UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior
REFLEXIVIDADE E ACELERAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS RACIONAIS DE SOBREVIVÊNCIA
O caso dos profissionais do pólo de informática do Recife
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia, sob a orientação do Professor Doutor Jonatas Ferreira.
Recife 2005
SUMÁRIO RESUMO..............................................................................................................01 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................05 2 MARCO TEÓRICO......................................................................................11 2.1 CENÁRIO TEÓRICO.....................................................................................13 2.2 O PROTÓTIPO DO TRABALHADOR PÓS-INDUSTRIAL........................23 2.3 SOCIEDADE DE RISCO E FLUIDEZ..........................................................32 2.3.1 SOCIEDADE DE RISCO..........................................................................32 2.3.2 MIDIATIZAÇÃO, DERRELIÇÃO E DESAMPARO..............................38 2.4 A REFLEXIVIDADE E SEUS DUPLOS.......................................................45 2.4.1 O ESPELHO RADICAL............................................................................45 2.4.2 DESENCAIXE..........................................................................................47 2.4.3 CONHECIMENTO E INFORMAÇÃO DESENCAIXADOS.................50 2.4.4 SISTEMAS ESPECIALISTAS.................................................................54 2.4.5 REFLEXIVIDADE COGNITIVA E REFLEXIVIDADE ESTÉTICA....59 3 METODOLOGIA..........................................................................................61 3.1 A FENOMENOLOGIA DE ALFRED SCHUTZ – CONCEITOS BÁSICOS....................................................................................62 3.1.1 EXPERIÊNCIA VIVIDA E CONSCIÊNCIA..........................................62 3.1.2 CONDUTA, AÇÃO CONSCIENTE E MOTIVAÇÃO............................65 3.1.3 CORRENTE DE CONSCIÊNCIA............................................................70 3.1.4 ATRIBUINDO SIGNIFICADO À CONDUTA.......................................73 3.2 A CONTRIBUIÇÃO DE MAX WEBER.......................................................74 3.2.1 CONDUTA SUBJETIVAMENTE SIGNIFICADA.................................74 3.2.2 TIPOS DE RACIONALIDADE E DE AÇÃO..........................................76 3.3 O TRABALHO DE DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARES E A ATRIBUIÇÃO DE SENTIDO À AÇÃO – A RAZÃO DE ESCOLHER A FENOMENOLOGIA......................................................................................82 3.4 A ESCOLHA DAS EMPRESAS....................................................................87 3.5 ENTREVISTA.................................................................................................89 4 CAMPO DE ESTUDO..................................................................................93 4.1 CARACTERIZAÇÃO DO PÓLO DE INFORMÁTICA...............................93 4.2 CARACTERIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS ENTREVISTADOS............97 4.2.1 DESENVOLVEDORES...........................................................................98 4.2.2 GERENTES..............................................................................................102 4.2.3 DIRETORES E EXECUTIVOS................................................................103 4.3 RESULTADOS DE CAMPO..........................................................................104 4.3.1 OS DESENVOLVEDORES, A OBSOLESCÊNCIA E A INSEGURANÇA............................................................................................105 4.3.2 SOLUÇÕES...............................................................................................115 4.3.3 OS GERENTES E A BUSCA PELA SERENIDADE CONCRETA........123 4.3.4 SOLUÇÕES................................................................................................130 4.3.5 OS EXECUTIVOS E O PRAGMATISMO ACELERADO......................135
2
4.3.6 SOLUÇÕES................................................................................................139 4.3.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................140 5 CONCLUSÃO.....................................................................................................145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................152 ANEXOS ................................................................................................................158
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AGRADECIMENTOS
Quero agradecer a todos os que acreditaram nesse trabalho e que de alguma
forma contribuíram para que ele fosse realizado.
Minha família, que me deu o apoio necessário
A meu orientador, Jonatas Ferreira
Aos amigos inestimáveis
A Deus.
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Resumo
Este trabalho é resultante de uma pesquisa que busca identificar estratégias de
reflexividade em oposição a processos de desorientação, ansiedade e descentramento
provocados por intensa carga de trabalho, por aceleração e por problemas contingentes
de ordem técnica entre profissionais envolvidos com a criação de programas de
computador na cidade do Recife. Esse é o conjunto de desafios aos quais são
submetidos homens e mulheres que desenvolvem softwares. Quisemos saber como
essas pessoas pautam suas ações, projetos e expectativas pessoais e profissionais no
sentido de estabelecer padrões de vida mais harmoniosos entre demandas de ordem
privada e obrigações vinculadas à ordem do trabalho. Nosso objetivo mais específico,
ao identificar tais estratégias de reflexão, é analisar a maneira como demandas de
ordem subjetiva se relacionam com prioridades de ordem técnica, estabelecendo tipos
de ação e associações com diferentes tipos de racionalidade.
O contexto em que os profissionais do software (engenheiros, programadores,
analistas de sistemas, designers, administradores) atuam é caracterizado pelo
capitalismo globalizado, extensamente discutido por autores como Daniel Bell, Manuel
Castells, David Harvey e Anthonny Giddens. A existência de redes de relacionamento
que ajudam a caracterizar essa sociedade é de importância vital para compreender o
relacionamento entre empresas, instituições públicas, mercado consumidor de bens e
serviços, instituições de ensino e pesquisa. O ambiente de trabalho – as fábricas de
software – são instituições que concorrem em iguais condições com empresas do
mundo inteiro. Por isso mesmo, os processos de trabalho nas fábricas de software são
marcados pela forte necessidade de atualização do conhecimento usado na execução de
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tarefas, o que força a busca incessante por atualização desse conhecimento, de forma
acelerada, contingente e ininterrupta.
No fim da análise, verificamos que fatores de ordem subjetiva se associam a
fatores de ordem prática e funcional na composição de processos de auto-reflexão, de
onde evoluem críticas ao sistema de aprendizado, de execução do ofício de
desenvolvimento de softwares, além de valores pessoais e profissionais. O resultado é
que as prioridades pessoais e profissionais são realinhadas em função de vivências
subjetivas e valores, determinando soluções para ansiedade, perda de capacidade de
autodeterminação e risco. As soluções são baseadas na busca por experiências pessoais
e formas de trabalho nas fábricas de software que se oponham à condição de
insegurança vivida pontualmente no trabalho de desenvolvimento, nas atribuições dos
gerentes e nas responsabilidades dos executivos e empresários das empresas focadas.
A sistematização desse resultado foi colocada em tabelas que podem ser encontradas
no apêndice desse trabalho.
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Abstract
This study aims at identifying reflexivity strategies in contrast to disorientation,
anxiety and descentring processes made for intense workdays, acceleration and
contingent problems of technical order among professional working with compute
programs in the city of Recife.
This is a set of challenges to which are submitted men and women who develop
software. We intended to know how these people plan their action, projects and private
and professional expectations in order to establish more harmonious standard of life
considering personal and working demands.
Thus, our objective, once identified reflexivity strategies, is to analyze how
subjective demands are interrelated with technical priorities, establishing types of
action and association with different kinds of rationality.
The context where the software professional (engineers, programmers, system
analysts, designers, business administrators) work is characterized by the globalized
capitalism is extensively discussed by authors like Daniel Bell, Manuel Castells, David
Harvey, Anthonny Giddens, among others. The existence of a relationship network
which helps to characterize this society is of great importance to understand the
relation among firms, public institutions, consumer market of goods and services,
educational and research institutions. The working environment – the software plants –
are institutions which compete in equal conditions with firms worldwide. The work
process in software plants has the strong necessity of knowledge actualization applied
to accomplish jobs. This demands a nonstop knowledge actualization, in an
accelerated, contingent and continuous fashion.
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We have found out that subjective features interrelate with practical and
functional ones in the auto-reflexivity process composition, from which develop
criticism to the learning system, of execution of the developing software job, apart
from private and professional values.
As a result, the private and professional priorities are rearranged in relation
with subjective experiences and values, determining solutions to anxiety, auto-
determination capability loss and risk. The solutions are based on personal experiences
and ways of working in software plants which are in opposition to insecure conditions
experienced in the development work, in the manager obligations and in the executive
and employer responsibilities in the focused firms.
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1. Introdução e justificativa
O aumento da participação das tecnologias de informação e comunicação (TIC)
na oferta de produtos e serviços a vários segmentos da sociedade fez surgir nos últimos
anos uma categoria profissional muito especial. São os chamados profissionais do
software – analistas de sistemas, programadores, especialistas em segurança de dados,
webdesigners, engenheiros de software, cientistas da computação, administradores de
empresas especializados no setor, entre outros. Tais profissionais trabalham sob o peso
da obsolescência de informação e mesmo de formação – a mudança das competências
que lhes garante empregabilidade. Essa característica marca a dinâmica tecnológica e
as relações de trabalho na sociedade contemporânea. Mais que isso, o trabalho requer a
revisão constante de processos e de conhecimento gerados por esses próprios processos
e conhecimentos.
Em Pernambuco, todavia, os números indicam que, em 2003, as empresas de
tecnologia da informação e comunicação representaram 3,49% do Produto Interno
Bruto total do Estado. Isso representou uma taxa de crescimento em relação ao ano
anterior de 5,23%. Em termos financeiros, esse crescimento representou um valor
global de R$ 1,367 bilhão. O PIB de Pernambuco, nesse mesmo ano de 2003, foi de
R$ 36,5 bilhões, com um crescimento de 4% em relação ao ano anterior (2002).
O PIB devido somente às atividades de tecnologia da informação no ano de
2003 foi estimado em R$ 408,21 milhões – com taxa de crescimento de 6,83%. O
somatório de riquezas produzidas pelas empresas de tecnologia da informação
participa com 29,85% no setor (que inclui ainda as empresas de comunicação). A
participação das empresas de TI é de 1,04% no PIB do Estado. Se levarmos em conta
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as empresas do setor de tecnologia da informação e comunicação (portanto, incluindo
as empresas de telefonia), a participação do setor de TIC no PIB sobe para 3,49%.
A participação da produção de riquezas devida ao setor de tecnologia da
informação e comunicação na economia do Estado é, portanto, pequena. O que é
consistente é o fato de a taxa de crescimento ser mais elevada que os índices de
crescimento do Estado, revelando a dinâmica desse segmento. Esses dados foram
mostrados no estudo Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado de
Pernambuco, coordenado pela Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de
Pernambuco (Condepe/Fidem) e divulgado no mês de abril de 2005.
A importância da investigação realizada neste trabalho está ligada à forte
influência das TICs, nos últimos 40 a 50 anos, não obstante a relativamente pequena
relevância que esse conjunto de atividades produtivas tem atualmente na economia
pernambucana. A TIC está, hoje, na base dos setores de serviços, indústrias e
comércio. Pode-se dizer que o exercício competitivo dessas atividades depende da
utilização de novas tecnologias da informação e da necessidade de um profissional
adequado para operar tais mecanismos produtivos. Além disso, os profissionais do
software representam paradigmaticamente o trabalhador da sociedade contemporânea
cujo trabalho está cada vez mais vinculado à tecnologia. Este estudo, portanto, se
propõe também a contribuir para a compreensão de uma importante partição do
mercado de trabalho atual.
Os profissionais do software fornecem os recursos que permitem a conexão
entre pessoas, criam produtos e prestam serviços em que a tecnologia da informação e
comunicação é o principal suporte, desenvolvendo, enfim, soluções e programas que
melhoraram a vida no dia-a-dia das cidades contemporâneas – sistemas de pagamento
a distância, redes de compensação bancária, estruturas de comutação de dados
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aplicáveis dos sistemas de semáforos às redes de comunicação das operadoras de
telefonia, aplicações de pagamento usadas pelo comércio, estruturas de segurança
virtual para dados de empresas e crédito e bancos virtuais, e muitas outras. Tudo
parece demandar a expertise desses profissionais.
A procura por tais serviços e produtos, a forte concorrência entre vários centros
de excelência mundial, a flexibilização da produção que potencializa essa concorrência
(já que o trabalho pode ser realizado de qualquer ponto do globo) e a obsolescência de
tecnologias, de ramos do setor e de conhecimento criam instabilidade, ansiedade e
risco associados ao trabalho. Esse quadro é ainda pontuado por aceleração, velocidade
e descentramento do sujeito. Perguntamo-nos se é possível desenvolver estratégias de
ação e de pensamento que permitam a superação dessa condição de fragilidade e de
que forma elas eventualmente acontecem.
As ações dos sujeitos nessas situações vêm sendo discutidas por autores como
Paul Virilio (1996, 1994) e Jean Baudrillard (1997). A perspectiva desses autores é de
impossibilidade do desenvolvimento de mecanismos que permitam o controle da vida.
Virilio traça um panorama em que a vivência baseada na velocidade e na aceleração é
uma inevitabilidade típica das sociedades contemporâneas e, sob o signo do
deslocamento, esboça um quadro em que o aparato técnico-racional e a lógica da
aceleração exercem um assalto permanente ao mundo natural e à natureza do homem.
Virilio (1996) acredita na impossibilidade da intervenção consciente sobre o
fluxo de acontecimentos ao longo da vida pelo sujeito contemporâneo. As ações dos
indivíduos, para Virilio, não são amparadas por reflexão. O homem está abandonado às
pressões para responder ao imediatismo pontual, longe da dúvida e da hesitação. Para o
autor, o horizonte da experiência humana perde seu limite diante da virtualidade
maquínica, a informação constantemente em movimento se sobrepõe à realidade do
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acontecimento. As regras da política, de desenvolvimento, da ação ordinária são
fundamentadas na superação do tempo, na velocidade, e na superação do espaço, na
técnica.
Uma forma diferenciada de analisar a modernidade vem sendo construída por
Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Beck, na qual estratégias de ação consciente do
indivíduo sobre o mundo podem ser pautadas por auto-reflexão. Auto-reflexão que está
a serviço do controle do indivíduo sobre sua vida, da redução de riscos e de
insegurança oferecidas pelo trabalho, pelas regras sociais e políticas, pelo desequilíbrio
ecológico, pela aceleração e obsolescência da informação. A reflexividade, nesse
sentido, é vista como uma categoria de autodeterminação individual, pela qual o
sujeito enfrenta as ameaças psíquicas e sociais, mantendo níveis razoáveis de ordem e
estabilidade. A auto-reflexividade acontece quando a ação reflete-se sobre si mesma:
os indivíduos, baseados em informações a respeito de suas ações e em sua vivência,
desenvolvem sentidos sobre essa ação, que sofre novas alterações em virtude desses
novos sentidos atribuídos. Esse processo acontece de forma crônica e contínua.
Para Giddens (1991), os processos de auto-reflexão são influenciados por
amplos campos de conhecimento técnico – os indivíduos passam a confiar nos
chamados sistemas especialistas como a psicologia, a psicanálise, e mesmo a
sociologia, para organizar narrativas de vida na busca por equilíbrio e felicidade. Scott
Lash (apud BECK, 1997) salienta a existência de outra ordem de auto-reflexão, não
cognitiva, mas que pode ser influenciada pela estética, por um momento estético ou
uma fonte estética. Lash indica que essa dimensão da auto-reflexividade é a base para
uma nova ética, situada e contingente, que comanda o ajuste do indivíduo descentrado
à aceleração.
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Nossa atenção esteve voltada aos processos de auto-reflexividade dos
profissionais do software e à sua relação com as atribuições desenvolvidas nas fábricas
de software. Fizemos uma verificação empírica da aplicabilidade dos pressupostos da
teoria da modernização reflexiva. Perguntamo-nos em que medida as categorias
estanques e opostas de auto-reflexividade são suficientes para a compreensão da ação
dos indivíduos analisados e das demandas afetivas e técnico-racionais que os
envolvem.
Esta não é exatamente uma dissertação focada na área de sociologia do
trabalho, mas uma tentativa de analisar os efeitos da tecnologia da informação sobre a
ação dos indivíduos e as ordens de relevâncias que afetam as prioridades profissionais
e subjetivas desses indivíduos. Além disso, procuraremos entender como se opera a
relação entre um campo e outro da vida dos profissionais do software. A investigação
realizada procurou identificar estratégias de ação e ordenamento de prioridades que
pudessem superar essa ordem de risco e de instabilidade vivenciada. Procuramos ainda
descrever os mecanismos cognitivos e subjetivos envolvidos nas assim chamadas
estratégias de reflexividade.
No primeiro capítulo, é feita uma análise do contexto teórico formado pela
teoria pós-industrial segundo Daniel Bell, David Harvey e Krishan Kumar, bem como
as críticas de Manuel Castells. Revisitamos os conceitos de sociedade da informação e
sociedade em rede desse mesmo pensador. Consideramos nesse capítulo também o
trabalho de Jean Baudrillard e Paul Virilio acerca da sociedade contemporânea e
apresentamos a teoria da modernização reflexiva segundo Anthony Giddens, Ulrich
Beck e Scott Lash. O capítulo ainda contém uma abordagem sobre o modelo do
trabalhador pós-industrial tal como visto por Eliot Freidson.
13
O segundo capítulo foi reservado para a explanação dos fundamentos
metodológicos que pautaram as entrevistas e a análise das informações qualitativas
recolhidas. São apresentadas a fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz e a
tipologia da ação sistematizada por Max Weber, bem como a maneira pela qual essas
duas contribuições foram úteis na análise dos resultados. Como o nosso problema
central diz respeito à compreensão da maneira pela qual o indivíduo descentrado pela
aceleração tecnológica produz sentido e age reflexivamente diante de transformações
constantes em seu “ambiente”, essa escolha metodológica pareceu natural. O capítulo
também detalha os critérios de escolha das empresas onde trabalham os profissionais
do software entrevistados e a entrevista semi-estruturada aplicada.
No terceiro capítulo analisamos as informações recolhidas com três estratos de
profissionais das fábricas de software da cidade do Recife. Foram entrevistados
engenheiros, analistas de sistemas, designers e programadores envolvidos diretamente
com o trabalho de codificação de programas computacionais. Chamamos os
profissionais desse estrato de desenvolvedores. O segundo estrato, os gerentes, é
formado por analistas de negócios, administradores de empresas, economistas, que
comandam equipes e projetos. O terceiro estrato é formado por executivos e
empresários do setor. O último capítulo sintetiza análises realizadas ao logo de todo o
trabalho.
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2. Marco teórico
A principal base teórica utilizada para nos guiar na investigação realizada é
formada pela teoria da modernização reflexiva, desenvolvida por Anthony Giddens,
mas que também recebeu importantes colaborações de Scott Lash e Ulrich Beck. A
razão da escolha dessa teoria ficará clara mais à frente. Antes, porém, de mostrar como
a teoria da modernização reflexiva tornou possível a análise do trabalho dos
profissionais do software – assim como permitiu ampliar as hipóteses previamente
consideradas –, é necessário dar alguns passos iniciais.
Precisamos considerar o contexto de transformações sociais que impactaram e
continuam tendo reflexos na estrutura ocupacional e do emprego. Essas transformações
vêm sendo analisadas por diversos autores nas últimas décadas, e a contribuição desses
pensadores criou um contexto teórico e sociológico que tem de ser levado em
consideração. Tais mudanças são verificadas nas formas de produção de riquezas e nos
modelos de produtividade, em particular, e na economia de uma forma geral; na
posição que o conhecimento adquiriu na sociedade e na relação das pessoas com a
ciência.
