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A recriação dos contos populares e a constituição
da narradora arquetípica na minissérie “Hoje é
dia de Maria” (2005)
The recreation of folk tales and the constitution of the archetypal narrator in “Hoje é dia de
Maria” (2005)
Cristiane Passafaro Guzzi1
Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan2
RESUMO: A partir do trabalho de releitura de contos populares realizado na minissérie Hoje é dia de Maria (2005), privilegiamos o papel da voz do narrador, seja no texto verbal ou no texto sincrético, ao verificarmos a manipulação exercida sobre os procedimentos das personagens, dos incidentes da ação, da organização temporal e da articulação dialógica de perspectivas narrativas. Tais procedimentos referem-se a uma incidência pragmática, condicionada diretamente à construção da narrativa, e que ajudam o enunciador a atingir seus objetivos de provocar, em seus destinatários, efeitos de sentido diversos, reforçando, assim, a configuração arquetípica da narradora de contos da carochinha.
1 Doutoranda em Estudos Literários da UNESP/FCLAr. Bolsista CAPES. E-mail:
crispguzzi@gmail.com. 2 Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da
UNESP/FCLAr. E-mail: udebaldan@uol.com.br.
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PALAVRAS-CHAVE: Transposição. Contos populares. Narrador. Ponto de
vista.
Longe, num lugar ainda sem nome, havia uma pobre família desfeita. E era uma vez uma menina chamada Maria [...]
(ABREU; CARVALHO, 2005, p. 2) Voz em off da narradora
Projetada inicialmente para ser um especial de fim de ano, a primeira
jornada de Hoje é dia de Maria3 constitui-se como uma obra híbrida, na qual se
fundiram a linguagem sincrética da televisão com a linguagem verbal do
roteiro publicado. Para dar unidade ao trabalho e alcançar a linguagem
estética desejada pelo diretor Luiz Fernando Carvalho, a diretora de arte, Lia
Renha, orientou que suas equipes se pautassem em quatro características: o
arcaico, o armorial, o bíblico e o brasileiro. "Hoje é Dia de Maria nasceu da
mistura das pinturas de Cândido Portinari com as cirandas recriadas por Villa-
Lobos", define Carvalho (2005, p.10), propondo, assim, um mergulho na
cultura popular do Brasil e na sua ancestralidade.
Ao encomendar o texto que originou a minissérie ao dramaturgo Carlos
Alberto Soffredini4, sabendo de sua trajetória permeada de influências da
cultura popular, o diretor teve por um dos seus principais objetivos, resgatar e
trazer à tona esse universo tão rico em informações, de diversos âmbitos, que é
o universo do conto popular e do folclore brasileiro. Ao realizar uma vasta
pesquisa sobre as manifestações do conto popular, Soffredini contou com o
apoio dos registros de Luis da Câmara Cascudo, grande pesquisador e
folclorista de nossa cultura popular, bem como os registros realizados por
3 A primeira jornada de Hoje é dia de Maria foi levada ao ar no dia 11 de janeiro de 2005 e
contou com oito episódios, de aproximadamente uma hora de duração cada, exibidos no horário das 22h30min da grade de programação da Rede Globo de Televisão.
4 O roteiro foi gentilmente cedido por Renata Garcia Soffredini, filha de Carlos Alberto Soffredini, falecido em 2001, e que continua inédito. Por esse motivo, denominaremos, em nosso trabalho, esse roteiro verbal como “roteiro inédito”, justamente por ser uma cópia datilografada do próprio texto do autor e sem paginação.
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Sílvio Romero, outro folclorista, assim como outras atividades de pesquisa que
este último realizou durante sua carreira. Além desses contos populares
tradicionais, compilados por esses dois pesquisadores, existem também outras
variantes dos mesmos contos registrados por demais pesquisadores
folcloristas, como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, Phillip Otto Runge, Charles
Perrault e os Irmãos Grimm.
