundo, representada pelo surgimento do jornal e do romance,

possibilita o nascimento da nação.

O romance representa idéia de um organismo sociológico homogêneo e

vazio, que se move através do tempo. Porque possui uma analogia precisa com a

idéia de nação, é entendido como uma comunidade que se move firmemente

através da história. Já os acontecimentos encontrados no jornal estão ligados

14 RENAN, 1997, p. 39. 15 RENAN, 1997, p. 43. 16 ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. p. 21.

22

pelo calendário, pois acontecem num só dia e tem relação direta com os leitores

em diferentes locais. Assim, o romance e o jornal criam a segurança de

comunidade anônima, garantia das nações modernas.

Por causa da impossibilidade de unificação lingüística, o capitalismo,

dentro dos limites impostos pela gramática e pela sintaxe, agrupando línguas

vulgares correlatas, cria línguas impressas passiveis de disseminação pelo

mercado editorial. Para Anderson, essas línguas impressas lançam as bases da

consciência nacional. Criando campos de comunicação abaixo do latim e acima das

línguas vulgares faladas, são uma possibilidade de se comunicar através do papel,

formando um campo lingüístico ao qual pertenciam co-leitores, e apenas eles

formavam o embrião da comunidade nacionalmente imaginada.

Ainda seguindo a reflexão de Anderson, a nação é referida como uma

sociedade imaginária. Isso estabelece concordância com as idéias de Renan, para

o qual a nação foi criada para o homem situar-se como indivíduo. Outra marca que

condiz com a nação está nos os heróis da pátria: “Não há símbolo mais

impressionante da moderna cultura do nacionalismo do que os cenotáfios e os

túmulos de soldados desconhecidos.”17 Esses monumentos públicos são marcas de

um ritual que permite continuar viva nas pessoas o momento histórico que

representam.

Por isso, afirma Homi K. Bhabha: “As origens das nações, assim como das

narrativas, perdem-se nos mitos do tempo e apenas na memória seus horizontes

se realizam plenamente. Esta imagem da nação - ou - narração- pode parecer

excessivamente metafórica, mesmo desesperadamente romântica, mas é a partir

das tradições do pensamento político e da linguagem literária que a nação surge,

17 ANDERSON, 1989, p. 17.

23

no Ocidente, como poderosa idéia histórica”.18 Definida como um sistema de

significação cultural, representação da vida social, a nação precisa ter um objeto

em comum na sociedade. Estudá-la através do discurso narrativo a seu respeito

não apenas tem como objeto chamar atenção para sua língua e sua retórica, sendo

ao mesmo tempo uma tentativa de entender sob outra forma o próprio conceito

de nação, do qual não podem ser excluídas suas margens e fronteiras, nem seus

exilados, expatriados, refugiados ou seres “diaspóricos”.

.

18 BHABHA, Homi K. Narrando a nação. Cadernos da Pós/Letras, Rio de Janeiro, p. 48-59, 1997, p. 48.

24

2. DESLOCAMENTOS E MIGRAÇÕES

Siempre estábamos llenos de exilados así se escribia en tiempos suaves Ahora en cambio somos exiliados

Pero la diferencia no reside en la i.

MARIO BENEDETTI

2.1 O Exílio e Outros Processos

O estudo dos deslocamentos humanos insere-se em termos geográficos no

ramo da geografia da população, área que se torna relevante em meados do

século XX, tendo como objeto o estudo da evolução dos padrões mundiais de

distribuição da população, tanto em termos de quantidade quanto de suas

características. Na ótica da espacialidade, os deslocamentos humanos são

estudados no campo da migração,19 termo que apresenta várias significações,

sendo a mais comum a de uma movimentação que culmina em mudança de

domicílio. Contudo, a definição é extremamente restritiva por ignorar os

deslocamentos que envolvem viagens diárias ou periféricas, constituídas das

movimentações temporárias de turistas, dos deslocamentos sazonais e do

caminhar das populações nômades.

Dentro dos estudos geográficos, existe a necessidade de que a palavra

migração abranja a mobilidade populacional em todas as suas formas. Numa

perspectiva geográfica, todo o grupo ou indivíduo que, por causa das mais

19 Cf. TREWARTHA, Glenn. T. Mobilidade e migração. In: TREWARTHA, Glenn. T. Geografia da população: padrão mundial. São Paulo: Atlas, 1974. p. 167-177.

25

diversas circunstâncias, sai de sua terra de origem em direção a outros

territórios, pode considerar-se migrante. É uma característica da população

mundial a mobilidade através das mais diversas razões: ecológicas, econômicas,

religiosas ou até políticas. Mesmo que a grande maioria dos indivíduos permaneça

em seu lugar de origem, uma grande parcela troca de residência ou se submete a

viagens periódicas.

A questão dos deslocamentos é muito antiga, tão antiga quanto a própria

humanidade; já se desencadeava com os povos pré-históricos, obrigados a se

deslocarem por questões ecológicas. Os fatores econômicos também se fazem

responsáveis por muitos deslocamentos, sendo a era moderna um grande exemplo

desse tipo, que ocorre inclusive através do êxodo rural, na mudança de regiões

agrícolas às grandes cidades, em busca de melhores oportunidades.

Também a religião responsabiliza-se pela movimentação populacional, tendo

como exemplo as Cruzadas, ocorridas no período que cobre o intervalo entre os

séculos XI e XIII, as quais se constituíam de expedições religiosas e militares

dos cristãos, normalmente a pedido do papa, com objetivo de recuperar a Terra

Santa, sob o domínio dos muçulmanos. Para Campos e Oliveira,20 fatores políticos

também provocam deslocamentos humanos, como nos governos ditatoriais, quando

o exílio forçado se torna uma prática comum para as pessoas contrárias à

ideologia imposta. É o que ocorre no Brasil do Estado Novo ou das ditaduras

militares dos anos de 1960-1980.

Importante salientar que há uma grande dificuldade em distinguir os

fatores causadores de um deslocamento populacional, porque as migrações

também se motivam por mais de uma razão. Por exemplo, o fator econômico e

político podem estar diretamente relacionados, como nas Cruzadas, para as quais

20 CAMPOS, Giovana Cordeiro; OLIVEIRA, Maria Clara Castelões. Dimensões geográficas e tradutórias do exílio. Literatura em Debate, Frederico Westphalen, v. 2, p. 1-18, dez. 2008, p. 4.

26

foram relevantes os fatores econômicos, políticos e religiosos. Outro caso ocorre

durante a Segunda Guerra Mundial, quando a política anti-semita dos nazistas

obriga os indivíduos de origem judaica a fugir dos domínios alemães para

sobreviver. Entretanto, a própria situação destrutiva de uma guerra é suficiente

para induzir o deslocamento da população a locais que propiciem mais segurança e

condições de trabalho, independentemente da perseguição política, religiosa ou

racial.

O progresso tecnológico é o grande responsável pelo progresso migratório,

já que possibilita melhorias na rede de transporte e nos sistemas de

comunicação.21 As migrações caracterizam-se como específicas e particulares de

certos continentes, países, regiões, localidades e cidades, não sendo possível

comparar com exatidão a mobilidade populacional de todos os países do mundo.

Por isso, os estudos geográficos em geral tratam a questão no âmbito da

coletividade, destacando os tipos, causas, conseqüências e modos pelos quais as

migrações ocorrem. Trewartha,22 com base em estudos anteriores, propõe cinco

classes de migração: primitiva, forçada, impedida, livre e maciça.

A migração primitiva originou-se dos fenômenos climáticos, a partir do

momento em que as pessoas são obrigadas a sair de suas terras por causa da

interação homem x natureza. A migração forçada e a impelida ocorrem quando o

elemento que estimula a migração é o Estado ou uma instituição social. Isso

acontece, por exemplo, com o povo judeu na Segunda Guerra Mundial, a

representar essas duas formas de migração. Constitui uma migração forçada o

processo de aprisionar pessoas nos campos de concentração. Porém, aquele que

consegue escapar deles pode ser visto como representante da migração impelida.

21 Cf. TREWARTHA, 1974, p. 170. 22 Id. Ibid. p. 172.

27

A migração livre baseia-se na vontade do indivíduo e não envolve a

influência de fatores externos. Apresentando uma interação, norteada pela

relação entre o homem e suas normas, a força migratória determina-se pela

tendência do individuo ou de seu grupo e aspirações mais altas. Geralmente,

envolve pequenos grupos de pessoas, que buscam aventura ou desejo de

progresso pessoal, podendo transformar-se num fenômeno de massa e, assim,

passar à migração maciça, caracterizada como movimento social de

comportamento coletivo. Para representar essas duas formas, pode-se citar a

migração da Europa às Américas, num primeiro momento, livre, sendo os

primeiros migrantes formados por aventureiros e intelectuais em busca de seus

ideais. Depois, segue a migração maciça, quando grandes quantidades de pessoas

aportam ao Novo Mundo a fim de povoá-lo e urbanizá-lo.

Enquanto os estudos geográficos defendem a mobilidade espacial dos

grupos de pessoas como um processo de migração, os estudos sócio-históricos

interessam-se pelos deslocamentos humanos como processos exílicos, de ordem

não apenas coletiva, mas também individual. Em vez de se deterem na causa das

movimentações, as pesquisas voltam-se a seus efeitos nos indivíduos, sendo o

exílio abordado nem tão somente sob a perspectiva espacial e temporal, mas

também quanto aos efeitos psicológicos.

O exílio é uma das mais antigas manifestações humanas, ocorria na Grécia

antiga, onde o indivíduo era banido da sociedade através do voto secreto, e pode

ser observado no texto bíblico “Torre de Babel”, do Livro do Gênesis.23 Há pouco

tempo, era visto como punição ligada a uma noção de perda, idéia que passa a ser

vista de modo diferente, tendo um lado positivo no intercâmbio, no conhecimento,

na interação com outras culturas, sem que isso implique na perda de uma

identidade. Porém, Edward Said afirma que o exílio se define pelo extravio de

23 Gênesis. In: BÍBLIA SAGRADA. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueredo. Rio de Janeiro: Encyclopedia Britânnica, 1980. p. 9. (Edição Ecumênica. Bíblia. A. T. ).

28

algo deixado no passado para sempre: “É uma fratura incurável entre um ser

humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar”.24

Não podendo colocar-se a serviço do humanismo, por causa de seu cenário

amplo e impessoal, é incompreensível tanto do ponto de vista estético quanto

humanístico. Na melhor das hipóteses, a literatura sobre o exílio objetiva uma

angústia e uma condição que a maioria das pessoas raramente experimenta em

primeira mão. Entretanto, pensar que o exílio é apenas benéfico ao mundo

literário significa banalizar as perdas dos que o sofrem, arrancados de sua

tradição, da família e da geografia:

O nacionalismo é uma declaração de pertencer a um lugar a um povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos. Com efeito, a interação entre nacionalismo e exílio é como a dialética hegeliana do senhor e do escravo, opostos que informam e constituem um ao outro.25

Em seus primeiros estágios, todos os nacionalismos se desenvolvem a

partir de uma situação de separação. As lutas pela independência dos Estados

Unidos, pela unificação da Alemanha e da Itália, pela libertação da Argélia, são

de grupos nacionais separados exilados daquilo que consideram seu modo de viver

legítimo. O nacionalismo triunfante justifica, retrospectiva e prospectivamente,

uma história amarrada de modo seletivo em forma narrativa. Todos os

nacionalismos têm como fundadores seus textos básicos, quase religiosos, uma

retórica do pertencer, marcos históricos e geográficos, inimigos e heróis

oficiais.

Com o tempo, os nacionalistas bem-sucedidos atribuem a verdade

exclusivamente a eles mesmos e relegam a falsidade e a inferioridade aos outros,

como a retórica do capitalismo contra o comunismo ou do europeu contra o

24 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Schwarcz, 2003. p. 46. 25 Id. Ibid. p. 49.

29

asiático. Said defende que os nacionalismos dizem respeito a grupos, mas, num

sentido muito agudo, o exílio é uma solidão vivida fora do grupo; é a privação

sentida por não estar com os outros na habitação comunal. Exílio e nacionalismo

não são termos neutros, “incluem tudo, do mais coletivo dos sentimentos à mais

privada das emoções privadas; dificilmente há uma linguagem adequada para

ambos, mas há certamente nada nas ambições públicas e abrangentes do

nacionalismo que toque no âmago da condição do exílio”.26

Ao contrário do nacionalismo, o exílio revela-se fundamentalmente como

um estado de ser descontínuo. Os exilados estão separados das raízes, da terra

natal, do passado; não têm exércitos ou Estados, ainda que estejam com

freqüência em busca deles. Entretanto, sentem uma necessidade urgente de

reconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma

ideologia triunfante ou de um povo restaurado. Uma situação de exílio sem

ideologia triunfante, criada para reagrupar a história rompida num todo novo, é

praticamente impossível. Para ilustrar esse caso, Said cita como exemplo o

destino dos armênios, judeus e palestinos.

A partir dos anos de 1940, o exílio passa a ser visto como fator de

resistência que, de alguma forma, estabelece um tipo de contato intercultural,

pois o “exilado chega ao país de destino com o olhar voltado para o país de

origem. Entretanto, o ser humano é um ser social por excelência e necessita

adaptar-se às condições que o cercam. O indivíduo exilado passa a conviver com a

ideologia e o modo de vida que o acolheu e algum tipo de troca nos parece

inevitável nessas condições”.27 Contudo, “adiante da fronteira entre ‘nós’ e os

‘outros’ está o perigoso território do não-pertencer, para o qual, em tempos

26 SAID, 2003, p. 49. 27 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 6.

30

primitivos, as pessoas eram banidas e onde, na era moderna, imensos agregados

de humanidade permanecem como refugiados e pessoas deslocadas”.28

Os exilados não nutrem interesses de absorver a nova cultura na qual se

inserem, mas lutam para não perder a herança cultural de seus países, como

acontece com muitos que processam artisticamente as vivências do exílio. Eles

não precisam reinventar o tempo porque, ao saírem da terra-natal, se vêem

isolados do grupo ao qual pertenciam, deixando de estar em contato direto com

as possíveis mudanças ocorridas no lugar de origem após a partida. Nesse caso, a

obra de Mário Benedetti permite concluir que a “literatura no exílio se

configuraria, assim, para o escritor uruguaio, como um espaço de afirmação

cultural no sentido de que considera o exílio também como um território onde

podem ser elaboradas estratégias de sobrevivência da cultura”.29

Campos e Oliveira30 propõem outra forma de exílio: o interior, em meio ao

qual, o deslocamento assume papel secundário frente ao que se passa no indivíduo

ou no grupo. Essa idéia se fundamenta não só no material, a exemplo de largar a

casa, sua cidade, ou terra, mas no deslocamento como uma condição mental.

Desse modo, o exílio tem início no subconsciente do indivíduo ou do grupo que, em

desajuste com a maioria, pode estar exilado sem mesmo deslocar-se

geograficamente. O processo ocorre no momento em que não há integração, mas

certo distanciamento, pois quando começa a se expressar, o exilado é

reconhecido como um estranho, pela maioria.

Dentro dos estudos socio-históricos, ainda é preciso distinguir o

“expatriado” do “exilado”:

Embora seja verdade que toda pessoa impedida de voltar para casa é um exilado, é possível fazer algumas distinções entre exilados, refugiados,

28 SAID, 2003, p. 50. 29 VOLPE, Miriam L. Geografias do exílio. Juiz de Fora: EdUFJF, 2005. p. 18. 30 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 8.

31

expatriados e emigrados. O exílio tem origem na velha prática do banimento. Uma vez banido, o exilado leva uma vida anômala e infeliz, com o estigma de ser um forasteiro. Por outro lado, os refugiados são uma criação do Estado do século XX. A palavra refugiado tornou-se política: ela sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada que precisa de ajuda internacional urgente, ao passo que o termo ‘exilado’, creio eu, traz consigo um toque de solidão e espiritualidade. Os expatriados moram voluntariamente em outro país, geralmente por motivos pessoais ou sociais.31

Embora semelhantes, os termos necessitam que se atente a suas

diferenças, sendo refugiado aquele que precisa de ajuda, da proteção dum outro

país, ao passo que emigrado representa apenas o indivíduo que busca um país,

seguindo motivações de ordem pessoal ou social. É preciso também lembrar que

“diáspora” tem “estreita relação com as migrações populacionais, entretanto seu

escopo de significação abrange muito mais do que o sentido original grego de

dispersão de um grupo. Por muito tempo, a palavra designou comunidades judaicas

exiladas que se organizaram em cada país de destino mantendo a religião e os

hábitos culturais de seu povo”.32

A partir dos anos de 1980, a noção se aplica ao fenômeno de dispersão dos

grupos que, mesmo fora da pátria, mantêm a coesão, valorizando seus costumes,

músicas, crença, língua e modo de vida: “São criados espaços de identidade

nacional na terra estrangeira, dissolvendo a noção de fronteira física... ser

membro de uma diáspora pressupõe uma adaptação ao país de destino, mas nunca

uma assimilação”.33 Atualmente, cada vez mais pessoas se exilam, se expatriam,

se refugiam ou se deslocam, formando ou não comunidades diaspóricas pelo

mundo afora.

Estado de ser descontínuo, o exílio constitui-se numa solidão vivida fora do

grupo, na privação sentida por não estar no lugar de origem. Os exilados

31 SAID, 2003, p. 54. 32 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008, p. 4. 33 Id. Ibid. p. 5.

32

necessitam reconstituir suas vidas rompidas para verem a si mesmos como povo

restaurado, mas a ideologia triunfante de reestruturar uma história no novo

mundo vê-se praticamente impossibilitada: “a diferença entre os exilados de

outrora e os de nosso tempo é de escala: nossa época, com a guerra moderna, o

imperialismo e as ambições quase teológicas dos governantes totalitários, é, com

efeito, e era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigração em massa”.34

Os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem

contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro lugar: “O exílio

baseia-se na existência do amor pela terra natal e nos laços que nos ligam a ela -

o que é verdade para todo exílio não é a perda da pátria e do amor à pátria, mas

que a perda é inerente à própria existência de ambos”.35 Os exilados ocupam

grande parte do tempo em compensar a perda do mundo outrora vivido; é a vida

fora da ordem habitual. Adaptando-se, enraizando-se na cultura do país de

adoção, criam pontos de vista diversificados sobre a nação que, ao mesmo tempo,

engloba o passado cultural dos indivíduos, agrupando-os, e os aspectos culturais

do contexto em que se inserem, como acontece com os alemães que emigram para

o continente americano.

2.2 A Imigração Alemã no Brasil

A presença alemã nos países da América Latina durante o período colonial

segue um modelo muito similar. Nos três primeiros séculos, os alemães integram a

tripulação dos navios espanhóis e portugueses, exercendo as mais diversas

34 SAID, 2003, p. 47. 35 Id. Ibid. p. 59.

33

funções: peritos em navegação, canhoneiros, escrivães de bordo. Logo depois da

consolidação das primeiras praças de comércio, entram em cena, no Brasil,

comerciantes alemães: “Combinava-se um misto de espírito comercial e

aventureiro que fez com que as personagens mais conhecidas tenham sido

representantes paradigmáticos da mentalidade da época na prática comercial, na

implantação e consolidação dos empreendimentos mais diversos e na colocação

das bases que orientam, posteriormente, a gênese, a dinâmica e a evolução da

história da América Latina”.36

A conquista da América pelos portugueses e espanhóis, além dos

interesses econômicos e políticos, também objetiva uma conquista espiritual. É

nessa ação que entram os missionários das mais diversas ordens religiosas:

franciscana, dominicanos, mercedários e principalmente jesuítas. Silviano

Santiago,37 quando aborda o entre-lugar do discurso latino- americano, traz à

tona a violência que os conquistadores europeus aplicam sobre os conquistados, a

imposição brutal de uma ideologia. No Brasil colonial, o objetivo dos

colonizadores é evitar o bilingüismo, constituindo-se com isso uma forma de

dominação. O objetivo dos jesuítas não é apenas uma representação religiosa,

mas principalmente, impor a língua européia para os índios: “Evitar o bilingüismo

significava também impor o poder colonialista. Na álgebra do conquistador, a

unidade é a única medida que conta. Um só Deus, um só rei, uma só língua: o

verdadeiro Deus, o verdadeiro rei, a verdadeira língua”.38

A América transforma-se em cópia pelo extermínio constante dos traços

originais, pelo esquecimento da origem. O fenômeno da duplicação se estabelece

como única regra válida de civilização. É assim que nascem por todos os lados

36RAMBO, Arthur Blásio. A presença alemã na América Latina no período colonial. História Unisinos, São Leopoldo, v. 6, n. 5, p. 88-121, jan./jun. 2002, p. 91. 37 SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 11. 38 Id. Ibid. p. 14.

34

cidades de nome europeu cuja única originalidade é o fato de trazerem antes do

nome de origem o adjetivo “novo” ou “nova”: Nueva España, Nova Friburgo, etc.

Como há uma proibição imperial que impede a entrada de estrangeiros nas

colônias espanholas, eleva-se consideravelmente o número de jesuítas alemães

para as atividades missionárias nas colônias do Prata e demais regiões do

continente. Responsáveis pela transmissão de tecnologias e conhecimentos

artísticos de toda espécie, oriundos da Europa, seu trabalho dos jesuítas é

excepcional e colabora para a implantação de um projeto de modernização

tecnológica, de elevação do nível cultural através de escolas e colégios e à

difusão de conhecimentos técnicos e artísticos, dos estudos etnográficos,

etnológicos, lingüísticos e históricos.

Outro aspecto que possibilita a entrada de alemães na América Latina é o

comércio, a participação em empreendimentos que exigem a aplicação de

tecnologias das quais as colônias necessitam na mineração, na instalação de

portos, abertura de estradas, construção naval e navegação fluvial e marítima.

Considerável número de cientistas é atraído para a América Latina por causa das

diversidades naturais: botânicos, zoólogos, geógrafos. Eles percorrem as mais

diversas regiões do continente inventariando, descrevendo, classificando plantas,

animais, minérios, climas, paisagens e participando das Bandeiras. Muitos outros

alemães colaboram em obras de saneamento, organização das guarnições

militares e demais atividades.