Esse contexto amplo de transformações pode ser visto na passagem de uma
sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial (BELL). Também faz parte do
contexto teórico que tenta explicar o mundo contemporâneo a idéia de que vivemos em
uma sociedade pós-fordista, para uns (PIORE e SABEL), e pós-moderna (BAUMAN;
LASH; HARVEY), para outros. E há as abordagens teóricas nas quais se vê a
passagem de uma sociedade da modernidade simples para a modernidade reflexiva
(GIDDENS, BECK). Ou ainda as teorias que salientam a existência de uma sociedade
da informação (NAISBITT; VIRILIO; BAUDRILLARD; LEVY; CASTELLS).
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A consideração desse amplo espectro teórico é necessária porque ela prepara o
entendimento dos impactos no trabalho, das dificuldades de autodeterminação pessoal
e de ação crítica na vida. Muitas dessas transformações sociais são colocadas numa
perspectiva de crise social e de valores que permeiam a ação dos indivíduos. Elas são
vistas como fatores de perda da capacidade que os sujeitos têm para controlar o
ambiente social em que vivem e ainda colocam em risco as possibilidades dessa
autodeterminação dos indivíduos, a perda de segurança, do controle da vida, de
colonização do futuro.
É nesse sentido que a teoria da modernização reflexiva revela que as
possibilidades de autodeterminação e mesmo da crítica a esse sistema são possíveis,
como também a forma como essa capacidade se expressa. A reflexividade apontada
por Anthony Giddens é uma categoria moderna da autodeterminação individual e
também institucional, fruto do próprio desenvolvimento da modernidade.
O que propomos com este trabalho é investigar em que medida e de que forma
os trabalhadores envolvidos no desenvolvimento de softwares desenvolvem estratégias
de autodeterminação, de crítica ao sistema, de separação do ambiente produtivo das
demandas privadas – ou seja, em que medida e por quais meios as estratégias de
reflexividade são desenvolvidas.
O contexto social já foi apontado. O contexto teórico, multifacetado e por vezes
contraditório, que será exposto em seguida, é formado por maneiras diferenciadas de
tentar compreender a sociedade contemporânea. É dessa constatação que surge a
necessidade de abordarmos a teoria pós-industrial, a teoria da sociedade da
informação, a teoria pós-fordista e a escola de pensadores que classificam como pós-
moderna a contemporaneidade.
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2.1 Cenário teórico
O lugar central da informação e do conhecimento no funcionamento das
fábricas de software, as relações de produção envolvidas, o formato de tarefas e a
flexibilidade dos processos de trabalho aproximam os profissionais do software, e seu
ofício, dos modelos teóricos que tentam descrever e interpretar o mundo
contemporâneo a partir da perspectiva pós-industrialista. O trabalho do
desenvolvimento de softwares é classificado, dentro da teoria pós-industrial, como
pertencendo ao setor de serviços.
Daniel Bell (1977) é a referência mais básica e fonte inevitável de análise e
interpretação daquilo que se convencionou chamar de sociedade pós-industrial.
Essencialmente, a teoria pós-industrial clássica prevista e analisada por Bell prevê três
grandes mudanças na ordem econômica mundial: 1) a principal atividade econômica
da sociedade industrial, caracterizada pela produção de bens, perderia sua hegemonia e
migraria para outro modelo, de prestação e serviços. O setor de serviços se constituiria
como a maioria esmagadora da oferta de emprego. O declínio do emprego industrial
viria depois do fim do emprego rural. Assim, uma economia seria tanto mais avançada
se sua produção e oferta de emprego estivessem vinculadas ao setor de serviços; 2) a
origem do crescimento e da produtividade da economia é o conhecimento; 3) as
profissões especializadas, que gerenciam grande conteúdo de informação, vinculadas a
conhecimento técnico, ganham uma importância jamais obtida anteriormente. Tais
profissões administrativas, especializadas e técnicas redefinem a estrutura social dessa
nova economia (BELL, 1977, 35).
Vale a pena examinar mais de perto cada um desses três aspectos. Os fatores
essenciais da teoria de Bell, articulados, resumem a idéia de que o nível mais
fundamental da sociedade é alterado: inicia-se um novo modo de produção, a fonte de
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criação de riqueza e os fatores determinantes deixam de ser a indústria de bens e a
agricultura. O trabalho e o capital, as variáveis básicas da sociedade industrial, são
substituídos pela informação e pelo conhecimento como fontes de produção de
riqueza.
A queda do trabalho industrial seria acompanhada pelo aumento do peso dos
serviços no conjunto dos ocupados. Principalmente dos serviços nos novos setores –
com uma concentração especial em atividades ligadas a conhecimento. Para Bell,
existem várias classes de serviço. A classe de serviços pessoais é formada por lojas
varejistas, lavanderias, garagens, salões de beleza, entre outros. Os serviços de
negócios são aqueles oferecidos por bancos, área de finanças, negócios com imóveis e
seguros. Há ainda toda a classe de serviços de transportes, comunicações e empresas
de utilidade pública. Os serviços de saúde, educação, pesquisa e aqueles oferecidos
pelos governos determinam o desenvolvimento da sociedade pós-industrial, além de
criar uma nova “intelligentsia”.
Essa seria a razão pela qual o número de trabalhadores dedicados ao trabalho
em escritórios e com nível superior de formação teria aumentado nos últimos anos.
Essa é outra forma de caracterizar a sociedade pós-industrial. O trabalho exige uma
capacitação técnica inédita e se verifica um crescimento do número de cientistas e
engenheiros maior que o crescimento de trabalhadores industriais. Em termos práticos,
esse fenômeno geraria a primazia do conhecimento teórico (BELL, 1977, p. 66).
Acontece a primazia da teoria sobre o empirismo e a codificação do conhecimento em sistemas abstratos de símbolos que, a exemplo de todo sistema axiomático, podem ser utilizados para esclarecer muitas áreas de experiência diferentes (BELL, 1977, p. 87).
A união da ciência, da tecnologia e da economia pode ser resumida com o
termo “pesquisa e desenvolvimento”: “A sociedade pós-industrial é uma sociedade de
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informação, como a sociedade industrial é uma sociedade produtora de bens” (BELL,
1977, p. 467). Foi desse amálgama que resultaram as indústrias calcadas na ciência que
dominam cada vez mais o setor industrial da sociedade e que indicam o rumo das
sociedades pós-industriais. Os progressos num determinado campo, assim, dependem
cada vez mais da primazia do trabalho teórico, que codifica o que já é conhecido e
aponta o caminho para a confirmação empírica. As universidades, organizações
destinadas à pesquisa e as instituições intelectuais, onde o conhecimento teórico é
codificado, se transformam em estruturas axiais da sociedade pós-industrial.
A teoria da sociedade pós-industrial foi formulada nas décadas de 1960 e 1970.
Kumar (1997) explica que, naquele momento, ela foi reflexo de um estado de crise e
de necessária mudança na estrutura do emprego e da oferta de serviços. Bell deixa isso
claro ao explicar que a sociedade industrial exigiu o desenvolvimento de transportes e
de utilidades públicas que tornassem possível a veiculação de bens produzidos. Esse é
um dos componentes do aumento da categoria de serviços para operacionalizar essa
veiculação. A conseqüência imediata é o aumento da força de trabalho que não está nas
fábricas, mas que cuida de todo arranjo burocrático da infra-estrutura de transportes e
de utilidades públicas existentes nas cidades contemporâneas.
Há ainda outros fatores para o crescimento da massa de trabalhadores no setor
de serviços. O consumo de massa, consolidado na era industrial, criou a demanda por
seguros e modalidades de aplicações e outros produtos financeiros – todos
caracterizados como serviços. Foi também o consumo de massa na sociedade industrial
que levou ao interesse por artigos pessoais, produtos de luxo e lazer. Assim, aparecem
os serviços ligados a hotéis, restaurantes, centros de beleza e de compras, cuidados
com o corpo (cosméticos), viagens de turismo e centros de diversão.
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Bell considera que o surgimento da sociedade pós-industrial também é marcado
por cobranças, realizadas pela sociedade, daquilo que a modernidade prometeu:
educação e saúde. No que se refere à saúde, as tentativas de eliminação de doenças, o
desenvolvimento de técnicas que aumentem a longevidade das pessoas e os
investimentos em serviços sanitários e em escolas de saúde teriam contribuído também
para a consolidação do setor de serviços técnicos. No que se refere à educação, as
exigências de habilidades técnicas são cada vez maiores, pois condicionam a entrada
de pessoas, instituições, empresas, países, na sociedade pós-industrial. Daí o reforço,
também nessa área do setor de serviços, com a oferta de serviços educacionais. O
aumento do número de trabalhadores no comércio, finanças, educação, saúde e
governos reflete e explicita o quadro de uma sociedade em que a produção de riquezas
não é mais guiada pela produção de bens na indústria.
As conclusões de Bell são tomadas com base em pesquisas realizadas por
Solow e Kendrick relativas à primeira metade do século XX nos Estados Unidos, no
auge da era industrial. Esse detalhe terá importância adiante, quando discutiremos as
críticas que recebeu a teoria do pós-industrialismo. Basicamente, a questão que se
discutirá é se a produtividade baseada em conhecimentos é específica da economia
informacional ou poderia ser verificada também na economia industrial clássica.
Por enquanto, precisamos nos deter mais um pouco nas conseqüências teóricas
do conceito de sociedade pós-industrial. Tal conceito se desdobrou, a partir do estudo
de Bell, em diversos outros, que buscam caracterizar a natureza das sociedades
contemporâneas. A continuidade mais evidente em relação à teoria pós-industrial é a
interpretação da sociedade moderna como uma sociedade da informação – Daniel Bell
é, também, seu expositor mais importante (KUMAR, 1997).
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Kumar, aliás, identifica as teorias da sociedade da informação, do pós-fordismo
e do pós-modernismo como originadas na concepção pós-industrialista de sociedade.
Essa interpretação, no entanto, não é completamente aceita e recebe importantes
críticas de pensadores como Manuel Castells, como se verá mais adiante.
Nesse caminho de interpretação da sociedade, a informação designa a
sociedade pós-industrial (KUMAR, 1997). A premissa básica é que o conhecimento e
a informação estão se tornando os recursos estratégicos e os agentes transformadores
da sociedade pós-industrial. Em sintonia com esses pensadores, Bell (1980) afirma que
na sociedade pós-industrial o conhecimento é fonte de valor e ganha mais força com o
desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. A chamada revolução
informacional da produção é considerada, por seus teóricos, como a terceira revolução
industrial. Revolução que coloca a informação no centro da produção, como recurso
estratégico e agente transformador dessa sociedade pós-industrial: a geração de
riquezas passa a ser baseada na capacidade de produção, gerenciamento e transmissão
de informação e conhecimento necessários para as pessoas, fábricas, economias e
países inteiros funcionarem, se comunicarem e produzirem.
O conceito de sociedade de informação ajusta-se bem à tradição liberal, progressivista, do pensamento ocidental. Mantém a fé do Iluminismo na racionalidade e no progresso. Na medida em que o conhecimento e seu acúmulo são equiparados a maior eficiência e maior liberdade, essa opinião, a despeito de seus pronunciamentos favoráveis a uma mudança radical na organização social, dá prosseguimento à linha de pensamento iniciada por Saint-Simon, Comte e os positivistas (KUMAR, 1997, p. 15).
A analogia com os tipos de energia e os recursos mecânicos que impulsionaram
o modo de produção industrial é corrente entre os teóricos da sociedade da informação:
a tecnologia do computador é para a era da informação o que a mecanização foi para a
revolução industrial. O que teria gerado a sociedade da informação seria a
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convergência entre o computador e as telecomunicações. Segundo Bell (1980), foi essa
união que tornou possíveis satélites, televisão, telefone, cabos de fibra ótica e o
conseqüente sistema global de conhecimento e informação disponível (BELL, 1980, p.
513).
O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados, tornou-se essencial à coordenação centralizada de interesses corporativos descentralizados. A capacidade de resposta instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das modas e dos gostos e iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a sobrevivência corporativa do que teve sobre o fordismo. A ênfase na informação também gerou um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente especializados capazes de fornecer informações quase minuto a minuto sobre tendências de mercado e o tipo de análise instantânea de dados útil para as decisões corporativas. Ela também criou uma situação em que vastos lucros podem ser realizados com base no acesso privilegiado às informações, em particular nos mercados monetários e financeiros (HARVEY, 2004, p. 151).
Essa nova esfera de informação que se estabelece e caracteriza a sociedade da
informação opera em um contexto global, tanto para indivíduos como para instituições,
empresas, governos: uma rede eletrônica mundial de bibliotecas, arquivos e bancos de
dados surgiu e pode ser, pelo menos teoricamente, acessada de qualquer ponto da
Terra. O próprio Daniel Bell mostrou que as sociedades do passado foram basicamente
limitadas pelo espaço ou pelo tempo. Eram mantidas coesas por autoridade burocrática
e política, que tinha por base um território, e/ou pela história e pelas tradições.
O industrialismo legitimou o espaço na nação-estado, ao mesmo tempo em que substituía os ritmos e movimentos da natureza pelo ritmo da máquina. O relógio e os horários das estradas de ferro constituíam os símbolos da era industrial. Expressavam o tempo em horas, minutos, segundos. O computador, símbolo da era da informação, pensa em nanossegundos, em milhares de microssegundos. Junto à nova tecnologia das comunicações, ele introduz um marco espaço-tempo radicalmente novo na sociedade moderna (KUMAR, 1997, p. 23).
22
O conhecimento se tornou, rapidamente, a atividade-técnica da economia e o
principal determinante da mudança ocupacional. David Harvey mostra que o
capitalismo encontrou novas formas de organização com a dispersão, a mobilidade
geográfica e as respostas flexíveis nos mercados de trabalho, nos processos de trabalho
e nos mercados de consumo, que são acompanhados por inovação tecnológica,
inovação dos produtos e inovação das instituições (HARVEY, 2004). E, nesse novo
quadro do capitalismo, a dupla articulação entre informação e conhecimento com
trabalho é fundamental.
O acesso ao conhecimento científico e técnico sempre teve importância na luta competitiva; mas também aqui, podemos ver uma renovação de interesse e de ênfase, já que, num mundo de rápidas mudanças de gostos e necessidades e de sistemas de produção flexíveis (em oposição ao mundo relativamente estável do fordismo padronizado), o conhecimento da última técnica, do mais novo produto, da mais recente descoberta científica, implica a possibilidade de alcançar uma importante vantagem competitiva. O próprio saber se torna uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob condições que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas (HARVEY, 2004, p. 151).
Não é por acaso que vem crescendo, como já comentado acima, o número de
profissionais cujas atividades estão baseadas na informação – em sua manipulação,
tratamento, veiculação – e no conhecimento mais e mais efêmero. Para comprovar
isso, Bell utiliza os estudos de Marc Porat (1977) sobre o “setor primário da
informação” (indústrias de bens e serviços de informação comercializáveis). Ele
compara esses dados com os cálculos sobre o “setor secundário de informação”
(atividades de informação na estrutura técnica de empresas públicas e privadas que
contribuem de forma indireta para o produto, mas que não são consideradas serviços
de informação nos cálculos nacionais).
23
Ele conclui nessa comparação que a economia da informação nos Estados
Unidos equivale a 46% do Produto Nacional Bruto (PNB) daquele país. E corresponde
a mais de 50% dos salários pagos – ou seja, mais da metade da renda nacional advém,
pela interpretação de Bell, do trabalho vinculado à informação. O estudo da situação
nos Estados Unidos feito por Bell é tomado como paradigmático do mesmo fenômeno
em uma escala global.
Mas as teorias pós-industriais baseiam-se em afirmações e previsões que,
segundo Castells (1999, p. 225), devem ser reexaminadas. Sua principal crítica se
refere à idéia de que as três concepções básicas dos pós-industrialismo sejam
homogêneas, a despeito da evolução histórica, e que essa evolução tenha-se dado de
forma única e generalizada, ocasionando a sociedade da informação. Nesse sentido,
Castells segue argumentando contra os pressupostos do modo de produção tomado por
pós-industrial. Sobre o pressuposto de que a fonte de produtividade e crescimento
reside na geração e administração de conhecimentos, escreve:
A distinção apropriada não é entre uma economia industrial e uma pós-industrial, mas entre duas formas de produção industrial, rural e de serviços baseadas em conhecimento [...]. Proponho mudar a ênfase analítica do pós-industrialismo [...] para informacionalismo. Nesta perspectiva, as sociedades serão informacionais, não porque se encaixem em um modelo específico de estrutura social, mas porque organizam seu sistema produtivo em torno de princípios de maximização da produtividade baseada em conhecimentos, por intermédio do desenvolvimento e da difusão de tecnologias da informação e pelo atendimento dos pré-requisitos para sua utilização (principalmente recursos humanos e infra-estrutura de comunicação) (CASTELLS, 1999, p. 226).
Ou seja, não existe uma economia pós-industrial, e sim um tipo diferenciado de
economia industrial baseada na produtividade máxima, dependente do conhecimento,
pela expansão e difusão das novas tecnologias de informação, atrelada à capacitação e
especialização da mão-de-obra e baseada numa infra-estrutura comunicacional. No que
24
se refere à previsão de que a atividade econômica mudaria da produção de bens para a
prestação de serviços, de fato, o setor de serviços é responsável pela maior oferta de
empregos nas economias de primeiro mundo. No entanto, isso não deve ser
compreendido como indicativo de que o setor industrial esteja desaparecendo ou que o
vigor da atividade industrial não influencie o setor de serviços.
Castells lembra o trabalho de Cohen e Zysman (1987), no qual os autores
apregoam que, apesar da redução do peso da indústria no conjunto do emprego dos
países desenvolvidos (em favor das atividades de serviços), as atividades industriais
ainda comandam parcela bastante expressiva dos respectivos Produtos Internos Brutos
dos países industrializados, pois parte importante dos serviços criados está relacionada
às atividades industriais e depende diretamente delas.
O terceiro pressuposto da teoria do pós-industrialismo analisado por Castells se
refere ao aumento de profissionais com alto grau e domínio de informações, como
administradores profissionais especializados e técnicos, que representariam a elite na
nova configuração da estrutura do emprego. Castells afirma que, na realidade, o
crescimento da economia informacional também possibilitou a expansão de profissões
simples, sem qualificação especial requerida (1999, p. 227).
Mas a principal crítica de Castells se refere mesmo à idéia, presente na teoria
pós-industrial de Bell e de outros pensadores, de que essas três concepções alimentem
um caminho inexorável de todas as sociedades rumo ao modelo de sociedade pós-
industrial. Essa idéia implica que um mesmo processo histórico acontecerá de forma
generalizada em países diferentes, gerando globalmente essa sociedade informacional,
que é identificada com a teoria pós-industrial.
A revolução das novas tecnologias de informação e comunicação, cujo ápice se
deu na década de 1990, provocou grandes transformações nos processos de trabalho,
25
introduzindo novas técnicas, alterando as relações de trabalho e fazendo emergir ao
mesmo tempo a organização de empresas conectadas em redes. Ao forte determinismo
inerente à teoria pós-industrial, Castells (1999) contrapõe o novo paradigma
informacional de trabalho e mão-de-obra, que, segundo ele, não é um modelo simples
e recebe influência da interação histórica entre as transformações tecnológicas, da
política das relações industriais e da ação social.