A exploração de personagens, diálogos, objetos e músicas, repletos de
contribuições laicas e religiosas de culturas indígenas, ibéricas e africanas
como a Folia de Reis, o ritual dos Índios Xavantes, o batuque, a dança da
Umbigada Paulista, a rabeca do Mestre Salustiano, bem como as contribuições
de Mário de Andrade, Irmãos Grimm, Charles Perrault e as manifestações
artísticas de Candido Torquato Portinari e Heitor Villa-Lobos, fez com que a
minissérie descortinasse um amplo leque de referências e retorno a causos,
histórias, obras ou manifestações já conhecidas e armazenadas no imaginário
cultural ocidental.
Como é constitutivo do conto popular apresentar um caráter fluido e
móvel - o que possibilita sua renovação a todo instante - reconhecemos que,
mais do que realizar uma simples “migração” desses contos revisitados, a
minissérie realiza o que Jolles (1976) chama de atualização de uma forma
simples; ou seja, atualiza velhas estórias de tal modo que representem uma
nova realidade, adaptando-as de maneira que estas possam adquirir outros
efeitos de sentido no ato de recepção. Em geral, a obra apresenta-se como o
resultado de uma infinidade de textos e narrativas primeiros, jogos de
palavras e provérbios, “causos” recontados e cantos, inserindo-os em um novo
contexto.
A narrativa do primeiro episódio enuncia-se com a voz de uma avó-
narradora, em modalidade off, produzindo uma ancoragem do tempo, do
espaço e dos atores envolvidos numa trama indefinida. O efeito de sentido
produzido por este tempo e espaço modalizados por “longe, num lugar ainda
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sem nome” e uma actorialização generalizante “menina chamada Maria” remete-
nos às narrativas populares advindas da memória popular, bem como chama-
nos a atenção para a estratégia escolhida, pelo enunciador, em fazer com que
uma voz, ainda que em off, produza o efeito de remeter o telespectador para a
imagem cristalizada das contadoras de estórias populares. Esse lugar
indefinido pode ser tanto a região do Nordeste quanto qualquer lugar
representante de um Brasil enraizado por suas manifestações populares. O
tempo indefinido nos ancora num discurso que remete a um tempo mítico, o
tempo da infância, da iniciação, da vivência, do aprendizado, e, portanto,
comum a todos.
A escolha por um nome comum, Maria, além de remeter ao caráter
religioso evidenciado, ao longo da minissérie, pelas ações decorrentes da
personagem, leva-nos também a fazer uma leitura que demonstre que tais
obstáculos enfrentados pela menina não dizem respeito somente a ela, mas,
sim, às muitas “Marias” existentes nesse Brasil, uma vez que tal nome é
popularmente conhecido e usado. A opção por iniciar o relato da minissérie,
tanto por uma voz acolhedora de uma senhora (idosas contadoras de estórias),
quanto por uma indefinição tempo-espacial, denota o conteúdo a ser
transmitido pela minissérie: estórias populares, da carochinha, a serem
encenadas num meio televisivo.
O mundo infantil da personagem Maria, representada pela atriz
Carolina Oliveira, vai ganhando visibilidade a partir de um gigantesco cenário
pintado por Clécio Régis (Grupo Imaginário Periférico5), onde a menina brinca
5 O grupo Imaginário Periférico reúne inúmeros artistas plásticos ligados às mais diversas
áreas, periféricas, do estado do Rio de Janeiro. O objetivo do grupo visa à consolidação de uma arte produzida sem fronteiras, com a produção artística da periferia tão valorizada como a dos grandes centros. O Imaginário Periférico, dentre outras propostas, coloca em questão o "Meio de Arte no Rio", valorizando e demonstrando a importância de pertencer e estar no "meio" da produção artística sem existir geograficamente um local apropriado para que esta produção artística aconteça de forma efetiva. Segundo Raimundo Rodrigues, “o grupo nasceu com a proposta de mostrar que a arte não tem limites geográficos e que existe produção artística de qualidade além dos grandes centros.“ (In: CORO coletivo.