Há traços semelhantes em todos os países da América Latina que têm

influência alemã no período colonial: os desbravadores são indivíduos, ou no

máximo, de uma ou outra equipe menor, que se desincumbem das tarefas nas

colônias. A presença e a participação alemã nesse período é fundamental, e em

alguns casos, decisiva na condução político-administrativa de vários países,

principalmente, Argentina, Chile e Brasil. Entretanto, um aspecto muito

interessante é que os alemães não chegam a construir grupos maiores estáveis,

35

muito menos, comunidades étnicas. Muitos desses colonizadores permanecem no

continente e têm filhos com portuguesas, espanholas, crioulas ou índias. Seus

nomes sofrem mudanças nos registros por causa das influências do português e

do espanhol, ou são simplesmente substituídos. Por isso, Rambo39 salienta que, se

fosse rastreada a origem de inúmeras famílias importantes e decisivas na vida

nacional destes três paises, descobrir-se-ia sua ascendência alemã.

Os primeiros imigrantes alemães são trazidos ao Brasil a mando do rei Dom

João VI. Em 1818, estas famílias são assentadas nas serras fluminenses, lugar

onde mais tarde se funda o município de Nova Friburgo. No mesmo ano, alguns

colonos alemães são também enviados para a Bahia. Depois de proclamada a

independência do Brasil, em 1822, o governo imperial inicia a fundação de colônias

alemãs no sul do país, por questões estratégicas, as quais deveriam garantir a

segurança militar das fronteiras do Império brasileiro na região platina. O

governo acredita que a colonização com imigrantes alemães na porção sul do

Brasil não somente traria vantagens militares e demográficas, mas que, através

do exemplo dos imigrantes, o trabalho braçal poderia recuperar sua dignidade e

importância entre a população luso-brasileira.

Outra esperança do governo é que a imigração dos colonizadores alemães

estabeleça uma classe média, pois até aquele momento, no Brasil, existem

grandes proprietários de terras, trabalhadores submetidos a eles e escravos: “D.

João VI, através da colonização européia, procura diminuir a assustadora

percentagem da população escrava pela introdução de colonos europeus;

substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre, a grande propriedade pela

pequena, criando no país uma classe média” 40. No ano de 1822, quando acaba o

domínio de Portugal sobre o Brasil, apenas o litoral e parte da região central do

39 RAMBO, 2002, p. 93. 40 LAZZARI, Beatriz Maria. Imigração e ideologia. Caxias do Sul: EST/UCS, 1980. p 31.

36

Rio Grande do Sul são conhecidos. O restante do território está pouco povoado, a

maioria da população que ali vive é composta de imigrantes açorianos, enviados à

região no final do século XVIII pelo governo português. Sua economia baseia-se

na criação de gado e animais de carga que abastecem principalmente São Paulo e

Minas Gerais. Produtos de primeira necessidade, como alimentos, precisam ser

importados.

Com o propósito de conseguir pessoas para povoar essas regiões, o

imperador Dom Pedro I e sua esposa, Leopoldina de Habsburg, enviam agentes

aos países alemães, com a recomendação de agenciar imigrantes, oferecendo-lhes

inúmeras promessas. Muitas famílias migram para o Brasil, porque a situação na

Alemanha não lhes é muito favorável. Por que alemães e não outra nacionalidade?

Giralda Seyferth41 tem uma explicação convincente para o caso: “A predominância

de alemães nos primeiros projetos mais consistentes de colonização pode ser

explicada pela presença influente de indivíduos de ascendência germânica junto

ao Governo imperial brasileiro, e seu papel na orientação da política imigratória

nos seus primórdios”.

Na virada do século XVIII para o XIX, a Europa é arrasada pelas guerras

napoleônicas. Poucas esperanças sobram no meio de tanta devastação, fome e

pobreza. Há uma pesada carga de impostos sobre bens e produtos agrícolas, além

disso, as terras também estão desgastadas, pois ainda não se conhecem os

adubos químicos. Esses são alguns dos motivos da vinda dos colonizadores para o

Brasil, em busca de uma vida melhor. Pela sua vastidão, o país é difícil de ser

ocupado e explorado, faltam pessoas que queiram trabalhar. Há interesse em

ocupar os espaços para dificultar a entrada de estrangeiros e conquistadores.

Quando Dom João VI deixa na corte brasileira seu filho, D. Pedro I,

casado com a nobre austríaca Maria Leopoldina, inicia-se o processo de ocupação

41 SEYFERTH, Giralda. A colonização alemã no Brasil: etnicidade e conflito. In: FAUSTO, Boris (Org.). Fazer a América. São Paulo: EdUSP, 1999. p. 277.

37

das terras. Por sugestão da arquiduquesa, começa a imigração alemã. O primeiro

grupo de 39 pessoas, proveniente do Hunsrück, chega a São Leopoldo, Rio Grande

do Sul, em 25 de julho de 1824. Como essa colônia alemã dá certo, logo vêm

outras. Para despertar o interesse dos alemães em migrarem a uma terra tão

longínqua e desconhecida, muitas são as promessas: terras (quase de graça),

animais domésticos, sementes, diárias, isenção de impostos por dez anos, além de

muitas outras: “Para alcançar os objetivos da imigração, o governo promete aos

colonos europeus que quisessem se estabelecer no Brasil gratuidade no

transporte, doação de um lote rural, instrumentos de trabalho, sementes, ajuda

em dinheiro para os primeiros anos, assistência médica, religiosa e outras

vantagens”.42

Entretanto, todas essas vantagens nem sempre são cumpridas. O

“Eldorado” que os alemães encontram não tem escolas, igrejas, assistência à

saúde, nada, ficam entregues à própria sorte no meio das matas. A colônia de São

Leopoldo, em 1824, é a primeira colonização alemã subvencionada que dá certo no

Brasil. Milhares de imigrantes alemães vêm para o Rio Grande do Sul e ocupam a

região central do Estado, sempre no sistema de pequenas propriedades situadas

em pontos estratégicos: “As primeiras colônias foram estabelecidas em pontos

estratégicos entre o planalto e o litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a

fim de garantir de alguma forma as vias de penetração. Em Santa Catarina,

principalmente, não havia comunicação entre a capital Desterro e o planalto e foi

com esta finalidade que se deu estímulo à colonização alemã no vale do Itajaí”.43

As empresas colonizadoras preferem os vales, pelas inúmeras vantagens

que possibilitam para comunicação, comércio e até controle das colônias. Um

exemplo concreto é o vale do rio dos Sinos no Rio Grande do Sul e o vale do rio

42 LAZZARI, 1980, p. 32. 43 SEYFERTH, 1999, p. 31.

38

Itajaí, em Santa Catarina. As regiões de relevo mais elevado são colonizadas

pelos italianos. As primeiras gerações nascidas no Brasil ajudam na ampliação das

áreas ocupadas pelos alemães: “A colonização alemã foi efetuada por dois

elementos: os alemães natos Bundesdeutsche ou Reichdeutsche, que vinham aos

milhares, e os teuto-brasileiros- Deutschbrasilianer, que eram os brasileiros

descendentes de imigrantes alemães”.44

Essas colônias formadas pelos alemães não são todas iguais. Existem as

colônias governamentais, que são fundadas pelo governo Federal em São

Leopoldo, no Rio Grande do Sul, São Pedro Alcântara e Santa Isabel, em Santa

Catarina. Também, as organizadas pelo governo provincial ou estadual, em Santo

Ângelo, Santa Cruz do Sul e Monte Alverne, todas no Rio Grande do Sul. Há ainda

as colônias organizadas pelos governos municipais no interior do estado do Rio

Grande do Sul: São Luís e Santo Ângelo. Colônias fundadas por particulares se

formam quando algumas pessoas adquirem uma gleba grande e promovem a sua

colonização com fins lucrativos. É o que ocorre, por exemplo, com Blumenau,

Santa Catarina, fundada por Otto Blumenau em 1849. Existem ainda as colônias

fundadas por entidades lucrativas, como a empresa Chapecó-Peperi LTDA,

responsável pela colonização do Extremo Oeste catarinense. E ainda, as colônias

fundadas por entidades filantrópicas, as quais são financiadas por agências

bancárias.

Os imigrantes alemães que vêm para o Rio Grande do Sul são pessoas

pobres, a maioria com pouca ou nenhuma instrução. Têm vontade de possuir um

pedaço de chão, para criarem seus filhos com escola, religião e patriotismo. Para

as colônias de Blumenau e Hansa-Harmonia, em Santa Catarina, a vinda de

profissionais com variados graus de instrução é mais numerosa do que a

registrada no Rio Grande do Sul. Em Santa Catarina, surgem várias colônias de

44 JUNGBLUT, Roque. Porto Novo: um documentário histórico. Porto Alegre: Suliane, 2005. p. 29.

39

imigrantes. Em 1849, Hermann Bruno Otto Blumenau compra uma gleba de terra

do governo e promove a colonização de Blumenau em caráter privado. A partir de

1860, fica como diretor, e o governo federal assume sustentar a colônia. Um

outro grupo privado da Alemanha compra a região de Joinville e a coloniza a

partir de 1852. O que há de diferente nesse estado é que grandes áreas de terra

são de propriedade das irmãs de D. Pedro II e de outros nobres da coroa. O vale

do Capivari pertence ao Conde d’ Eu; a região de Joinville, à Dona Francisca, irmã

de D. Pedro I, casada com o príncipe de Joinville.

No texto A corrente migratória alemã e a formação urbana, Maria da

Graça Sebben45 defende que, até 1860, a Alemanha conserva o regime do

artesanato místico. A partir de 1870, com o desenvolvimento da industrialização,

a economia do país absorve um grande contingente de mão-de-obra. Ao mesmo

tempo, artesãos e trabalhadores da indústria doméstica não conseguem competir

com as grandes empresas e se arruínam. Muitos desses artesãos partem ao Novo

Mundo em busca de melhores condições de vida. Os primeiros colonos chegados

ao Rio Grande do Sul, em sua maioria, vem das cidades marítimas de Hamburgo,

Bremen, Holstein e Hannover. Mais tarde, chegam também famílias das

províncias renanas, do Hesse, do Palatino e do Hunsrück. A maior parte desses

imigrantes vive na Alemanha em aldeias, onde é costume cada terreno ter um

espaço no qual se cultiva uma horta e um pomar. No Brasil, esses imigrantes

tentam igualar o máximo possível suas vidas com a Alemanha, e uma

característica mantida, além da parte cultural é o cultivo da horta e do pomar

perto de casa.

Como já citado anteriormente, o governo brasileiro promete uma série de

regalias. A primeira leva de imigrantes que chega ao Brasil em 1824 consegue

suas terras, porém, quando outras chegam, as áreas não haviam sido demarcadas,

45 SEBBEN, Maria da Graça. A corrente imigratória alemã e a formação urbana. Ágora, Santa Cruz do Sul, v. 7, n. 5, p. 89-133, jun. 2001. p. 95.

40

e são obrigados a se instalar em “albergues”, os quais não passam de ranchos

abandonados pelos escravos.46 Os demais imigrantes se instalam na casa de

colonos já estabelecidos, com o mesmo propósito: aguardar a hora de tomar

posse da terra prometida. Outro agravante enfrentado pelos colonos é a

dificuldade de adaptação, porque muitos não são agricultores, e nada entendem

do cultivo de terras. Inclusive aqueles que possuem conhecimentos na Alemanha

sobre agricultura têm dificuldades, porque o clima e o solo são diferentes

daqueles aos quais estão habituados.

Como resultado das irregularidades no processo migratório, o governo

alemão intervém, e a partir de 1830, se interrompe a corrente migratória Europa

Brasil. Um fator que contribui para que essa interrupção ocorra é a Revolução

Farroupilha, entre 1830 a 1845. Nesse período, praticamente anula-se a

imigração estrangeira para o Brasil, até que um ato adicional promulgado pela

regência transfere a competência em matéria de colonizar para as próprias

províncias. Santa Catarina é a única província que se sente estimulada pelo Ato

Adicional a promover a colonização de seu território. No ano de 1836, a província

autoriza a fundação de duas colônias, nos vales dos rios Itajaí-Açu e Itajaí

Mirim. Mesmo que, nessa época as imigrações acalmem, é possível realizá-las de

fato: “Não desapareceu, contudo, a idéia de que era necessário promover a

imigração para desenvolver as regiões remotas do país, e precaver a economia do

Estado diante da inevitável crise a ser provocada, cedo ou tarde, pela suspensão

46 Josué Guimarães aborda a história da família de Daniel Abrão Schneider, que chega ao Brasil em julho de 1824, junto com outro grupo, destinado à extinta Real Feitoria do Linho Cânhamo, no Faxinal da Courita, atual São Leopoldo. Nesse local, vivem em condições precárias de sobrevivência, justamente o contrário da propaganda feita na Alemanha sobre a recepção no Brasil. Cf. GUIMARÃES, Josué. A ferro e fogo. Porto Alegre: L & PM, 2006. 2 v.

41

definitiva do tráfico de escravos. As vias para a promoção é que deviam ser

outras que não onerassem ainda mais as já comprometidas finanças do império”.47

Durante o período da regência, há uma dupla política em relação à

imigração. Procura-se estimular as iniciativas imigratórias particulares, existindo

também um esforço no estabelecimento de medidas que preparem as próximas

imigrações. Em outubro de 1832, é aprovada uma lei que prevê a legalização dos

estrangeiros, propondo a naturalização para todos que residam no Brasil há pelo

menos quatro anos. Além dessa, em 1836, se estabelece outra lei que objetiva a

diminuição do preço das passagens aos imigrantes, tendo em vista que a

embarcação que traga a qualquer porto do país mais de cem imigrantes está livre

de impostos de ancoragem. Já em outubro de 1843, a lei número 317, que fixa

orçamento para os exercícios de 1844 e 1845, renova essa vantagem,

estabelecendo uma redução proporcional do imposto de ancoragem dos navios de

acordo com o número de colonos que carreguem. Há também, no Brasil, um

conflito por jogos de interesses: de um lado, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas

Gerais, interessados em conseguir trabalhadores para a produção do café, em

processo de expansão; de outro lado, o governo central, preocupado em promover

a colonização do sul do país, através de distribuição de pequenas propriedades

agrícolas.

Na Alemanha, a imigração passa a ser tratada de maneira diferente. Nos

anos de 1820, o processo migratório é visto como uma questão sócio-política

interna de cada Estado. A partir de 1840, passa a ser encarada como pertinente

e de grande significado para a nação alemã. O nacionalismo crescente daquela

época (que objetiva a Unificação da Alemanha em Estado Nacional) abarca a

questão emigratória. Não se tolera mais que os alemães emigrados sejam

47 CUNHA, Jorge Luiz da. Conflitos de interesses sobre a colonização alemã do Sul do Brasil na segunda metade do século XIX. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, vol. XXVI, n. 1, p. 183-232, jul. 2000. p. 184.

42

perdidos para os interesses nacionais do povo alemão. Essa concepção se origina

porque os alemães que emigram aos Estados Unidos, Canadá, Rússia ou Austrália

rompem laços com a pátria, transformado-se em consumidores para nações

estrangeiras, daí o “desejo de que os imigrantes mantivessem e desenvolvessem

suas ligações culturais e econômicas com a Alemanha”.48

Essa idéia se estabelece no sentido de os emigrados alemães garantirem,

no estrangeiro, a formação de um mercado consumidor para os produtos de sua

nascente indústria, suprindo assim a falta de colônias. Objetiva-se também as

ligações culturais, garantindo entre os emigrados a preservação de sua língua e

de seus costumes, ou seja, de uma identidade nacional alemã. Os alemães não têm

interesse nas regiões brasileiras que já estão colonizadas: “Era preciso

direcionar a migração para uma região onde os imigrantes pudessem continuar

alemães em proveito na Alemanha.”49 Eles devem povoar a região garantindo, para

a produção alemã, o fornecimento de matérias primas, e constituindo um forte

mercado consumidor.

Tal concepção é aceita no Brasil, pois a abolição da escravatura ameaça a

agricultura, única fonte de renda do Império. Portanto, torna-se imprescindível

apoiar esse setor primário, não para favorecer poucos proprietários de escravos,

mas para o interesse do trono e do Estado: “A política oficial da colonização é

neste período, desviada da política original proposta por D. João VI e evidencia

um objetivo primordial que é o de garantir, pelo trabalho livre, a substituição do

braço escravo. A estratégia usada é atrair, pelas vantagens da colonização, maior

número de imigrantes que se dediquem a lavoura carente de elementos de

trabalho”.50

48 CUNHA, 2000, p. 186. 49 Id. Ibid. p.187. 50 LAZZARI, 1980, p. 37.

43

A política oficial da colonização tem como objetivo o desenvolvimento

econômico e social brasileiro. Assim, suprindo os interesses dos dois países,

Brasil e Alemanha, um tem suas terras produtivas e o outro consegue

estabelecer colônias que poderão, no futuro, manter relações comerciais e

culturais com a antiga pátria. Nascem as bases da pequena propriedade rural no

sul do país, que mesmo depois de quase dois séculos, ainda conserva traços

culturais germânicos e tem por base a pequena propriedade rural, mantendo a

cultura de subsistência. Tanto econômicas como afetivas, essas relações traçam

uma idéia de nação formada por características que variam entre diferentes

regiões.

2.3 Regiões Culturais

Se dois sistemas culturais dialogam entre si, uma nação marcada por

migrações deve sempre contar com o diferente, não constituindo um conceito

fixo. É o quadro brasileiro, formado a partir de várias culturas e tradições:

se a construção imaginária de uma identidade implica uma atribuição de sentido, este encadeamento de sentido, no caso brasileiro, seria dado não apenas na articulação espaço e tempo, que resgataria as dimensões da natureza, do meio e da história, mas pela possibilidade de compatibilização da diversidade na unidade. Não-continente, a identidade brasileira seria dada pela capacidade ou não de absorção dos elementos díspares e aparentemente de referência. É preciso afirmar que esta totalidade não é a América Latina, é o Brasil que se visualiza como o conjunto significativo em si próprio, ao mesmo tempo distinto dos hispano-americanos e dos europeus.51

51 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Literatura, história e identidade nacional. Vidya, Santa Maria, v. 19, p. 9-27, jan./jun. 2000. p. 12.

44

Portanto, a nação brasileira resultaria de uma construção do imaginário

coletivo que não pressupõe a integração social. Mesmo no contraponto entre a

identidade e a alteridade, assim como na identificação de um modo de ser

próprio, o outro ora é primeiro mundo, como um horizonte a ser atingido; ora são

os subalternos, presença desagradável para as elites, revelando os problemas

nacionais não-resolvidos. Questões como essas ocupam boa parte da ficção

narrativa desde o século XIX e, principalmente, durante o século XX, quando as

diferenças entre culturas e regiões se tornam mais evidentes.

Questionando se o Brasil realmente produziu uma nação, Sandra Jatahy

Pesavento considera as distinções entre as regiões brasileiras como, por

exemplo, o Nordeste do país e o Rio Grande do Sul, o qual sofre influências, dos

países vizinhos, por causa das áreas fronteiriças, constituindo assim a única zona

brasileira que apresenta um sentimento de pertencimento a uma realidade latino-

americana, porém platina. O estado gaúcho sente-se mais próximo do Rio do

Prata do que do Nordeste, região da qual pode diferir em hábitos, costumes e

linguagem. A identificação com os platinos ocorre por causa da semelhança de

formação histórica, que possibilita a construção de discursos semelhantes,

criando identidades muito próximas, baseadas na civilização pastoril e guerreira,

nas atitudes guerreiras e militares.

Na literatura brasileira, a chamada geração de 1930 é capaz de mostrar a

realidade nacional na sua condição de complexidade e conflito, de uma maneira

muito mais perceptiva do que aquela apresentada pela narrativa histórica. Essa

visão enunciada será aproveitada pelo Estado Novo, que emerge nos anos 30 como

a ditadura verde-amarela, capaz de conduzir o país rumo a um patamar de auto-

suficiência. O nacional-desenvolvimento, enquanto projeto para o país, estabelece

como contraponto da dependência externa a autonomia nacional, a valorização do

natural da terra, da brasilidade. Busca-se justamente a brasilidade e não a

americanidade. O Estado Novo compreende o país como um arquipélago cultural

45

único, original, visto como o maior país da América Latina em pleno avanço na

indústria pesada e que não pode ser confundido com o atraso da América Latina.

Nos anos 50, a vivência dos regimes democráticos do pós-guerra, associada

a projetos de desenvolvimento industrial autônomo, acentuam a singularidade

brasileira, mas aliada a um aprofundamento do sentido social. No contexto do

populismo de massas, a matriz inspiradora da interpretação brasileira, inclusive

literária, revela-se estrangeira enquanto concepção. No entanto, sua análise é

voltada para as contradições da sociedade nacional, procurando compreendê-las.

Em meados da década de 1970, o consumo da literatura latino-americana

se intensifica no Brasil e autores como Borges, Vargas Llosa e Julio Cortázar

começam a ser mais respeitados e lidos no país. Havendo certa correlação entre

as modalidades de pensamento brasileira e latino-americana, o que se percebe no

Brasil contemporâneo é uma não identificação com os outros países da América

Latina, porque o horizonte de nação é dado pelo contorno urbano, e não o rural

brasileiro ou ameríndio. O brasileiro constrói uma visão distinta acerca de nação,

para com a qual a abertura política dos anos 80 vai contribuir, desenvolvendo

essa idéia do urbano. O “Brasil como grande potência” e o “milagre brasileiro” dos

anos 70 cede lugar a uma nação que busca sair da crise através da modernização.

O país começa a ser reconhecido através de suas representações, ou de como as

práticas sociais construídas historicamente são produzidas em termos culturais.

A distinção entre as diferentes regiões brasileiras, no que se refere ao

povo, ao modo de vida, aos aspectos culturais, embasam os trabalhos de Clodomir

Vianna Moog52 e Angel Rama53 sobre a literatura brasileira. Já em 1943, Vianna

Moog defende as diferenças regionais, numa conferência no Rio de Janeiro, a

convite da Casa do Estudante do Brasil, sob o título: Uma interpretação da

52 MOOG, Clodomir Vianna. Uma interpretação da literatura brasileira. Porto Alegre: CORAG, 2006. 53 RAMA, Angel. Literatura e cultura na América Latina. São Paulo: EDUSP, 2001.