As novas tecnologias de informação e comunicação permeiam todas as teorias
que tentam interpretar a sociedade contemporânea. Aceite-se ou não a noção de uma
era pós-industrial, é correto afirmar que as novas tecnologias de informação e
comunicação determinam de forma mais ou menos regular, e em toda parte, novas
formas de vida. Trabalho, diversão, educação, relações familiares, aceleração e
estruturas de opiniões adaptam-se de forma gradual ou sucumbem às pressões, às
oportunidades das novas forças técnicas e às exigências por adaptação a um mundo em
alta velocidade (KUMAR, 1997, p. 49). E se a teoria da sociedade da informação
enfatiza as forças de produção, a teoria pós-fordista tenta analisar o mundo
contemporâneo em termos das relações de produção. A teoria pós-fordista também se
refere ao contexto de transformações.
O âmago da teoria pós-fordista é a idéia de especialização flexível, pois ela
combina as possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação e
comunicação com as mudanças na natureza do mercado consumidor. A velocidade das
mudanças na moda e nos estilos de vida, associada à inovação tecnológica, exige
alterações muito rápidas na produção, que só podem ser exercidas em função das
tecnologias utilizadas e com pessoal cada vez mais especializado para exercê-las.
O contexto econômico das teorias pós-fordistas é formado por um mercado de
massa fragmentado em uma grande diversidade de grupos de consumidores, que
26
descartam padrões de consumo em busca de outros padrões de forma muito rápida. Por
outro lado, essa situação se ajusta aos interesses das empresas capitalistas no sentido
de procurar e encontrar novas maneiras de explorar e expandir mercados.
A tecnologia flexível dá origem à especialização flexível. Novas idéias podem ser de imediato transformadas em novos produtos, idéias mais novas em produtos ainda mais novos. A produção é feita segundo o gosto do freguês, adaptada a desejos e necessidades muito específicos, em um estado de mudança constante (KUMAR, 1997, p. 56).
Para atender às exigências do cliente em curto prazo, a produção não requer
fábricas de grande porte nem pode ser conduzida por trabalhador sem especialização –
típico da produção fordista. Essa especialização da produção e do consumo exige
perícia e flexibilidade tanto da máquina quanto do operador. A teoria pós-fordista
contribui com o perfil de um trabalhador que precisa atualizar suas especializações de
acordo com as relações de produção em que está imerso – relações essas que
dependem, progressivamente, das novas tecnologias de informação e comunicação. A
idéia geral desse trabalhador flexível será mais explorada no tópico seguinte.
2.2 O protótipo do trabalhador pós-industrial
O trabalhador típico da era industrial começou a ser conhecido com a
consolidação do modo de produção industrial. A organização das fábricas ampliou o
controle do empresário sobre o trabalhador. Criaram-se nas unidades fabris uma
hierarquia e uma ordem inexistentes no sistema doméstico e nas oficinas. A
observância dessa ordem estava ligada, principalmente, à autoridade financeira.
A noção de vinculação a um emprego é muito forte no modo de produção
industrial. Quanto mais tempo o trabalhador ficar em uma empresa, maiores são suas
chances de “fazer carreira” e menor a possibilidade de ser rompido o vínculo
27
trabalhista. Os atributos técnicos básicos necessários à efetuação das tarefas diárias não
sofrem mudanças ao longo de toda a vida do profissional típico da economia industrial.
O perfil do trabalhador médio é constituído por indivíduos do sexo masculino, de baixa
escolaridade, formado ‘no chão de fábrica’, que trabalhava nas indústrias, diretamente
nas linhas de produção.
As mudanças nas relações de produção, que se aprofundaram na década de
1970, vêm alterando gradativamente esse quadro sucinto do perfil do trabalhador. Eliot
Freidson, observando o declínio do trabalho industrial e a ascensão dos trabalhadores
engajados principalmente nas atividades de escritório, de vendas e de serviços, se
propõe a responder à questão que nos interessa aqui: qual o arquétipo do trabalhador
na sociedade pós-industrial?
Salientando que, mesmo sem saber se o arquétipo do trabalhador da sociedade
pós-industrial existe de fato, Freidson cita as respostas de Bell (1968), Lane (1966) e
Etzioni (1968) a essas perguntas. Em uníssono, esses pensadores consideram que os
trabalhadores pós-industriais, em geral, praticam ofícios complexos, para os quais a
educação superior é considerada necessária.
Freidson cita o trabalho de John Kenneth Galbraith, que salienta o papel do
especialista que planeja e toma decisões – a palavra “tecnocrata” é muito utilizada por
esse pensador: são os engenheiros, economistas, analistas de sistema, administradores
com treinamento especial. Freidson chama a atenção para o papel do trabalhador de
serviços pessoais. São professores, médicos, assistentes pessoais, enfermeiras,
consultores ligados aos serviços assistenciais, psicológicos, médicos e funcionários do
welfare state (Estado de bem-estar social). Mas Freidson e nós ainda continuamos com
a mesma pergunta: qual o protótipo do profissional pós-industrial?
28
Cada autor, quando trata da sociedade pós-industrial, tem em mente uma questão particular e por isso enfatiza um tipo de trabalhador e não outro. Embora todos os trabalhadores possam ser iguais no fato de possuírem uma educação superior, eles são educados em temas muito diferentes e por métodos bastante diferentes, realizam tipos de trabalho muito diversos e possuem tipos de responsabilidade muito distintos. A educação superior como tal, independentemente do seu currículo ou do trabalho para o qual ela prepara, não discrimina numa função diferenças analíticas tão básicas quanto as existentes entre administrador e trabalhador. Essa diferença é a chave para a compreensão da maneira como se organiza o trabalho (na sociedade contemporânea). E é a chave também para discernir como a sociedade pós-industrial pode diferir da sociedade industrial de maneira não reconhecida pelos que ressaltam o papel do conhecimento em abstrato, sem indagar como o conhecimento se organiza como trabalho (FREIDSON, 1998, p. 136. Grifo nosso).
Assim, Freidson diferencia o gerente e o trabalhador como meio de
compreender o protótipo do trabalhador que procuramos. Percebemos que a distância
entre essas duas categorias de cargo, na sociedade industrial, era delimitada pela
“autoridade”, que determina tarefas, emprega, treina, designa e supervisiona o
trabalhador. E este realiza as tarefas.
Freidson mostra que, na sociedade pós-industrial, essa relação clássica entre o
gerente e o trabalhador produtivo é posta em xeque no dia-a-dia das mais variadas
profissões. A autoridade é realinhada para facilitar as tarefas e a comunicação entre as
pessoas. Esse trabalhador pós-industrial adquiriu condições de opor-se a grande parte
da autoridade e do controle do administrador. Por um lado, isso acontece porque a sua
formação também é superior e, por outro, porque as tarefas desempenhadas não
dependem nem são criadas pelos administradores. São demandas do complexo que
forma o próprio trabalho.
Da mesma forma, as qualificações para realizar as tarefas não são definidas
exclusivamente pela administração. E, por fim, a avaliação da realização das tarefas
também não cabe exclusivamente à administração. Se antes a autoridade vinha da
29
diferença de formação e do poder de conferir emprego, treinamento,
supervisionamento total e designação de tarefas de maneira unívoca, agora essa relação
se modifica. A autonomia se constitui como um elemento (e mesmo uma qualidade
necessária) do trabalhador pós-industrial e grande parte dessa relação antes
estabelecida com administrador/patrão/chefe/empresa se transfere para outras esferas.
No que se refere à capacitação, essas novas esferas estão ligadas ao treinamento
realizado fora da empresa, em áreas que não são, necessariamente, prioritárias para a
instituição empregadora. A escolha de um tipo de especialização acontece, para o
trabalhador pós-industrial desenhado por Freidson, também em função de seus
interesses individualmente definidos ou de suas expectativas de futuro – e não
necessariamente nascem do interesse em consolidar uma carreira na empresa em que
atua.
O sistema de treinamento e capacitação oferecido por outras instituições
adquire relevância tão grande, que talvez possa ser comparado aos sistemas formais de
certificação. A qualificação, assim, não é mais uma dádiva do empregador nem é
encontrada somente nas fontes tradicionais de formação da modernidade: as
universidades. Os centros de treinamento e capacitação específicos começam a ocupar
espaço.
Nesse sentido, o caso dos desenvolvedores de software é emblemático: o
desenvolvimento de habilidades para a criação de softwares está ligado a um sistema
que está além do administrador e de suas prioridades. Esse sistema se refere a novos
paradigmas computacionais, a novas linguagens ou ferramentas computacionais, a
requisitos técnicos do mercado empregador.
É daí que surge a necessidade de esses profissionais se adaptarem, treinarem, se
formarem e se reciclarem de forma mais autônoma e independente dos objetivos
30
imediatos do empregador – embora essa independência não seja total, ela é relevante e
nova em relação ao trabalhador típico da produção industrial clássica.
Nem as tarefas nem o status desses trabalhadores pós-industriais parecem
sujeitos ao tipo de racionalização que foi aplicado pela administração ao trabalhador da
linha fabril na sociedade industrial. Na verdade, segundo Freidson, há uma crise na
racionalização e no controle administrativos. As competências estratégicas são de tal
natureza que resistem a essa racionalização administrativa. Todo esse contexto é o
pano de fundo em que se encontram os engenheiros de software e as fábricas onde
estes trabalham. Isso será tratado mais adiante.
A educação vocacional superior não apenas introduz “conhecimento” nas cabeças das pessoas, mas também constrói expectativas e compromissos que não são facilmente dominados pela racionalização política ou administrativa. Constroem-se identidades ocupacionais especializadas e organizadas. O conhecimento se institucionaliza como expertise. A estrutura de significados e compromissos pode sobrepujar as metas ou compromissos organizacionais (FREIDSON, 1998, p. 138).
Freidson chama a atenção para o fato de que o treinamento em competências
complexas e abstratas – competências baseadas em conhecimento – faz os
profissionais que recebem tal treinamento desenvolver compromissos
institucionalizados. Ocorre identificação com sua competência e com os companheiros
que receberam o mesmo treinamento. Essa identificação geraria uma solidariedade de
massa – parecida com a que se verificava entre os trabalhadores industriais em
sindicatos – e também uma solidariedade disciplinar (ocupacional).
Essa categoria de trabalhadores solidariamente vinculados não aceita ser tratada
como simples trabalhadores manuais para realizar quaisquer tarefas que a
administração possa inventar e depois treiná-los para exercê-las. Isso porque tais
profissionais pós-industriais são um tipo de mão-de-obra com competências
31
preexistentes que podem ser necessárias à administração, mas que a administração
deve aceitar mais ou menos como dadas – já que elas não são, necessariamente,
fornecidas por essa administração. É daí que vem a resistência à simplificação, à
fragmentação, à mecanização ou a “algum outro modo de racionalização
administrativa do trabalho” (FREIDSON, 1998, p. 138).
Portanto, o que temos até agora é a convicção de que um novo tipo de trabalho
altamente instruído com competências especializadas se tornou importante nessa
sociedade pós-industrial. E essas competências se opõem a um tipo particular de
racionalização administrativa – que por sua vez delimitava o caráter da autoridade e da
estrutura corporativa formal.
A questão que se coloca, então, é especificar a natureza e a fonte de controle e
coordenação dos diversos tipos de trabalho especializado. Ou seja, o que organiza o
trabalho e como ele é coordenado. Freidson explica que, historicamente, a organização
social da divisão do trabalho se constituiu de duas maneiras: pela burocratização e pela
profissionalização.
O primeiro caso é típico da sociedade industrial de produção: o caráter da
tarefa, o sujeito a desempenhá-la, a própria tarefa e a capacitação são fornecidos pela
administração. O trabalhador e suas atividades são moldados à imagem e semelhança
da necessidade das concepções gerenciais para a produção de bens ou da oferta de
serviços. O recrutamento do sujeito acontece dentro da lógica de divisão do trabalho,
que é função da autoridade burocrática ou administrativa. A autoridade está na
administração, que coordena as relações entre as tarefas produtivas.
No segundo caso de organização social da divisão do trabalho, o sujeito que
realizará as tarefas, a maneira como isso acontecerá e os procedimentos de avaliação
32
são controlados por quem efetivamente faz o trabalho produtivo. O trabalho é
organizado em ocupações especializadas que controlam suas próprias tarefas.
A autoridade necessária para a definição e organização de tarefas deriva dos
próprios trabalhadores. “A técnica sempre cria um tipo de sociedade secreta, uma
fraternidade fechada de seus praticantes”, afirma Ellul (1964, p. 162). Isso significa,
como o próprio Freidson aponta, que a autoridade é reivindicada e se realinha com a
posse de competência – em última análise, com capacitação, conhecimento.
Assim, Freidson explica seu ponto de vista: as fronteiras entre as tarefas
institucionalizadas, na sociedade pós-industrial, bem como a autoridade para coordenar
tarefas inter-relacionadas, são estabelecidas por jurisdições ocupacionais. Autoridade
essa que é fundada mais na expertise institucionalizada (reconhecida) que na
experiência do cargo burocrático – isso explicaria o fato de existirem tantos jovens
chefes envolvidos no trabalho de desenvolvimento de software aqui investigado. Mas
isso também é assunto para adiante.
Outra característica do trabalhador, na sociedade contemporânea, além dessa
dimensão da autoridade, é que o desempenho profissional é cada vez menos pautado
pelo cumprimento de tarefas prescritas. A performance profissional desses indivíduos
passa a ser associada ao cumprimento de “missões”. O critério de avaliação é a
capacidade de produzir mais, em menos tempo, maximizando os recursos disponíveis
para a realização do trabalho.
Os trabalhadores, assim, são chamados a intervir no processo, corrigindo erros,
resolvendo problemas que aparecem, negociando com colegas, superiores,
fornecedores e clientes. Novas habilidades são exigidas. Uma delas é justamente lidar
com as tecnologias de informação e comunicação, que pedem o domínio de códigos
abstratos e novas linguagens.
33
Com relação aos conteúdos, entre estes novos requisitos estão não apenas conhecimentos técnicos, mas também – e talvez principalmente, como enfatiza boa parte da literatura – amplas habilidades cognitivas e certas características comportamentais e atitudinais, tais como: capacidade de abstração, de raciocínio, de domínio de símbolos e de linguagem matemática para a leitura de modelos e antecipação de problemas, aleatórios e imprevistos; iniciativa, responsabilidade, compromisso, cooperação, interesse, criatividade, capacidade de decisão, para o trabalho em equipe, para a visualização das regras de organização, das relações de mercado, etc. As qualificações dos trabalhadores não deveriam responder tanto ao trabalho prescrito, mas sim à imprevisibilidade. Nesse sentido, o saber construído no cotidiano do trabalho, a chamada “qualificação tácita” (Wood e Jones, 1984), que era negada pelo taylorismo, passa a ser então requisitado e valorizado (TARTUCE, 2002, p. 27).
Disposição para “aprender a aprender” em temporalidade contínua, ao longo da
vida, também passou a fazer parte do conjunto mínimo de qualidades desse
trabalhador, caracterizando-o. As mudanças nas prioridades institucionais e nas
relações de produção forçam a disposição para a flexibilidade. O trabalhador da
indústria e do setor de serviços é, necessariamente, mais escolarizado. Ele não tem a
garantia do emprego para toda a vida, tem menos interesse pela associação aos
sindicatos tradicionais. Além da pressão para aumentar a própria produtividade, sofre a
pressão por se capacitar e atualizar conhecimentos. Essas exigências ganham um
colorido a mais: a velocidade. A atualização de conhecimento necessariamente precisa
ser feita de forma rápida, dinâmica e não somente contínua. Da mesma forma, a
velocidade com que novas práticas do trabalho são geradas colabora com o clima de
incerteza e insegurança.
Em outras palavras, as noções de trabalho/emprego/segurança social, tratadas
quase como sinônimas, mudaram com o passar do tempo, em sintonia com a evolução
da sociedade e das condições da produção. O trabalhador contemporâneo convive com
34
a ameaça do desemprego, da concorrência, de ser superado tecnicamente por outros
profissionais ou por novos processos de produção mecanizados.
O exercício dessas novas competências tem resultado, também, numa crescente
individualização das relações de trabalho, nas quais cada profissional passa a ser
remunerado pela quantidade de valor que agrega aos produtos e aos processos. O apelo
à aprendizagem contínua segue uma lógica em que as capacidades técnicas são
atualizadas a cada dia, em confronto com situações-problema apresentadas pela
realidade do trabalho (ADLER, 1987, p. 298). Desse modo, a noção de educação
concluída é substituída pela educação permanente, como estratégia de renovação e
aquisição dos novos conhecimentos e atributos. Esse aspecto contribui com a
caracterização desse trabalhador contemporâneo, bem como a necessidade de
flexibilidade, a capacidade de adaptação.
Hoje parece haver um certo consenso no sentido de reconhecer que o imperativo das pressões de concorrência, na medida em que tende a exigir participação e envolvimento de uma mão-de-obra bem formada e em aperfeiçoamento constante, contribui para a elevação geral da qualificação. Esta, por sua vez, apresentaria alterações de conteúdo: por exemplo, a responsabilidade, que anteriormente se baseava no comportamento (esforço, disciplina), hoje se manifesta pela tomada de iniciativa (assegurar a continuidade do processo); a expertise, anteriormente baseada em experiência, hoje residiria no conhecimento (identificar e resolver problemas); a interdependência, anteriormente seqüencial (postos precedentes e subseqüentes), hoje seria sistêmica (trabalho em equipe, interdependência de funções e de níveis); a formação, anteriormente adquirida de uma só vez, hoje seria permanente, com atualização freqüente (LARANJEIRA, 1997, p. 80).
Poderíamos dizer, antecipando o próximo tópico, que a formação do
profissional típico da sociedade pós-industrial de Daniel Bell é fluida. Fluida em
oposição à solidez e à inércia da formação do trabalhador industrial, que se realizava
em um determinado tempo e espaço estabelecidos: começava e terminava na
35
universidade ou em algum curso técnico, em um determinado momento da vida do
indivíduo.
2.3 Sociedade de risco e fluidez
2.3.1 Sociedade de risco
Para Ulrich Beck, a sociedade industrial passou por um processo de
obsolescência que resultou nas estruturas que caracterizam a sociedade pós-industrial.
O outro lado dessa condição é a emergência da chamada sociedade de risco (BECK,
GIDDENS, LASH, 1997). Essa sociedade de risco é a sociedade onde cada vez mais se
vive numa fronteira tecnológica que ninguém compreende inteiramente – mesmo os
especialistas – e que gera uma diversidade de futuros possíveis.
Para Beck, o conceito de sociedade de risco designa um estágio da
modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no
caminho da sociedade industrial. Não se pode, segundo Beck, escolher ou rejeitar a
sociedade de risco e sua condição de insegurança. Ela surge na continuidade dos
processos de modernização autônoma, sem que fiquem claros os perigos e ameaças
que podem revelar. Tais processos conduzem às ameaças que questionam e destroem
as bases da sociedade industrial (BECK, GIDDENS, LASH, 1997). Para Giddens, a
sociedade de risco, ou o risco na sociedade, é originária de duas transformações
básicas ocorridas ainda na chamada sociedade moderna: o fim da natureza e o fim da
tradição.