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feliz com aves artificiais, animadas por visíveis cordões de marionetes.
Entoando uma cantiga de roda de Villa-Lobos, cujo refrão é marcado pelas
enfatizantes frases “que lindos olhos, que lindos olhos tem você [...]”, a
protagonista vai brincando no balanço, nos transportando para o campo
mítico dos acontecimentos primordiais, por intermédio da voz da narradora.
Figura 1 – O artesanal em Hoje é dia de Maria.
É preciso ressaltar que no roteiro verbal, escrito por Luiz Fernando
Carvalho e Luis Alberto de Abreu6, - lançado pela Editora Globo (2005)-, essas
falas em off da narradora em questão não foram reproduzidas. Essa ausência
de reprodução leva-nos a refletir sobre a realização televisiva, com outras
necessidades que ultrapassam as previstas no roteiro. Para conseguir
transformar em imagem, o que no roteiro primeiro - o de Soffredini -, era
pautado no verbal, optou-se por inserir, na minissérie, uma narradora que se
assemelhasse a uma voz familiar e que permitisse ao público sentir-se sentado
no colo de sua própria avó.
Tal efeito foi alcançado pela exploração do recurso em off que, ao mesmo
tempo em que distancia a personagem que conta os fatos relatados sob uma
perspectiva de fora, do alto, também a aproxima dos fatos ao ser um
Disponível em: <http://www.corocoletivo.org/imaginarioperif/index.htm>. Acesso em: 13. Fev.2014).
6 A reconstrução do roteiro de Hoje é dia de Maria contou com a elaboração e o trabalho de Luis Alberto de Abreu. Dramaturgo paulista, com larga experiência teatral, estreou na televisão com o trabalho de adaptar o “roteiro inédito” de Soffredini, que inicialmente comportava o formato de um só capítulo, com duração de apenas 60 minutos, para os oito capítulos que deram origem à minissérie televisiva Hoje é dia de Maria.
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conhecedor onisciente de todos os acontecimentos. Esse uso tradicional da voz
off cria, ainda, um efeito de negação do enquadramento como limite,
ancorando, ainda mais, a partir deste recurso, a história em um não-tempo, em
um não-lugar.
O sujeito da enunciação7, por ser diretamente ligado à instância do
discurso, é quem controla e manipula os modos de acesso à significação para o
leitor; é por intermédio dele que os esquemas narrativos convertem-se em
discurso. Pensando na figura do narrador, portanto, como a instância teórica
responsável pela organização macroestrutural do texto narrativo, assume
especial relevo a questão do ponto de vista. De acordo com Bertrand (2003, p.
113), “[...] o ponto de vista engloba, ao mesmo tempo, o modo de presença do
enunciador em seu discurso e a maneira pela qual ele dispõe, organiza e
orienta seus conteúdos”. O ponto de vista do narrador, desse modo, pode ser
determinado pelas estratégias de estruturação que selecionam e orientam os
percursos e, particularmente, as relações entre o todo narrativo e suas partes.
A narrativa, enquanto objeto comunicante, torna-se um complexo jogo
de manipulação, em que o narrador faz uso dos procedimentos narrativos,
visando a levar o leitor a admitir como certo e verdadeiro o sentido
produzido. O modo de narrar um conto é caracterizado pela natureza da
própria narrativa: a de simplesmente contar histórias. O conto não apresenta
um compromisso (nem qualquer texto que se queira ficcional) com a realidade
propriamente dita, pois sendo um relato, permite-se copiar, sendo um conto,
permite inventar-se.