46

Literatura Brasileira. O autor propõe um confronto da literatura brasileira com

as literaturas européias, para afirmar que o Brasil não possui em seu acervo uma

unidade homogênea e definida como os países europeus. Por tal razão, deve-se

renunciar ao intento de abrangê-la como um todo e estudá-la a partir de seus

núcleos culturais.

Moog aborda a literatura brasileira como um complexo heterogêneo,

formado por núcleos culturais, constituídos nas diferentes regiões que integram

o território brasileiro. Essas mantêm diferenças importantes na formação

histórica, na organização social, nos usos e costumes. O escritor divide a nação

em sete regiões culturais e as relaciona com suas respectivas produções

literárias. Assim, ele instaura “uma visão essencialmente contrastiva e moderna

para a sua época”.54

O pensador denomina essas divisões das diferentes regiões como

arquipélagos culturais. Por ordem geográfica, a primeira ilha é a Amazônia,

formada pelo Amazonas, pelo Pará, parte de Mato Grosso e por trechos

territoriais de mais de seis países. A grandiosidade também reflete na literatura

e influencia grandemente os escritores, nascidos ou não na região: “A Amazônia

como a Antinéia na lenda da perdida Atlântida, depois de se apossar da

imaginação de um pobre mortal, tê-la-á para sempre presa à sua trágica sedução

e aos seus sortilégios”.55

Quando Viana Moog aborda a literatura nordestina, parte da seca que

aflige os habitantes do sertão e do litoral. As diferentes classes sociais, os

contrastes entre o rico e o pobre, a casa grande e a senzala, também são

elementos propícios que remetem a uma literatura social e de classe, polemística

e panfletária ou condoreira e revolucionária, em seu dizer. Se a literatura do

54 Cf. CHAVES, Flávio Loureiro. In: MOOG, Clodomir Vianna. Uma interpretação da literatura brasileira. Porto Alegre: CORAG, 2006. (Prefácio). p. 5-11. p. 9. 55 Id. Ibid. p. 26.

47

Nordeste se preocupa com o social, a baiana se mostraria como uma literatura de

eruditos e humanistas, ainda conforme as palavras do autor.

Minas seria muito distinta por causa dos quadrantes geográficos, uma

sucessão de montanhas que divide o território, criando regiões isoladas. A

preocupação principal é somente com a própria região e não com o exterior,

oscilando em dois pólos: a inconfidência e a supervalorização da cultura local, que

possibilita obras do século XVIII chegarem até a contemporaneidade podendo

ser consideradas como atuais. Assim se estabelece um núcleo cultural mineiro.

A literatura paulista se manteria fiel à tradição legada pelos bandeirantes,

ao sentido imperial de conquista. Tão logo o paulista se apossa da idéia, quer vê-la

propagada por todo o país. É o que ocorre com Monteiro Lobato quando cria o

símbolo nacional do Jeca Tatu. Além disso, o movimento Modernista ocorrido em

São Paulo se espalha no país. A literatura do Rio Grande do Sul, centrada em suas

coxilhas, mostra que o ser humano comunga com a natureza fazendo dela um

objeto de culto e devoção panteísta.

O complexo de superioridade do gaúcho passa a mudar quando Gilberto

Freire escreve Uma cultura ameaçada, onde mostra o lado do Rio Grande do Sul

composto por imigrantes açorianos, alemães e italianos que, para além das

coxilhas, povoavam os vales dos rios. Aí surgira um novo tipo de civilização,

composta de novas realidades, originando um novo tipo de cultura, por contraste,

mais voltado ao universal do que ao regional: “Só então passou a admitir, com

evidência da transição, as oscilações entre o regional e o universal que

caracterizam a atividade do núcleo cultural riograndense nos dias que correm”.56

Por fim, Moog fala da então capital do Brasil – Rio de Janeiro – que deveria

ser o grupo mais alto e forte, de maior expressão da literatura brasileira. Não é

o que acontece, já que pesa sobre o Rio de Janeiro a situação de viver

56 CHAVES, 2006, p. 47.

48

subordinado a outras províncias e ter, como conseqüência, uma literatura de

costumes. Os escritores cariocas preferem a crônica e o conto. Em lugar de

fazerem a história, sofrem-na e, para sofrê-la com resignação, invocam a ironia.

De acordo com Moog, o que falta ao Rio de Janeiro é o estilo dos outros núcleos:

um estilo imperial, a arrogância, a convicção de sua supremacia. Isso em partes

ocorre pela demasiada vontade de corrigir e muito pouco da vontade de criar.

Esses sete núcleos não são sete chaves apenas da literatura, mas de toda

uma sociogênese. Através deles, os fenômenos sociais se aclaram a si mesmos, os

históricos, como os econômicos, os políticos como os literários. As sete ilhas

culturais são capazes de explicar tanta as lutas de tendência separatista, com as

grandes rivalidades no domínio das letras, tanto a revolução riograndense de

1835, como a paulista de 1932, e ainda o indianismo nascido no Norte com ímpeto

social, como o movimento modernista partido de São Paulo. Assim, os escritores

sempre agem dentro de seus núcleos culturais e, fora deles, correm o risco de

corromper-se: “O homem sem núcleo cultural, como o sem região e o sem pátria,

é uma utopia, quando não é uma indignidade. Ai dos que se deixam moralmente

desenraizar, dos que não trazem em suas vestes a poeira de cultura que não está

somente nos livros que lemos”.57

Descontando-se a ideologia e a marca discursiva da época, a afirmação de

Moog possibilita uma reflexão atualizada, pois ele defende o núcleo cultural em

que cada indivíduo se insere. O escritor destaca o quão importante é frisar os

valores locais e valorizar o contexto regional, no que tangem a seus aspectos

culturais, sociais ou até mesmo naturais. Os lugares então se mostram

importantes no processo de constituição da identidade, tanto individual quanto

coletiva.

57 MOOG, 2006, p. 56.

49

Como Viana Moog, Ángel Rama defende a existência de regiões culturais,

afirmando que a divisão em regiões dentro de qualquer país tem uma tendência

multiplicadora que, em casos, produz a desintegração da unidade nacional. O

mesmo se pode dizer das vastas regiões dentro de um país, passiveis de divisão

em sub-regiões com a mesma tendência desintegradora, como ocorre com

Guimarães Rosa quando traça o perfil de Minas Gerais. Essas regiões podem

abranger, do mesmo modo, diversos países contíguos ou recortar dentro deles

áreas com traços comuns, estabelecendo um mapa cujas fronteiras não se

ajustam às dos países independentes.

Assim constituído, o mapa latino-americano seria mais verdadeiro do que

o oficial. O Rio Grande do Sul, por exemplo, demonstra maiores vínculos com o

Uruguai, ou a região argentina dos pampas, do que com o Nordeste do Brasil. As

semelhanças são neutralizadas pelas normas nacionais que dominam as regiões

internas de cada país, impondo-lhes língua, educação, desenvolvimento econômico

e sistema social. Cada região latino-americana teria diferentes tipos de meio

físico, população variada e composição étnica:

Dentro da estrutura global da sociedade latino-americana, o regionalismo acentuava as particularidades culturais que haviam sido forjadas em áreas ou sociedades internas, contribuindo para definir seu perfil diferencial. Por isso mostrava propensão pela conservação daqueles elementos do passado que haviam contribuído para o processo de singularização cultural, procurando transmiti-los ao futuro como modo de preservar a configuração adquirida. O elemento tradição, incluído como um dos vários traços de toda definição de ‘cultura’, era realçado pelo regionalismo (com evidente esquecimento das modificações que em sua época ele introduzira na herança recebida) tanto no campo dos valores como no das expressões literárias.58

O regionalismo lança-se à incorporação de novas articulações literárias,

buscadas, às vezes, no panorama universal, embora o faça com mais freqüência no

contexto urbano latino-americano mais próximo, evitando a substituição de suas

58 RAMA, 2001, p. 211.

50

bases. Até o momento em que uma mensagem é transmitida com relativa

facilidade aos conglomerados urbanos, é necessário adequá-la às novas condições

estéticas que ali são idealizadas. Isso, porque os centros urbanos não são mais

uma ampliação da imigração interna, que as constitui e leva, às cidades, enormes

contribuições de culturas rurais, as quais respondem aos traços peculiares da

evolução humana, que as absorve e as desintegra, tornando-se obediente aos

modelos estrangeiros.

Opondo-se à fragmentação regional, a pulsão modernizadora conta com

normas unificadoras, por baixo das culturas européias que a conduzem, sobretudo

nos dois últimos séculos correspondentes à vida independente da América Latina.

Rama destaca ainda que, quanto mais isoladas as regiões, maiores são as formas

de aculturação. Uma maior integração à nacionalidade, ao permitir o

desenvolvimento das tendências culturais regionais, levaria a um progresso

harmônico, resguardando as tradições, adaptando-as às novas circunstâncias.

Esse processo, juntamente com o sentimento do exílio, parece ser nitidamente

representado na obra de Urda Alice Klueger e Clodomir Viana Moog.

51

3. DICÇÃO GERMÂNICA NA PROSA SULINA

O mundo é feito de todas as etnias, de todas as gentes,

temos a obrigação de aceitar isso.

URDA ALICE KLUEGER No tempo das tangerinas

3.1 Uma Romancista à Esquerda do Verde Vale

Urda Alice Klueger nasce em 16 de fevereiro de 1952. O sobrenome

alemão é resultado da união, selada na igreja católica, de Minervina de Souza e

Ronald Klueger. O mais interessante é que não compartilham a mesma

descendência e religião, motivos de sobra para despertar preconceito em

Blumenau. O relacionamento dos pais de Urda é problemático, sofre muitas

pressões nos anos 40 do século passado. Essa situação inspira a escritora a

elaborar a história de amor entre Guilherme e Teresinha em seu romance No

tempo das tangerinas. Do casamento, nascem três meninas, sendo Urda a do

meio. Sua infância é muito significativa, sofrendo influências das duas etnias:

italiana, da mãe, e alemã, do pai. O nome incomum é idéia de dona Minervina, em

homenagem a uma amiga, uma mulher bastante avançada para aqueles tempos.

Na infância de Urda, a família administra um restaurante em Balneário

Camboriú. Quando ocorre a volta para Blumenau, as matrículas escolares já estão

encerradas. A solução é a menina estudar com a primeira série repetente no

Grupo Escolar São José, colégio situado no bairro Garcia, sob responsabilidade

das religiosas da Providência de GAP. A única imposição é que a menina precisa

saber ler um pouco e, diante disso, a mãe alfabetiza a filha para que possa

freqüentar os bancos escolares. Urda gosta de imaginar histórias e, quando

52

aprende a ler, seu principal prazer é a literatura, razão pela qual não gosta muito

de brincar em turma. Já naquela época, escreve as mais diversas histórias, que

abordam a imigração alemã, oriundas dos encontros com a avó paterna. Esse

assunto mais tarde origina um romance: Verde vale.

Seu maior sonho quando criança é completar logo 12 anos para se tornar

sócia da Biblioteca Municipal Doutor Fritz Muller e tomar emprestado qualquer

tipo de livro. Muitas de suas aventuras são narradas em crônicas abrigadas, por

exemplo, nos livros Crônicas de Natal e Histórias da minha vó, em que conta

com detalhes os costumes da etnia alemã, rituais natalinos, ou até mesmo as

trapalhadas, como um tombo de bicicleta.

Outras situações também dão motivo a seu trabalho literário posterior,

como escreve Camila Morgana Lourenço em Retrato literário: Urda Alice Klueger

e o fazer literário.59 Até então, os adultos com quem convive – pai, amigos, tios –

são remanescentes do campo, filhos dos colonos, que haviam saído da agricultura

por causa da Segunda Guerra Mundial, mas acabaram não servindo ao exército.

Essa situação é retratada na obra literária No tempo das tangerinas quando a

personagem Guilherme e seus irmãos são obrigados a ficar todos os dias no

quartel. É a história do pai de Urda, Roland Klueger, que não chegou a ir para a

guerra, impedido por problemas comuns.

Urda cresce ouvindo a família falar da guerra e, quando ocorre o golpe

militar de 1964, observa todos os conhecidos incondicionalmente a favor do

governo. Os poucos comunistas de Blumenau são presos e torturados. Portanto, a

politização da garota, com 14 anos, ocorre no momento em que os pais e a irmã

menor se transferem à praia e ela passa a morar como pensionista no colégio das

freiras, onde havia cursado o primário e no qual fica por dois anos, sem notícias

59 LOURENÇO, Camila. Retrato literário: Urda Alice Klueger e o fazer literário. Itajaí: UNIVALI, 2004.

53

do que sucede no país. A mudança ocorre quando sai da pensão e vai morar com

uma prima da mesma idade, porém, mais esclarecida. Em plena ditadura militar, as

primas começam a se questionar sobre o real sentido do comunismo.

O primeiro trabalho informal de Urda consiste em ajudar o pai no

restaurante do litoral. Os primeiros empregos têm curta duração, até que a

trajetória empregatícia vai firmar raízes quando a futura escritora entra na

Agência da Receita Federal de Blumenau no ano de 1973. Também é nesse

período que ela acompanha de perto o movimento hippie, experiência relatada em

Te levanta e voa. Uma das pessoas que contribuem para seu desenvolvimento é a

irmã Maria Adalgisa, sua professora no quarto ano primário, e por ela

considerada como a personalidade mais importante em sua formação pessoal,

sendo mais confidente do que a própria mãe.

Quando adulta, outra pessoa relevante para Urda é seu colega de trabalho,

o fiscal da fazenda Evaristo Paulo Gouveia, grande leitor, um homem cultíssimo,

responsável por apresentar-lhe os clássicos da literatura, como: Thomas Mann,

Dostoievski, Frantz Kafka e Saint-Exupéry: “O que percebo é que, lendo Kafka,

Urda tem sua singeleza ferida para priorizar seu crivo mais racional.

Anteriormente, a escritora parecia rebelar-se exacerbadamente idealista”.60

Outros autores, que a marcam, os existencialistas Simone de Beauvoir e Jean-

Paul Sartre, alimentam-na da euforia da libertação bem como da recusa às

normas convencionais, aos valores consagrados, às estruturas da sociedade e do

Estado.

Depois da experiência de trabalhar com Gouveia na Agência da Receita

Federal, Urda se transfere para o então desejado núcleo dos bancários em 1978,

a Caixa Econômica Federal. Ali, faz muitas amizades e passa a maior parte de

seus dias. Por duas décadas, é um trabalho que a realiza profissionalmente, em

60 LOURENÇO, 2004, p. 87.

54

especial, porque tem o confronto diário com realidades diferentes, que se tornam

fonte de inspiração para escrever um romance:

Os contatos serviam, sobretudo, como base para a criação de muitos personagens dos romances da escritora. Em especial, no livro Cruzeiros do Sul, ‘que é um livro com muitos personagens, são 20 gerações, mais ou menos, de catarinenses, uma sucedendo a outra’ [...] casou-se a linda mulata clara chamada Luizinha com o alemão aventureiro chamado Willy Horn. O próprio Padre Genésio oficiou o casamento [...] ganharam corpo na sede da agência bancária. Saíram da Caixa Econômica, da minha mesa de abertura de cadernetas de poupança’.61

Apesar de atender por escritora, Urda tem se envolvido mais diretamente

com os movimentos políticos da região do que com as manifestações culturais. É

possível constatar isso através de suas participações nos fóruns sociais mundiais,

em greves, ou recentemente nas campanhas em prol dos flagelados da enchente

em Blumenau. Ela milita em defesa de causas nas quais acredita, como é possível

constatar na crônica “Europa brasileira – Abrigos”. Nesse texto, escrito a 23 de

janeiro de 2009, faz severas críticas às doações que vêm de todo país e,

principalmente, ao dinheiro doado aos flagelados da grande enchente, mas que

ninguém mostra onde é investido. Até os 21 anos de idade, é uma pessoa de

direita, mas hoje sente os reflexos da transformação sofrida nos tempos de

economiária: “Eu vou me engajar assim, politicamente pra esquerda, quando eu

sou bancária”.62

Depois de ler e acampar, o passatempo predileto de Urda é conhecer

lugares e culturas diferentes. Sua primeira viagem fora do circuito Camboriú-

Florianópolis é para Foz do Iguaçu, a qual abre o leque a tantas outras que se

seguem depois pelo Brasil, a América Latina, Europa e África. Muitas dessas

experiências são narradas depois em livros e, ao ser questionada sobre o local de

61 LOURENÇO, 2004, p. 62. 62 KLUEGER. In: LOURENÇO, 2004, p. 69.

55

sua preferência, ela afirma: “A Bahia é o melhor lugar do mundo! A Bahia tem

tudo; a arte e as religiões e a magia”.63

Aos 27 anos, a escritora catarinense compõe sua primeira obra romanesca,

depois de mais de um ano escrevendo e pesquisando em livros de história,

arquivos históricos e almanaques. Nasce assim Verde vale, romance histórico

publicado em 1979 pela editora Lunaderlli, de Florianópolis, que trata da

colonização alemã no Vale do Rio Itajaí. A primeira pessoa que o lê é seu amigo

Marcos Konder Reis, e a família só fica sabendo de sua existência depois de

publicado. A jovem escritora não imagina tanta repercussão: “As pessoas liam,

liam, liam, e eu comecei a receber cartas enviadas por leitores e telefonemas; eu

não esperava tudo aquilo”.64

Embora se confunda em Verde vale, ao utilizar o termo “palmiteiro”, como

pé de palmito, enquanto a palavra significa a pessoa que trabalha com palmitos, a

história de desbravadores de Blumenau conduz a escritora ao reconhecimento.

Elogios do público e da crítica fazem com que ela se sinta na obrigação de

escrever outro romance: As brumas dançam sobre o espelho do rio. Esse livro

trabalha ficcionalmente um episódio real, ocorrido no Vale do Rio Itajaí durante

a Guerra do Paraguai, e obtém sucesso, da mesma forma que a primeira de suas

narrativas romanescas.65

No tempo das tangerinas (1983) enfoca também o vale catarinense do rio

Itajaí Açú. Esse romance é criado a partir de um fato histórico - a Segunda

Guerra Mundial - e de um flash da infância: as carroças que passavam pelos pés

de tangerinas. “A carroça deu um solavanco inesperado e ele olhou para a trilha

marcada no meio do pasto e achou que teria que vir ali qualquer hora acertar as

63 KLUEGER. In: LOURENÇO, 2004, p. 96. 64 Id. Ibid. p. 118. 65 JUNKES, Lauro. A literatura de Santa Catarina: síntese informativa. Escritores contemporâneos. Florianópolis: EdUFSC, 1992. p. 84.

56

valetas que as rodas e as chuvas haviam aberto pelo chão”.66 A autora elege como

protagonista Guilherme Sonne, descendente de Humberto Sonne que, em Verde

vale, é um dos primeiros colonos vindos para a região no século XVIII.67

No contexto da Segunda Guerra Mundial, um filho dos Sonne parte às

frentes de batalha da Europa. A nacionalização obrigatória, verificada no

período, responsabiliza-se por mudanças constatadas nas personagens. Segundo

relato da própria escritora,68 a inspiração para escrever sobre o assunto tem

origem na própria família, nas histórias contadas pela avó paterna acerca de seus

antepassados alemães que emigraram para o Brasil no século XIX. Desde a

infância, Urda escuta histórias do próprio pai que, por ficar doente, acabou não

indo à guerra.

Também o amor proibido remete à história dos Klueger, ele de origem

alemã e ela, brasileira. A avó paterna da romancista, Emma Klueger, serve de

fonte à personagem Lucy que, na obra literária, se mostra extremamente

preconceituosa e tenta impedir a todo custo a união de seu filho Guilherme e de

Teresinha, uma brasileira. Entretanto, o amor do casal supera todo preconceito.

Mesmo com raízes germânicas, Urda “admite, de bom grado, somar

particularidades de muitos lados: ‘Eu sou brasileira, uma brasileira com

certeza’”.69

66 KLUEGER, 2003, p. 7. 67 Essas informações sobre as recordações da infância, Klueger fez questão de mostrar pessoalmente numa reunião que a autora deste trabalho teve com ela no dia 09 jan. 2009, em Blumenau. Esse encontro foi muito importante, pois a escritora fez questão de mostrar o atual bairro Garcia que, em sua infância, se compunha de paisagens rurais, onde ela e os primos brincavam. O riacho, a colina, inclusive a pedra em que a personagem Guilherme senta na noite de tempestade para chorar estão lá até hoje, são baseadas no mundo real, entretanto, a paisagem mudou. Onde outrora existiam pastos verdejantes, atualmente apenas se observa ruas asfaltadas, prédios e casas. 68 Cf. LOURENÇO, 2004, p. 44. 69 Id. Ibid. p. 108.

57

É no segundo semestre de 1995 que a escritora recebe convite para

publicar suas crônicas no jornal A Notícia, com periodicidade semanal. Veicula-as

também em Portugal, a fase cronista acaba quando inicia o curso de graduação em

História. Atualmente, Klueger acumula várias participações em antologias, é

membro da Academia Catarinense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico

de Santa Catarina, da Associação de Jornalistas Escritoras do Brasil, da União

Brasileira de Escritores e da Sociedade dos Escritores de Blumenau.

A intelectual é notada como uma das principais referências da prosa

catarinense, não apenas pela quantidade de livros, mas pela qualidade e a

originalidade dos trabalhos. Prova disso, em 1987, recebe o título de melhor

romancista do Estado, pela Associação Profissional de Escritores de Santa

Catarina. Sua especialidade declarada é o romance histórico, a que se dedica de

corpo e espírito, através de intensas pesquisas. Seu último trabalho, Sambaqui, é

fruto duma vasta investigação histórica e, naquela mencionada conversa informal,

ela declara que já realiza estudos para compor seu próximo livro, o qual terá

como ponto de partida a catástrofe ocorrida em Blumenau no ano de 2008.

A literatura de Urda revela um espírito sensível, a visão de uma alma

feminina e lírica marcada pela ternura. Suas narrativas, ainda que enfoquem

situações difíceis, conservam otimismo, sendo muito importantes para o convívio

humano.70 Essa situação é bem retratada em seus romances Verde vale e No

tempo das tangerinas. Depois desses trabalhos que abordam a imigração alemã

em Santa Catarina, a ficcionista inova em sua produção literária e lança, em 1988,

Blumenau, a loira cidade do sul. É um livro turístico, publicado em português,

inglês e alemão, que focaliza a história da cidade catarinense.