O fim da natureza não significa um mundo onde o meio natural tenha desaparecido. Significa que atualmente são raríssimos os aspectos do mundo físico que não sofreram intervenção humana. O fim da natureza é relativamente recente. Data dos últimos 40 ou 50 anos e resulta sobretudo da intensificação das mudanças tecnológicas observadas anteriormente. (GIDDENS, 1998, p. 141).
36
Nesse sentido, o ingresso na sociedade de risco é marcado por uma mudança no
tipo de preocupação que a humanidade tem em relação à natureza. Até cerca de 60
anos atrás, a humanidade se preocupava com o que a natureza podia nos fazer, como
ela podia nos eliminar da face da terra. A preocupação com o que a humanidade está
fazendo com a natureza, como a está destruindo, é um dos aspectos que marcam a
entrada na sociedade de risco (GIDDENS, 1991).
O outro fator salientado acima é a tradição, ou viver após a tradição, o que
significa viver sem um destino que é determinado de forma prévia. Para muitas
pessoas, diversos aspectos da vida foram estabelecidos dessa maneira. A tradição,
nesse sentido, inclui também a ciência e a técnica, porque na sociedade ocidental,
durante uns dois séculos, a ciência funcionou tal como uma. Se originariamente a
ciência se propunha a superar a autoridade e o conhecimento antigo, acabou ela mesma
se convertendo noutra espécie de tradição, que as pessoas acatavam e na qual os leigos
assumiam a opinião dos especialistas.
Para compreender melhor isso, é necessário considerar o tipo de risco mais
característico da sociedade de risco: é o risco fabricado, conceito formulado por
Giddens. O autor explica que risco fabricado é aquele criado pelo próprio progresso do
desenvolvimento humano, especialmente pelo progresso da ciência e da tecnologia.
São novas configurações e dilemas para os quais a história tem a oferecer-nos
pouquíssima experiência prévia (GIDDENS, 1991).
O risco fabricado é a surpresa fundamental para os primeiros ideólogos da
sociedade industrial, porque com o tempo se verificou que a ciência e a tecnologia
criam incertezas da mesma maneira que as eliminam. O mais interessante é verificar
que as incertezas que aparecem não são, necessariamente, resolvidas com mais
37
progresso científico. Esse novo fator penetra cada sombra da vida pessoal e social e se
aloja no próprio coração da modernidade. E como a tradição perdeu a força que tinha
anteriormente de determinar o que fazer em cada situação nova de ameaça, as pessoas
são forçadas a atribuir às suas relações uma orientação mais ativa e imbuída de risco.
Essa é a base do comportamento individualista, no sentido de criar soluções
para problemas contingentes, pontuais, que não encontram respostas satisfatórias no
conjunto de experiências tradicionais. Como ficará mais claro adiante, a orientação
imbuída de risco citada é a própria essência da condição de reflexividade.
Ulrich Beck penetra ainda mais nessa caracterização da sociedade de risco. Ele
apresenta três níveis de transformações que surgem por ocasião de seu aparecimento.
Um deles é o relacionamento da sociedade industrial moderna com os recursos da
natureza física e da cultura humana. A natureza e a cultura, nesse sentido, são as bases
da sociedade industrial. Mas Beck afirma também que elas estão sendo dissipadas pelo
surgimento de uma modernização amplamente estabelecida, em que tais dimensões
perdem força. “Isso se aplica à natureza não humana e à cultura humana em geral,
assim como aos modos de vida culturais específicos (por exemplo, a família nuclear e
a ordem baseada na diferença entre os sexos) e aos recursos de trabalho social (por
exemplo, o trabalho doméstico da esposa, que convencionalmente não tem sido
reconhecido como trabalho, ainda que tenha sido ele, em primeiro lugar, o que
possibilitou o trabalho assalariado do marido)” (BECK, GIDDENS, LASH, 1997, p.
18 e 19).
O segundo nível de transformação se refere ao relacionamento da sociedade
com as ameaças e os problemas criados por ela mesma. Quando as pessoas tomam
consciência desses problemas e ameaças, podem abalar as suposições fundamentais
que mantinham a ordem social convencional – moderna, industrial. Beck afirma que
38
isso é verificável nos modelos de negócios, que se renovam e inovam, no direito e na
ciência.
A terceira ordem de transformação está vinculada a uma crise de significados
coletivos e específicos de grupo (consciência de classe ou crença no progresso) que
sofrem de exaustão, desencantamento. Esses significados foram responsáveis pelo
apoio às democracias e sociedades ocidentais até o século XX. Sua perda conduz, nas
palavras de Beck, “à imposição de todo esforço de definição sobre os indivíduos”. Esse
é o significado do processo de individualização.
Essa individualização é bem diversa daquela em que as pessoas precisavam ser
“libertadas” das certezas feudais e religiosas/transcendentais. As pessoas agora se
vêem na transição da sociedade industrial para a turbulência cognitiva, subjetiva,
estética e política inerente à sociedade de risco. É forçoso conviver e se relacionar com
uma quantidade muito variada de riscos globais e pessoais diferentes e mutuamente
contraditórios.
Esse processo de individualização e os processos de transformações citados
formam um contexto da imprevisibilidade das ameaças. As ameaças, como já dito, se
apresentam em variadas formas: em termos da crise ecológica, na impossibilidade de a
ciência garantir certeza e felicidade ao mundo, em termos de moralidade política, entre
muitos outros aspectos. A esses níveis de incerteza e risco se contrapõe a tentativa de,
pelo acúmulo de informação, se obter orientação para a ação no mundo. Esse novo
processo reforça o quadro social já traçado por Bell e outros pensadores sobre a
sociedade contemporânea e sobre seu trabalhador típico. Nessa perspectiva, o acúmulo
de informação segue a necessidade de tentar compensar as incertezas e, por meio de
múltiplas referências, guiar as ações no mundo social. Esse é um processo de
autodeterminação que pode ser verificado em vários contextos sociais.
39
Aqui nos interessa o ambiente do trabalho de desenvolvimento de softwares. Os
níveis de incerteza e risco vinculados à obsolescência tecnológica, à concorrência, à
aceleração precisam ser superados pelos profissionais do software. E o acúmulo de
informação é uma estratégia, entre outras, que serve a esse propósito. Assim, são os
riscos pessoais ligados à ação contingente na esfera do trabalho de desenvolvimento de
softwares que nos interessam e que também fazem parte desse quadro.
Na sociedade de risco, o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças provocadas pelo desenvolvimento técnico-industrial exige a auto-reflexão em relação às bases da coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da “racionalidade” (BECK, GIDDENS, LASH, 1997, p. 19).
De forma geral, esses três níveis de transformações realimentam o retorno da
incerteza e da ambivalência, o que significa, segundo Ulrich Beck, um número cada
vez maior de conflitos sociais caracterizados pelo risco. São diferenciados por
implicarem uma ambivalência fundamental, que pode ser compreendida por cálculos
de probabilidade, mas que não podem ser resolvidos dessa maneira. Os problemas de
risco (típicos da sociedade de risco) se diferenciam dos problemas de ordem da
sociedade industrial porque estes estão voltados para a clareza e a faculdade de decisão
e as questões de risco necessitam do reconhecimento da ambivalência.
Os problemas de ordem, explica Beck, são aqueles enfrentados por princípios e
categorias éticos e legais (responsabilidade, culpa e o princípio de punir o poluidor).
Tais problemas também são enfrentados pelos tradicionais procedimentos de decisão
política, como o princípio da maioria. Os valores que guiam a solução desses
problemas são claros, ao passo que as questões de risco demandam valores que não são
tão claros. É o necessário reconhecimento da ambivalência dos desafios e das soluções.
40
Um dos principais reflexos disso, pelo menos em relação ao que nos interessa
aqui, é perceber, com Beck, que a categoria do risco está vinculada a um tipo de
pensamento e de ação social que não foi percebido por Max Weber. Que é pós-
tradicional e, em certo sentido, pós-racional, pelo menos no sentido de não ser mais
instrumentalmente racional (post-zweckrational).
Acontece que, como deixa claro Ulrich Beck, a sociedade industrial, a ordem
social civil, o welfare state e o Estado previdenciário foram sujeitos à exigência de se
fazer com que a experiência humana seja controlável pela racionalidade instrumental,
manufaturável, disponível e contabilizável. Desde a ocasião da modernidade, enfatiza-
se a noção de ordem (BAUMAN, 1991). Esse ciclo moderno passou a exorcizar,
sobretudo na “ordem” social, tudo aquilo que contém ou leva à ambigüidade, à
ambivalência, à polissemia.
É interessante observar que a oposição ordem/caos, em sua versão tipicamente
moderna, pode ser tomada como foco de muitas dicotomias que se exacerbam de lá
para cá – cultura/natureza, homem/mulher, eu/outro (estrangeiro, inimigo, bárbaro,
primitivo), corpo/alma, normal/anormal, opressor/oprimido, público/privado,
homo/hetero.
Na sociedade de risco, o lado imprevisível e os efeitos colaterais da busca cega
pelo controle conduzem justamente a essa constelação que parecia superada, para
sempre encerrada na noite escura do passado incerto. Estamos de volta ao reino das
incertezas, ou de uma incerteza, da ambivalência, ou de ambivalências.
Bauman lembra que um dos pressupostos da modernidade é o projeto de
universalização e um intenso combate à ambivalência em todos os níveis (político,
social e mental). A modernidade se realizou, sobretudo no campo intelectual e
41
científico, mas gerou também o contexto para a total impossibilidade de eliminação
das ambivalências.
Um dado importante do ponto de vista teórico e metodológico deste trabalho é
observar a consciência dessa impossibilidade: o quadro geral da agência humana é
fundamentalmente o da contingência que ameaça as tentativas de supressão da
diversidade e de redução do risco (BAUMAN, 1991). Esse contexto geral ganha, na
obra de alguns pensadores, uma interpretação na qual o mundo humano é dominado
pelo aspecto midiático, como se verá no próximo tópico.
2.3.2 Midiatização, derrelição e desamparo
Paul Virilio acredita na explosão do mundo visível – o domínio da opinião
pública – provocada pelas técnicas de representação teleinformática. Esse processo
também provocaria a midiatização política em que grupos cada vez menores detêm
mais privilégios. Para Virilio, tais grupos são “detentores de um último amálgama da
velocidade da luz”; a midiatização política seria caracterizada pela “abusiva eloqüência
dos números, das mensagens, das imagens (a informação)” (VIRILIO, 1996, p. 36).
O termo midiatização usado por Virilio significa o novo contexto de controle e
de confisco dos direitos imediatos do indivíduo. Para esse autor, um número grande de
pessoas tem a impressão do efeito do real, mas essas pessoas estão imersas no caos
geopolítico que é resultante desse processo. O autor acredita num golpe de Estado
informacional por meio do qual acontece uma usurpação informacional da diferença
entre o aqui e o ali, do próximo e do distante, do presente e do futuro, do real e do
irreal. Ou seja, os sujeitos seriam jogados num tempo único e homogêneo. E isso
aconteceria, segundo Virilio, através das tecnologias da informação.
42
Submetidos à tirania do tempo real, os meios de comunicação não combatem mais somente tudo o que dura, a paz como o resto, são eles (os meios de comunicação) agora que não têm mais tempo, mais prazos. Extremidades territoriais e proximidade midiática formam uma mistura explosiva (VIRILIO, 1996, p. 54).
Paul Virilio acredita numa ausência da defesa diante da técnica e não vê
possibilidades de que os indivíduos definam estratégias de análise de suas experiências
ou de autodeterminação:
“O mundo que vemos está em plena passagem” e digamos: nós não vemos o mundo que está em plena passagem... nós não percebemos mais naturalmente suas lentidões do que suas acelerações, não percebemos o que seria a realidade do próprio tempo em que o movimento se dá. O movimento é cegamento (VIRILIO, 1996, p. 64).
A velocidade como categoria é fundamental na obra de Virilio. O autor vê, no
desenvolvimento das técnicas de deslocamento, os primeiros instrumentos de uma
realidade que hoje é inevitável e totalizante: a extinção do tempo por intermédio da
velocidade. Produzir velocidade, assim, é suprimir a espera e a duração. Virilio
acredita que o homem esteja entregue, sem volta, à produção (e consumo) de
velocidade, à ociosidade que decorre da aceleração, o que se expressaria, segundo ele,
na prática dos esportes radicais.
Assim, o confronto com os limites do próprio corpo é uma tentativa de revelar,
ou materializar, o desejo de domínio do destino pessoal. Para ele, existe, entretanto,
uma dificuldade inerente de retorno à comunicação e ao logos numa sociedade
(caracterizada pela aceleração tecnológica) em que a partida e a chegada se confundem
ao extremo. Da força dos meios de comunicação e do complexo técnico-informacional
resultam freqüentes e brutais tentativas de interrupção da vida consciente.
43
Em A Máquina de Visão (1994), essa configuração é ainda mais clara e
assustadora. Escrevendo sobre a industrialização da visão, sobre a máquina de visão,
Virilio sugere uma automação da percepção por meio da delegação, a uma máquina, da
análise da realidade objetiva. Para Virilio, depois das imagens de síntese, depois do
tratamento de imagens numéricas nas concepções auxiliadas por computador, chega o
tempo da visão sintética, o tempo dessa automação da percepção. Ele se pergunta quais
seriam as conseqüências teóricas e práticas das “coisas que observam o sujeito”.
O paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real que domina a coisa representada, este tempo que a partir de então se impõe ao espaço real. Essa virtualidade que domina a atualidade, subvertendo a própria noção de realidade (VIRILIO, 1994, p. 91).
O aspecto dromológico, de obsolescência e de derrelição está, na obra de
Virilio, vinculado aos meios de comunicação que se constituem como canais de
obtenção de informação e conhecimento – máquinas de visão do indivíduo. Máquinas
de visão que operam uma automação da percepção, estabelecem a artificialidade da
visão, que, segundo o autor, se reflete na “delegação a uma máquina da análise da
realidade objetiva” (VIRILIO, 1994, p. 86).
Essa industrialização da visão, por um lado, vincula-se ao trabalho
desencaixado, descentrado, que prescinde de tempo e espaço conectados – o que será
mais bem explorado adiante. E que, por sua vez, estende seus braços ao desencaixe de
relações sociais. Por outro lado, é a contraparte do domínio do trabalho sobre o mundo
da vida, uma vez que compras, diversão, comunicação, aprendizado, movimentação de
contas bancárias e outros aspectos da vida fora do trabalho são fortemente
intermediados pelos mesmos mecanismos de conexão ao trabalho. Nesse mundo, onde
a velocidade e o movimento destroem o tempo e onde acontece essa subjugação “à
44
vertigem da aceleração”, Virilio propõe a criação de uma dromologia, uma espécie de
ciência da velocidade e da aceleração. “O cúmulo da velocidade é o extermínio do
espaço. O fim do tempo é absoluta desterritorialização” (VIRILIO, 1996, p. 40). Isso
nos leva a considerar que a aceleração reduz o contato com o “real concreto”, já que o
sujeito parece estar sempre em movimento: seja esse movimento físico ou associado à
necessidade de rápida atualização de conhecimentos, da realização de trabalho, de
consumo. O domínio sobre os processos de aceleração passaria a ser a grande
commoditie atual, controlada por uma aristocracia de velocidade responsável por
dominar a velocidade e a aceleração. Quando a velocidade passa a ser uma das
principais commodities modernas, passa a ser identificada como um elemento
civilizador.
Nesse sentido, a categoria de velocidade assume, para Virilio, a configuração
fundamental que a categoria da produção teve para a modernidade. O que interessa não
é mais o que e quanto produzir, mas em que velocidade. Assim, a lógica da corrida
toma como referência absoluta, como equivalente geral, não mais a riqueza, e sim a
velocidade.
O homem não sai impune desse processo de aceleração, já que sua própria
natureza sofre os efeitos do processo contínuo de aceleração. Virilio insiste em uma
polaridade que será causada pelo domínio desse mundo da velocidade.
O progresso dromológico impõe a idéia de dois tipos de alma, umas fracas, indecisas e vulneráveis porque tributárias do seu hábitat, outras poderosas porque colocaram seu ‘mana’, sua vontade, fora de alcance, graças a sua desterritorialização, à sofisticação da sua economia e de seu ponto de vista (VIRILIO, 1996, p. 69).
Esse estado de aceleração, velocidade e deslocamento nos leva a considerar a
condição do indivíduo cercado de risco, desprovido de segurança, impossibilitado de
refletir sobre essa condição, o que levaria à desmontagem da realidade perceptiva
45
tradicional e ao surgimento de uma nova ordem de visibilidade marcada pela
transmissão e representação de dados.
Como principal conseqüência desse tempo contínuo imposto pela tecnologia,
pelas máquinas de visão contemporâneas e pela aceleração, teríamos a suplantação do
espaço das aparências sensíveis, a ausência da percepção imediata da realidade
concreta, a contração das experiências em tempo intensivo e, além disso, a ameaça à
reflexão sobre as experiências do indivíduo. O quadro de aceleração visto por Virilio
pode ser observado na velocidade de giro de produção de bens e de serviços; no
consumo desses mesmos bens e consumos; e ainda nos fluxos de informações em
diversas mídias; nas possibilidades simultâneas de trabalhar, aprender, se informar e
consumir que foram abertas pelas novas tecnologias da informação e comunicação.
Como conseqüência, teríamos o envelhecimento de tudo aquilo que surge no
horizonte, a acentuada volatilidade e efemeridade das modas, produtos, processos de
trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas (HARVEY, 2004, p. 258).
A aceleração prognosticada parece obrigar as pessoas a lidar com a obsolescência
instantânea. O que por sua vez também colabora com a condição de instabilidade,
insegurança e risco. Para pensadores como Postman e Baudrillard, a sociedade atual
vive uma inflação de informação que efetivamente contribui para uma “deflação de
sentido” (BAULDRILLARD, 1997).
Segundo Postman, essa deflação do sentido é resultado de uma explosão da
informação que tornou o mundo cada vez mais improvável – um mundo em que
verdades, valores e normas se multiplicam até ao infinito, tornando impossível qualquer
escolha fundada. O resultado mais evidente é uma desorientação existencial mais e mais
acentuada.
46
Bauldrillard diz que essa deflação está baseada na mudança da natureza dos
meios de representação para um regime de simulação do real. Existe uma falta de
distinção entre o representante, o representado e o meio. Nesse sentido, quanto maior
for a informação sobre o "referente" ou o "real", mais nos afastamos dele (e, assim, do
próprio "sentido") (BAULDRILLARD, 1997). As estruturas informacionais
ameaçariam a memória do homem, como se a perfeição (mnemotécnica) dos sistemas
informacionais – que encontra na internet a sua descrição mais típica – pudesse
"implodir" no seu contrário. No que se refere à memória, por exemplo, a garantia
prometida pelas máquinas de que nada será esquecido (porque estará registrado) é a
melhor garantia de que nada – ou pelo menos nada de importante – será lembrado (pelo
homem). Escrevendo sobre a televisão, Baudrillard afirma que, "hoje em dia, por toda
parte, são as memórias artificiais que apagam a memória dos homens, que apagam os
homens da sua própria memória" (BAULDRILLARD, 1997).