7 Nossas reflexões têm como base os conceitos oriundos da semiótica greimasiana, de origem
francesa, e que tem por definição conciliar a análise interna e externa de um texto, considerando a concepção da dualidade: objeto de significação x objeto de comunicação. Sua preocupação vem se resumindo ao exame do que o texto diz e como o diz (BARROS, 1990, p.8), estudando assim a organização textual que possibilita a existência do texto, bem como sua enunciação (entendendo-a como o momento de articulação da formação discursiva com o contexto histórico-social).
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No caso de Hoje é dia de Maria, percebemos que se trata de uma narração
permeada pelo próprio ponto de vista da narradora sobre as ações e os
acontecimentos relacionados à menina Maria. Suas emoções, sentimentos e
reações se infiltram nessa voz fora de cena, que serve para situar o
telespectador dos acontecimentos que não puderam ser transformados em
imagens, construindo um relato passional do percurso da Maria. Percebemos a
nítida reprodução de suspiros, ruídos de alívio, de tensão e de apreensão que
acabam por construir uma reiteração enfática dessa passionalidade que rege o
discurso e que é muito difícil de ser traduzida em imagens.
Por ser, portanto, um relato construído mediante uma voz carregada de
passionalidade da narradora, encontramos um norteamento da fábula que
privilegia uma adesão, quase que imediata, à protagonista. Todos esses
artifícios engendrados pela figura do narrador prendem a atenção do público,
fazendo com que se instaure um “jogo lúdico”. O próprio espectador deve
descobrir quem são os verdadeiros personagens da história, pois o ponto de
vista do narrador pode ser determinado pelas próprias estratégias de
estruturação que selecionam e orientam os percursos e, particularmente, as
relações entre o todo narrativo e suas partes, criando, assim, certos modos de
adesão de caráter eufórico com determinados personagens e disfórico com
outros.
Em contrapartida, no “roteiro inédito”, encontramos a presença de um
narrador homodiegético8 que leva o nome de VÓ NENÊ. Esse narrador
homodiegético participa da história e se destaca não como protagonista, mas
podendo participar da trama como uma figura ligada ao protagonista, sendo,
portanto, essencial ao enredo. O narrador homodiegético, por participar
internamente como personagem integrante da história, realiza intrusões ao
longo do roteiro apresentando-se como uma espécie de “eu crítico” que veste
8 Essa tipologia toma por base os estudos feitos por Gerárd Genette em seu livro Discurso da
Narrativa (1972), em relação à classificação dos narradores dentro de uma narrativa.
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um tipo de máscara, denunciando a presença e opinião da personagem, pois
ao relatar uma estória da carochinha e, ao mesmo tempo, perceber que os fatos
narrados estão realmente acontecendo com a menina Maria, VÓ NENÊ deixa
transparecer seu senso crítico, reações e sentimentos em suas atitudes e
palavras:
“CENA 5 / PÁTIO DE CASA RÚSTICA / EXT / MANHÃZINHA
O grito do PAI perturba todas as crianças, inclusive VÓ NENÊ.
VÓ NENÊ – (tentando ignorar o grito do pai ) feito isso, antonce
diz que a raínha se finô.
PAI – ( num berro ) MARIA !!!
MARIA se levanta, apavorada, e sai correndo pra casa do sítio.
VÓ NENÊ – Passô ... ( tentando continuar a história, mas visivelmente perturbada) Té que chegô o dia que diz-
que o rei ... que deu lhe lá nas suas vontade de rei de
se casá otra veiz de novo.
MARIA – (grito vindo da casa do sítio) Ai! Judia ansim cumigo
não nhor pai!
As crianças em roda da história arregalam seus olhinhos, enquanto VÓ NENÊ balança a cabeça com pena, com muita pena de MARIA.” (SOFFREDINI, [20-], p. 4).