Em 1992, a escritora publica Cruzeiros do sul, seu livro mais encorpado

até o momento, constituindo-se por 480 páginas, nas quais não deixa de tratar do

70 Cf. JUNKES, Lauro. O mito e o rito: uma leitura de autores catarinenses. Florianópolis: EdUFSC, 1987. p. 308.

58

preconceito étnico, já abordado em Verde vale. Essse romance histórico de

trabalhosa pesquisa evolui a uma espécie de epopéia, aparentando-se a O tempo

e o vento. No entanto, ao passo que Erico Verissimo aborda a saga colonizadora

no Rio Grande do Sul, Urda procura esmiuçar as mais diversas regiões

catarinenses, sem se deter na etnia alemã, enfocando os diversos tipos de

colonização e raças humanas.71 Além dos romances que tematizam a imigração em

Santa Catarina, Klueger edita vários outros livros, sobre os mais diversos

assuntos, que abarcam desde suas viagens pelo mundo aos povos primitivos que

viveram no litoral brasileiro.72

O presidente da Sociedade Escritores de Blumenau, Tchello d’ Barros,

identifica o perfil engajado da autora nos livros que ela vem produzindo durante

os últimos tempos. Entre condores e lhamas e Lembranças de amar em Cuba

II tornam visíveis sua preocupação social, política, histórica e cultural. Em seus

primeiros romances, Verde vale, As brumas dançam sobre o espelho do rio e

No tempo das tangerinas, a ficcionista não demonstra o mesmo tempero

político-ideológico, no entanto, reconhecido em Cruzeiros do sul. Na obra da

escritora catarinense, existe “uma emotividade sadia, a harmonia nos conflitos e

a simplicidade natural, que são um atrativo popular”.73

A linguagem usada revela-se como ideal para quem quer se comunicar com

grandes massas, necessitando ter essa simplicidade como traço marcante, pois

seu público alvo compõe-se principalmente por estudantes de Ensino Médio, os

71JUNKES, 1992, p.84. 72 Livros publicados: Vem, vamos remar (1986); Te levanta e voa (1988); Recordações de amar em Cuba (1995); A Vitória de Vitória (1998); Entre condores e lhamas (1999); Amada América (2003); O povo das conchas (2004); Histórias de além mar (2005); Viagem ao umbigo do mundo (2006); Encontro com a infância (2005); Sambaqui ( 2008). 73 JUNKES, op. cit., p. 70.

59

quais ainda não têm grande iniciação literária.74 A própria Urda tem conhecimento

de que sua literatura se direciona aos que lêem por entretenimento. A força

narrativa, a construção das personagens, humanas e autênticas, o cuidadoso e

minucioso trabalho de delinear os cenários e personalidades, o engendramento da

trama, consistente e verossímil, fazem dela a romancista catarinense mais

importante do momento.75

Escritora bastante popular, Klueger prende o leitor da primeira à última

página. Independente da jovial mentalidade ou do tema a ser abordado, seus

narradores são daqueles que se posicionam como um avô ou uma avó, os quais

estivessem pessoalmente contando uma história: de maneira coloquial, mas com

vasta emoção e nobres sentimentos. Quando colocam personagens de ascendência

germânica a se enamorarem de criaturas negras ou mulatas, seus livros quebram

tabus relacionados à história da imigração alemã, possibilitando rever antigas

tradições.76

3.2 No Vale dos Sinos, um Cidadão do Mundo

Clodomir Vianna Moog nasce a 28 de outubro de 1906 em São Leopoldo,

filho de pai teuto-brasileiro e mãe luso-brasileira, Marcos Moog e Maria da

Glória Fialho Moog. Ele passa a primeira infância em São Leopoldo, sendo

alfabetizado pela mãe e recebendo educação religiosa da Irmã Agostina, no

74 Cf. HOLFELDT, Antonio. Urda Alice Klueger. In: HOLFELDT, Antonio. A literatura catarinense em busca de identidade: o romance. Porto Alegre. Movimento, 1994. p. 248. 75 Cf. AMORIM, Luis Carlos. Urda e o romance na literatura catarinense. Disponível em: <http://www.riototal.com.br/coojornal/amorim008.htm>. Acesso em: abr. 2009. 76 COSTA, Viegas Fernandes da. A historiadora Urda Alice Klueger. Disponível em: <http://www.viegasdacosta.hpg.ig.com.br/urda/historiadoraurda.htm>. Acesso em: abr. 2009.

60

Colégio São José. Em 1912, inicia o curso primário no Colégio Nossa Senhora da

Conceição e, em 1914, sua mãe falece devido ao nascimento do sexto filho. Nesse

período, Moog é matriculado no Colégio Interno de Canoas, enfrentando

situações dolorosas, narradas mais tarde em suas obras ficcionais. No ano de

1918, então com onze anos, transfere-se a Porto Alegre e ingressa no Ginásio

Julio de Castilhos, onde conclui os estudos preparatórios.

Clodomir torna-se um aluno rebelde e necessita de aulas particulares com

o professor Carlos Cruz, para ser aprovado em matemática. Em 1924, viaja ao Rio

de Janeiro, para tentar o ingresso na Escola Militar do Realengo, mas não é bem

sucedido e se vê obrigado a voltar para o Rio Grande do Sul. Nessa época,

encontra o tio Guilherme, o qual é considerado o homem mais rico de são

Leopoldo, que com a intenção de ajudar o sobrinho se compromete pagar seus

estudos até a formatura. Um ano depois, Moog ingressa na Faculdade de Direito

de Porto Alegre, além de ser nomeado guarda-fiscal interino da Repressão e do

Contrabando na Fronteira, desempenhando tal função em Santa Cruz do Sul e Rio

Grande.

Em 1926, Viana Moog é nomeado fiscal de Imposto de Consumo, em Santa

Cruz do Sul. A 9 de janeiro de 1930, forma-se em Direito, sendo o orador da

turma. No dia 18 de fevereiro, casa-se em São Lepoldo com Frigga Câmara. Dessa

união, nascem Anna Maria, Gilberto e Geraldo. No ano de 1930, ele participa na

campanha política da Aliança Liberal, na Revolução de Outubro e inicia suas

atividades jornalísticas no Jornal da noite. Dois anos depois, participa da

Revolução Constitucionalista, é preso e removido para a Amazônia, até receber

anistia pelo Congresso.

No exílio, o escritor produz Heróis da decadência, trabalho em que

defende a idéia de que em épocas de decadência surgem pessoas notórias, a se

destacarem não pelos atos que normalmente convém aos grandes heróis, mas pela

coragem e a inteligência de analisar com humor essa derrocada. No ensaio Ciclo

61

do ouro negro, o intelectual procede a uma interpretação da realidade

amazônica. Em 1934, retorna a Porto Alegre, onde é nomeado o último agente

fiscal exilado pela Revolução de 1932, e segue para Venâncio Aires, onde

permanece durante um ano.

Em 1936, Viana Moog assume o cargo de diretor do jornal Folha da Tarde,

nele permanecendo alguns meses. Surge Novas Cartas persas, obra editada pela

Livraria do Globo, na qual examina de modo crítico os problemas sociais e

políticos da época. Em 1938, lança pela Globo Eça de Queirós e o século XIX,

considerada a melhor biografia do escritor português até então. No ano de 1939,

publica Um rio imita o Reno, que repercute em todo o país, esgotando a edição

de cinco mil exemplares em apenas três semanas, por abordar o racismo e o

isolacionismo, tornando evidente o choque ideológico entre as nacionalidades

alemã e brasileira. Em Porto Alegre, o romance é convertido em novela

radiofônica, mas a embaixadora alemã exige a apreensão de suas edições,

considerando-o pernicioso e ultrajante.

Esse romance consagra seu autor nacionalmente, com a obtenção do Prêmio

Graça Aranha. Logo após sua publicação, nazistas e pró-nazistas desprezam o

romance, por seu nacionalismo e pela denúncia contra o alemanismo sulino. O

embaixador do Reich ensaia um protesto junto ao governo brasileiro, no sentido

de sustar sua circulação do livro: “Esta foi uma das minhas maiores vitórias na

vida: a de ter colocado Hitler em perigo. Frase típica de seu permanente bom

humor, da sua constante ironia e da sua verve inesgotável”.77 O livro traz novas

temáticas, revitaliza o regionalismo, tratando de política, filosofia e

discriminação racial.

Em sua narrativa, Blumental é uma pequena cidade imaginária, o laboratório

onde se misturam os novos elementos que integram o romance urbano. A seu

77 Cf. MORAES FILHO, Evaristo. In: MOOG, Clodomir Vianna. Bandeirantes e pioneiros. Porto Alegre: Graphia, 1999. p. 323-338 (Posfácio). p. 330.

62

redor, as colônias de imigração germânica, pontos de conflitos culturais e raciais,

fazem com que se identifique tanto com São Leopoldo e Santa Cruz do Sul quanto

com outros municípios de traços semelhantes, em torno ao Rio dos Sinos. O

horizonte de seus habitantes se expande e capitais do mundo, como Paris e

Londres, pesam nos debates políticos e nas conversas do povo local.

A história conta o encontro de Geraldo, um engenheiro descendente de

portugueses e índio, com Lore, moça de origem alemã. A trama resulta num

desenlace infeliz, pois sobre eles pesa o fanatismo dos preconceitos. A paisagem

e os hábitos imitam a Europa, nesse espaço também se movimentam: Frau Marta;

Paulo Wolff; Krentzer, o viajante Rubem; Bem-Turpin, o italiano; Armando

Seixas, fiscal de consumo de Blumental. Numa estrutura subjacente, o autor

apresenta conflitos históricos como o dos Muckers,78 também, a política do

Estado Novo, o nazismo, o fascismo, o comunismo e o regime democrático,

diferenciando-se da maioria de outros romances sul-rio-grandenses, focada nas

regiões de economia pecuária, e marcada pelo linguajar gauchesco.

78 A revolta "Mucker" ocorreu entre 1868/1874 em São Leopoldo, primeira colônia alemã fundada no Rio Grande do Sul, prolongando-se alguns incidentes até 1898. A palavra "mucker era usada como sinônimo de "beato", "fanático" e "santarrão". Assim, os adversários designavam, na época, pejorativamente, os rebeldes. A revolta envolveu imigrantes alemães que se reuniram em torno do curandeiro João Carlos Maurer e de sua mulher Jacobina, inicialmente para obter esclarecimentos e, mais tarde, com fins religiosos: acreditavam-se eleitos por Deus para fundar na Terra uma nove era, e começaram a trabalhar concretamente neste sentido. Perseguidos pelas autoridades locais, foram presos mas libertados por falta de provas condenatórias. Em 1873, registraram-se em São Leopoldo numerosos incidentes, como assassinatos e atentados, sendo os "mucker" considerados seus autores. O clima tornou-se extremamente tenso, com acusações de parte a parte. Em junho de 1874, os adeptos de jacobina promoveram um ataque em massa contra os principais adversários. Foram deslocadas tropas do exército e da Guarda Nacional para a região. Os rebeldes resistiram a três ataques, matando o comandante das tropas legalistas. A 2 de agosto de 1874 a maior parte dos "mucker" foi morta; os restantes foram condenados a penas altas. Os impronunciados mudaram-se para outras colônias onde, anos depois, foram trucidados pela população local. MILLARCH, Aramis. Estado do Paraná, Curitiba, p. 4, 23 fev. 1978. Ver também o livro de: AMADO, Janaína. A revolta dos Mucker. 2. ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.

63

Ao lado da denúncia, o romance de Moog descreve os costumes e a maneira

de viver e fazer política naquela zona sulina de imigração germânica. Somando-se

a Canaã, de Graça Aranha ou, indiretamente, a Marco zero, de Oswald de

Andrade, e A fazenda, de Luís Martins, é uma das poucas obras literárias que,

naquela época, tomam a imigração como tema: “Assim mesmo Augusto Mayer, seu

conterrâneo, em crítica ao livro, admite-o somente como ‘tímida exceção’ da

empobrecida expressão literária do regionalismo gaúcho, que poderia ser rico e

numeroso na ficção contemporânea”.79

Um rio imita o Reno obtém sucesso imediato. A primeira edição, de cinco

mil exemplares, é de setembro de 1939 e, já em novembro, aparece a segunda

edição, com mais cinco mil exemplares, tiragens excepcionais para aquele tempo.

A vasta cultura do autor é comprovada a todo instante, através de referências

geográficas, históricas e literárias, num texto dominado com a maior

naturalidade, não lhe sendo estranha a facilidade descritiva de paisagens, coisas

e pessoas.

Num estilo agradável, fluente, sem qualquer rebuscamento, Moog fala do

nazismo em ascensão, denunciando também a intolerância vivida no Brasil,

particularmente, no meio familiar cuja filha se apaixona por um engenheiro

amazonense, que chega a cidade para supervisionar a construção de uma

hidráulica. O conflito é inevitável, mas seu final resulta irônico, pois a família

Wolff descobre ter ascendência judaica, o que torna as personagens mais

conscientes, mas não a ponto de mudar perante a sociedade. O orgulho não lhes

permite tomar atitudes de tamanho porte.80

79 MORAES FILHO, 1999, p. 330. 80SCLIAR, Moacyr. Um intérprete do Brasil. Disponível em: <http://academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?from_info_index=11&infoid=4837&sid=554>. Acesso em: jun. 2009.

64

Viana Moog passa a colaborar no diário La Prensa, além de proferir

conferências em Montevidéu e São Paulo. No ano de 1942, torna-se membro do

Segundo Congresso Constituinte, mas desiste para ingressar no quadro de

agentes fiscais do Distrito Federal. Nesse mesmo ano, profere no Itamarati, a

convite da Casa do Estudante, a conferência Uma interpretação da literatura

brasileira, publicada em inglês, alemão e espanhol. Convidado pela Fundação

Guggenheim, fica oito meses nos Estados Unidos, onde escreve artigos para o

New York Herald e algumas revistas. Em 1943 Um rio imita o Reno é traduzido

para o espanhol e publicado em Buenos Aires.

Eleito membro da Academia Brasileira de Letras no dia 20 de setembro de

1945, o escritor ocupa a cadeira número 4, anteriormente utilizada por Alcides

Maya, e publica seu discurso: Mensagem de uma geração. No ano de 1946, parte

a Nova York, para trabalhar na Delegacia do Tesouro Brasileiro, onde dá início a

uma biografia de Lincoln. Em 1950, é nomeado representante do Brasil junto à

Comissão de Questões Sociais das Nações Unidas. Dois anos mais tarde, o

Conselho Interamericano Cultural elege-o para representar o Brasil na Comissão

de Ação Cultural da Organização dos Estados Americanos, localizada no México.

Em 1954, o ilustre gaúcho publica Bandeirantes e pioneiros. Traduzido

para o francês, inglês e espanhol, esse importante estudo sociológico-histórico

tenta compreender os povos brasileiro e norte-americano, bem como analisar as

diferenças no desenvolvimento de seus países. Em 1959, o diplomata viaja a Porto

Rico, como chefe da Delegação do Brasil, para a terceira Reunião do Conselho

Interamericano Cultural. A 22 de julho, recebe da França a Condecoração Palmas

Acadêmicas e publica Uma jangada para Ulisses, romance com várias

personagens situadas no meio diplomático. Países e embaixadas aí mencionados

servem de contraponto para exaltar o Rio Grande do Sul, entre tantas idas e

vindas no espaço e no tempo, as quais se entretecem a diversos acontecimentos

pessoais e políticos.

65

Em 1961, Viana Moog é nomeado para a Comissão Social das Nações Unidas.

Um ano depois, publica sua última obra ficcional, Tóia, em que narra a história de

amor dum diplomata por uma mestiça mexicana, analisando a história do México,

para explicar a tristeza do povo desse país.81 Fato importante acontece em 1963,

quando se transfere a Genebra, ao ser eleito pela Comissão de Ação Cultural da

OEA para integrar o Conselho Superior do Instituto Internacional da Pesquisa

para o Desenvolvimento Social. Nessa época publica Bandeirantes e pioneiros.

Devido a suas participações na Comissão Social das Nações Unidas, no ano de

1965, edita ONU e os Grandes problemas sociais do nosso tempo.

Em 1966, a editora Delta reúne suas obras completas em dez volumes,

permitindo a revisão dos vários caminhos seguidos pelo romancista, ensaísta e

biógrafo que, dois anos mais tarde, lança Em busca de Lincoln, biografia cuja

escrita começara no intervalo de 1946 a 1950. Em 1969, o escritor renuncia ao

mandato na Comissão da OEA, aposentando-se no cargo de fiscal do Imposto de

Consumo. No dia 28 de outubro de 1976, é homenageado pelo Jornal Correio do

povo, pelos 70 anos, sendo-lhe dedicado o Caderno de sábado. Um ano depois, no

dia 16 de novembro, toma posse no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.

Em 1985, o “cidadão do mundo” recebe a Comenda da Ordem do Ponche

Verde no grau de Grande Oficial, integrando as comemorações do

Sesquicentenário da Revolução Farroupilha. Na biblioteca do Sport Club

Internacional, em Porto Alegre, ele inaugura a Estante Vianna Moog, homenagem

prestada ao ex-atleta juvenil da agremiação fuebolística. O escritor e diplomata

Vianna Moog falece a 15 de janeiro de 1988, no Rio de Janeiro, com 81 anos. A

dimensão e o valor de sua obra podem ser atestados por meio das constantes

reedições de seus trabalhos nas décadas seguintes.

81 Cf. MORAES FILHO, 1999, p. 336.

66

Na análise que segue, privilegia-se a imigração germânica no Brasil,

conforme representada em No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno.

Ambos tematizam a situação dos imigrantes alemães durante anos 30 e 40 do

século passado, nos estados sulinos de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Os

assuntos que giram em torno ao tema principal são os mesmos nos dois romances:

o sentimento do exílio, a saudade da pátria, a idéia de nação, entretanto, seus

desfechos se revelam bastante distintos, especialmente, quanto à integração dos

germânicos à cultura brasileira e à convivência com outras etnias.

67

4. IMIGRANTES ALEMÃES NA FICÇÃO BRASILEIRA

O que faz com que os homens formem um povo é a lembrança das grandes coisas que fizeram juntos e a vontade de realizar outras.

ERNEST RENAN

4.1 No Tempo das Tangerinas

O romance No tempo das tangerinas apresenta as personagens principais

exiladas no Brasil de forma voluntária, que tecem uma série de considerações a

respeito da nação e do nacionalismo aguçado. Entretanto, por parte de algumas

personagens, como a matriarca da família, a idéia de nação é totalmente voltada à

Alemanha, o que estabelece diálogos e indagações sobre a pátria distante,

principalmente, no contexto da Segunda Guerra Mundial. Essas perguntas

expressam um painel dos dois países, a abundância que os imigrantes desfrutam

no Brasil, a pobreza e a guerra enfrentadas em solo alemão.

Além disso, percebe-se como as famílias alemãs que vivem no Brasil na

época do conflito são por ele afetadas. Assim, a família Sonne tem um filho

convocado para guerra, contra a Alemanha. As vidas individuais, os costumes da

época, ou seja, dos anos 40 do século passado, com toda sua atmosfera social,

política, econômica e cultural, através de situações de conflito e, diferentes

posições ideológicas, são contempladas pela narrativa em estudo.

Desse modo, o tempo da história narrada relaciona-se a um outro tempo,

real, histórico. Não fica clara a temporalidade exata coberta pela história

narrada, mas é possível perceber seu princípio através de menções à perseguição

aos judeus na Alemanha, desencadeada na década de 1940. O narrador

68

reconstrói esse período ficcionalmente, por meio das famílias que vivem no Brasil,

mas ligadas à Alemanha, por laços afetivos e de sangue. Muitos membros da

família Sonne partem às frentes de batalha, movendo-se no cenário da ditadura

de Hitler e do Holocausto. Essas referências ao tempo real constituem um pano

de fundo para as ações relatadas na obra literária, permitindo que o leitor

acompanhe não apenas a vida familiar das personagens, mas as situe numa época

determinada.

O romance se desenvolve de maneira linear, sendo que a família não passa

por grandes conflitos. Seus membros são unidos e trabalhadores, prósperos e

bem estruturados, deixando evidente o sucesso de sua migração para o Brasil. O

êxito se observa na descrição da casa e inclusive da energia elétrica da qual

dispõem, além de um rádio, artefato de luxo nos anos de 1940:

Era uma sala grande e aconchegante. Havia um grande tapete persa cobrindo todo o chão Rebilhante de tão encerado... duas ricas iluminaduras com letras góticas, uma com bons votos aos visitantes, e a outra contendo uma oração de agradecimento a Deus..., mas, indubitavelmente, a peça mais importante, mais luxuosa de todas era o rádio. Colocado sobre um móvel especialmente feito para ele, o grande rádio era orgulho de filhos de Humberto Sonne e de toda a sua família. Com aquele rádio eles podiam saber de tudo que acontecia no mundo.82

Através do rádio, a família e os vizinhos se reúnem para ouvir notícias da

guerra, as quais refletem muito em quase todos os habitantes do Vale do Rio

Itajaí, cuja maioria é composta de imigrantes alemães. Para eles, principalmente

para Lucy, mãe de Guilherme, pátria quer dizer Alemanha. Essa personagem é a

que mais sofre, pois enquanto o marido e os filhos nascem no Brasil, ela nasce na

Alemanha e sente na pele os dissabores da guerra, sobretudo, as conseqüências da

derrota alemã na primeira Guerra Mundial, como a miséria e a fome.

Lucy e a irmã sobrevivem, pois são resgatadas por um tio e trazidas ao Sul

do Brasil. Talvez por causa de seu sofrimento pela pátria. Ela defende a Alemanha

82 KLUEGER, 2003, p. 14.

69

com todas as forças e, até mesmo, o ditador nazista, salientando inúmeras vezes

que: “era um homem assim que estava faltando para a Alemanha, em 1918 - ela não

escondia a admiração pelas idéias arrojadas de Adolph Hitler”.83 À luz da teoria de

Renan, o sentimento nacionalista se fundamenta a partir da alma, constituindo-se

de um princípio que se estrutura através de vários fatores oriundos de um

passado de esforços, sacrifícios e devoções. Para os alemães que emigraram ao

Brasil, o passado volta-se à Alemanha, a seus ancestrais, sua cultura, suas

tradições. Blumenau, no Vale do Rio Itajaí, pode servir de exemplo, já que passou a

imitar a arquitetura alemã, manteve língua, cultura e hábitos germânicos, até

mesmo, consentindo matrimônios apenas entre alemães.