Essas análises representam uma forma de ver a contemporaneidade, em que o
sujeito consciente está – ironicamente – preso a um destino: o de sua impotência diante
da estrutura técnico-racional do trabalho, da diversão, do consumo e, principalmente,
dos recursos de representação do hiper-real. Para Baudrillard, a representação já não é
a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito:
A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros (1997, p. 8).
A origem desse contexto teria sido criada com a proliferação de imagens
publicitárias na sociedade capitalista atual. A economia, a guerra, as próprias mídias, o
47
terror político, a violência costumeira e a internet tenderiam à forma publicitária de
expressão. Haveria então um assassinato do real produzido pela imposição da
linguagem publicitária a todas as outras formas de linguagem. É (ou seria) a
superioridade da simulação do mapa frente ao território – o real palpável e
fenomenologicamente perceptível (BAULDRILLARD, 1997).
A filosofia de Baudrillard fala-nos da perda de referencial trazida pelas
imagens simuladas no contexto da sociedade atual. Se a imagem técnica tem por
função emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceitualmente, essa
emancipação tornou-se escravidão de simulações. A velocidade entre a produção do
fato e a sua percepção não permite o entendimento desse fato. Estaríamos, assim,
vivendo o assassinato do real.
Isso não significa o mesmo que significa o extermínio nos campos nazistas. Lá ele era físico e radial. Aqui ele é ao mesmo tempo mais literal e mais metafórico. Ex terminis: isso não quer dizer que todas as coisas (e todos os seres) ultrapassam seu próprio fim, sua própria finalidade, para onde não existe mais realidade, nem motivo para existir, nem qualquer determinação (é por isso que o chamo de “ex-termínio”). Extermínio significa que nada resta, nenhum traço, nem mesmo um cadáver. O cadáver do real – se existe algum – não foi descoberto, e não será encontrado em parte alguma. E isto porque o real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada (BAUDRILLARD, 2001, p. 68).
Essa interpretação de nosso mundo contemporâneo parece identificar a
experiência virtual como a principal, a mais importante. E pior: impossível de ser
evitada ou de se criar estratégias que contornem essa situação. O homem descrito pela
crítica de Baudrillard e Virilio parece viver uma fragilidade como nunca antes homem
nenhum viveu ao longo da história, e sem mecanismos de reação.
48
A subjetividade do homem torna-se um conjunto de funções inúteis, tão inúteis quanto é a sexualidade para os clones. Em termos mais gerais, todas as funções tradicionais – a crítica, a política, a sexual, as funções sociais – tornam-se inúteis num mundo virtual. Ou elas sobrevivem apenas numa simulação, como na musculação ou numa cultura desencarnada, como funções falsas ou álibis (BAUDRILLARD, 2001, p. 68).
Derrelição é uma palavra rara, que significa desamparo, abandono. A escritora
Hilda Hilst a utiliza para indicar um estado em que a alma está vazia. O contexto social
teoricamente descrito por Baudrillard e Virilio é de derrelição, da vaziez crítica
condicionada pela falta de condições para reflexão. Essa condição de reflexividade
será explorada no tópico seguinte.
2.4 A reflexividade e seus os duplos
2.4.1 O espelho radical
O que vem a ser modernidade reflexiva e como essa se articula com a lógica
pós-industrial em que o trabalho dos profissionais do software se enquadra? A
modernização reflexiva significa uma autodestruição criativa para toda a era da
sociedade industrial. O sujeito dessa destruição não é uma revolução, nem mesmo uma
crise. A modernização reflexiva é resultado do próprio processo de modernização
ocidental – seu espelho radical. Uma de suas características é a sociedade de risco, já
comentada no início deste capítulo.
Na modernização do século XIX e de parte do século XX, tivemos a
desincorporação e depois a reincorporação das formas sociais tradicionais pelas formas
sociais industriais. A modernização reflexiva é um novo processo de desincorporação e
reincorporação das formas industriais por outra modernidade.
49
É uma etapa da história na qual acontece a destruição da modernidade pela
radicalização dessa mesma modernização, que varre do mapa formações de classe,
camadas sociais, papéis de gênero, família nuclear, o relacionamento com o
conhecimento, os pré-requisitos para o progresso técnico-científico.
A instalação desse estágio histórico é silenciosa, pois a modernização reflexiva
também é um processo autônomo. A sociedade da modernidade reflexiva é a sociedade
de risco, em que existe a autoconfrontação com os efeitos desse desenvolvimento
industrial. A sociedade de risco é chamada a decidir como controlar e gerenciar os
efeitos da manipulação genética, como evitar acidentes nucleares, como controlar ou
evitar a devastação de florestas.
Giddens afirma, explicando a principal característica da modernização
reflexiva, que a razão voltou-se para si mesma, depois de quebrar os cânones do pré-
modernismo, do áncien regime, com a livre expressão, a democracia popular e a
liberdade de mercados. O caráter da reflexividade, com o advento da modernidade,
consiste em que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz
de informação renovada sobre essas próprias práticas, alternando assim
constitutivamente seu caráter.
Somente na modernidade esse aspecto da revisão da convenção é tomado de
forma radical. Giddens afirma que essa revisão acontece “a todos os aspectos da vida
humana, inclusive à intervenção tecnológica no mundo material” (1990, p. 45). A
modernização reflexiva não implica a superação da modernidade, a direção de uma
pós-modernidade. As sementes do niilismo estavam no pensamento iluminista desde o
início. Se a esfera da razão está inteiramente desagrilhoada, nenhum conhecimento
pode se basear sobre um fundamento inquestionado, porque mesmo as noções mais
firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em princípio” ou “até ulterior
50
consideração”. De outro modo, elas reincidiriam no dogma e se separariam da própria
esfera da razão que determina qual validez está em primeiro lugar (GIDDENS, 1990).
Essa ruptura assemelha-se mais à modernidade vindo a entender a si mesma, em vez de
sua superação; ela nos permite o entendimento mais completo da própria modernidade.
A ruptura com as concepções providenciais da história, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o “esvaziamento” do progresso pela mudança contínua, são tão diferentes das perspectivas centrais do Iluminismo que chegam a justificar a concepção de que ocorreram transições de longo alcance. Referir-se a estas, no entanto, como pós-modernidade, é um equívoco que impede uma compreensão mais precisa de sua natureza e implicações. As disjunções que tomaram lugar devem, ao contrário, ser revistas como resultantes da auto-elucidação do pensamento moderno, conforme os remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são descartados. Nós não nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente através de uma fase de sua radicalização (GIDDENS, 1990, p. 57).
A revisão constante das práticas sociais à luz de informação renovada sobre
essas práticas, como já afirmado, toma um ritmo crônico, radical, em todos os aspectos
da vida humana. O que temos é a reflexividade indiscriminada. Giddens afirma que
vivemos num mundo que é inteiramente constituído de conhecimento reflexivamente
aplicado e que, por se basear na razão livre, poderá vir a ser revisado.
2.4.2 Desencaixe
O dinamismo da modernidade deriva da separação entre o tempo e o espaço e
de sua recombinação em formas que permitem o zoneamento espaciotemporal preciso
da vida social. Deriva ainda do desencaixe dos sistemas sociais e da ordenação e
reordenação reflexiva das relações sociais (GIDDENS, 1991). As culturas pré-
modernas tinham formas particulares de demarcar o tempo. Nessas sociedades, o
51
cálculo do tempo vinculava-se ao lugar, de forma imprecisa e variável. A modernidade
estabeleceu a medição unívoca do tempo, o que levou à uniformização da organização
social do tempo pela adoção do relógio. Esse processo conduziu a uma organização do
tempo desligado do espaço.
Dito de outra forma, levou à adoção de um calendário universal que se
sobrepõe aos demais e à padronização dos instrumentos de medição pelas regiões: o
efeito mais imediato é o esvaziamento do espaço. Nas sociedades pré-modernas,
espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da
vida social são, para a maioria da população, dominadas pela presença. A modernidade
retira o espaço do tempo e permite que “ausentes” estabeleçam relações de todo tipo.
A separação entre o tempo e o espaço não deve ser vista como um desenvolvimento unilinear, no qual não há reversões ou que é todo abrangente. Pelo contrário, como todas as tendências de desenvolvimento, ela tem traços dialéticos provocando características opostas. Além do mais, o rompimento entre tempo e espaço fornece uma base para sua recombinação em relação à atividade social (GIDDENS, 1991, p. 46)
Por que a separação entre tempo e espaço é tão crucial para o dinamismo da
modernidade? Pela condição de desencaixe que essa separação ocasiona. O desencaixe
interfere na separação e no abandono dos hábitos e práticas locais. O desencaixe é o
deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação
por meio de extensões indefinidas de tempo-espaço.
O resultado é que as relações prescindem, cada vez mais, da presença física.
Elas acontecem desencaixadas, dispersas, desligadas de um tempo e espaço colados,
para acontecer dispersamente num tempo único (padronizado) em espaços vazios.
Existem dois mecanismos de desencaixe: as fichas simbólicas e os sistemas
peritos. As fichas simbólicas são bem explicadas por Pierre Bordieu ao citar o mito, a
52
língua, a arte e a ciência como instrumentos de conhecimento e de construção do
mundo dos objetos. Nesse sentido, os sistemas simbólicos são estruturas estruturantes.
Para apreender a lógica específica de cada uma das formas simbólicas, é necessário
recorrer à análise estrutural.
Por ora, basta nos concentramos no fato de que os sistemas simbólicos são
instrumentos de conhecimento e de comunicação, de construção da realidade que
supõe uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número da causa e que
torna possível a concordância entre as inteligências (BOURDIEU, 1989, p. 9).
Já os sistemas peritos são sistemas de excelência técnica ou competência
profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que
vivemos hoje. São os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos e
que influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. Os sistemas
peritos são mecanismos de desencaixe das relações sociais de contextos locais de
interação porque eles removem as relações sociais das imediações do contexto.
Na prática, tais sistemas peritos são formados por amplos campos de
conhecimento, como a arquitetura, a engenharia industrial e civil, e tudo o que se
constrói sob suas designações deverá funcionar em qualquer tempo e em qualquer
lugar, pois tais mecanismos não estão vinculados a um tempo ou a um lugar para
serem válidos.
É por meio dos sistemas peritos que os indivíduos exercem suas possibilidades
de reencaixe, de reflexão crítica de suas vivências contingentes. Essas possibilidades
estão diretamente relacionadas à reflexividade – às estratégias de revisão das práticas
sociais à luz de informação gerada a partir dessas mesmas práticas. Os sistemas peritos
alimentam e direcionam essas práticas, que por sua vez geram os contextos para a
reflexão e para a produção de mais experiência, conhecimento e informação. O ciclo
53
então é ativado, porque essa experiência, esse conhecimento e a informação
realimentam a base do sistema especialista.
2.4.3 Conhecimento e informação desencaixados
A importância do desencaixe está na maneira como essa característica da
modernidade mudou a forma de se encarar o conhecimento científico. Ele está
vinculado aos padrões de formação de especialistas e do relacionamento destes com o
conhecimento (e sua renovação). O desencaixe ainda se relaciona com a legitimidade
dos sistemas de autoridade. É importante deixar claro esse quadro porque ele está
essencialmente na base dos processos de reflexividade investigados neste trabalho,
como será mostrado a seguir. Anthony Giddens faz uma distinção entre o que ele
chama de governantes ou funcionários (que dão ordens) e guardiões (os que fornecem
interpretações). Na análise weberiana, a autoridade está onde os mestres são
designados segundo regras tradicionais, e eles são obedecidos e seguidos em função do
status alcançado. As regras tradicionais, que raramente são claramente especificadas, e
a lealdade pessoal geram confiança. Os servos são ligados ao governante, ao detentor
de autoridade, de uma maneira patrimonial, como escravos ou dependentes.
A autoridade, nas sociedades tradicionais, é algo mais amplo – é o território
daqueles indivíduos que fornecem interpretações, dos que agem dessa maneira em
virtude de seu acesso especial aos poderes causais da verdade formular – da sabedoria.
Essa pessoa – guardião, no vocabulário de Giddens – é o repositório da tradição, e a
autoridade é um fenômeno produzido. O contraste dessa autoridade tradicional com
formas mais modernas de autoridade revela a autoridade racional-legal típica da
burocracia. A autoridade racional-legal apóia-se em “crença na legalidade das normas
em vigor e no direito daqueles que foram alçados à autoridade sob essas normas, para
54
formular as ordens” (WEBER, 1978, p. 215). A lealdade é reduzida, ou minimizada. A
disciplina e o controle são característicos da conduta do funcionário especializado e da
organização em que ele trabalha.
Devemos nos perguntar sobre a necessidade dessa comparação entre a tradição
(e a autoridade a ela vinculada) e a especialização. As diferenças entre uma e outra
revelam o local do desencaixe na nossa análise sobre o conhecimento. A
especialização que verificamos no funcionário sob a ordem racional-legal é
desincorporadora – se comparada com a tradição, ela não depende de um local certo
para acontecer, ela é descentralizada. A especialização não está ligada a nenhuma
verdade formular. Ao contrário, a especialização se vincula a uma crença na
possibilidade de correção do conhecimento que lhe sustenta. E esse acúmulo de
conhecimento especializado envolve processos intrínsecos que criam mais
especialização. Essa análise está de acordo com as suposições de Freidson sobre o
caráter da autoridade numa sociedade pós-industrial: descentralizada, desincorporadora
e vinculada a conhecimento técnico e especializado. A especialização interage com a
reflexividade institucional – o que gera perda e reapropriação de habilidades e
conhecimentos do dia-a-dia (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997).
Pelo menos em seu aspecto moderno, a especialização está, em princípio, desprovida de vinculações locais. De uma maneira típica ideal, poderia ser dito que todas as formas de “conhecimento local” sobre a regra da especialização tornam-se recombinações locais de conhecimento derivado de outros lugares. Obviamente, na prática, as coisas são mais complicadas, em razão da importância continuada dos hábitos, costumes ou tradições locais (GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S., 1995, p. 105).
Giddens afirma que os mecanismos de desincorporação dependem do abandono
do conteúdo tradicional dos contextos locais e da reorganização das relações sociais
com faixas de tempo e espaço. Como conseqüência do caráter impessoal e contingente
55
das regras de aquisição de conhecimento, os sistemas de especialização são mais e
mais descontextualizados. Assim, tais sistemas abrem-se a qualquer pessoa que tenha
tempo, recursos e talento para se especializar. A validade do conhecimento e da
expertise não depende do local.
A retirada dos locais da produção de conhecimento despoja o conhecimento
produzido na modernidade de sua áurea de certeza infalível e tradicional. Os modos
modernos de investigação são caracterizados pela combinação entre ceticismo e
universalismo – isso é o que assegura ao especialista e ao leigo que a tradição do
pensamento é relativamente arbitrária. Não é somente a investigação intelectual que é
aberta à dúvida – isso é fundamental também, na modernidade, para a vida cotidiana.
Essa condição básica da modernidade gera desconforto porque produz insegurança.
Por um lado, o desconforto tanto para os leigos quanto para especialistas está
ligado à forma como a ciência perdeu a aura de autoridade que um dia possuiu –
resultado da desilusão com os benefícios de controle e de colonização do futuro que os
avanços tecnológicos prometiam. Guerras, invenção de armas altamente destrutivas e
crise ecológica arrefeceram a crença no progresso baseado em conhecimento
científico. Antes disso, a ciência desfrutou de um status de distinção que se parecia
com uma certa tradição inquestionável. Por outro lado, a tradição e os costumes na
vida cotidiana também foram enfraquecidos.
Para os pensadores do Iluminismo – e muitos de seus sucessores –, pareceu que a crescente informação sobre os mundos social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles. Para muitos, esse controle era a chave para a felicidade humana; quanto mais estivermos – como humanidade coletiva – em uma posição ativa para fazer história, mais podemos orientar a história rumo aos nossos ideais. Mesmo os observadores mais pessimistas relacionaram conhecimento e controle. A “jaula de ferro” de Max Weber – em que, segundo suas reflexões, a humanidade estaria condenada a viver no futuro previsível – é uma prisão domiciliar de conhecimento técnico; alterando a metáfora, todos nós devemos ser pequenas engrenagens na gigantesca máquina da razão técnica e
56
burocrática. Mas nenhuma imagem chega a capturar o mundo da alta modernidade, que é muito mais aberto e contingente do que sugere qualquer uma dessas imagens, e isso acontece exatamente por causa – não apesar – do conhecimento que acumulamos sobre nós mesmos e sobre o ambiente material. É um mundo em que a oportunidade e o perigo estão equilibrados em igual medida (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997).
De forma geral, a possibilidade de correções ou mesmo de abandono das
reivindicações do conhecimento deixou de ser uma questão meramente intelectual e se
converteu em uma condição existencial nas sociedades modernas. O indivíduo leigo e
mesmo o especialista se vêem livres das autoridades opressivas e de sua monocórdica
verdade basilar; mas se vê também diante da incerteza provocada pela falta de
segurança, de fundamentos concretos e de certezas. Se a ciência é construída sobre
areia movediça, como metaforiza Karl Popper, isso não é menos verdade quando se
fala sobre a vida cotidiana.
Viver em um mundo de autoridades múltiplas, uma circunstância às vezes erroneamente referida como pós-modernidade, teve muitas conseqüências para todas as tentativas de confinar o risco à concepção estreita já mencionada, seja com respeito ao curso de vida do indivíduo, seja em relação às tentativas coletivas de colonizar o futuro. Como não há (mais) superespecialistas a quem recorrer, a margem de risco tem de incluir o risco de quais especialistas consultar, ou cuja autoridade deve ser considerada como unificadora (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 108 e 109).
O desamparo (derrelição) cognitivo que essa descrição suscita parece justificar
o mundo sombrio e sem esperanças desenhado por Paul Virilio, Jean Baudrillard e
outros. Descrição essa em que o indivíduo parece subsumido e impotente diante dos
riscos, da impossibilidade de organizar e lidar com uma grande massa de informação
disponível, coma a invasão evidente da tecnologia, sufocando o mundo da vida, com a
evasão das certezas e diante da impossibilidade de estabelecer estratégias de
autodeterminação.
57
Mas a teoria da modernidade reflexiva tem outras respostas menos simples.
Giddens nos mostra que várias reflexividades revelam estratégias de autonomia e de
centramento do sujeito. Ao mesmo tempo, tais mecanismos não rompem
completamente com a modernidade nem com o modelo industrial. Um dos principais
mecanismos por meio do qual, segundo Giddens , a reflexividade se torna possível será
tratado no próximo tópico.
2.4.4 Sistemas especialistas
Na modernidade reflexiva, nós indivíduos nos tornamos cada vez mais livres da
estrutura social – na verdade temos de redefinir a estrutura ou, como afirma Giddens, a
própria tradição. Isso significa reinventar a sociedade e a política. Não está previsto
pela teoria, entretanto, que isso aconteça de maneira não intencional, não vista.
Segundo Ulrich Beck, a modernização reflexiva ignora que a transição para outra
época da modernidade possa acontecer superando as categorias e teorias dominantes da
sociedade industrial.