É importante também observamos que essa narradora-personagem
apenas aparece explicitadamente no roteiro em algumas cenas, de modo que
as demais ocorrem sem a sua intervenção. Essa omissão se dá pelo fato da
narração, agora, ser contada mediante um narrador heterodiegético, ou seja,
apesar de ser ainda o relato enunciado pela narradora-personagem VÓ NENÊ,
ela agora se encontra num nível extradiegético. Situada, então, como uma
personagem agora fora da história, a narradora vai apenas relatar os fatos
como sendo uma instância “ainda que tudo sabe e de tudo participa” - por ser
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uma testemunha direta - mas que não se integra mais como uma personagem
da diegese, pois sua figura é agora atribuída de uma voz em off (fora de cena).
Tal troca na delegação de vozes no roteiro cria um efeito de sentido de ilusão
de estarmos diante de uma história toda contada por alguém, como nos
tempos da carochinha. O sujeito da enunciação, dessa forma, consegue
construir, mediante essa troca de vozes, uma figura nítida de um contador de
estórias da tradição popular, também no roteiro verbal.
Para efeito de ilustração, verificamos que a narradora homodiegética
incide na narrativa somente nas cenas 1, 5 e 8 nas quais ela narra uma história
para as crianças presentes. Essa narração nada mais é do que a própria história
que está acontecendo ao mesmo tempo com Maria, que também é uma das
crianças que se encontra ao redor da senhora narradora. Esse artifício, criado
pelo enunciador, ocasiona um efeito no leitor de não-percepção do que seria
realidade e do que seria ficção, cabendo ao público realizar um exercício de
projeção do que seria realmente a história e do que seria artimanha do jogo de
delegação de vozes.
“CENA 8 / PÁTIO -CARREIRINHO -ROÇA DE MILHO / EXT/ MANHÃZINHA VÓ NENÊ vai contando história, ela e as crianças sempre atentas na rocinha de milho mal tratada... VÓ NENÊ - Seu dito, seu feito: diz-que o rei mandô os empregado lá dele saí revirando mundo, mó de encontrá moça que tivesse dedo que lhe servisse o dito anel. Mai qui isperança ...não tinha essa fia de meu Deus que tivesse dedo praquele mimo. História de VÓ NENÊ sobre imagem de MARIA colhendo as espigas dos pés de milho. MARIA cansada, as folhas do milho arranhando o seu rosto bonito.
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VÓ NENÊ - (em off) Tonce foi que o rei le deu vontade de exprimentá o anel no dedinho da princesa sua filha, que diz-que era a única sozinha que não tinha ainda exprimentado... Largado ao lado da roça, o PAI bebe ... PAI - (bêbado) Não, nhor japonez ... Num vô le vendê minha terrinha por um dinheirico de merda, iguar que nem fizero tudo esse povinho fremoso daqui desse fundo de mato ... Eu num vô ... Este fio de meu pai, não... VÓ NENÊ – Tonce o rei mandô chamá a princesinha ... e num é que diz-que no dedo dela o dito anel cabeu justico, sem sobrá nem fartá?!... A MADRASTA, do carreirinho, olhando ... JOANINHA comendo espiga. O PAI largado: PAI – (ficando violento)Nhor japonez dos dianho, que já me robô as minhas familhagem tudinho de mim ... (terno) E só me sobrô a Maria a tão somente ... VÓ NENÊ - Tonce foi que deu-lhe lá na sapituca do rei de se casá com a própria filha dele mermo, carcule ! PAI – (indo pra cima de MARIA) Só a minha maria mó de fazê todo o trabaio dos sítio, cuitadinha ... E o PAI agarra MARIA e a levanta do chão e tenta beijá-la na boca ... VÓ NENÊ e as crianças prendem a respiração...”. (SOFFREDINI, [20-], p.5-6)
Já a narradora heterodiegética vai incidir na narrativa somente nas cenas
23 e 24, nas quais, VÓ NENÊ, agora atribuída por uma voz em off, vai apenas
relatar para as crianças o que estava acontecendo com Maria. Com uma
intromissão extradiegética, é reforçado, ainda mais, o efeito de sentido de
resgate do imaginário popular, remetendo-nos à figura dos velhos contadores
de histórias dos “tempos da carochinha”.