Renan afirma que uma nação se constitui através de um rico legado de

lembranças que pertencem ao campo imaterial da mentalidade. Nesse caso, a

personagem Lucy, sob hipótese nenhuma aceita outra cultura e, para ela, o Brasil é

apenas um lugar para viver, mas o coração continua alemão.84. O exagero da

matriarca frente às tradições provoca acaloradas discussões em família, pois o

sogro e o marido defendem e entendem o Brasil como sua pátria e nação,. Seu

esposo, Julius Humberto, deixa os filhos escutarem rádio quando as transmissões

são dadas em português; os filhos menores freqüentam a escola e o processo

ensino-aprendizagem se fundamenta na língua portuguesa. Julius acredita que,

escutando os sons desse idioma, todos os integrantes da família podem se

familiarizar, porque os lugares que freqüentam e na casa onde moram só se fala o

alemão. Inclusive, é freqüente o pai pedir que os filhos lhe ensinem o pouco do

português que sabem.

Julius sabe que, se o Brasil entrar na Guerra, eles terão problemas por

causa da língua alemã, como já havia vivenciado antes:

83 KLUEGER, 2003, p 01. 84 RENAN, 1997, p 34.

70

Eu me lembro bem do que aconteceu na última guerra. Eu era garoto ainda e a nossa escola foi fechada só porque não ensinava português. O alemão foi proibido, as pessoas evitavam falar qualquer coisa, a não ser que fosse em casa, com medo de serem presas. Você vai ver o que acontecerá se a guerra que você tanto espera vier: vão proibir o alemão de novo.85

O pai sempre deixa evidente que a família deles é a terceira geração de

brasileiros, mas a mãe pensa que seus filhos têm puro sangue alemão e isso é o que

importa para ela. Lucy sente-se como uma exilada no Brasil, necessita manter a

cultura alemã a todo custo. O sentimento nacionalista, de amor à pátria, é

realizado em devoção à Alemanha, sua família, suas raízes são daquele chão. Por

outro lado, Julius defende que seus filhos são brasileiros e que essa é sua pátria.

Ele inclusive faz premonições para o futuro, salientando que, se a guerra persistir,

ocorrerá uma nacionalização obrigatória, a qual se fará responsável pela mudança

de costumes dos alemães e, principalmente, da língua. O medo de perder a

tradição cultural se agrava quando os efeitos da guerra atingem os habitantes do

Vale do Rio Itajaí.

No conturbado período abordado por Klueger, há uma grande preocupação

das personagens que habitam a região representada com a língua. Existe uma

preocupação geral em falar o português, porque militares de outras regiões do

país instalam-se no Vale do Itajaí com ordens de promover a nacionalização e

evitar que o povo demonstre simpatia pela Alemanha. Também a polícia tem as

mesmas ordens, há instruções do governo Federal ordenando a nacionalização. Se

o Brasil esteve contra a Alemanha na outra guerra, ninguém sabe como será dessa

vez:

Os militares que vinham do Norte não aceitavam a tradicional hospitalidade daquele povo pacífico. Não faziam amizades, não se interessavam em namorar as moças loiras da cidade, o que teria sido natural, sendo eles recém chegados e na sua grande maioria, solteiros, mas

85 KLUEGER, 2003, p. 16.

71

o que encheu de alívio inúmeros pais: misturar o sangue com aqueles estrangeiros e escuros homens não agradava nenhum alemão.86

As personagens que moram na região temem esses homens, que se

aproximam de qualquer grupo que estiver conversando para ouvir o que falam, e

quem ousa desrespeitar as normas sofre sérias conseqüências. Os soldados vão às

escolas fiscalizar se os alunos estão aprendendo português. Eles agem como

senhores da terra e despertam o ódio nos habitantes de Blumenau. De tudo, o

mais constrangedor são as piadas para com os alemães que se esforçam para falar

o português com seu sotaque carregado.

Nessa época de conflitos, Guilherme entrega produtos do sítio na cidade;

leite e seus derivados, além de legumes e frutas. A nacionalização forçada

também o atinge, pois ele é obrigado a usar todos os seus conhecimentos da língua

portuguesa dos quais dispõe para atender seus fregueses em locais públicos.

Quando completa dezoito anos e serve ao exército, sofre muito com as

brincadeiras dos outros soldados por causa do sotaque. Torna-se motivo de

zombaria, assim como grande parte dos rapazes que não falam fluentemente a

língua portuguesa.

O fato de os alemães serem proibidos de falar sua língua natal demonstra

que as personagens vão perdendo uma parte da cultura germânica, uma vez que a

língua é um dos meios de caracterização da imagem nacional. Assim, a

nacionalização obrigatória deixa marcas profundas nas personagens germânicas

que povoam o romance de Klueger, comprovando as reflexões de Edward Said,87 o

qual afirma que o exílio é um extravio de algo deixado no passado para sempre.

Desse modo, o personagem Julius preocupa-se em preservar suas origens, mas

86 KLUEGER, 2003, p. 32. 87 SAID, 2003, p. 46.

72

sabe a importância de valorizar a pátria que os abriga, buscando integrar as duas

culturas, quando demonstra interesse em aprender a língua portuguesa.

Contudo, na região representada, de colonização alemã, a maioria das

personagens não altera a idéia que tem da Alemanha como nação-mãe. Mesmo que

sejam descendentes dos alemães vindos para o Brasil no século XIX, e nascidos no

Brasil, vários personagens se esforçam por manter os costumes e as tradições

culturais germânicos. Elas não aceitam outra cultura, formando comunidades nas

quais a única língua falada é a alemã, e a religião, evangélica protestante. O Brasil

representa a terra para sobreviver, mas o coração está na antiga pátria. Contudo,

a partir da nacionalização obrigatória, os teutos não se dão conta da realidade e,

aos poucos, se integram à nova cultura, tornando-se brasileiros de forma

involuntária. Também os poucos casamentos que ocorrem entre diferentes etnias,

provocam integração, representados no romance através do enlace de Guilherme e

Teresinha.

O imigrante é obrigado a se adaptar ao novo espaço, ocasionando uma

troca cultural por meio da qual os imigrantes e seus descendentes desenvolvem

formas variadas de integração, alterando a própria idéia de nação no país em que

se inserem. No tempo das tangerinas, mesmo estabelecido no Brasil, o

imigrante tem essa terra como pátria, mas sua memória se volta à terra-natal. Há

uma defasagem entre o país real e o das lembranças. Outra manifestação da

busca do reforço de referências nacionais, por parte de seres afastados de seu

país, diz respeito às receitas de cozinha e outros elementos culinários.

A comida é descrita como abundante, farta e variada: “Naquele domingo, a

mãe assara dois gordos marrecos recheados com farofa e miúdos moídos. Havia

um pastelão de galinha, arroz branco, purê de batatas com bastante manteiga

derretida escorrendo de cima, couve flor em vinagre, beterrabas com açúcar

branco”. Ou ainda: “Guilherme trouxe para fora dois tabuleiros de cuca de farofa

73

e dois de cuca de banana, e voltou para buscar as tortas de queijo e a massa de

bolo”.88

A culinária, segundo abordada no romance em análise, faz vir à tona

aspectos significativos da terra natal: “A referência à cozinha (às lembranças de

sabores e odores e os mistérios, dessas ‘artes de fazer’) não poderia ser gratuita

em textos de migrantes, pois além de fazer parte do patrimônio cultural de um

povo, a cozinha constitui um lugar privilegiado de misturas, de reciclagens, de

transformações em aberto que remetem ao devir dos próprios imigrantes”.89

Adquirir ou produzir alimentos e receitas típicas consiste numa maneira de

os imigrantes compensarem a saudade da pátria mãe, ou até de reforçarem os

vínculos com seu país de origem. Além desses valores, é no plano lingüístico que

se manifestam as principais dificuldades dos teutos: “A experiência do entre-

dois os impulsiona a explorar os recursos da atividade tradutória que, segundo

muitos teóricos, supõe a criação de uma terceira língua, marcada por negociações

plurais capazes de resolver impasses e impossibilidades”.90 Nota-se assim, que há

uma grande preocupação para com a língua alemã, como visto, principalmente, por

parte da personagem Lucy. Ela somente se dispõe a aprender o português devido

a questões da política brasileira, demonstrando que o domínio da língua é

imprescindível à manutenção da consciência nacional, como afirma Anderson.

Ainda com relação às diferenças entre Brasil e Alemanha, a rotina da

família Sonne é muito abalada com a Segunda Guerra Mundial, pois com ela vem a

notícia da perseguição aos judeus, através de uma carta de Kurt Durrel,

solicitando abrigo para a filha. Esse é descendente direto da família, filho dum

88 KLUEGER, 2003, p. 21 e 34. 89 PORTO, Maria Bernadette. Negociações identitárias e estratégias de sobrevivência em textos de migrações nas Américas. In: BERND, Zilá (Org.). Americanidade e transferências culturais. Porto Alegre: Movimento, 2003. p. 47-63. p. 59. 90 Id. Ibid. p. 60.

74

francês com uma herdeira do pioneiro Humberto, a qual fora pianista famosa na

Europa. A grande preocupação de Kurt é quanto a sua ascendência judia, por isso

envia ao Brasil sua única filha, Cristina.

A chegada da prima torna-se motivo de orgulho, porém desperta

curiosidade, pois como ela vem da Europa, tem um jeito bem diferente de ser,

principalmente manifesto através do vestuário. Numa época em que poucas

mulheres ousam vestir calças compridas, Cristina as utiliza para cavalgar. A roupa

de banho que usa no ribeirão em nada se assemelha à que usaria uma moça da

região, de boa índole. Demonstra ainda, ser uma mulher objetiva, prática, ao

chegar da Alemanha com jóias e dinheiro para adquirir terras no Brasil, o que,

para ela, seria o método mais seguro de investir dinheiro. Além disso, naturaliza-

se brasileira, em processo que considera natural.

Ao contrário de Lucy, que ignora o português, Cristina solicita aos primos

que lhe ensinem tudo o que sabem dessa língua. Entretanto, a grande preocupação

dela é com o pai, o qual fica na Europa e corre o risco de ter sua origem

descoberta. Num dia de apreensão, chega a desabafar: “Por que ninguém tem a

coragem de matar um animal como Hitler? O mundo tornar-se-ia melhor”.91 O

desabafo é motivo de admiração para a família, principalmente para a mãe, para

quem Hitler representa um ídolo. Ela considera Cristina louca por cogitar tal

absurdo, seu patriotismo é tão grande que não existiria Alemanha sem o führer.

Sua glória é imensa quando a Alemanha invade a Noruega, a Holanda, a Bélgica e

também Luxemburgo, países neutros.

Lucy sempre encontra argumentos para defender sua terra, o que se torna

motivo de grandes discussões em família, pois o pai e o avô são contra a guerra:

- Ah opa, a Alemanha precisa de espaço vital. O senhor não ouviu o discurso do Fürer no rádio.

91 KLUEGER, 2003, p. 21.

75

-Ah Lucy, não há espaço vital que justifique a invasão de países que não queriam a guerra.

Opa, o que eu acho é que vocês homens deveriam estar do lado da sua pátria e fazer parte do partido nazista.

Lucy, você parece se esquecer que a nossa pátria é esta aqui- o pai rebatia .

A terra pode ser esta, mas o sangue de todos vocês é alemão! Vocês não podem negar o sangue que tem! Aqui é muito bom e tudo, mas vocês são alemães.

Ora Lucy, se nós não fossemos brasileiros, Humberto- Gustav não estaria servindo o exército!

-Que sirva já que é dever dele por haver nascido aqui. Mas você não vai querer negar que seu filho é tão alemão quanto qualquer soldado dos que estão agora na Holanda ou na Bélgica.92

Essas discussões mexem com a opinião dos filhos. Humberto-Gustav,

soldado brasileiro diariamente doutrinado no quartel, sempre apóia o argumento

dos homens da família e aconselha a mãe a mudar. Guilherme não opina, não tem

idéia formada sobre qual lado defender, entretanto, conforme vai avançando sua

idade, e observando o mundo a sua volta, os argumentos do pai e do avô parecem-

lhe mais convincentes. A cada nova informação, sua opinião vai se formando,

principalmente no que se refere às invasões alemãs e à perseguição aos judeus.

Outro fato decisivo para Guilherme é saber de seu avô, porque a família não

se relaciona com os Westarb, seus parentes próximos. Descobre que sua mãe é

responsável pela proibição, a qual, aos poucos, faz com que toda a família passe a

ignorar esses parentes, já que, sob hipótese nenhuma, ela admite que seus filhos

“de puro sangue alemão” se relacionem com “negros”. Apenas o avô continua se

relacionando na clandestinidade com os parentes: “Guilherme sentiu um nó na

garganta, uma coisa na sua vida, como se a mãe lhe tivesse roubado um direito

92 KLUEGER, 2003, p. 45-46.

76

inalienável: o de ser plenamente ele, o de participar plenamente da realidade de

sua família”.93

Conforme o rapaz amadurece, essas questões lhe perturbam, contudo, o

fator determinante que lhe dá coragem para enfrentar sua mãe é apaixonar-se

por uma moça muito bonita e trabalhadora, porém não adequada aos quesitos da

família, principalmente, da matriarca, por ser brasileira católica e de outra etnia.

Lucy tem seu orgulho ferido por causa da paixão do filho:

- Já lhe disse por que. Cabocla, católica, outro sangue, outro tipo de gente. Se você começa a sair com ela, acaba namorando, acaba casando-se, e aí, então? Não, nem quero pensar! Um filho meu misturando-se com uma brasileira! Não, Guilherme, pode esquecer! Ela não serve para você. Você precisa de alguém de sua raça, da sua gente! Acha que seria feliz ao lado de uma mulher desse tipo? Não, não e não!94

Nota-se novamente, nessa fala de Lucy, a preocupação com os laços

sanguíneos. É inadmissível, para ela, ver o filho relacionar-se com alguém de outra

“raça”. A preocupação com a Alemanha e seus costumes, os quais parecem

inquestionáveis até aquele momento, são justamente ignorados por alguém de seu

sangue. Sob os xingamentos da mãe, pela primeira vez, um membro da família ousa

retrucar-lhe, inclusive, abandonando a mesa, verdadeiro ato de rebelião na casa.

Com o desespero de Lucy, o pai e o avô mostram-se conscientes de sua situação no

Brasil, tentam confortá-la, alegando que todos eles são brasileiros e que esses

encontros podem acontecer, na verdade, o que vale é o amor entre o casal e não

apenas os traços sanguíneos.

Enquanto tais episódios ocorrem, a Segunda Guerra Mundial também avança.

Todas as noites, escuta-se rádio na casa da família Soenne e a notícia do avanço

alemão contenta a todos. O pai e o avô são contra a guerra, mas já que ela ocorre

93 Id. Ibid. p. 53. O preconceito também foi abordado por Klueger em seu romance anterior, Verde vale, comprovando que a obra literária em análise é uma continuação daquele livro. 94 KLUEGER, 2003, p. 87.

77

e a velha Alemanha faz um avanço meteórico no grande território, regozijam-se

com a boa sorte do povo do qual provêm. Nessa época, uma surpresa para toda

família á a gravidez de Lucy, contudo, seu fanatismo pelo líder alemão é tão

grande que anuncia para toda a família: se nascer um menino, ela o chamará de

Adolph, em homenagem a Hitler.

No mesmo ano, os Estados Unidos declaram guerra ao Japão e a seus

aliados, Itália e Alemanha. Os estadunidenses na guerra e o frio na Rússia deixam

Lucy apreensiva, mas ela não demonstra a menor dúvida sobre a vitória alemã. Em

28 de janeiro de 1942, o Brasil rompe relações com o Eixo. A Alemanha passa da

condição de uma ameaça para a de inimiga. O exército que está na Rússia vai de

mal a pior. A grande preocupação da família Sonne é para com o pai de Cristina,

Kurt Durrel, que ainda está no país em guerra e, por sua parcela de sangue judeu,

pode sofrer perseguições. A posição brasileira perturba a matriarca:

Não está certo isso de o Brasil se colocar contra nós!- Opinava ela. – O Brasil, que tanto recebeu da nossa gente, olhem, olhem só esta cidade, o progresso desta região! Se não fossem os alemães, isto aqui ainda seria puro mato, estaria cheio de bugres. Viemos, domamos a terra, a região se tornou rica, e agora o Brasil nos declara inimigos! Inimigos uma ova! Tem é que agradecer por tudo o trabalho do nosso povo!95

Nesse questionamento, observa-se a visão que Lucy tem do Brasil,

principalmente, da região em que vive, responsabilizando apenas os alemães pelo

progresso e pela pujança da terra. Fica visível a opinião do avô, sempre definido

como “sábio”: “Tem outra coisa, Lucy. Tirando você e Cristina, ninguém mais nesta

casa é alemão. Todos nós outros já nascemos no Brasil, somos filhos desta terra. –

Opa, mas o sangue de todos vocês é alemão! Não importa onde tenham nascido,

somos todos alemães”.96 Com esses conselhos, o avô tenta convencer a nora a ser

95 KLUEGER, 2003, p. 111. 96 KLUEGER, loc. cit.

78

mais discreta, a nunca usar argumentos desse tipo com pessoas estranhas, já que

podem trazer grandes complicações.

À época, procura-se nacionalizar o Vale do Itajaí com maior rapidez. As

escolas são vigiadas para conferir se realmente estão ensinando a língua

portuguesa. As pessoas nunca estão à vontade fora de casa, temendo que, quando

abordadas por algum policial, não saibam expressar-se adequadamente no

português. Inclusive, há uma mudança nos costumes dos Sonne: seu hábito

rotineiro de ouvir emissoras alemãs de rádio é interrompido, pois, em caso de

flagrante, poderão ter o aparelho confiscado e problemas maiores.

Nota-se também uma atitude corajosa de Terezinha, a namorada de

Guilherme. Quando Lucy dá à luz seu décimo filho “brasileiro”, aquela enche-se de

coragem e visita a sogra no hospital, leva-lhe flores, mostra-se muito corajosa,

provando que também pode ser uma pessoa de bom caráter e amar Guilherme. Ela

surpreende quando afirma que seu pai também não aprova muito a idéia da mistura

de raças e não gosta do namorado alemão: “De novo Terezinha criou coragem.

Olhou para a sogra e disse: - é exatamente o que meu pai diz – que pena que seu

namorado é alemão”.97 Jamais passara pela cabeça da matriarca da família Sonne

que os alemães pudessem ser alvo de preconceito no Brasil.

O medo na região torna-se eminente: “A 15 de fevereiro, ainda em pleno

verão, o primeiro navio brasileiro havia sido afundado por torpedos alemães. E daí

por diante, um atrás do outro, os navios brasileiros estavam sendo atingidos e

afundados por submarinos alemães, criando no país uma total revolta a tudo que

fosse germânico”.98 Nesse período, os alemães do Vale do Rio Itajaí ainda

demonstram dificuldades com a língua portuguesa, priorizam a cultura alemã,

ouvem constantemente notícias de seus ancestrais por emissoras radiofônicas,

97 KLUEGER, 1983, p. 117. 98Id. Ibid. p. 119.

79

porém, já estão suficientemente nacionalizados para saberem que, se a nação

brasileira entrar na guerra, eles com certeza apoiarão o país que os acolheu.

Contudo, sempre existem exceções e, na região também há simpatizantes do

partido nazista, os quais não passam de um grupo de idealistas obcecados pelo

brilho dourado que vem do grande führer. Essa minoria desperta preocupações no

governo federal e provoca atitudes drásticas, medidas restritivas para a

população em geral. Com isso, bons e maus, culpados e inocentes, são tratados do

mesmo modo.

A situação atinge diretamente os Sonne: “Na casa onde Lucy defendia

verbalmente a Alemanha idolatrada, mas onde também nada ela falou contra o

Brasil que um dia a recebera, apesar do desgosto de ver os dois países como

inimigos, pois bem, até na casa que não representava nenhuma ameaça para a

segurança nacional, até lá as repressões anti-nazistas chegaram”.99 Não existe

nada que possa incriminá-los por adesão ou simpatia ao nazismo: na parede, há

apenas desenhos e panos brancos que representam cenas da vida rural e

doméstica, nos quais se registram ditados ingênuos e singelos, de motivação para o

dia-a-dia, como “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Costume de famílias alemãs,

essas frases nunca poderiam prejudicar a integridade brasileira, mas colocam a

família, pela primeira vez, frente a frente com a polícia.

Os panos são queimados e considerados como propaganda nazista. Enquanto

os guardas agem, Lucy não consegue reagir e muito menos falar, pois a língua

portuguesa lhe é totalmente estranha. Contudo, a partir desse episódio Lucy, de

tão radical e preconceituosa, passa a se interessar pela língua portuguesa, talvez

por medo. Além disso, a situação fica cada vez mais complicada para os alemães do

Vale do Rio Itajaí porque, em 18 de agosto de 1942, cinco navios brasileiros são

99 KLUEGER, 2003, p 120.

80

afundados em águas nacionais, ocasionando a morte de 600 pessoas, e causando

revolta em todo o país.

O Brasil declara guerra ao Eixo, situação que castiga e angustia os

habitantes da colônia, devido às expectativas de os soldados irem ou não para a

guerra. A circunstância ocasiona grande mudança em Lucy que, pelo medo de ver

um filho morto ou infeliz na guerra, chega a aceitar o namoro de Guilherme e

Terezinha, permitindo ao filho viajar com a namorada para conhecer os pais dela.