É nesse sentido que, para Giddens, é possível afirmar que a teoria da
modernização reflexiva é, em seu âmago, otimista, e, como defende Beck (1997, p.
210), mais reflexão, mais especialistas, mais ciência, mais esfera pública, mais
autoconsciência e autocrítica abrem novas e melhores possibilidades para a ação em
um mundo desarticulado. O que Anthony Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash mostram
é que a modernidade reflexiva não é uma condição de autodestruição, e sim de auto-
alteração das bases da modernização industrial – de auto-reflexividade. E mais: se o
mundo vai perecer ou não, como parece escrito nas entrelinhas dos teóricos pós-
modernos, é uma questão sem respostas e sem interesse do ponto de vista sociológico.
58
Essa (teoria da modernização reflexiva) não é uma teoria da crise ou de classe, não é uma teoria do declínio, mas uma teoria da desincorporação e da reincorporação não intencional e latente da sociedade industrial, em virtude do sucesso da modernização ocidental (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 211).
Giddens afirma que a reflexividade que está germinando pode ser
emancipatória. Como ela germina, ou, dito de outra forma, como acontece a
reflexividade? A reflexividade acontece por intermédio dos sistemas especialistas.
Essa afirmação é verdade do ponto de vista institucional – ou seja, da reflexividade das
instituições sociais – e do ponto de vista pessoal, ou seja, da auto-reflexividade dos
sujeitos na modernidade tardia. Vamos no deter na reflexividade individual.
Na reflexividade pensada por Giddens, uma proporção crescente da população
tem acesso a conceitos científicos como um meio de reflexão das regras e dos recursos
da estrutura social – o que inclui, é claro, grupos dos quais faz parte, como a escola, a
família, o trabalho – e também de suas próprias ações. O contato, ainda que de forma
mais ou menos diluída, com grandes áreas do conhecimento, como a própria
sociologia, a psicanálise, a engenharia, redimensiona as relações de confiança. Esta
deixa de ser uma questão de envolvimento face a face e passa a ser uma questão de
confiança nesses sistemas especialistas. A reflexividade tem como objetivo a
minimização de uma “insegurança ontológica”.
O problema é precisamente como podemos enfrentar não tanto as ameaças ambientais, mas as psíquicas e as sociais; é manter níveis razoáveis de ordem e estabilidade em nossas personalidades e na sociedade. Sua resposta é através da mediação dos sistemas especialistas (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 143).
Giddens se pergunta como o indivíduo, conscientemente, chega (conquista?) a
segurança ontológica e consegue sobreviver na sociedade de risco. E a resposta é que
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essa “terra conquistada” é alcançada com a ajuda dos sistemas especialistas. Os
sistemas especialistas constituem um conceito muito amplo. Lash esclarece (BECK,
U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997) que tal conceito se refere ao mesmo tempo às
práticas dos chamados profissionais e de outros especialistas, tem um forte aspecto
institucional e pode também se referir à especialização objetivada em máquinas, como
aeroplanos e computadores, ou em outros sistemas objetivos, como os mecanismos
monetários. Essa forma de interpretar a relação do sujeito com os sistemas
especialistas, sua razão de ser e suas conseqüências têm um forte apoio na realidade
empírica da modernidade tardia. Não é outra a razão de observarmos a necessária
aplicabilidade da teoria da modernização reflexiva à investigação proposta neste
trabalho.
Os sistemas especialistas (também chamados sistemas peritos) são resultado do
desenvolvimento científico, do aumento do conhecimento técnico e do conseqüente
aumento da especialização em várias áreas. Os sistemas especialistas têm sua raiz
formativa na ciência e se propõem ser universais – válidos em qualquer tempo e
espaço. Ou seja, não são dependentes de um contexto e podem, a partir disso,
estabelecer relações sociais em grandes períodos de tempo e espaço. A esses sistemas
especialistas estão associados grupos de experts. Além disso, surge uma forte
tendência ao aumento do profissionalismo dos praticantes e dos seus grupos de
clientes.
As sociedades modernas passaram a confiar nesses sistemas peritos. A
“confiança” é, com uma certeza cada vez maior, a chave do relacionamento entre o
indivíduo e esses sistemas peritos. Essa confiança funciona como o “cimento”
responsável por manter as sociedades modernas juntas (GIDDENS, 1991). Essa
confiança é o contraponto à insegurança ontológica mencionada acima.
60
Também é correto afirmar, porque efetivamente é o que acontece, que os
sistemas especialistas surgem como conseqüência da sensação de desconforto,
ansiedade ou mesmo perigo ocasionada pela ruptura espaciotemporal e seu ritmo mais
acelerado de mudanças – ou desencaixe. Aqui fica clara a necessidade inicial de
descrição da sociedade de risco que forma o contexto dos sistemas peritos.
As pessoas não podem sentir-se em constante estado de risco. Para ganhar
segurança, desenvolvem, então, mecanismos de confiança nos sistemas peritos.
Giddens exemplifica esse fenômeno citando o caso da confiabilidade existente na
tecnologia de fabricação de aviões e controle de vôos. Outro exemplo clássico que
pode ser mencionado é a transformação do sistema bancário: de atendimento
atualizado, nominal, para totalmente automatizado. Entretanto, mesclada à confiança
encontra-se subjacente certa sensação de ansiedade, e esse movimento oscilante, quase
“neurótico”, que tende a ser camuflado, necessita ser neutralizado.
Dessa maneira, os sujeitos, de tempos em tempos, aproximam-se de outras
pessoas na tentativa de amainar, apaziguar essa inquietação, ação esta denominada de
mecanismo de reencaixe (GIDDENS, 1991). É nesse sentido que a teoria da
modernização reflexiva, em que os sistemas especialistas desempenham papel tão
importante, é tomada como uma forma otimista de interpretar o mundo contemporâneo
e com ele se relacionar. A teoria diz que existem, sim, estratégias possíveis de atuação
que reduzem os efeitos negativos da sociedade de risco. Um bom exemplo de tais
sistemas especialistas é o “sistema médico moderno” de cuidado à saúde. Ele é um
modelo que se baseia em pressupostos universais da ciência, que se estende através do
globo. Os conhecimentos de arquitetura e de engenharia se associam da mesma forma
a essa idéia: assim, a maioria das pessoas é compelida a confiar em práticas e
mecanismos sociais sobre os quais pouco ou nada conhece.
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Em todos esses casos, os sistemas especialistas funcionam, claro, como
mecanismos de desencaixe. Mas também é por seu intermédio que acontece a auto-
reflexividade individual: as ações das pessoas em sociedade, com ímpeto para a
mudança social, ou não, são determinadas ou interpretadas por fragmentos de
conhecimento científico – geografia humana, sociologia, psicanálise – apreendido.
Nunca o conhecimento sobre as ações pessoais foi tão acessado e usado na pauta das
ações individuais. Essa é a marca da reflexividade como teoria.
A reflexividade da vida moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alternando assim constitutivamente seu caráter (GIDDENS, 1991, p. 27).
Ou seja: os atores sociais já intervinham ou simplesmente vivem suas vidas
com conhecimento sobre suas atividades, seus contextos de vida. A modernidade
radicaliza isso ao aplicar informação renovada a todos os níveis sociais como elemento
renovador. Há mais exemplos: as ações dos empregados numa fábrica são tomadas em
função do conhecimento que eles têm de seus direitos trabalhistas. Com base na
psicologia e na psiquiatria, os sujeitos definem as suas ações no meio social e também
se voltam para suas próprias ações.
2.4.5 Reflexividade cognitiva e reflexividade estética
A reflexividade esboçada no tópico anterior é basicamente o que Scott Lash
chama de reflexividade cognitiva – baseada no sentido das coisas. Giddens leva em
consideração a reflexividade nos mundos sociais e psíquicos naturais da vida cotidiana,
nas formas de mercantilização, na burocratização e em outras operações pelas quais o
sistema coloniza os mundos da vida.
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Scott Lash desenvolve outro modelo de reflexividade baseado na estética. Ele
se pergunta como podem a estética, um momento estético ou uma fonte estética por si
própria ser reflexivos. Para Lash, a reflexividade estética na vida cotidiana não ocorre
com uma mediação conceitual (como mostrado no outro tópico), mas com uma
mediação mimética. Ele inicia seu raciocínio afirmando que o conhecimento, os
símbolos conceituais e os fluxos de informação servem, por um lado, à dominação
capitalista – dominação essa baseada no complexo poder/conhecimento. Lash afirma
que esse fluxos e acumulações dos símbolos conceituais também podem constituir
condições de reflexividade e de crítica ao sistema. Para Lash, o mesmo acontece em
relação aos símbolos miméticos: as imagens, os sons e as narrativas que compõem o
outro lado da organização (subjetiva) de sinais.
Por um lado, do mesmo modo que a propriedade intelectual, de tipo mercantil, dos setores culturais, eles pertencem à montagem caracteristicamente pós-industrial do poder. Por outro, eles abrem espaços virtuais e reais para a popularização da crítica estética desse mesmo complexo poder/conhecimento (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p.164).
Segundo Lash, esse momento da reflexividade estética se insere na tradição do
modernismo nas artes. Expressões artísticas e afinidades culturais, assim, parecem
poder servir como instrumentos de auto-reflexividade e de construção de narrativas de
vida.
Lash enfatiza que a reflexividade estética não é conceitual, mas mimética. Ela é
reflexiva quando opera mimeticamente na experiência do cotidiano, e torna-se crítica
quando seu alvo, seu ponto de referência mimética, é o sistema de mercadorias,
burocracia ou reificação das formas de vida do sujeito ou de seus pares.
63
3. Metodologia
Queremos saber se existem estratégias ou fatores que evocam processos de
reflexividade entre desenvolvedores, gerentes e executivos das fábricas de software
relacionados ao trabalho realizado por cada um desses estratos profissionais estudados.
E, em seguida, queremos identificar tais estratégias. Esses processos são vinculados à
atribuição de sentido que os profissionais do software fornecem às suas ações, no que
se refere à relação entre o trabalho e as demandas privadas (de ordem física, moral,
ética, existenciais). O pressuposto metodológico que possibilita a investigação a que
nos propusemos é a fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz.
Para a compreensão e justificativa dessa escolha, é necessária a exposição de
alguns conceitos importantes do sistema de Schutz, para em seguida ser feita uma
síntese de sua utilização como elementos do método desenvolvido. A fenomenologia
busca a descrição de atos aos quais foi atribuído algum sentido pela consciência. É
nesse fato que reside a importância da fenomenologia para a análise dos resultados de
nossa investigação.
A fenomenologia elaborada por Alfred Schutz constitui uma síntese da filosofia
de Edmund Husserl – na qual se podem identificar contribuições de Henri Bergson,
William James, Max Scheler, George Herbert Mead – e da sociologia interpretativa da
ação social de Max Weber. Schutz criou as estruturas de uma sociologia baseada em
considerações fenomenológicas. Ou seja, em considerações que levam em conta o
modo como os sujeitos vivenciam o mundo que os cerca, atribuindo-lhes sentido.
Os conceitos de consciência, experiência, conduta, ação, corrente de
consciência, relevância, motivação, intencionalidade e significado são imprescindíveis
para a compreensão e utilização da fenomenologia como ferramenta metodológica de
64
investigação e análise. Assim como também é fundamental a compreensão da tipologia
da racionalidade e da ação desenvolvida por Max Weber. Essas são as razões pelas
quais tais conceitos são revisitados e discutidos abaixo, antes de apresentar sua
utilidade integrada, como ferramenta metodológica.
3.1 A fenomenologia de Alfred Schutz – conceitos básicos
3.1.1 Experiência vivida e consciência
A análise fenomenológica estabelecida por Schutz busca a descrição dos atos
intencionais da consciência. A consciência é sempre consciência de alguma coisa, está
ligada ao conteúdo das experiências humanas. É por isso que se diz que,
fenomenologicamente, a consciência é intencional. Ela é dirigida a objetos, reais ou
imaginários, materiais ou ideais. A consciência intencional significa a atribuição de
sentido a algo, seja o trabalho, a família, a vivência cultural. Por isso, é constituída por
atos de significar, perceber, imaginar, pensar, desejar, querer, agir sobre algo. O ato
intencional da consciência é como a consciência abre-se para o mundo em vivências
intencionais, subjetivas. E toda experiência é determinada não somente por uma
consciência, mas por uma abertura particular para o mundo objetivo, circundante.
Para a fenomenologia, uma atitude é uma ação somente à medida que o autor
da ação lhe atribui um sentido e lhe aponta uma direção, que pode ser compreendida
como significante. Temos então a ação intencionada e intencional, o que equivale dizer
que é uma ação dotada de significado pelo ator.
A ação à qual nos referimos neste trabalho é a ação dirigida às demandas
operativas nas fábricas de software, à família dos sujeitos, ao próprio corpo físico de
desenvolvedores, gerentes e executivos, às vivências culturais de cada um deles, a
pulsões de transcendência e o reflexo desses contextos em suas vidas subjetivas. Como
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atribuir sentido ao mundo cambiante das transformações tecnológicas? Como atribuir
sentido ao mundo da vida afetado por essas transformações?
Como ficará claro adiante, o processo de atribuir sentido à ação
necessariamente precisa passar por um processo de reflexividade associada a tipos de
ação que se relacionam.
A experiência vivida, em sua essência, é privada e inalcançável – mas o seu
sentido, a sua significação, tornam-se públicos através da fala. Quando a descrição é
feita, dá-se, então, a tentativa de romper, pela comunicação, a impossibilidade da
apreensão total dessa experiência subjetiva. As pessoas ou o grupo de pessoas deixam
um conjunto de traços verbais dos pensamentos que devem ser decifrados, tanto quanto
possível, na sua vivacidade representativa. Essa é a razão pela qual escolhemos o
modelo de entrevistas para tentar compreender o fenômeno por nós estudado.
No caso dos profissionais do software, o aparecimento da reflexividade é um
fenômeno da consciência intencional por excelência na medida em que atribui sentido
ao fluxo de informações a que essas pessoas são submetidas, ao seu próprio trabalho, à
vida fora do trabalho. Essa consciência que atribui significados é, em fenomenologia,
uma consciência transcendental. Ela permite a separação entre o sistema da
racionalidade técnica do trabalho e o mundo da vida, entre o trabalho e a durée através
de um mecanismo de reflexividade.
Dentro de cada consciência pessoal, o pensamento é sensivelmente contínuo e mutável e, como tal, comparável a um rio ou corrente. “Corrente de pensamento”, “corrente de experiências ou cogitações”, “corrente de vida pessoal consciente”, são esses os termos usados por Husserl e James para caracterizar a essência da vida pessoal interior (SCHUTZ, 1979, p. 57).
Durante o curso da vida, vivemos nossas experiências e perdemos os atos da
experiência subjetiva em si. Para revelar tais atos subjetivos, é necessário primeiro, diz
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Schutz, “mudar a atitude ingênua com a qual nos dirigimos aos objetos e temos de nos
voltar para nossas próprias experiências, num ato específico de reflexão...” (SCHUTZ,
1970, p. 58). Nosso trabalho foi identificar como os profissionais do software passam
por esse processo de se voltar para as próprias experiências através da reflexão.
Em seguida, Schutz afirma a necessidade da descrição dos tipos e formas de
intencionalidade, que pode ser feita em dois níveis: dentro da atitude natural e através
da redução fenomenológica. A descrição da intencionalidade do ponto de vista natural
aceita sem questionamentos a existência do mundo exterior, o mundo de fato que nos
cerca. Ou seja, existe a crença ingênua na existência de um mundo exterior e de que
essa existência determina nossa percepção e o sentido passível de ser atribuído ao
conjunto dessas experiências. A redução fenomenológica suspende essa crença,
impede julgamentos com relação à existência espacial e temporal, coloca entre
parênteses os julgamentos do senso comum da vida cotidiana sobre o mundo exterior.
O que sobra desse processo é a totalidade concreta da corrente de nossa
experiência – percepções, reflexões e cogitações –, a identificação do modo como a
consciência se abre para o mundo circundante, o mundo das experiências sensíveis.
Tais cogitações são intencionais – elas dão sentido aos objetos. No nosso caso, o maior
interesse está voltado para as intencionalidades (os sentidos) atribuídos a um objeto
específico, que é a ação dos indivíduos. O método da redução fenomenológica dá
acesso à corrente de consciência em si. A psicologia fenomenológica tem justamente a
tarefa de descrição da corrente da consciência em si.
A redução transcendental é importante para a Psicologia Descritiva Fenomenológica porque revela a corrente da consciência e suas características no seu estado puro e, acima de tudo, porque certas importantes estruturas da consciência somente se tornam visíveis através dessa redução. Como cada determinação empírica da
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redução fenomenológica corresponde, necessariamente, a uma característica paralela na esfera natural, e vice-versa, podemos sempre voltar à “atitude natural” e nela utilizar o discernimento que ganhamos dentro da esfera da redução (SCHUTZ, 1979, p. 59).
Neste trabalho não utilizamos a psicologia descritiva fenomenológica. Mas foi
importante para a realização da análise dos resultados o conceito de corrente de
consciência e a noção de que os elementos subjetivos nela só podem ser observados
pelo indivíduo de forma reflexiva, através de um ato de atenção própria.
3.1.2 Conduta, Ação Consciente e Motivação
Na fenomenologia de Alfred Schutz, a conduta se refere às experiências de
significado subjetivo na vida interior do sujeito ou que afetam o mundo exterior. A
conduta pode ser “aberta” ou “encoberta”. Schutz chama a conduta “aberta” de “mero
fazer” e a conduta “encoberta” de “mero pensar”. Essa diferenciação é importante
porque a ferramenta metodológica que usamos leva em consideração que todos os
tipos de atividades chamadas automáticas de nossa vida interior e exterior – habituais,
tradicionais, afetivas - situam-se nessa classe.
Nesse sentido, a ação é uma conduta prevista, baseada num projeto
preconcebido. A ação pode ser encoberta ou aberta. Se nesse tipo de conduta
encoberta projetada há uma intenção de realização, de desenvolvimento, para acarretar
o estado de coisas planejado, a intenção se transforma em objetivo e o projeto, em
propósito. Se falta essa intenção, a ação projetada é um devaneio, uma fantasia.
A ação encoberta projetada também é chamada de desempenho quando existe
intenção de realização. Um exemplo é o processo de pensar projetado como tentativa
de solução mental de um problema científico. Qualquer ação aberta, por outro lado,
por acontecer no mundo concreto, é desempenho, trabalho. Trabalho é, então, a ação
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no mundo exterior. Mas devemos nos perguntar também o que move a ação. As ações
também podem ser consideradas como comportamento motivado. O termo motivação
se relaciona a dois conceitos que, por sua utilidade na análise metodológica dos dados
coletados, precisam ser mais bem explicados. Schutz afirma que existem duas classes
de motivos (SCHUTZ, 1970). Uma se projeta para o passado, e a outra se refere ao
futuro.
A classe de motivos “a fim de” constitui o próprio ato projetado, ou seja, é o
resultado da ação concluída, a finalidade da ação. Como já dito, essa classe de
motivos, do ponto de vista do ator, se refere ao futuro. A outra classe de motivos, que
se opõe a essa primeira, são os motivos “por que”. Eles explicam a ação, são a causa
da ação e se projetam para o passado, para experiências já vividas. É a determinação
pessoal, a situação pessoal e contingente que gera (que motiva) a ação, a história de
vida do sujeito consciente.