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Além disso, é importante ressaltar também que VÓ NENÊ somente vai
intrometer-se no desenrolar dos acontecimentos em dois pontos considerados
mais “fortes e difíceis” de serem aceitos ou lidados pelo público infantil: o
relato da morte e o incesto praticado pelo pai. O relato da morte ocorre
quando VÓ NENÊ reproduz a história de uma rainha que vem a falecer; o
outro momento, já como uma personagem de fora da história, a narradora vai
relatar que a menina Maria foi morta e enterrada viva pela própria Madrasta.
Em relação ao incesto, VÓ NENÊ relata que a rainha que morrera, havia
deixado um anel para o rei e este, por sua vez, quer se casar com a própria
filha. Concomitantemente, o pai de Maria tenta assediá-la sexualmente.
Como podemos observar, trata-se da exploração do conteúdo da morte e
do abuso sexual que, desde sempre, foram considerados assuntos “delicados”
a serem abordados, principalmente quando dirigido ao público infantil. No
caso da minissérie televisiva, ainda que o horário destinado para a realização
seja depois das 22 horas, a classificação etária permitia a audiência de crianças
e a temática, por ser a fábula de uma menina, atraiu um público heterogêneo.
Nesse sentido, a escolha pela personagem da VÓ NENÊ para “transmitir
determinadas notícias” pode ser entendida como um procedimento de tentar
tornar mais “palatável” o conteúdo a ser transmitido; uma vez que por ser a
representação de uma avó, que no imaginário popular, apresenta-se como
uma figura protetora, materna e que tenta sempre amenizar e “consolar”
determinados fatos decorrentes da vida.
É interessante, ainda, acrescentarmos o efeito de sentido que se
estabelece na narrativa, a partir do “abandono” da narração pela VÓ NENÊ. A
personagem inicia seu relato conhecendo, em sua totalidade, os eventos a
serem narrados, mesmo que para transmiti-los encontramos, no seu decorrer,
marcas de “reações e surpresas” que são inerentes ao ato de prender a atenção
que os contadores de estória popular desenvolviam. Porém, a partir da cena 9,
verificamos que a narrativa segue, já sem a intromissão da narradora-
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personagem, voltando apenas nas cenas 23 e 24. Depois dessas últimas cenas
referidas, a personagem VÓ NENÊ não se apresenta mais como participante
da narrativa, deixando a impressão de estarmos diante de uma narrativa que
começou a ser contada, nos moldes de um típico conto popular, e que
continuou, assim, como as estórias armazenadas na memória cultural: a
desenvolverem-se como fruto da imaginação tanto do autor quanto do leitor.
Esse descompasso apresentado entre a narração da VÓ NENÊ e sua
saída, em determinado momento dos acontecimentos narrados, criou um
efeito de sentido de identificação de Maria com as personagens da narrativa
que ela está ouvindo:
“VÓ NENÊ – Mai porém o certo é que, nasquele tempo, tinha um rei e uma raínha que só tinha uma filhinha a tão somente ...” (SOFFREDINI, [20-], p. 1)
Com essa identificação, não é a sua história, triste e precária, que ela
vive, mas sim uma narrativa “fingida” e cheia de imaginação, dos outros.
Portanto, tal efeito de sentido, construído pelo abandono da narradora, alude
a um certo “escapismo” da realidade e uma amenização para a própria Maria
que tem que enfrentar uma “sofrida trajetória”, declarada pelo próprio texto.
Ao verificarmos o deslocamento da sua história para o universo do ficcional,
percebemos que tal efeito permite transformar a realidade, embora ainda
marcada pela tristeza e pela exploração do trabalho, e fazê-la ser mais
palatável.