O rapaz também sente na pele a diferença dos costumes, tanto na forma de

comemorar o Natal quanto na religião: “Na igreja, permaneceu de pé, enquanto as

outras pessoas se ajoelhavam, o que lhe valeu uma conversa com o sogro, no dia

seguinte”.100 É possível constatar que o preconceito é recíproco: o pai de Terezinha

revela-se tão, ou até mais, preconceituoso do que Lucy: “Eu não gostaria de ver

minha filha casando-se numa igreja qualquer muito menos mudando de religião”.101

Em seu romance No tempo das tangerinas, Klueger expõe dois tipos

diferenciados de vida, em seus mínimos detalhes, desde a culinária ao jeito de

cuidar da lavoura, da casa, dos animais. Entretanto, ao demonstrar um sentimento

considerado tipicamente brasileiro, Guilherme responsabiliza-se por aproximar as

culturas: “Apesar de estar se sentindo bem, queria voltar, abraçar a sua terra e a

sua gente que morava no seu coração desde que se lembrava”.102 As objeções do

futuro sogro à religião e às tradições do rapaz fazem com que esse fique

apreensivo quanto à aliança de culturas tão diferentes.

À medida que a história avança, a situação dos alemães piora, por causa da

nacionalização forçada. Como Guilherme está servindo ao exército, sua irmã Ema é

quem distribui o leite da propriedade rural aos clientes na cidade. Pega em

flagrante ao falar alemão com uma freguesa, algo expressamente proibido, ela é

100 KLUEGER, 2003, p. 127. 101 KLUEGER, loc. cit. 102 KLUEGER, op. cit., p. 128.

81

presa sob acusação de conspiradora. A família não mede esforços para libertá-la,

tentando provar que se trata de uma boa cidadã brasileira. Um dos argumentos

mais convincentes reside no fato de os irmãos servirem às Forças Armadas

brasileiras.

A prisão da filha modifica ainda mais as convicções nacionalistas da

matriarca: “Novamente Lucy Sonne sentiu-se amedrontada e, talvez pensando na

sua própria segurança, ou mais provavelmente, na segurança dos filhos, capitulou e

passou a querer aprender o português. Guilherme achava assaz estranho ver a mãe

entremeando palavras portuguesas no seu alemão clássico, com jeito indiferente

de quem não se sentia humilhada”.103

Começam a ocorrer grandes mudanças nessa personagem, conforme o

andamento da Guerra que, antes vista por ela como uma glória para sua antiga

pátria, agora é responsável por várias transformações. Assim, ela permite

inclusive que seu filho Guilherme case com Teresinha, a moça brasileira que tanto

havia rejeitado. Entretanto, não deixa de alertá-la: “Estou depositando toda a

minha confiança em você, Teresinha. Você sabe que não sou a favor dessa mistura

de raças. Se você quer mesmo casar-se com meu filho, eu a intimo a fazê-lo feliz.

Não quero depois que ele se arrependa”.104

Lucy inclusive recebe os pais da Teresinha para organizar o casamento,

porém, ela e o pai da noiva não chegam a um consenso em matéria de religião. Por

fim, cada um tem que ceder um pouco e entendem que todas as “raças” têm

personalidade e pensamento próprios: “No decorrer daqueles dias, os dois

contendores acabaram passando a se respeitar. Lucy Sonne sentiu que o

‘brasileiro’ podia ter tanta opinião quanto ela; seu Adolfo concluiu que a ‘alemoa’

103 KLUEGER, 2003, p. 132. 104 Id. Ibid. p. 140.

82

era feita do mesmo material que ele. Acabaram despedindo-se com sorrisos e

efusivos apertos de mão”.105

Com a aprovação das famílias, ainda há um outro fator que pode estragar o

casamento: a guerra. O exército brasileiro deixa os soldados na expectativa de

participarem das batalhas: “Guilherme era um soldado brasileiro e não iria

desmerecer a farda que usava e nem a confiança na pátria”.106 O mesmo ocorre

com Kurt Durrel na Alemanha, que decide alistar-se em favor da nação. Contudo,

sua origem judia é descoberta e, provavelmente, seu destino seja um campo de

concentração, mas consegue fugir para a Suíça.

A guerra traz grandes surpresas à família Sonne. O maior abalo, para Julius

e Lucy, é ver seu filho Humberto e seu genro partirem às frentes de batalha, além

de tudo, para lutarem contra a Alemanha. Entretanto, as dificuldades fazem

nascer uma nova Lucy, que nem se importa muito com a mistura de sangue. Quando

Guilherme lhe dá a notícia de que será pai, apenas se limita a fazer um breve

comentário e, ao saber de que o filho é convocado pelo exército, compartilha a

mesma dor com a nora: “Os meus dois filhos! - chorava a mãe, pela primeira vez

abraçando Teresinha. – A gente os cria, minha filha, dá-lhes todo o amor que tem,

para depois vê-los ir embora assim para a guerra! Oh! Meu Deus, os meus dois

filhos!”.107

Para Lucy, não importa mais se a Alemanha vai perder ou ganhar. O

sentimento materno vence o patriotismo. Ela se esquece do ferrenho orgulho

nacional, pois os filhos lhe importam mais. O sofrimento por ter um filho na guerra

se agrava a partir do momento em que o outro também espera para lutar na

Europa. As raras cartas escritas por Humberto-Gustav, seu primogênito, custam a

chegar e, quando as lê, não tem a mínima certeza de que o rapaz possa estar vivo.

105 Id. Ibid. p. 143. 106 KLUEGER, 2003, p. 122. 107 Id. Ibid. p. 147.

83

Em 1945, fica nítida a derrota das nações do Eixo e, assim, da Alemanha. Mesmo

preocupada com os filhos, a matriarca sabe que, ao perder mais uma batalha, os

alemães acabarão derrotados: “Lucy Sonne tapava os ouvidos com as mãos ao ouvir

as notícias. Mesmo com o coração sangrando pelo filho e pelo genro que estavam

na luta, ela sentia que ele sangrava um pouco mais ao saber que sua terra estava

prestes a, mais uma vez, sofrer a humilhação da derrota”.108

Klueger encerra seu romance associando o fim da guerra ao nascimento da

filha de Guilherme e Teresinha, ocorrido em maio de 1945, mesmo período em que

Berlin é tomada e Hitler comete o suicídio. Marcando um despertar, um renascer,

a criança gerada da miscigenação de etnias diferentes provoca a mudança final em

Lucy. Agora, ela dá valor à nação que a acolheu e onde tem condições de viver

tranqüila, evitando falar da guerra. “Nunca esqueceria a terrível angústia provinda

do medo de perder os filhos. A Alemanha passara a ser coisa do passado, ela

agradeceria a Deus por estar no Brasil e ter todos os filhos à sua volta”.109

No final do romance, Lucy apresenta-se como uma mulher informada, capaz

de aceitar as diferenças, algo que, no passado, era fora de cogitação. O processo

de integração à realidade no exílio demora a ocorrer, realizando-se,

principalmente, devido à guerra, que modifica sua maneira de pensar. Aceitando,

por fim, o Brasil como nação adotiva, ela passa a entender que os laço afetivos

com sua família brasileira são mais fortes do que qualquer sentimento relacionado

a sua antiga pátria.

Por fim, a conversa de Guilherme e Herman, já no ano de 1969, procede a

uma retrospectiva de toda a história narrada no romance. Nesse capítulo final, é

possível conhecer o desfecho de cada personagem, sobretudo, de Guilherme,

Teresinha e seus dois filhos. O pequeno diálogo entre os primos não deixa de

108 KLUEGER, 2003, p. 149. 109 Id. Ibid. p. 153.

84

mostrar o contexto da década de 60, recorrendo ao vestuário: “Vive dizendo que

é falta de vergonha Marina andar com essas calças compridas que as mulheres

estão usando agora... É a moda deles deixe que eles se divirtam. Eu também não

gostei quando os meus dois resolveram não mais cortar os cabelos”.110

Guilherme relembra, juntamente com Herman, todos os acontecimentos

tristes que suas famílias viveram durante a Segunda Guerra Mundial. No meio do

assunto que vêm travando, eles são surpreendidos: “Trazia a camisa da escola, o

rosto e os braços cheios de emblemas e frases feitas a guache e a caneta – Filho

– perguntou Guilherme. -Que fantasia é esta? - Ah pai, nós fizemos uma

manifestação contra a guerra do Vietnã na saída da escola. A tinta foi para

impressionar mais”.111

A partir da fala do menino, Guilherme conclui que os conflitos sempre

renascem em algum lugar do mundo. Enquanto pensa nisso, a personagem dirige

sua camionete pela rua, que agora é asfaltada, e onde quase não há mais pastos

para olhar. Sente então um cheiro característico de sua infância, algo conhecido,

familiar, trazendo saudades: “A guerra nunca acabava, mas o tempo das

tangerinas voltava sempre”.112 A fruta que simboliza sua infância, e cujo odor

indica estar pronta para ser degustada, relaciona-se à maturação das idéias de

Lucy. Apoiando o movimento hippie, ela se torna aberta às mudanças enfrentada

pela sociedade ocidental no Pós-Guerra.

Do início ao fim do romance em estudo, transcorrem mais de trinta anos.

Muda a paisagem ao redor de Blumenau, as ruas são asfaltadas, as pessoas

modificam seus pontos de vista, guerras terminam e outras recomeçam. No meio

de mudanças tão rápidas, a fragrância do fruto cítrico desperta o passado, às

110 KLUEGER, 2003, p. 156. 111 Id. Ibid. p. 160. 112 KLUEGER, loc. cit.

85

vezes, bastante amargo. Apesar das tristezas sentidas pelos personagens, a

esperança renasce, simbolizada por um cheiro que retorna a cada estação.

4.2 Um rio imita o Reno

Assim como No tempo das tangerinas, o romance Um rio imita o Reno

aborda o contexto histórico dos anos 30 e 40 do século passado. Essa obra

literária se desenrola na cidade ficcional denominada Blumental, que se localiza

no Vale do Rio dos Sinos, Rio Grande do Sul. A maioria dos personagens do

romance é de origem germânica, visivelmente influenciada pelo contexto europeu,

principalmente, a família de Lore Wolff. A vinculação dos fatos históricos à

narrativa literária confere um cunho de verossimilhança aos personagens e aos

eventos narrados. As referências ao tempo histórico constituem pano de fundo

para as ações narradas, permitindo que o leitor se situe em uma época

determinada.

Abordando personagens alemães ou teutobrasileiros, o narrador tenta

retratar suas apreensões durante a II Guerra Mundial, que tem por cenário a

antiga pátria, com a qual eles mantêm laços afetivos. Entretanto, o romance

detém-se na vida de Geraldo Torres, um engenheiro oriundo do Norte do país que

se desloca à colônia germânica, mostrando os conflitos por ele vividos, desde a

ascendência indígena, do trabalho do pai como produtor de borracha, à própria

questão de exilado, numa terra com costumes tão diferentes dos seus. Mesmo

tão distinta da terra-natal, Blumental lhe inspira saudade e reflexões: ele

compara o rio que corta a cidade aos da Amazônia; as figueiras locais, às sequóias

de lá; as crianças nas portas lembram os indiozinhos parados nas barrancas

amazonenses: “Geraldo vê agora o pai em pleno seringal. Ao seu lado uma mulher

86

bronzeada, de olhos brandos, cabelos corridos, um belo exemplar de índia

descendente dos nhengaíbas”.113.

Inúmeras vezes, a descrição é tão bem feita, abarcando a geografia, as

lendas, os costumes, que dá idéia de o autor da obra literária em estudo ser

nativo dessa região. Vianna Moog, na verdade, morou por algum tempo na

Amazônia, onde teve contato com os costumes da região e de seu povo. Isso

transparece no ensaio Uma interpretação da literatura brasileira, no qual

divide o país em sete núcleos culturais, dentre eles, o núcleo amazonense e sulino.

Vivendo na região sulina, mas pertencendo à amazonense, e sendo

descendente de indígenas, Geraldo se esforça para, ao menos, entender os

teutos. Ele se dedica a ler diversos autores alemães, entretanto, sente-se

perdido naquele mundo que parece uma Europa incrustada no Brasil. Seu único

objetivo passa a ser o trabalho, porém apaixona-se por Lore Wolff, filha de uma

tradicional família alemã:

Nas veias de Frau Martha não corria sangue nobre, mas ela tinha orgulho de sua raça. Orgulho de descender de alemães, de haver casado com um filho de alemão. Ela mesma se considerava alemã. A raça nada tinha a ver com o lugar do nascimento. Não, não havia de tolerar a ameaça de um intruso na família, um negro. Para Frau Martha quem não tivesse sangue ariano puro estava irremediavelmente condenado: era negro. Lore havia de casar com um filho de alemão, se possível com um alemão... mesmo que não fosse possível casar a filha com um alemão, tinha de ser com um filho de alemão, como ela.114

A proibição vinha perturbando Geraldo: “No ponto que as coisas tinham

chegado, só lhe restava uma coisa: reagir. Aquele namoro vinha tirar-lhe a paz de

espírito de que precisava. E um vago pressentimento lhe dizia que aquilo não ia

terminar bem”.115 O personagem atribui as insatisfações à superstição e, embora

tente ignorá-la, as conveniências lhe instigam a acreditar: “Não, aquilo não

113 MOOG, 1957, p. 93. 114 Id. Ibid. p. 112. 115 Id. Ibid. p. 55.

87

acontecera por mero acaso, advertia ele. Era o resultado da combinação do

maldito número 13 com a sexta-feira do dia da chegada. Uma combinação que não

falhava nunca. Inexorável: tardava às vezes, mas não falhava”.116 O contato entre

as duas culturas, indígena e germânica, começa a se manifestar na descrição da

fisionomia dos personagens: “Seus olhos de tapuio se encontravam com os da

feiticeira branca”.

Conformado, pacífico, o amazonense não encontra forças para lutar pelo

amor ou para defender sua terra ou seu povo, quando os alemães de Blumental

defendem a independência do Rio Grande do Sul e demais estados do Sul, pois

acreditam que sua região precisa sustentar as outras. A partir dessa discussão, o

amazonense empolga-se e começa a discorrer sobre fatores positivos do Norte

do país, argumentando que muitas questões governamentais, independentes do

povo, são as responsáveis pela situação de sua terra. Contudo, percebe-se total

descaso daqueles que estão a sua volta, no momento, preocupados em exaltar o

Sul.

O promotor valoriza a “mistura de raças” verificada no Sul do país que, por

ser composta de açorianos, charruas, bandeirantes, alemães e italianos, tornaria

impossível estabelecer comparações com a “mestiçagem do norte”.117 A questão

mexe com o orgulho de Geraldo que, para não comprometer seu emprego, deixa

insultarem sua terra e sua gente, mas lhe dói a lembrança de que o pai integra a

“sub-raça” à qual os blumentalenses se referem de forma preconceituosa. Para

ele, a imagem do velho será a de um batalhador, que fugiu da seca no Ceará e

conseguiu vencer no Amazonas.

Os teutos consideram-se o povo mais trabalhador do Brasil; dizem que,

graças a eles, chegou o progresso. Ao mesmo tempo, o “velho Cordeiro jurara

116 MOOG, 1957, p. 68. 117 Id. Ibid. p. 74.

88

ódio aos alemães. O velho Treptuw jurara ódio aos brasileiros. Eram todos

solidários com sua gente... Karl Wolff defendia os Muckers, defendia Hitler,

defenderia com bravura os seus dolicéfalos loiros de olhos azuis, contra tudo

contra todos”.118 Geraldo acredita que, defendendo suas raízes como podem,

todos mais fortes do que ele, pois não briga, não discute por questão nenhuma,

não pode odiar em nome dos outros: “Era o sangue dos nhengaíbas que lhe corria

nas veias como sua mãe, não distinguia entre brancos, judeus, sírios, pretos e

caboclos. Aceitava ou repelia instintivamente a cada um individualmente, mas não

sabia compreender um ódio universal contra o povo”.119

Enfrentando todas essas situações, o personagem tenta entender os

habitantes de Blumental. Para tanto, lê vários estudiosos alemães, sobretudo, o

filósofo Friedrich Nietzsche:

Geraldo reconstituía o raciocínio de Nietzsche. Era necessário ser germano, fazer parte da raça para deduzir a respeito de todos os valores e não valores in historicis... Alemão é um argumento [...] a Alemanha acima de tudo, um princípio; os germânicos são a ordem moral na história, os depositários da liberdade [...] os restauradores da moral, do imperativo categórico.120

As reflexões sobre a cultura germânica no Sul do Brasil vêm à tona

durante um kerb. A partir do comportamento das pessoas, o protagonista tira

várias conclusões, relacionando-as à necessidade de ter um führer, capaz de

conduzir o povo para o bem ou para o mal, e ao fenômeno messianista dos

Muckers. A realidade da colônia sulina formaria um microcosmo representativo

da cultura alemã como um todo. Assim, o patriotismo do povo de Blumental volta-

se para a Alemanha; seu orgulho é sentir-se responsável pelo progresso da

região.

118 MOOG, 1957, p. 92. 119 Id. Ibid. p. 98. 120 Id. Ibid. p. 157.

89

Tal sentimento é confrontado através da visão do Velho Cordeiro que, no

meio do discurso do deputado Eumolpo Peçanha, faz uso da palavra e aborda a

urgente campanha de nacionalização da colônia alemã no Rio Grande do Sul,

afirmando ser preciso acabar com os incensos a outra raça que não a brasileira:

Saibamos dizer aos descendentes de raça germânica- continua o velho Cordeiro- que fazem das lendas do Reno o motivo exclusivo de seus devaneios; aos de origem italiana, polonesa ou lusa, que só estremecem de civismo com as epopéias de seus antepassados, saibamos dizer aos representantes de todas as correntes humanas a quem o Brasil deu agasalho, que é preciso de uma vez por todas, varrer essa errônea concepção da pátria, para se firmar para sempre no Brasil a unidade nacional, pela identidade de tradições, pela unidade da língua, de cultura e de educação, coisas todas do mundo moral, asseguradoras da paz dentro da nação[...] Num só peito não cabem duas pátrias. O Brasil é bastante grande e glorioso para reclamar só para si o amor de todos seus filhos[...] legítimos e adotivos. 121

Cordeiro tem como ponto culminante de suas palavras a exaltação das

grandezas do Brasil, a necessidade de os alemães se assumirem como brasileiros,

de terem amor à pátria que os acolhe. Depois que ele discursa, forma-se um

pequeno tumulto, poucos o aplaudem. Muitas pessoas se retiram antes de

concluir. Eumolpo Peçanha inicia sua fala em alemão. Os teutos vibram de alegria,

pois se sentem honrados quando alguém que não é de origem alemã os saúda em

sua língua. Pensando no apoio das tradicionais famílias do lugar, o deputado

defende sua superioridade frente ao restante do país: “Ele entoava um novo hino

ao povo alemão, à disciplina da colônia, à ordem, ao seu espírito cívico. O Rio

Grande devia o seu progresso à colonização germânica. Por isso, o povo de

Blumental faz jus à gratidão imperecível de todos os brasileiros”.122

Por um lado, existem aqueles que almejam mudanças em Blumental,

revelando preocupações com a pátria que os abriga; por outro lado, a grande

maioria se nega a aderir e vê Blumental a cidade como uma continuação da

121 MOOG, 1957, p. 89. 122 Id. Ibid. p. 167.

90

Alemanha. Tudo segue criteriosamente os costumes e a ideologia alemã, inclusive,

realizam-se desfiles e homenagens a Adolph Hitller. As casas são construídas em

estilo germânico; a igreja, em estilo gótico. O rio é, por diversas vezes,

comparado ao Reno:

Tinha a impressão de que não fizera uma viagem de sete horas de trem; de que em sua vida se dera uma brusca parada, cujo remate era súbito despertar. Parecia-lhe que tinha cruzado os oceanos e estava longe da pátria... Onde estaria? Percorreu novamente os pontos que sua retina acabara de visualizar. Na praça, ranchos loiros de moças passavam aos pares; no quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés universitários bebiam descansadamente a seu chope. Pareciam sentir-se ali tão à vontade, como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munique. Geraldo então atentou ainda mais para o quadro, retesando a atenção. Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas, tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco. Sentia saudades do Brasil.123

Em seus interiores, as casas também seguem os padrões germânicos. Além

dos panos de parede, com mensagens pintadas ou bordadas de boa sorte e

prosperidade, a decoração inspira-se no cotidiano da Alemanha: “O espelho do

guarda-chapéu resplandecia. Tudo limpo, escariolado. Não se notava ali o mais

longínquo sinal de poeira. Um cheiro característico de sândalo, que muitas vezes

Geraldo sentira nas casas alemãs, impregna o ambiente”.124 Ainda em relação à

cultura germânica, percebe-se o gosto pela música, quando da visita do violinista

Raul Machado à cidade: “Sua excursão a Blumental, como tinham previsto, não

seria perdida. Não o haviam enganado, ao afirmarem que ali encontraria um povo

de invulgar cultura musical”.125

A bebida apreciada em Blumental é o chope, segundo se observa no kerb:

“Trink, trink, Brüderlein, trink, Lass doch die Sorgen zu Haus. A melodia anima a

123 MOOG, 1957, p. 28. 124 Id. Ibid. p. 60. 125 Id. Ibid. p. 57.

91

festa e leva todos ao delírio. Convida a irmandade que bebesse. Deixasse em casa

cuidados e preocupações.”126 No tradicional festejo popular, a comida é descrita

como abundante e em grande variedade, relacionando-se às afirmações de

Porto127 sobre a culinária como herança cultural. Sendo uma parte do patrimônio

dos teutobrasileiros, os pratos típicos possibilitam ao imigrante ter contato com

suas origens; sabores e os odores os transportam afetivamente à terra-natal.