Na medida em que o ator vive em sua ação em curso, ele não tem em vista os seus “motivos por que”. Somente quando a ação é realizada, quando, na terminologia que propusemos, ela se torna um ato, é que ele pode voltar-se para sua ação passada, como um observador de si próprio e investigar em que circunstâncias foi determinado que fizesse o que fez (SCHUTZ, 1970, p. 125).
O “motivo a fim de” só é revelado quando perguntamos ao autor da ação qual o
significado que ele dá à sua ação. Está relacionado à atitude em curso e é subjetivo. O
“motivo por que” é uma categoria objetiva, que é acessível ao observador por meio da
reconstrução da ação a partir do ato realizado. O ator capta os “motivos por que” a
partir de um ato de reflexão. Schutz considera a ação consciente como aquela em que
se tem em mente a figura do que será realizado, do seu resultado, do ato concreto
finalizado. Aliás, a palavra “ato” tem essa característica: ela se refere ao resultado
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final, concreto, do processo da ação. Pois bem, conforme prosseguimos para a ação,
continuamente retemos a figura diante de nosso olho interior (retenção) ou de vez em
quando a relembramos (reprodução).
A experiência total da ação é complexa: ela contém as experiências da
atividade em si à medida que ocorre; vários tipos de atenção no que concerne àquela
atividade; retenção do ato projetado – todas esses fatores são consultas ao mapa
idealizado, à situação ou ao contexto que se quer alcançar. Essa consulta é constante e
se constitui na própria essência da reflexão. Como conhecemos a ação consciente, ou
seja, como ela se apresenta, como se evidencia?
Quando ainda em fase de projeto, o ato pode ser claro, cheio de detalhes, ou
vago. A fenomenologia de Schutz nos diz que o esboço do ato é cheio de lacunas ou
variáveis. À medida que a ação progride e se concretiza, as lacunas são preenchidas e
as variáveis recebem valores e acontece uma comparação, a cada passo do caminho,
com o esboço feito no início do projeto. Só quando a ação é completada é que temos
consciência integral da ação (SCHUTZ, 1967).
O significado de uma ação é o seu ato correspondente. Ou seja, o que dá
significado à ação é o resultado pretendido dessa ação, pois sabemos que ela é
comportamento orientado em relação a um plano ou projeto anteriormente elaborado.
É importante atentar para o fato de que nossas experiências presentes se relacionam
também com o futuro, da mesma forma que se relacionam com as experiências do
passado através de retenções e lembranças (SCHUTZ, 1967). Esses dois elementos
também são usados no relacionamento do sujeito consciente com o seu futuro.
Na vida diária, o senso comum trabalha e usa dois tipos de idealizações, que
penetram no senso comum (lebenswelt). Uma dessas idealizações são as do tipo “e
assim por diante” (und so weiter) – suposição de que o que provou ser válido até agora
70
continuará válido até que se prove o contrário. O correlato subjetivo dessa idealização
é o tipo “posso fazer isso de novo” (ich kann immer wieder) - são suposições de que
em condições semelhantes pode-se provocar resultados semelhantes a partir de ações
semelhantes.
Noutras palavras, essas fórmulas ideais implicam a suposição de que a estrutura básica do mundo como o conheço e, conseqüentemente, o tipo e estilo da minha experiência dele e do meu agir dentro dele permanecerão inalterados até segunda ordem (SCHUTZ, 1979, p. 135).
As duas classes de suposição encerram certo nível de indeterminação no
horizonte e “podem ser preenchidas pelas ocorrências futuras ou podem explodir”
(SCHUTZ, 1979, p. 135). A razão dessa indeterminação está ligada, em parte, à
mudança constante no estoque de conhecimento disponível à mão e ao fato de que as
antecipações e expectativas que fazemos do ato se referem a ocorrências situadas numa
constelação de tipos possíveis. Não se imagina que as ocorrências futuras, as
planejadas, aconteçam num cenário único, dentro de um contexto único, mas
vinculadas a múltiplas possibilidades e formas de se concretizarem. A questão do
estoque de conhecimento, por outro lado, traz outros complicadores.
Na verdade, existe um duplo relacionamento entre o estoque de conhecimento à
mão (e sua dinâmica) e os projetos a que se entrega o indivíduo. Por um lado, existe a
referência às experiências de atos anteriormente praticados, que podem ser repetidos;
por outro, a referência do projeto ao sistema de interesses (relevâncias) que são
hierarquicamente organizados. O estoque de conhecimento determina as antecipações
da ação concluída em termos de tipos. Novas experiências, que se adicionam ao
estoque de conhecimento, alteram os interesses principais do sujeito e com isso o seu
sistema de relevâncias. Acontece que o sistema de relevâncias determina o sistema de
71
tipos. Assim sendo, as alterações no sistema de relevâncias, em razão de novos
conhecimentos e experiências, alteram os tipos que existiam no momento da
antecipação. Outros serão os tipos quando o evento antecipado realmente ocorrer –
quando se fizer ato e assim se tornar elemento do presente vivido desse sujeito
consciente. O acúmulo crônico de informação e de conhecimento, característica do
trabalho de desenvolvimento de softwares, altera o mapa que guia o indivíduo. Esse
fator tem um poder de desorientação e de descentramento do sujeito que parece
encontrar respostas nas estratégicas de auto-reflexão, as quais tentamos identificar
nesse trabalho.
Pode-se dizer que um evento que ocorre foi esperado se o que acontece realmente corresponde, na sua tipicidade, às tipicidades à mão em nosso estoque de conhecimento na ocasião de nossa antecipação de sua ocorrência. No entanto, o ponto importante a ser salientado é o fato de que somente em retrospectiva é que uma ocorrência acaba tendo sido esperada ou inesperada (SCHUTZ, 1979, p. 137).
O estoque de conhecimento ainda interfere no processo de projeto da ação. Isso
significa que a possibilidade prática de desenvolver uma ação depende do estoque de
conhecimento disponível pelo indivíduo. É como se a possibilidade de praticar a ação
projetada significasse que, de acordo com o meu conhecimento atual, a ação projetada,
pelo menos com relação ao seu tipo, teria sido viável se tivesse ocorrido no passado.
O projeto do ato é realizado com base em experiências passadas, em andamento
e no estoque de conhecimento disponível. Na verdade, tanto as experiências passadas
quanto as que são vividas no processo em andamento se incorporam ao bojo de
conhecimento. É a referência a esse estoque de conhecimento o que diferencia o
projeto em sua acepção do mero fantasiar. Ou, por outras palavras, o projeto de
72
desempenho ou de ações em aberto é um fantasiar motivado, restrito à intenção
posterior. A viabilidade ou não do projeto condiciona o ato de projetar, que sofre a
imposição da realidade dada. O projeto é um pensamento em potencial. Essa
potencialidade – sua esperança e possibilidade de se realizar – obriga o indivíduo a
levar em consideração somente os meios e fins que permanecem compatíveis e
consistentes em relação aos elementos típicos da situação que garantiram a viabilidade
prática do projeto em ações semelhantes no passado: os meios e fins considerados são
aqueles que provaram ser tipicamente relacionados à viabilidade do projeto.
Depois de o projeto ter sido concebido, ele sofre modificações em sua estrutura
no processo de busca do objetivo, de tentativa de solução para o problema, de
campanha pela realização do ato. Essas modificações determinam, ou realinham, a
ordem de relevâncias do indivíduo e, em decorrência, o estoque de conhecimento que é
montado. O projeto, assim, unifica passado e futuro. No que se refere ao passado, ele
resgata a mais remota experiência que se relaciona com o projeto. E, no que se refere
ao futuro, ele determina o próprio limite do presente vivido através da antecipação dos
projetos concebidos, como se eles fossem vistos no tempo futuro perfeito.
3.1.3 Corrente de consciência
A corrente interior de duração – durée – se opõe ao tempo que se espacializou,
o tempo descontínuo, delimitado. Na duração de tempo pura, não existe delimitação de
vivências, e sim uma transição constante de estados; não existe divisibilidade ou
paralelismo (SCHUTZ, 1967). Os atos humanos são vistos como processos conscientes
duradouros, contínuos, um fluxo de experiências alocado em um tempo fixo, imóvel.
Assim sendo, imerso na corrente de consciência, o indivíduo não encontra nenhuma
experiência nitidamente diferenciada. Em que um estado desses pode nos ajudar? A
73
corrente de consciência ainda não foi alcançada pela reflexão, que pertence ao mundo
do tempo e espaço delimitados da vida cotidiana. A estrutura da experiência vai variar
conforme nos entregamos ao fluxo da “duração” ou paramos para refletir sobre ela,
tentando classificá-la com conceitos espaciotemporais.
Podemos vivenciar os atos humanos como um processo constante, contínuo –
como fenômenos da vida interior. Podemos também analisar os atos humanos como
eventos distintos, divididos e distribuídos no espaço, tais quais atos congelados,
medidos e completos. Os dois aspectos aparecem, nos diz Schutz, em toda a
experiência em geral.
O fluxo de experiências na duração pura e as imagens e experiências
descontínuas, delimitadas no mundo do tempo e do espaço, diferem e se afastam,
essencialmente, pela percepção do tempo. A diferença entre os dois contextos é uma
diferença de nível de consciência. Na vida cotidiana, a ação do ego é marcada pelo
tempo e pelo espaço. O ego vive uma atenção à vida contingente que o impede de
mergulhar na duração pura da consciência. E a duração pura da consciência é marcada
pela impossibilidade de diferenciação do tempo em que as experiências individuais
ocorrem. Entre os dois momentos não há lembrança.
De fato, quando estou imerso na minha corrente de experiência, na minha durée, não encontro nenhuma experiência nitidamente diferenciada. Num dado momento, uma experiência “se acende”, e logo “se apaga”. Enquanto isso, alguma coisa nova surge do que era alguma coisa velha e cede então lugar a alguma outra coisa ainda mais nova. Não posso distinguir entre o Agora e o Antes, entre o Agora mais recente e Agora que acaba de passar, exceto porque sei que o que acaba de passar é diferente do que se passa agora. Pois eu vivencio a minha duração como uma corrente irreversível, unidirecional, e vejo que de há um momento atrás a agora mesmo eu envelheci. Mas não posso estar atento a isso enquanto ainda estou imerso na corrente. Na medida em que toda a minha consciência permanece temporariamente unidirecional e irreversível, estou inconsciente tanto do meu próprio
74
envelhecimento quanto de qualquer diferença entre presente e passado (SCHUTZ, 1979, p. 61).
Para perceber essa diferença é necessário um tipo especial de atitude reflexiva.
É essa atitude especial que permite que a consciência da experiência na corrente de
duração pura seja transformada em lembrança. É a capacidade de diferenciar tempos
diferentes pela lembrança – resultado da atitude reflexiva – que transforma as
experiências individuais dentro da corrente de consciência em experiências
intencionais. As ações intencionais que estamos perseguindo são atitudes tomadas com
relação às experiências intencionais. Por essa razão, a necessidade de aprofundar o
entendimento do surgimento da experiência intencional.
A experiência intencional surge na percepção de que cada instante é diferente
do instante anterior por conter o instante anterior na forma de “modificação por
retenção”. Mas, para perceber isso, é necessário sair do fluxo de duração, que também
pode ser compreendido como um continuum de instantes e respectivas experiências.
Essa saída acontece por intermédio de um ato de reflexão sobre a experiência de viver.
As experiências então são apreendidas, distintas, acentuadas, marcadas, uma com
relação à outra – as experiências que foram constituídas como fases de um fluxo de
duração tornam-se agora objeto da atenção como experiências constituídas. A atenção
acontece sobre uma experiência passada, o que delimita a experiência em sua
temporalidade.
Pelo fato de que o conceito de experiência significativa sempre pressupõe que a experiência cujo significado é predicado é uma experiência delimitada, fica agora bastante claro que somente uma experiência passada, isto é, uma experiência que é vista em retrospectiva, como já acabada, terminada, pode ser chamada de significativa (SCHUTZ, 1979, p. 63).
75
Só olhando para trás, retrospectivamente, se percebem experiências delimitadas
e significativas. Essa operação de reflexão atribui intencionalidade à experiência.
3.1.4 Atribuindo significado à conduta
O comportamento (a ação) é uma experiência da consciência atribuidora de
significado, de sentido. É necessário diferenciar esse tipo de experiência das outras
experiências. Nem todas as experiências são atribuidoras de sentido. As experiências
passivas, as associações, as experiências que ocorrem dentro da consciência de tempo
original, a experiência da constituição da temporalidade imanente, não podem atribuir
significado.
Só podem atribuir significado as experiências que são ato do ego
(comportamento) ou modificações desse ato de forma passiva ou por julgamento
passivo.
É possível, se assim se desejar, definir os atos relativos a ‘tomar atitudes’ como atos relativos à atividade criadora primária, desde que, como fez Husserl, incluam-se aqui os sentimentos e a constituição de valores através de sentimentos, sejam esses valores vistos como fins ou como meios (SCHUTZ, 1979, p. 66).
Ou seja, a experiência atribuidora de significado pode ser o ato do ego, o
comportamento – atitude – a atividade espontânea ou suas formas secundárias
modificadas: a retenção e a reprodução, das quais já falamos. A diferença básica entre
essas experiências conscientes é que o comportamento tem uma intencionalidade
primordial (uma atribuição de significado ao objeto sobre o qual age), e essa
intencionalidade primordial permanece a mesma nas modificações intencionais e nas
atividades espontâneas. Isso significa que a ação com atitude consciente que atribui
76
sentido é um ato primordial sobre o qual acontece modificação em termos de retenção
ou lembrança, o que só pode ocorrer de forma reflexiva.
A ação (acontece em fases) como atitude consciente que atribui sentido tem
uma resposta, um reflexo no mundo concreto. A reflexão sobre essa ação acontece por
intermédio de retenção – no caso da ação que ocorre em fases - e memória
(lembrança). A essência do que é apreendido reflexivamente é a mesma do ato em si,
remete à atitude espontânea. Uma intencionalidade básica/primordial vinculada à
atividade espontânea diferencia o comportamento (que é constituído de uma série de
experiências) de outras experiências da vida.
3.2 A contribuição de Max Weber
3.2.1 Conduta subjetivamente significada
Para Weber, a conduta humana só é considerada ação quando esta é dotada,
pelo autor, de significado e de direção – direção essa que pode ser compreendida como
significante. Ou, em outras palavras, a conduta é considerada ação quando é dirigida a
um objeto. Quando se aciona o estabilizador de um computador e em seguida se aciona
o botão que liga o computador, estas são ações com significado, com sentido. Até aqui,
não há um referencial social necessário.
Existe uma diferença específica quando a conduta é direcionada a outro ser
humano. Neste caso, a ação adquire um novo peso significativo porque é direcionado
para outro “eu”. Nesse novo contexto, a ação só pode ser compreendida pressupondo a
existência desse outro “eu”. Mas, segundo Weber, não é suficiente que uma ação
estabeleça o contato com outra pessoa para que ela seja qualificada como ação social.
É necessário que a conduta direcionada a outra pessoa seja orientada
significativamente. Ou seja, uma trombada entre dois ciclistas pode ser comparada a
77
um evento natural. Mas a tentativa de evitar o choque e, quando isso for impossível, os
insultos, a discussão, os pedidos de desculpas, constituem ações sociais por estarem
impregnadas de sentido e significação.
Assim, a ação social implica não somente a consciência da existência do outro,
mas também do significado da ação do outro – é um terceiro e mais profundo nível de
significação. A ação social ainda é orientada, em alguns casos, pela conduta do outro.
Todas essas estruturas de significado são compreendidas pelo ator social, o que só
pode significar que este baseia sua ação na compreensão que tem da conduta dos
outros. Todos esses níveis de significação da ação (condução direcionada) atribuem
sentido e significado ao mundo em que o ator social está imerso por se referir a
objetos, a pessoas e a relações sociais.
Para Weber, é preciso notar, a conduta significativa é conduta racional, e mais:
é conduta orientada por um sistema de fins individuais discretos (zweckrational). Em
sua sociologia compreensiva, essa conduta é o arquétipo da ação. Essa orientação da
ação é, em Weber, o modelo de construção significativa. Essa conduta intencionada e
intencional torna-se social quando é dirigida à conduta dos outros – essa é a ponte
existente entre a sociologia compreensiva de Max Weber e a fenomenologia,
aproveitada na sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.
Assim, a subjetividade é um critério imprescindível para a compreensão da
ação humana, no sentido de significado atribuído, utilizando-se recursos da sociologia
compreensiva de Max Weber. Procuramos, assim, construir um tipo extremo ou ideal
para as condutas identificadas entre os profissionais do software, no que se refere às
demandas do trabalho e à relação dessas demandas com processos de reflexividade.
Esse objetivo requer a utilização da tipologia de racionalidade e de ação social criada
78
por Max Weber. O objetivo é, usando os tipos de racionalidade por ele desenhadas,
identificar as estratégias de reflexividade associadas à ação racional desses indivíduos.
3.2.2 Tipos de racionalidade e de ação
As formas como os processos de racionalização avançam e acontecem são
múltiplas e se espalham em fenômenos e contextos externos e internos. A
racionalização ocorre em diversas esferas da vida. A importância da utilização dos
tipos de racionalidade estabelecidos por Max Weber está, como mostrou Kalberg
(1980), no fato de que as quatro categorias de racionalidade manifestam-se em uma
multiplicidade de processos, orquestrados em todos os níveis do processo social e
civilizacional.
Processos qualitativamente diferentes de racionalização potencialmente avançam e tomam lugar em vários níveis socioculturais em diferentes esferas da vida, naqueles relacionados à organização externa da vida (lei, política, economia, dominação, conhecimento) e esferas internas (religião, ética) (KALBERG, 1980, p. 25).
Assim, cada campo (de conhecimento, de atividade, de profissão, de
preconceitos...) tem associado a ele vários processos de racionalidade, em maior ou
menor grau. É necessário lembrar que os conceitos desenvolvidos por Weber são
válidos em termos daquilo que eles são de fato: conceitos. São classificações criadas
pelo homem que servem para a investigação sistemática de determinado fenômeno.
Não representam de modo ideal a realidade, mas apontam para a compreensão de sua
essência em termos de tipos.
A racionalidade substantiva estabelece padrões de ação baseados em
experiências do passado, do presente ou em postulados de valor (na verdade, conjunto
de valores que variam em consistência interna e conteúdo). Essa é a razão pela qual se
79
diz que esse tipo de racionalidade existe como uma manifestação da inerente
capacidade do homem para ações orientadas racionalmente por valores. Exemplos de
racionalidade substantiva podem ser circunscritos a certas áreas da vida. É o caso da
amizade, e das idéias que movem o comunismo, o feudalismo, o hedonismo e mesmo
as noções de estética. Diferem na forma de organizar as ações e diferem em conteúdo.
Mas os postulados de valor orientam a ação no mundo da vida quando articulam a
racionalidade substantiva. Tais postulados são múltiplos, variados, infinitos e, em
princípio, transmitem tal característica para os meios de vida dos indivíduos.