O efeito de sentido construído engendra na menina, e em nós, leitores, a
possibilidade de um certo “alívio” ao “fingirmos” não ser a história da menina
Maria que está sendo contada, mas sim, um causo popular qualquer, puro
fruto da imaginação da VÓ NENÊ. A narradora-personagem, ao interromper
a narrativa, reproduz por meio de um linguajar próprio de uma literatura oral,
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o que os próprios contadores de histórias faziam para prender a atenção ao
contar seus causos. VÓ NENÊ utiliza, no começo de suas falas, elementos
coesivos como: “Antonce...”, “Tonce...”, “Nesses artigo diz-que...”, “E diz-que...”
que se assemelham com as fórmulas iniciais protocolares utilizadas nas
histórias de contos de fadas, como “Era uma vez...”, remetendo, de imediato, o
leitor para o mundo da ficção e do imaginário. A utilização de fórmulas
protocolares permite que o enunciador explore determinadas figuras desse
imaginário, uma vez que, com esse procedimento, o sujeito da enunciação já
está deixando claro tratar-se de fantasia e imaginação, ou seja, de um “causo
popular”, em que tudo pode acontecer.
É a partir, então, da voz da narradora, seja no verbal ou no sincrético,
que verificamos a manipulação exercida sobre os procedimentos das
personagens, dos incidentes da ação, da organização temporal e até mesmo da
articulação dialógica de perspectivas narrativas. Tais procedimentos referem-
se a uma incidência pragmática, condicionada diretamente à construção da
narrativa, e que ajudam o enunciador a atingir seus objetivos de provocar, em
seus destinatários, efeitos de sentido diversos.
Temos uma releitura de contos populares transformada em produto
midiático a partir dos traços fundamentais da literatura: reconhecemos a
importância do narrador, a presença dos objetos mágicos, o impacto da
enunciação e seu caráter atemporal, sem presentificar um passado
imobilizado, mas ancorando a narrativa no indefinido contemporâneo.
Bão! De modos e maneiras que as coisas já foram seguindo desse jeitinho... Assim mesmo como tô contando... Maria há de perder, já de ganha coisa de muito valor... Sua vida... Mai pêra aí... cada coisa a seu tempo, cada tempo em seu canto, porque uma história se faz de certeza e também de espanto...(ABREU; CARVALHO, 2005, p. 180, voz em off da narradora).
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ABSTRACT: This essay focuses on the recreation of folktales performed in the miniseries Hoje é dia de Maria (2005). It highlights the role of the narrator's voice, whether in verbal or in the syncretic text, analyzing the manipulation exerted on the procedures of the characters, the incidents of the action, the temporal organization and even narrative dialogical articulation. These procedures refer to a pragmatic focus, directly related to the construction of the narrative, which helps the sender to achieve his/her goal of provoking sense effects in his/her receivers, thus reinforcing the archetypal configuration of the narrator of the folkstale.
KEYWORDS: Transposition. Folktales. Narrator. Point of view. REFERÊNCIAS ABREU, L. A.; CARVALHO, L. F. Hoje é dia de Maria. 1ª e 2ª jornadas. São Paulo: Globo, 2005. BARROS, D. L. P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990. BERTRAND, D. Caminhos da semiótica literária. Trad. Grupo CASA. Bauru, SP: EDUSC; 2003. CORO coletivo. Disponível em: <http://www.corocoletivo.org/imaginarioperif/index.htm>. Acesso em: 13. fev.2014. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Ed.Vega, 1972. HOJE é dia de Maria. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Intérpretes: Carolina Oliveira, Letícia Sabatella, Rodrigo Santoro, Stênio Garcia, Osmar Prado e Fernanda Montenegro e outros. Roteiro: Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho. Distrito Industrial- Manaus: Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, 2006. 3 DVD’S (9 h 26 min),widescreen, color. Produzido por Globo Marcas DVD e Som Livre. Baseado na obra de Carlos Alberto Soffredini. JOLLES, A. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976. SOFFREDINI, C.A. Roteiro inédito Hoje é dia de Maria. São Paulo, [20-]. Não publicado.