Logo após as sopas, servidas como entrada, pratos fartos e muito gordurosos

causam estranheza a Geraldo e seus amigos: “Foi servido o jantar. Grandes

travessas de galinha ao molho pardo, de salada de batatas com salsichas, de

repolho azedo, de arroz, de bife acebolado, tudo muito engraxado, flutuando na

banha. Depois os pratos de pepinos em conserva, de ovos em vinagre a de salada

de beterraba”.128

No romance Um rio imita o Reno, é possível notar outros aspectos

culturais relacionados aos costumes alemães, como o tiro ao alvo, os desfiles e as

quermesses. Inclusive, o bolão se converte numa das primeiras divergências

entre Geraldo e os teutos de Blumental, já que esses preferem tal jogo a assistir

ao concerto de Raul Machado, unicamente, devido ao fato de o pianista ser

brasileiro. Ainda, a predominância da religião evangélica protestante no mundo

representado faz com que a professora Alzira enfrente grande resistência a seu

trabalho. Contratada para lecionar no interior de Blumental, ela ensina o

português às crianças, dando motivo suficiente para que o pastor incentive os

colonos a colocarem seus filhos na escola municipal, onde se ensina o alemão:

Movia-lhe forte oposição, porque ela se recusara conceder-lhe as horas da manhã para o ensino da religião. Em verdade, não queria ensinar religião; a religião era a penas um pretexto para suas propagandas anti-

126 MOOG, 1957, p. 148. 127 PORTO, 2003, p. 56. 128 MOOG, op. cit., p. 153.

92

nacionalistas. Como sabia que os meninos tinham de ajudar os pais na roça, à tarde, queria a força que ela lhe concedesse a manhã.129

O rigor é tanto que até os cultos são realizados na língua alemã. O pastor

é capaz de se negar a celebrar um matrimônio em língua portuguesa. Entretanto,

alguns personagens demonstram certa consciência nacional em relação ao Brasil,

pois questionam acerca de sua possível brasilidade, pois vivem e nasceram no

Brasil. Especulam também se o germanismo não seria oriundo dos interesses

econômicos da própria Alemanha: “No dia em que a colônia se nacionalizar por

completo, eles não poderão mais vender os seus jornais e fazer propaganda

política, por conta da Alemanha - volveu Hans Fischer”.130

A narrativa do romance então se encontra com a narrativa histórica

sobre o mesmo tema. Nesse caso, defende Cunha131 que, a partir de 1840 o

governo alemão incentivou a imigração com o propósito principal de criar colônias

dependentes do país, as quais lhe possibilitam um mercado consumidor no futuro,

já que não disponibilizavam de outras colônias, como Espanha e Portugal. Os

universos romanesco e histórico se tornam paralelos em outro momento da obra

literária, mostrando coincidências entre a Alemanha e a colônia, através dos

aliados em grande escala que os nazistas encontram em Blumental.

No entanto, o doutor Stahl consegue a aprovação do nome de Geraldo para

sócio do Clube Ginástica, ainda que esse não seja de origem alemã, e convence os

demais sócios a não filiar a entidade ao Reich, alertando-lhes sobre o perigo que

isso poderia representar: “Já tinha percebido o que se passava. Tudo obedecia

aos planos da Verband Deutscher Vereine im Ausland, de Berlim, com o fim de

introduzir nas colônias alemãs o espírito nacional-socialista, por meio de escolas,

129 MOOG, 1957 p. 150. 130 MOOG, loc. cit. 131 CUNHA, 2000.

93

sociedades e igrejas, sob a direta orientação do Reich. Intercâmbio cultural,

remessa de instrutores de ginástica, era só para uso externo”.132

Diferenciando-se da maioria dos habitantes da cidade, doutor Stalh

admira o trabalho de Geraldo na Hidráulica e seu posicionamento enquanto

cidadão, centrado, inteligente, discreto, inclusive, cogita o nome dele para a

política local. Outros habitantes do lugar fazem de tudo para afastá-lo da

cidade, como é o caso da família Wolf, que influencia o prefeito a demitir o

engenheiro sem nenhum motivo justo e não se preocupa com a mortalidade que

volta a tomar conta do local, por causa da água contaminada. O amazonense

sente-se magoado e parte ao Rio de Janeiro, sem despedir-se de Lore:

Estranho destino o seu, pensou tristemente. Do Amazonas, onde todos o queriam, ele fugira. De Blumental, onde queria ficar, tinha sido expulso. Mas aquela terra misteriosa, de iaras e botos, de assombrações e mistério, ficara dentro dele, às vezes como um sonho doce, outras como um pesadelo terrível. Que recordações lhe deixaria Blumental.133

O personagem já se sentia um exilado em sua terra-natal, inserindo-se na

situação classificada por Campos e Oliveira134 como exílio interior. Dessa condição

que o submete ao isolamento, ao desajuste em relação à maioria, mas sem que

ocorra um deslocamento geográfico, passa a viver outra situação de exílio, que

muda sua forma de ver a realidade. Repetindo-se a situação em Blumental, o

personagem vê-se obrigado a deixar a cidade e, assim, o desejo de constituir

família, de fixar residência em algum lugar do mundo. A construção da hidráulica

então é interrompida, muitas pessoas adoecem e morrem durante o verão.

Lore também adoece, num período extremamente conturbado para sua

família, surpreendida por um telegrama de Otto que, vivendo na Alemanha,

informa aos Wolf de sua chegada ao Brasil, em poucos dias. Os primos acreditam

132 MOOG, 1957, p. 178. 133 Id. Ibid. p. 205. 134 CAMPOS; OLIVEIRA, 2008.

94

que ele faz parte do Partido Nacional-Socialista e venha representá-lo no Brasil.

Imaginam receber em casa um homem forte, destemido, não aquele sujeito

homem de fala branda que está na frente deles: “Frau Martha ficou a contemplar

o primo. Estava decepcionada. Achava-o taciturno e sem aprumo marcial.

Esperava um rapagão de postura rígida, ar esportivo e ceio daquela alegria de aço

que tem a mocidade da nova Alemanha. Ali, entretanto estava um homem

prematuramente envelhecido, de olhos medrosos e ar arredio”.135

Frau Martha acha que o primo esconde algum segredo. De fato, ele

surpreende a todos quando afirma não pertencer ao partido de Hitler. A família

se decepciona, pois espera um emissário do führer e se depara com um inimigo do

regime que, interrogado, revela a verdadeira situação na qual a Alemanha se

encontra, ocultada pelos jornais censurados pelos nazistas, que circulam em

Blumental: “Vive-se num regime de apertos... tantos gramas de manteiga e de

carne por semana... Tudo rações medidas... É horrível”.136

Frau Martha e Karl enchem-se de ódio, não entendem o que Otto quer

dizer, descrevendo o ídolo deles dessa maneira. Desconfiam até que Otto seja

um traidor, expulso do Partido Nacional-Socialista. O primo, entretanto, mantém

a calma, tenta justificar sua posição:

“Os maiores pensadores da Alemanha estão exilados. Os nazistas ainda toleram Goethe, mas um dia ainda vão acabar descobrindo que ele era judeu... Frau Martha fuzilou sobre ele um olhar feroz: Goethe era ariano. Otto encolheu os ombros. Depois que descobriram que nós temos sangue judeu, não duvido de mais nada”.137

Os primos ficam estarrecidos frente à novidade, pois sempre acreditaram

que pertenciam à “raça” ariana. Otto revela todo seu sofrimento na Alemanha,

desde o preconceito até as precárias situações que o forçaram a abandonar o

135 MOOG, 1957, p. 218. 136 Id. Ibid. p. 219-220. 137 Id. Ibid. p. 222.

95

país. A descoberta atinge a todos, embora Frau Martha seja aquela que mais

sofre, já que costumava expressar seu ódio pelos judeus. Ao se descobrir casada

com um descendente desse povo, e que seus filhos carregam o sangue hebraico,

as intermináveis discussões com o doutor Stahl, sobre questões étnicas, acabam

perdendo valor.

Durante toda a sua vida, Frau Martha arquitetou planos para casar os

filhos com alemães, sentia-se orgulhosa de si mesma, por ter desposado um

alemão, e uma espécie de pena duas colegas do Catharinenschule que não tiveram

a mesma sorte sua, de se casar com um homem rico e deutsch. Uma das amigas

casou com um pastor; outra, com um modesto professor de canto. Há mais outra,

em quem evita pensar, por ter se unido com alguém que ela considerava inferior:

o escriturário da prefeitura, católico e brasileiro. Poderia até tolerar um

casamento entre protestante e católico, mas de alemã com negro, seria uma

afronta.

Esses pensamentos tomavam conta de sua rotina, principalmente, desde

quando ela descobriu o envolvimento da filha com Geraldo, ao qual tinha por

negro:

Uns pobres diabos. Uns pobretões. Nunca passaram de funcionários públicos e medíocres empregados de balcão, de operários turbulentos de péssima educação. Então havia de entregar a sua filha para um deles? Para aquele engenheiro bronzeado que ninguém sabia de onde vinha? Decerto havia de ser um aventureiro. Mandar um homem daqueles construir a hidráulica! Boa coisa sairia dali! E ainda por cima o diabo do mestiço tomava banho no rio. Ah daquela água é que ela não ia beber. Da água que ele se banhava. Viria cheia de sífilis.138

É assim que ela se referia a pessoas de outra “raça”, como doentes e sem

valor, principalmente, a Geraldo, por ter se apaixonado por sua filha Lore, a qual

se animou a enfrentar a mãe. Essa atribui tal atitude à educação dada à filha num

colégio católico, “contaminado” por meninas de outras “raças”. O preconceito de

138 MOOG, 1957, p. 113.

96

Frau Martha e seu marido não poupava nem as crianças: “Agora mesmo encontrei

aí na calçada o Paulinho brincando com os mulatinhos do Cardoso... Estava tão

alegre e não me parecia repugnado. Pelo contrário; nunca o vi tão contente.

Imaginem que nem quis vir comigo. – Vá já buscar o Paulchen, já, já, - Ordenou

Karl à mulher”.139

Dessa maneira, Um rio imita o Reno enfoca o exílio não apenas como o

afastamento da terra natal, mas também como a não adaptação, a discriminação,

a sensação de se sentir diferente das pessoas com as quais se convive, de não

pertencer a determinado espaço ou grupo social. Essa situação fica evidente no

caso da família Wolf e de outras famílias tradicionais, as quais se condicionam à

cultura alemã e só parecem modificar suas concepções ao final do romance.

Geraldo difere da visão de mundo de seu pai; sem o sentimento de

pertencer ao Norte do país, tampouco se encaixa na cultura da colônia sulina. Não

sendo branco nem alemão, deixa de se enquadrar no perfil esperado de um bom

cidadão dessa Blumental que deseja ser uma continuação da Alemanha no Brasil:

Voltar...- ruminou ele. Sim, a gente sempre acaba voltando. E o mais trágico é que não encontra o mundo sonhado nas horas da saudade. Lembrava-se dolorosamente de sua volta para a casa dos pais. Logo depois de formado. Estava enfadado do Rio, daquela vida artificial e inutilmente agitada... Ele precisava voltar à terra, tomar conta dos negócios do pai. Foi... Lembrava-se com uma precisão impressionante das emoções que sentira ao rever homens e coisas dos seus tempos de menino. E com que fúria se atirara ao trabalho. Tudo para verificar ao cabo de algum tempo que ele já não compreendia aquela terra, não se entendia com aquela gente - um desenraizado.140

Assim como Geraldo se vê sem lugar definido com o qual se identificar, a

família Wolff descobre sua ascendência judia e se sente perdida: “Frau Martha

ergueu os olhos para a filha. Mas seus olhos não exprimiam nada, estavam vazios,

tão vazios, que Lore teve medo. Sentiu necessidade de falar, de perguntar

139 MOOG, 1957, p. 131. 140 Id. Ibid. p. 203.

97

alguma coisa, de ver se a mãe estava viva, se a razão não havia desertado daquele

cérebro”.141 Depois das revelações de Otto, Frau Martha vai se modificando,

chega até a permitir algo inadmissível no passado: que seu neto brinque com as

crianças da rua, com os “negros, sujos, doentes e sem pátria”, como os

classificava: “Era como se cada palavra pronunciada correspondesse a um

dilaceramento interior. – Deixa que ele se crie de acordo com os seus instintos...

com a sua natureza”.142

Frau Martha, decidida e orgulhosa de sua origem, que acreditou uma vida

inteira na superioridade da raça alemã, parece modificar-se. No entanto, ela não

muda quanto ao orgulho e à preocupação com o entorno social, pois não deixa

ninguém na cidade ficar sabendo da ascendência judaica dos Wolff. Por sua vez,

Geraldo tem planos de trabalhar no interior do Mato Grosso, na verdade, outra

tentativa de encontrar seu lugar, ou melhor, de encontrar a si mesmo: “Nas

cidades pequenas leva-se uma vida mais concentrada. Tem-se mais tempo para os

exames de consciência”. 143

A história narrada em Um rio imita o Reno encerra-se juntamente com o

“Fim da primavera. O vento em fúria e a água que caía do céu em trombas

desencadeadas pareciam conjugados no empenho de encher o rio, deitar abaixo

as árvores, abalar os alicerces da cidade e levar para longe as flores, os brotos e

a alegria dos homens”.144 A primavera representa a renovação da natureza depois

das agruras do inverno e, assim, no final do romance, “Lore sorriu. E como que um

sortilégio desse primeiro sorriso naqueles dias sombrios, abriu-se uma clareira no

céu e o sol jorrou, trespassou os fios da chuva, clareou os telhados, manchou os

quintais, a rua, e aos poucos invadiu a cidade”.

141 MOOG, 1957, p. 258. 142 Id. Ibid. p. 260. 143 Id. Ibid. p. 247. 144 Id. Ibid. p. 257.

98

Chegam as mudanças, numa casa repleta de melancolia: “Lore estava

surpreendida... Como era possível as coisas na vida mudarem assim de repente!

Esta idéia lhe devolveu à alma algo que se assemelhava a uma esperança. Mas não

quis entregar-se a ela, lutou contra o próprio otimismo”.145 O momento em que o

menino Paulo entra na sala, todo sujo e contente, evidencia a transformação, do

dia cinzento, triste, chuvoso, à claridade do sol, que surge de repente, fazendo-

se metáfora da liberdade que a avó dá para o neto. Representando a iluminação

dos ciclos da vida, o sol mostra a transformação experimentada pela família

Wolff, principalmente, por Frau Martha. Essa questão será enfatizada no

próximo capítulo, centrado na análise das estratégias narrativas das quais Moog

e Klueger se utilizam, bem como nas lembranças das histórias familiares e nas

diferentes imagens de nação expressas nos romances desses autores sulinos,

estudados no presente trabalho.

145 MOOG, 1957, p. 258.

99

5. NAÇÕES E NARRAÇÕES

Ele aspirou profundamente e lembrou-se. Sim era maio.

A guerra nunca acabava,

mas o tempo das tangerinas voltava sempre.

URDA ALICE KLUEGER No tempo das tangerinas

5.1 Narrativas em Comunicação

A obra literária Um rio imita o Reno tem como referente um contexto

real. Ordenado de acordo com as estações do ano, o tempo narrativo marca o

período de aproximadamente um ano, em que Geraldo permanece na cidade

ficcional denominada Blumental. A alternância das estações do ano se torna mais

intensa a partir do capítulo XXI do romance, em que fica evidente o desfecho

reservado aos personagens. O protagonista chega no verão e, nesse tempo,

começa seu trabalho na construção da hidráulica, conhece as pessoas e faz

amizades, inclusive conhece Lore, a encantadora alemã que o seduz tocando piano.

Da mesma forma como o outono é uma época triste, as folhas caem, a

natureza se transforma para a chegada do inverno, também os personagens

passam por uma série de dificuldades, como a descoberta do namoro de Lore e

Geraldo, além do preconceito da família da moça, por ter ele sangue de índio, sua

transferência e, ainda, a doença da amada. Assim como a primavera traz vida, os

capítulos finais do romance representam o despertar da natureza, tendo-se na

história também um renascer: Lore consegue escapar da morte, os hábitos da

família sofrem modificações, pois o coração de frau Marta é amolecido ao saber

100

que a família possui sangue judeu. Ainda pode-se observar Geraldo no Rio de

Janeiro, cheio de esperanças para o futuro.

Essa clara divisão do tempo serve para situar o leitor e marcar os conflitos

abordados. Não fica explícito o tempo histórico abordado pelo romance de Moog,

mas é possível percebê-lo apelando ao contexto representado: a perseguição dos

judeus na Alemanha desencadeou-se nos anos 30 e 40 do século passado, época

da ditadura de Hitler. Na obra literária No tempo das tangerinas, é possível

situar, de maneira mais clara, a idade dos personagens e a época representada.

As informações sobre a idade de Guilherme surgem no primeiro capítulo, quando

o ano era 1940 e Guilherme contava com dezesseis anos, tinha saído naquele ano

da escola para ajudar a família na lavoura, bem como no último capítulo: “Num dia

ameno de 1969, Guilherme Sonne parou sua camioneta no estacionamento de uma

firma de automóveis”.146

Essa marcação permite fixar o espaço de tempo que o romance percorre:

29 anos. Porém, ao longo do texto, decorre uma série de eventos que o narrador

tem a preocupação de datar: 1940 - Natal com a presença de Cristina, que fugiu

da guerra na Alemanha e vivia com a família e, no mesmo ano, casamento de

Margeritha; 1941- Guilherme começa o namoro com Terezinha; 1942- Humberto

Gustav vai estudar no Rio de Janeiro, nasce mais uma irmã de Guilherme;

brasileiros vão para a Segunda Guerra mundial; 1943 - Guilherme serve ao

exército e inauguração da loja de Emma; 1944- casamento de Guilherme e

Terezinha, ele fica doente e, por isso, não vai à guerra; 1945 - fim da guerra e

nascimento da filha de Guilherme. No final da história, uma elipse reduz o tempo

e acelera a narrativa: 1969 – Guilherme relembra com os amigos a II Guerra

Mundial e todos agora se demonstram preocupados com a Guerra do Vietnã.

146 KLUEGER, 2003, p. 154.

101

A presença de eventos históricos relacionados ao destino individual dos

personagens é característica do romance histórico que se insere num contexto,

representando as condições históricas, sociais e políticas de uma época. Desse

modo, em ambas as obras analisadas, o narrador reconstrói o período da Segunda

Guerra Mundial, abordando famílias alemãs que vivem no Brasil, mas que estão

ligadas à Alemanha, por questões sanguíneas ou afetivas. Um rio imita o Reno

privilegia a família Wolf, enquanto No tempo das tangerinas se detém sobre a

família Sonne.

Membros dessa família partem para as frentes de batalha na Europa, mas

também ficam evidentes: a perseguição aos judeus e o sofrimento dos familiares

que permaneceram na antiga pátria. Assim, a vinculação de fatos históricos ao

universo diegético confere um cunho de verossimilhança aos personagens e aos

eventos narrados. O tempo histórico constitui um cenário onde se movem os

personagens da história narrada, permitindo que o leitor acompanhe não apenas

suas vidas ficcionais, mas se localize num contexto determinado:

Quando Guilherme entrou na sala, uma voz áspera, seca, feroz, fazia um discurso inflamado. Ele reconheceu imediatamente a voz de Hitler. Ficaram ouvindo atentamente por algum tempo, até que a mãe disse: - Era um homem assim que estava faltando para a Alemanha, em 1918 - elas não escondia a admiração pelas idéias arrojadas de Adolf Hitler.147

Nota-se a aprofunda admiração que Lucy, a matriarca da família, tem por

Hitler: da mesma forma, Frau Marta, de Um rio imita o Reno, também se vê

fascinada pelo führer. Abordando famílias alemãs, o narrador retrata o dia- a -

dia dos imigrantes no Brasil, vivendo as apreensões de um mundo em guerra,

tendo dissabores, como o fato de um filho que serve ao exército brasileiro ser

obrigado a lutar contra a Alemanha: “Em 22 de agosto de 1942, o Brasil declarou

guerra ao Eixo, o que, para os nossos heróis, representava principalmente guerra

147 KLUEGER, 2003, p. 14.

102

contra a Alemanha... Humberto Gustav foi incorporado ao exército no Rio de

Janeiro, não tendo a mãe nem consolo de sabê-lo próximo naqueles dias

difíceis”.148.

O tempo do discurso narrativo de No tempo das tangerinas segue uma

ordenação cronológica, utilizando algumas vezes analepse interna homodiegética,

a qual consiste numa volta dentro da história que influencia o andamento da

mesma. É o que ocorre com Lucy quando lembra do ano de 1918:

Já é tempo da Alemanha mostrar que ainda tem tutano. Não dá para esquecer o que aconteceu em 1918. Guilherme sabia muito bem a que a mãe se referia. Ela viera para o Brasil em 1918, depois da derrota, e estava tão magra e doente devido às privações passadas que a família pensara que fosse morrer logo. Seu pai morrera em combate, e sua mãe não suportara as privações e também se fora. Ela e a irmã tinham vindo para a casa de parentes, no Brasil, por não terem outro lugar para ir.149

Também ocorre uma analepse quando o avô conta para Guilherme a história

dos Westarb que, devido à cor da pele, são ignorados por Lucy, a qual proíbe os

filhos, o marido e o sogro de manterem qualquer vinculo com aquela família.”150 Já

o tempo do discurso de Um rio imita o Reno também segue uma ordem

cronológica, mas é profundamente marcado por analepses internas, as quais

fazem parte do conflito vivido por Geraldo, desde sua origem indígena, do

trabalho do pai como produtor de borracha, às lembranças da Amazônia: “Geraldo

vê agora o pai em pleno seringal. Ao seu lado uma mulher bronzeada, de olhos

brandos, cabelos corridos, um belo exemplar de índia descendente dos

nhengaíbas”.151

Pode-se constatar uma prolepse quando Lore tem pensamentos futuros

acerca de sua vida com Geraldo: “Não, primeiro fariam um passeio até o

148 KLUEGER, 2003, p. 122. 149 MOOG, 1957, p. 12. 150 Id. Ibid. p. 49. 151 Id. Ibid. p. 93.

103

Mampituba. Ele contaria histórias de sua terra, lendas de amor; ela lhe falaria

das cidades alemãs, da sua arte de seus costumes”.152. Também é possível

observar uma prolepse no romance de Klueger, quando Lucy prevê, para seu filho,

a profissão de veterinário.153. No tempo diegético, o narrador de No tempo das

tangerinas utiliza-se frequentemente de elipses, reduzindo o tempo e acelerando

o ritmo da narrativa. A maioria dela indica um curto lapso de tempo: “chegaram

os dias de grande calor”; Humberto Gustav partiu para o futuro no dia 2 de

janeiro de 1942”; “o pai disse para Guilherme que estava na hora de recomeçar a

colher as tangerinas”; “Num dia ameno de 1969”.

Em Um rio imita o Reno, as elipses são marcadas pelas mudanças das

estações do ano: “Um belo sol de outono esgueirava-se através das janelas”;

“Ouvia-se de dentro do quiosque o assobiar do minuano”; “As vidraças gotejavam

com o frio”; “Fim da primavera”. Entretanto, ao narrar os fatos que considera

mais relevantes, o autor lança mão de cenas com diálogos ou relatos minuciosos,

que tornam lento o ritmo da narrativa. Isso também ocorre, por exemplo, na

primeira parte de No tempo das tangerinas quando, para falar da rotina da

família, principalmente no que se refere ao trabalho, iniciado desde o final da

tarde até a hora do jantar, são utilizadas sete páginas.

Em Um rio imita o Reno, é possível constatar inúmeros diálogos entre as

personagens, acaloradas discussões entre o doutor Stahl e a família Wolff,

sobretudo, quando o assunto é o nacionalismo e defesa da pátria, como no

capitulo XXII, todo ele, ocupado por tais discussões. O narrador demonstra um

grau de conhecimento e interpretação da história que narra, muitas vezes

julgando antecipadamente eventos e personagens, o que mostra certa

manipulação no ato de narrar.

152 MOOG, 1957, p. 104. 153 KLUEGER, 2003, p. 58.

104

Se a principal determinação temporal da instância narrativa é sua posição

relativa em relação à história, as duas obras literárias analisadas são narrativas

de enunciação ulterior: Urda Klueger escreve seu romance em 1982, enquanto a

história narrada inicia em 1940. Além do mais, comprovam que o ato narrativo é

posterior à história: emprego dos verbos no pretérito; conhecimento do narrador

acerca de questões históricas da época que a narrativa representa; antecipação

daquilo que virá a ocorrer, como em: “Margueritha tornar-se-ia uma pessoa

amarga pelo resto da vida”.154

Um rio imita o Reno é também uma narrativa ulterior. Vianna Moog

escreve o romance em 1957, poucos anos após o período narrado. Aí são tratadas

questões históricas da época, como o louvor a Hitler e o preconceito dos alemães

para com outras raças. O narrador também demonstra conhecimento prévio de

algumas situações, como ocorre com a política de Blumental, cidade sob os

desmandos de um prefeito somente interessado em si e em seus aliados: “No fim

a colônia é sempre quem paga as despesas.... os homens da terra... os que entram

com o dinheiro, com que se enriquece a elite da cidade...”155

Para falar dos níveis narrativos, Genette afirma: “Todo acontecimento

contado por uma narrativa está num nível diegético imediatamente superior

àquele em que se situa o ato narrativo produto dessa narrativa”.156 Assim, a

história da família Sonne, contada por Urda Alice Klueger, e do engenheiro

Geraldo, por Vianna Moog, levadas ao cabo num primeiro nível, são, portanto,

extradiegéticas. Entretanto, nessas narrativas primeiras, inserem-se outras

narrativas, conduzidas por narradores que se situam no nível intradiegético, ou

seja, são personagens da diegese.

154 KLUEGER, 2003, p. 150. 155 MOOG, 1957, p. 239. 156 GENETTE, 1995, p. 227.

105

Essas histórias metadiegéticas podem se unir à narrativa primeira por

vários tipos de relações. Assim, em Um rio imita o Reno, a história dos Muckers

é contada a Geraldo pelo secretário da prefeitura quando mostra a cidade ao

engenheiro, principalmente, para lhe falar da provável origem de Frau Marta.

Algum tempo depois, num passeio de domingo, Armando, amigo de Geraldo, conta-

lhe a história em detalhes. De acordo com sua narração, os Muckers haviam

constituído uma seita de fanáticos protestantes na região de São Leopoldo,

liderados por Jacobina Maurer. Mulher de um curandeiro, ela se dizia

predestinada a formar um novo reino sobre a terra e, quem se opusesse, seria

condenado à morte, tendo suas casas incendiadas, sem poupar nem velhos nem

crianças.

Quando Armando conclui essa história, os amigos são surpreendidos por

rufos de tambores. O pelotão que canta uma canção guerreira faz um alto em

frente ao seminário evangélico, infla o peito e grita no grande coro: “Heil,

Hitler!” Sobre a cabeça de Geraldo, grasnam também os pardais. No meio de

tantos sons, a imaginação o transporta para a selva Amazônica, onde canta o

uirapuru. Esse canto faz cessar todos os ruídos da floresta, inclusive, de animais

maiores: “Faz-se silêncio para receber o canto do uirapuru, um pássaro feio,

encolhido, sem plumagem, o pássaro mais feio da floresta”.157

Entre as narrativas metadiegéticas dessa mesma obra literária, destaca-

se o momento em que o violinista Raul Machado, em companhia de Geraldo,

encontram-se na casa de Lore para organizar o concerto do qual ela participaria.

Em função do mau-humor da mãe da moça, algumas narrativas orais sobre a vida

de Goethe e Napoleão são contadas para entreter o grupo, fazendo o tempo

transcorrer de forma agradável. Quando o engenheiro fala do poeta alemão e do

rompimento desse com a namorada, olha para Lore e faz uma espécie de

157 MOOG, 1957, p. 40.

106

presságio ao futuro: “Kaetchen precisamos terminar o nosso namoro. Os nossos

caminhos aqui se separam. Tu vais casar, constituir família, ter muitos filhos,

construir a felicidade doméstica. O teu marido te fará feliz. E como lesse uma

pergunta no olhar assustado da moça continuou: - Eu? Eu sou Goethe. Tu já sabes

o que isto significa. Dizendo meu nome tenho dito tudo”.158

Quase ao final do romance, quando Lore ainda se recupera, essa citação

lhe atormenta, mas não é Goethe o nome que aparece; em seu lugar, Geraldo

refere-se às grandes dificuldades que se interpunham entre eles. Assim, o

fragmento relacionado a Goethe liga-se à narrativa primeira por uma relação

temática, pois fica evidente que existiam grandes diferenças entre os amantes,

as quais foram responsáveis pelo indesejado afastamento do casal. No capítulo

XX, ocorre um fato que traz esclarecimentos e, ao mesmo tempo, possibilita uma

mudança de atitude da família Woolf. É quando o primo Otto conta sobre as

raízes judaicas da família.

No tempo das tangerinas, observa-se uma narrativa metadiegética

quando o avô conta para Guilherme a história dos Westard, uma família de

negros, que tem as mesmas raízes de todos os Sonne. Alex, filho de Reno Sonne,

casou com uma menina negra, supera muitos tabus, tornando-se uma pessoa

admirada por toda colônia, devido a seu trabalho na marcenaria. Essa história,

contada para Guilherme pelo avô, é ignorada pela família dos mesmos, por causa

da mãe desse personagem, a qual, por ser extremamente preconceituosa, não

permitia a seus filhos terem contato com “gente de cor”. A relação que o avô

mantinha com os netos era clandestina.

Na página 145, também é possível identificar um narrativa metadegética,

quando Cristina recebe uma carta do pai que, depois dos alemães descobrirem

sua descendência judia, fugira para a Suíça. Na correspondência, ele relata para

158 MOOG, 1957, p. 61.

107

a filha a maravilha que é estar num país onde há comida “quase à vontade”, pão de

centeio e manteigas douradas. Nota-se, portanto, que a função temática da obra

literária em questão é falar da vida dos alemães no Brasil nos anos 40 do século

passado, fazendo descrições detalhadas dos costumes e da maneira de viver das

famílias de imigrantes.

Se o estatuto do narrador define-se ao mesmo tempo pelo seu nível

narrativo e pela sua relação com a história que narra,159 tanto em Um rio imita o

Reno quanto em No tempo das tangerinas, num primeiro nível, as histórias são

narradas por um narrador anônimo que narra acontecimentos dos quais está

ausente. É, portanto, extradiegético em relação ao nível e heterodiegético em

relação à história. Exprime-se predominantemente em terceira pessoa,

permitindo, dessa forma, que a história se narre a si mesma. Em ambas as

histórias estudadas, ocorrem narrativas situadas num nível intradiegético ou

metadiegético, narrativas segundas, conduzidas narradas por personagens do

texto e que se dirigem também a narratários intradiegéticos, ou melhor, a outros

personagens do texto.

Esse é o caso do avô que conta a história dos antepassados a Guilherme No

tempo das tangerinas, sendo, portanto, Guilherme o narratário. Na mesma obra

literária, observa-se durante o jantar, que Lucy conta para a família o sofrimento

pelo qual passara durante a guerra, numa história em que ela fora personagem:

“Ah! Opa, mas não dá para esquecer, não dá! Eu vi como minha mãe se acabou de

fome. Era só pele e osso, até cega ale ficou, no final”.160 Nesse caso, a narradora

homodiegética é a mãe e os narratários, os filhos o marido e o sogro.

Nas cartas, os narradores são os personagens que as escrevem e os

narratários, aqueles para os quais as cartas se destinam, como no caso das

159 Cf. GENETTE, 1995, p. 226. 160 KLUEGER, 1983, p. 15.

108

correspondências de Kurt Durrel para Cristina no Brasil. Assim, Kurt é o

narrador enquanto Cristina e os familiares são os narratários. Tanto o narrador

como os narratários são intradiegéticos, pois se situam num nível segundo da

narrativa. O narrador da carta ainda é homodiegético, porque conta uma história

da qual participa.

Em Um rio imita o Reno, têm-se vários momentos metadiegéticos. Um

deles ocorre quando Geraldo conta para o secretário e o promotor como é a vida

dos ribeirinhos da Amazônia. Nesse caso, Geraldo é o narrador e seus ouvintes

são os narratários. Outro caso de narração metadiegética acontece quando

Armando conta a história dos Muckers para Geraldo, sendo essa narrativa

segunda, conduzida por um personagem do texto e dirigida ao protagonista,

narratário intradiegético. Ainda, no último passeio de Geraldo por Blumental, ele

admira a lua e se lembra da lenda do surgimento da lua, contada pela cabocla que

vinha dormir em sua rede. Essa é uma história segunda, na qual a cabocla se

exerce como narradora e o personagem mencionado faz o papel de narratário

homodiegético.

Na mesma obra literária de Moog, aparecem várias cartas do pai de

Geraldo para esse e de Armando para o mesmo pesonagem. Em ambas, os

narradores e os narratários são personagens, portanto, narradores e narratários

intradiegéticos, sendo também narradores homodiegéticos, por contarem

histórias das quais participam. No que diz respeito à relação do narrador

extradiegético com essas narrativas intradiegéticas, é interessante observar

que, muitas vezes, as histórias relativas a Geraldo aparecem em seu pensamento

e, assim, quem as percebe é o narratário extradiegético. Apresentando a vida

desse personagem, elas possibilitam o melhor entendimento do porquê de seu

comportamento, algumas vezes, considerado “covarde” frente a situações às

quais o submetem.

109

A função ideológica do narrador está bem marcada nos dois romances em

estudo, através dos juízos que emite a respeito dos personagens. É possível

observar isso no comportamento das matriarcas das famílias Sonne e Wolff, as

quais se mostram extremamente preconceituosas e racistas, sendo válido, para

elas, apenas o puro sangue alemão; além disso, defendem as idéias de Hitler. Frau

Marta ainda expressa sua raiva pelos judeus, porém, sua estrutura é abalada pelo

fato de a filha Lore apaixonar-se por um “índio” e pela descoberta de que a

própria família tem sangue hebreu.

No diálogo travado entre ambas, fica evidente o desprezo que Frau

Martha sente por pessoas que não sejam alemãs ou descendentes:

- Não suporto a idéia de ver-te casada com um homem de raça inferior. Era só o que faltava- afirmou Frau Marta.

- Quem vê a mãe falar, há de pensar que temos sangue nobre: devíamos assinar von Wolff... – ensaiou Lore numa tentativa de gracejo.161

Depois desse diálogo, entra em cena o narrador extradiegético, para

explicar por que a mãe de Lore agia de tal modo, não permitindo o namoro com

uma pessoa de outra etnia. Transparece, na voz narrativa, o pensamento da

matricarca, de que teve sorte em casar com um alemão rico, ao contrário de suas

amigas de escola. Pelo mesmo recurso, aparecem as lembranças da época da

guerra, quando ela precisou sair de Blumental com os filhos pequenos, assim como

o desprezo sentido por aqueles que incluíram o nome de seus ancestrais na lista

dos Mukers.

Lucy, de No tempo das tangerinas, também é preconceituosa e acredita

que alemão não pode casar ou criar vínculos com pessoas de outros grupos

étnicos, inclusive, revela-se contrária a qualquer insinuação de nacionalização: “O

sangue das crianças é alemão! Não sei por que você vê tanta importância em que

161 MOOG, 1957, p. 112.

110

passem a falar português”,162 argumento sempre usado contra o marido, já que ele

defende o Brasil e a língua portuguesa. Para levar o leitor ao entendimento dos

motivos que fizeram Lucy agir de tal maneira, o narrador apresenta o passado

dela e as dificuldades que enfrentou durante a Primeira Guerra Mundial. Nesse

tempo, perdeu os pais e quase morreu de fome com a irmã, sendo trazida ao

Brasil pelo tio que já vivia no país.

Pode-se afirmar que tanto Urda Alice Klueger em No tempo das

tangerinas, quanto Clodomir Viana MOOG, em Um rio imita o Reno, conseguem

tornar viva uma época. Com o cruzamento do tempo da diegese e do tempo

histórico, o efeito de real é reforçado. Estabelecendo relações das personagens

e eventos diegéticos com o tempo histórico, o narrador os torna verossímeis, pois

reconstrói todo um contexto, que através das estratégias narrativas utilizadas

pelos autores marca o período representado. Nas duas obras é possível perceber

como as famílias alemãs viviam o contexto da Segunda Guerra Mundial no Brasil,

seus medos e anseios em prol da antiga pátria, a Alemanha, além das questões

familiares influenciadas diretamente através da guerra. Contudo, essa

transformação tem seu lado positivo, como é possível observar a seguir.

5.2 Uma Região e suas Ficções

No tempo das tangerinas e Um rio imita o Reno têm seus eixos

condutores na questão da nacionalidade. Traçando um verdadeiro painel dos anos

30 e 40 do século XX, os autores enfocam a nação brasileira, abordando

histórias de imigrantes alemães no Brasil, principalmente, os conflitos vividos no

contexto da Segunda Guerra Mundial. As duas obras literárias apresentam um

162 KLUEGER, 2003, p. 16.

111

imbricamento entre política e literatura, através da inclusão de personalidades

históricas que, de uma forma ou de outra, participam das narrativas, como por

exemplo, Hitler, idolatrado por alguns personagem em ambos os romances,

principalmente, por Lucy, personagem de Klueger, e Frau Martha, personagem de

Moog.

A partir da visão dessas personagens, é possível entender a teoria de

Renan quando afirma que nação é uma alma, um princípio espiritual. Assim, as

matriarcas das famílias de ambas as obras literárias vivem no Brasil, têm seus

filhos, uma boa estrutura familiar, contudo, seu coração, seu sentido de pátria,

voltam-se para a Alemanha. Além disso, em Um rio imita o Reno, os personagens

têm intensas discussões sobre questões políticas da época.

Moog se vale de outros recursos, como lendas e discursos políticos, para

dar sentido mais amplo a seu romance, fato que se percebe nas reflexões de

Geraldo, momentos em que muitas de suas atitudes são explicadas através de

lendas indígenas, provando assim, suas origens. Ainda, nas inúmeras citações de

Goethe e Napoleão, o autor visa transmitir as idéias desses pensadores sobre a

nação.

Tanto Urda Alice Klueger quanto Clodomir Viana Moog demonstram

conhecimentos pessoais em seus romances. A primeira reconhece que a

inspiração para escrever No tempo das tangerinas vem de histórias contadas

por sua avó paterna, sendo o cenário do romance, a Blumenau de sua infância.

Moog também fala de uma região que conhece muito bem, pois Blumental refere-

se ficcionalmente à cidade real de São Leopoldo, localizada em região gaúcha

colonizada por alemães. Além disso, as descrições que ele faz da Amazônia

somente podem ser realizadas por alguém que conhece essa região, como ele, que

viveu por alguns no Norte, quando exilado por questões políticas. Dessa estada,

provém o conhecimento da cultura e dos costumes do povo amazonense,

representado por Geraldo.

112

Nos dois romances analisados, os personagens vivem no exílio, situação que

Edward Said163 classifica como uma vida levada fora da ordem habitual. Para o

exilado, os hábitos da vida, a expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem

inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro

ambiente Dessa maneira, os dois ambientes vividos pelos personagens ocorrem

em paralelo nas narrativas, o que se constata por meio do comportamento dos

alemães no Brasil. Seu pensamento e a saudade são direcionados à Alemanha,

seus costumes e tradições são alemães. Eles imitam o estilo germânico na

arquitetura, nas roupas etc. e mantêm a língua, a religião luterana, a comida, da

pátria-mãe. Além disso, todos os personagens tem nomes alemães, como Karl,

Julius, Lore, Lucy, Hermann, entre outros.

Assim, há certo retorno sentimental à terra-natal. No entanto, e

principalmente na obra de Klueger, é possível notar alguns traços nacionais

brasileiros, sendo que a nacionalização obrigatória instituída pelo governo tem

muita importância para que os habitantes do Vale do Rio Itajaí falem a língua

portuguesa. Contudo, já existe um sentimento de amor pelo Brasil por parte de

alguns personagens, sobretudo, dos jovens convocados para lutar na guerra, os

quais têm a convicção de que sua pátria é o Brasil e, por isso, a defenderão.

Os dois romances analisados abordam histórias semelhantes, ambientadas

no mesmo contexto histórico, mas em espaços diferentes: No tempo das

tangerinas se passa no Vale do Itajaí e Um rio imita o Reno, no Vale dos Sinos.

Todavia, o núcleo cultural de que fala Moog é o mesmo, daí a razão pela qual os

conflitos das narrativas são bastante similares, trazendo casos amorosos que

envolvem alemães e outras etnias: no primeiro caso, a brasileira; no segundo, o

descendente de índios.

163 SAID, 2003, p. 60.

113

Através dessas histórias, percebe-se o quão preconceituoso é o alemão ou

teutobrasileiro, não admitindo casamentos dos seus com pessoas de outros

grupos étnicos, considerando-as de pouco valor. Por isso, os alemães atribuem o

desenvolvimento do Brasil, principalmente da região Sul, a si mesmos, a seu

trabalho com a terra. Isso pode ser notado mais em Um rio imita o Reno,

através de várias comparações entre a pujança das regiões brasileiras

colonizadas por alemães e outras. A miséria então vista no Nordeste seria

justificada por tal argumento.

As duas obras analisadas divergem quanto à união final das etnias. Moog

não realiza o casamento de Geraldo e Lore, enquanto Klueger já possibilita a seus

personagens um final feliz. Desse modo, Guilherme e Teresinha são autorizados a

casar. Inclusive Lucy, a mais radical no que se refere ao preconceito, modifica

suas concepções, fazendo-se amiga da nora brasileira. Essa matriarca, assim

como Frau Marta, proíbe o namoro do filho com uma moça de outra etnia, mas em

virtude de todo o sofrimento vivido durante a Segunda Guerra Mundial, e

também pelo medo de perder o rapaz em combate, acaba revendo seus pontos de

vista e atitudes.

Isso acontece com Frau Martha, de Um rio imita o Reno, a qual prefere o

sofrimento da filha a vê-la casada com uma pessoa de fora do circuito alemão.

Ela se abala quando descobre o sangue judeu em sua família e, a princípio, esse

fator parece não alterar seu comportamento. No final do romance, entretanto,

pode-se observar que ela vai revelando uma pequena abertura às outras culturas,

a partir do momento no qual permite que seu neto brinque com outras crianças.

Por sua vez, Lucy passa por grandes transformações, aparecendo ao final

da narrativa de No tempo das tangerinas como personagem bastante

esclarecida, capaz de discutira viagem do homem para a lua, com os mais jovens,

e de assistir a todos os noticiários. Na descrição do personagem Hermann: “É

uma das coisas que admiro em sua mãe. Ela não deixa a peteca cair. Lembra-se do

114

tempo da guerra, quando teve que enfrentar a derrota alemã? Pôs uma pedra em

cima, tocou a vida e arranjou novos interesses”.164

Durante as cenas, que predominam nas dois romances em estudo, as

personagens estabelecem diálogos nos quais prevalecem a cultura e política

alemãs. Sobretudo em Um rio imita o Reno, Goethe e outros pensadores alemães

são, inúmeras vezes, citados. Geraldo se dedica à leitura desses pensadores, a

partir dos quais, analisa o comportamento dos alemães e seus descendentes em

Blumental, para entender seus costumes e a maneira de viver, ou melhor, a

necessidade que eles têm de querer fazer da cidade uma imitação da Alemanha.

Nos dois romances analisados, também é possível perceber como o

contexto histórico da Segunda Guerra Mundial afeta as famílias alemãs. Assim, a

família Sonne experimenta a dor pela partida de um filho às frentes de batalha

na Europa, e o que é pior para eles, contra a Alemanha. Por sua vez, a família

Woolf descobre ter sangue dos mesmos judeus que a matriarca sempre afirmou

detestar. No decorrer das narrativas, as idéias, bem como os princípios étnicos e

nacionalistas dos personagens principais, são profundamente transformados.

A transformação alcança inclusive as diferentes concepções sobre nação,

de modo que o Brasil passa a ser visto pela maioria das personagens, de fato,

como uma pátria, como o país que não apenas acolheu e enriqueceu muitas

famílias, mas como nação verdadeira: sua casa, seu chão. Nota-se que as

estratégias narrativas utilizadas por ambos os autores dão conta dos modos de

vida e os costumes da época representada, ou seja, dos anos de 1930 e 1940, com

toda sua atmosfera social, política, econômica e cultural, realçando as situações

de conflito e diferentes posições ideológicas expressas pelos personagens.

O tema abordado pelos escritores é semelhante, mas o desfecho dado a

suas obras literárias é distinto, como se viu, talvez porque Moog escreveu Um rio

164 KLUEGER, 1985, p. 157.

115

imita o Reno nos anos 50, portanto, bastante próximo ao contexto utilizado

nesse romance. Já Klueger produz No tempo das tangerinas durante os anos

80, quando a sociedade brasileira passa por inúmeras mudanças, inclusive,

vivenciadas pela escritora. Isso torna possível deixar para trás, ao menos, em sua

ficção, certos posicionamentos tradicionais e atitudes preconceituosas. O texto

de sua autoria parece superar os maus momentos da época representada e

gravar, no presente, aquelas boas lembranças, pois “o tempo das tangerinas

voltava sempre”.165

165 KLUEGER, 2003, p. 160.

116

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