Pequenos grupos, organizações, instituições, entidades políticas, culturas e civilizações, são, em cada era, ordenados em termos de postulados de valor específicos, mesmo que isso não seja identificável pelos seus participantes e possa ser tão fundamentalmente estranho para os valores do pesquisador social que só muito raramente ele possa imaginar situações nas quais elas adquirem validade (KALBERG, 1980, p. 1155).
Weber entendeu que a racionalidade substantiva é a expressão de pontos de
vista supremos. Cada ponto de vista implica uma configuração identificável de valores
que determinam a direção de um processo de racionalização. Não existem, entretanto,
valores absolutos que sirvam como padrões perenes para os processos de
racionalização. Kalberg afirma que a racionalidade substantiva está associada a uma
abrangência radical em que a existência de um processo de racionalização difere da
preferência por outros valores. Tais valores podem ser sugeridos ou já estabelecidos na
vivência do indivíduo, são conscientes ou inconscientes. Formas de ver o mundo
pautadas pela racionalidade substantiva podem diferir entre si dentro de certa esfera.
Kalberg chama a atenção para o caso da religião, em que pontos de vista baseados em
valores se autoproclamam processos de racionalidade.
80
De forma geral, a racionalidade substantiva não tem como base somente o
cálculo de fins. A ação do indivíduo pautada pela racionalidade substantiva é
determinada também pelo contexto. Pode-se dizer também que a ação, nesse caso,
manifesta-se sobre elevado conteúdo ético, orientada por um caráter de transcendência.
Essa racionalidade está, como já apontado, vinculada a valores humano-sociais que
privilegiam a cooperação e a compreensão entre pessoas, a emancipação da
consciência pessoal, a preocupação com o bem-estar.
Também no campo da moral, como ainda frisa Kalberg, o proponente da ética
da convicção sempre proclama que a adesão à ética da responsabilidade é uma posição
irracional. E, da mesma forma, os defensores de valores universais têm a mesma
posição em relação aos proponentes de valores particularistas. A preocupação de
Kalberg é apontar para as múltiplas dimensões dos processos de racionalidade. A
conseqüência mais evidente dessa forma de encarar os valores é que não pode a ciência
provar que esse ou aquele valor é superior a outro.
Por seu lado, a racionalidade formal geralmente se relaciona com esferas da
vida e estruturas de dominação que vieram a adquirir fronteiras somente com a
industrialização nas esferas da economia, da lei e da ciência, além da própria
burocracia. A racionalidade formal legitima as ações e cálculos de meios-fim ao se
referir a regras, leis e regulações gerais. A racionalidade formal, portanto, rejeita todo
tipo de arbitrariedade. O universalismo de regulação e de cálculos é oposto, por esse
tipo de racionalidade, à decisão tomada em referência a qualidades pessoais ou
individuais. Personalidades distintas e diferenças em relação a status são submetidas a
cálculos e procedimentos pautados pela racionalidade formal.
81
Kalberg argumenta que, do ponto de vista técnico, a burocracia, um tipo de
racionalidade formal, é o tipo de dominação mais racional, porque ela executa não
mais que cálculos, do modo mais preciso e eficiente, para a solução de problemas, ao
ordená-los sob regulações universais e abstratas. Os procedimentos de ciência
experimental são também tomados por Weber como racionalidade formal. O cálculo
procede nesse caso, em relação a regras comuns (conhecidas e divididas entre os
pesquisadores) de experimentação.
Essa é uma forma de regulação racional mais sofisticada do que aquela
verificada nas formas de dominação burocrática ou econômica e legal. A observação
empírica, a quantificação e a medição sistemáticas são responsáveis por controle
metódico, especialmente no laboratório. É possível perceber, pois, que a consecução de
cálculos tecnicamente viáveis baseados em fins acontece sem que se dê prioridade a
interesses pessoais.
A racionalidade prática pautas as ações por interesses pragmáticos e egoístas.
Esse tipo de racionalidade aceita como dadas as realidades vivenciadas pelo sujeito e
calcula as melhores formas de se relacionar com as dificuldades que elas apresentam,
em vez de guiar as ações em função de um sistema maior de valores. A racionalidade
prática parece viver a plena contingência. São a experiência e os interesses do dia-a-dia
que pautam a ação pragmática vinculada à racionalidade prática. Os fins práticos são
cuidadosamente buscados em termos de cálculos precisos dos meios mais adequados
para isso. Kalberg afirma que esse tipo de racionalidade existe como uma manifestação
da capacidade do homem para a ação racional orientada por fins. Kalberg ainda
salienta que, como resultado de suas atividades típicas, o estrato civil formado por
82
mercadores, artistas, comerciantes, mostra uma tendência para ordenar seus meios de
vida através da racionalidade prática.
A predisposição pragmática dos padrões de ação racional prático implica uma subordinação dos indivíduos a dadas realidades e uma concomitante inclinação a se opor a todas as orientações baseadas em transcendência da rotina diária. Tais pessoas geralmente desconfiam não somente de todo esforço no sentido de vivência para além da contingência, seja ela uma utopia religiosa ou secular, assim como também racionalidade teórica abstrata de todo estrato intelectual (KALBERG, 1980, p. 1152).
Enfim, a racionalidade prática está relacionada com a visão e juízo do
indivíduo sobre uma prática qualquer assumida por ele. As ações no cotidiano
(moldadas pela contingência) fornecem a direção do comportamento adotado. Nesse
tipo de racionalidade, o indivíduo está subordinado às vicissitudes do dia-a-dia. Esse
tipo de racionalidade parece estar vinculado de forma muito próxima a um tipo de
reflexão operativa, técnica, pouco analítica do contexto geral que delimita a
racionalidade prática e sua ação respectiva. Ela se estabelece e é guiada pela
contingência do dia-a-dia.
Já a racionalidade teórica envolve a construção de conceitos abstratos precisos
no processo de construção/apreensão/domínio da realidade, em detrimento da ação.
Esse tipo de racionalidade acontece quando ocorrem julgamentos internos que
determinam o freio do comportamento. A concretude da racionalidade formal está na
formação típica de um significado simbólico. O que há de comum às racionalidades
tipificadas por Weber? O denominador comum parece ser formado pelos processos
mentais que conscientemente ajudam a controlar a realidade. Todos os processos de
racionalidade e as ações a cada uma delas associadas confrontam, sistematicamente, a
realidade de ocorrências concretas, eventos desconectados ou acontecimentos pontuais.
83
Todas as racionalidades, para Weber, tentam eliminar as percepções particularizadas
ao ordená-las em regularidades compreensivas e significativas.
Na análise weberiana, o potencial para controlar conscientemente essa
realidade, comum às racionalidades por ele identificadas, se consolida como um fator
central. Fatores históricos e sociológicos determinam se certa realidade terá expressão
como um processo mental isolado ou se terá uma “reverberação”, uma contraparte de
ação. Na verdade, existem afinidades eletivas entre certas ordens e tipos particulares de
ação. Tais ordens institucionalizam um particular tipo de ação formal ou substantiva e
podem gerar vários tipos de racionalidades.
Kalberg chama a atenção para a racionalidade substantiva produzida por
profetas, padres e teólogos em doutrinas de salvação ética que são institucionalizadas
em organizações – igrejas, seitas, irmandades. Tipicamente, os fiéis são obrigados a
vivenciar esta racionalidade substantiva devido a uma constelação de valores. Há,
entretanto, pessoas que não padronizam suas ações consistentemente por essa
constelação de valores de forma absoluta. Nesses casos, os princípios éticos dentro da
religião funcionam como guias gerais para a ação, aos quais se adere ou se despreza,
dependendo da demanda momentânea. Há ainda os casos de pessoas que aderem a esse
tipo de racionalidade ética institucionalizada em função de seus próprios interesses.
Kalberg ilustra esse caso como os homens de negócios que aderiram ao calvinismo
para adquirir reputação de honestidade impecável. Nesse caso específico, os padrões
de racionalidade substantiva não são guiados por valores, e sim em função de um
objetivo-fim de tornar o negócio bem-sucedido.
Kalberg dá outro exemplo de como certas ordens legítimas de tipos de ação
estabelecem afinidades eletivas: o caso dos servos prussianos do século XIX, para
84
quem a realização de tarefas de forma eficiente e a pontualidade no início do trabalho
diário seguiam uma constelação de valores baseada em uma ética burocrática na qual
as tarefas requeriam dependência, precisão, eficiência, pontualidade, disciplina e
estabilidade.
O que temos nesse exemplo é que um conjunto de valores se torna o meio mais
apropriado para a execução de padrões de ação relacionados a uma estrutura racional
formal e burocrática de servilismo. O que Kalberg tenta mostrar nesse exemplo é que a
burocracia como uma ordem legítima caracterizada por regulações abstratas pode ser
mantida por um número de diferentes razões, vinculada a determinada época. Em outro
contexto, a execução de tarefas pode ser determinada pelo simples medo de se perder o
emprego ou por adesão ao comportamento tradicional.
3.3 O trabalho de desenvolvimento de softwares e a atribuição de sentido à ação –
a razão de escolher a fenomenologia
Estamos agora em condições de deixar clara a razão da escolha da
fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz para investigar o problema a que nos
propusemos analisar. Os conceitos previamente apresentados se encaixam na realidade
concretamente identificada entre os profissionais do software. Isso porque parece
evidente que a possibilidade de reflexividade deve estar associada à capacidade de
atribuir sentido às experiências vividas. Essa disposição humana de procurar uma
unidade significativa à experiência, de associar a possibilidade de experiência a essa
atitude, é o ponto em que associamos fenomenologia e neokantismo.
A conduta do profissional pode facilmente ser enquadrada no esquema de
Schutz. As atitudes basicamente operativas de codificação, características do trabalho
85
de desenvolvedores e gerentes, são condutas previstas, baseadas em projetos práticos
preconcebidos. Da mesma forma, as atitudes que se projetam para o futuro, que
buscam mudança do estado de coisas atual, são associadas a uma intenção que se
transforma em objetivo ou propósito.
O que move a ação desses profissionais? Todas as ações dos profissionais do
software – sejam elas de cunho puramente racional, vinculadas a aspectos operativos;
sejam elas pautadas por valores e associadas à busca por transcendência; sejam elas
controladas por pressupostos legais ou guiadas por pressupostos teóricos – preparam o
contexto, contingente ou estrutural, que articula as ações concretas dos sujeitos.
O trabalho de desenvolvimento de softwares é eminentemente reflexivo porque
se ancora na necessidade constante de atualização do conhecimento necessário para
sua performance, e requer a transformação das condições anteriormente dadas e a
antecipação de resultados. Desse modo, os recursos conceituais da fenomenologia nos
permitem classificar as ações operativas e sua posição na vida privada dos indivíduos.
A reflexividade assim associada à ação é circunscrita às atividades do trabalho.
Entretanto também precisamos considerar aspectos subjetivos da intenção e da ação
dos estratos profissionais analisados, pois ocorrem reflexividades associadas a outras
vivências dos sujeitos.
Seguindo esse caminho, vemos que as classes de motivos que se associam às
ações estão para além do círculo formado somente pelas demandas profissionais e elas
se instalam em interesses privados, pessoais, subjetivos. As reflexividades associadas à
ação tipicamente prática e à racionalidade prática não são suficientes para nos ajudar a
compreender a interação do indivíduo com as demandas representadas pelo próprio
corpo, pela família, por interesses subjetivos, por interesses e afinidades culturais –
nem mesmo suficientes para entender a interação com o trabalho.
86
É preciso, assim, atentar para o cruzamento das várias racionalidades no
exercício reflexivo exigido pela profissão. E preciso também considerar que a
interação das racionalidades e as reflexividades associadas operam em círculos mais
amplos, para além do trabalho ou dos projetos profissionais dos indivíduos. Ao mesmo
tempo, essas vivências e prioridades externas às atividades nas fábricas de software
interferem no ofício e são por elas mesmas modificadas. Esses cruzamentos de
prioridades racionalmente delimitadas formam um leque complexo de interações.
Leque esse cerzido por mecanismos de auto-reflexão que se tocam, como a
malha de um tecido. Mecanismos e estratégias reflexivas associadas a racionalidades
substantivas e práticas convivem, e mais que isso: se interferem, se realimentam.
Precisamos, para compreender um pouco melhor a malha desse tecido, recorrer
novamente à análise das interações e relações entre os tipos de racionalidade feita por
Stephen Kalberg. Esse autor salienta, baseado na obra de Weber, que somente valores
e, particularmente, uma configuração unificada de valores são analiticamente capazes
de introduzir meios de vida racionais metódicos.
De forma mais explícita, Kalberg conclui que é somente a racionalidade
substantiva que possui o potencial analítico para introduzir meios de vida racionais
metódicos. As racionalidades teórica e formal são capazes de controlar aspectos da
vivência prática e contingente dos sujeitos, mas nenhuma das duas consegue
estabelecer atitudes consistentes ao longo da vida. Embora seja dotada da capacidade
de estabelecer atitudes consistentes ao longo da vida, a racionalidade prática
permanece simplesmente como reações a realidades heterogêneas e pontuais. Essa
racionalidade apenas ordena a reação a situações mutáveis, em vez de agir de forma
determinante sobre tais situações.
87
Kalberg explica que os vários processos característicos da racionalidade teórica
confrontam a realidade e procuram manipulá-la abstratamente. Assim, o poder para
introduzir um meio de vida ou para suprimir a racionalidade pratica é restrito. Já a
racionalidade formal determina a ação de forma limitada a círculos burocráticos. É
assim que empregados públicos, advogados, cientistas executam as tarefas típicas de
suas profissões sob orientação de regras e leis. Segundo Weber, esse padrão de
racionalização não é suficiente para caracterizar a ação dessas pessoas em seus
relacionamentos pessoais, em sua capacidade como pais, nas horas de folgas do
trabalho ou na escolha de hobbies.
É por essa razão que Kalberg salienta que somente a ação orientada pela
racionalidade substantiva tem o potencial para introduzir meios de vida metódicos que
superem a racionalidade prática, baseada em interesses, e a orientação racional formal,
baseada em regras. Kalberg explica que isso acontece mais efetivamente depois que os
valores são racionalizados, através de um processo de racionalização teórica. E
enquadrados em um conjunto unificado de valores que compreensivamente se dirigem
a todos os aspectos da vida e os categorizam.
O conteúdo de valor dessas racionalidades substantivas varia ao longo de um
extenso espectro secular e religioso. A atribuição de valor é fundamental no processo
reflexivo de longo prazo, na crítica ao sistema, na mudança de postura diante do
trabalho. Os sujeitos atribuem novos valores a experiências e bens intangíveis,
subjetivos, o que interfere na ordem de relevâncias e prioridades ao longo do tempo.
A racionalidade operativa, de hegemônica, cede espaço à manifestação de
racionalidade substantiva e teórica. Isso é resultado de processos de auto-reflexão, mas
também interfere nos processos de reflexão, em um ciclo de interferência virtuoso. É
nesse quadro que as instâncias aparentemente opostas das várias racionalidades
88
convivem e se cruzam na ação humana dos indivíduos. A racionalidade substantiva
atribui, segundo Kalberg, prêmios psicológicos à ação ética no mundo. Elevam-se os
padrões éticos ao status de uma racionalidade substantiva ética. Essa racionalidade
ética não envolve somente memorização de regras de conduta. Ela implica um
imperativo para a conformidade a uma boa moral interna e também uma disjunção
entre um cânone que reivindica status ético e o fluxo empiricamente dado de realidades
fragmentadas. Weber considera que a ação diária pode ser influenciada por
racionalidade ética, apesar de forças sociais opostas.
Somente racionalidades éticas – fundamentadas em valores - são capazes de
permanentemente suprimir as regularidades racionais práticas de ação ou intensificá-
las, transformando-as em ação ética prática. Esse movimento se assemelha ao de uma
reflexividade que age sobre as atividades práticas.
Vimos que o conhecimento interfere na ordem de relevâncias da razão, mas é
necessário acrescentar que outras experiências, além do conhecimento técnico, guiam a
ordem de interesses, vindo daí a ação. Vimos também que a compreensão tanto do ato
concluído quanto da ação em curso é acompanhada por atos de atenção. No primeiro
caso, somente com a ação concluída tem-se a noção exata de seu significado. No
segundo, a atenção, o ato reflexivo, funciona através da consulta ao mapa, à intenção
primeira que movia a ação.
Tanto do ponto de vista do ato - ou seja, do resultado da ação, da finalidade da
ação, do motivo “a fim de” - quanto da história anterior que explica a ação em termos
de passado, o motivo “por que”, os motivos só são conhecidos, ou reconhecidos em
termos de ações reflexivas. Assim, quando passamos a considerar outros tipos de ação
e de motivação na vida dos profissionais do software, precisamos também,
89
necessariamente, identificar tais processos reflexivos, e a forma como eles interferem
no curso dessas ações.
3.4 A escolha das empresas
A escolha das empresas e dos profissionais a serem entrevistados obedeceu a
critérios cujo objetivo era representar o pólo de desenvolvimento de softwares da
cidade do Recife. As empresas procuradas são conhecidas como fábricas de software.
Elas desenvolvem programas, soluções gerenciais, de administração ou de execução de
tarefas baseadas em tecnologia da informação. Esses são os principais produtos
oferecidos pelas empresas que forneceram profissionais para as entrevistas.
Assim, a escolha das empresas seguiu a preocupação de selecionar instituições
que preenchem as exigências a seguir.
Presença nacional, com clientes em outros Estados
Essas empresas enfrentam concorrência acirrada e, por isso, têm a necessidade
de seguir modelos de produção nos quais se incluem a requalificação técnica constante
do corpo de profissionais, a utilização de processos de desenvolvimento de software
baseados em normas internacionais de qualidade, o uso de instrumentos (computadores
e softwares) de última geração e a contratação de profissionais com formação
universitária.
Esses critérios permitem compreender o campo em que se encontra o nosso
problema. Eles caracterizam empresas que concorrem internacionalmente com outras
instituições do segmento de TIC em termos de qualidade de desenvolvimento de
softwares. Por causa disso, desenvolvedores, gerentes e executivos vivem a
90
necessidade de atualização constante de conhecimentos para se enquadrar num modelo
de trabalho específico.
Além do modelo de trabalho, a concorrência em si é um componente que se
reflete na pressão pelo cumprimento de prazos, por soluções contingentes efetivas, por
dedicação e flexibilidade de horários, por disponibilidade para o trabalho. Elementos
esses que influenciam a ação reflexiva que investigamos.
Mais de 50% do corpo técnico de profissionais formado em universidades
Essa delimitação buscou estabelecer o contato com profissionais do software
que receberam, através da formação universitária, a orientação para renovação do
conhecimento no setor de Tecnologia da Informação e Conhecimento. O objetivo
dessa delimitação foi evitar as empresas em que a formação precária dos trabalhadores
força não a reincorporação reflexiva de informação e conhecimento, mas a apreensão
irregular de informação para a solução precária de problemas pontuais, o que
prejudicaria a compreensão do sentido atribuído à qualificação crônica entre os
profissionais do software.
Por esse critério também procuramos selecionar, de forma indireta, um estrato
de pessoas com acesso maior a bens culturais. Esse recorte está de acordo com as
características gerais do profissional pós-industrial compreendido por Eliot Freidson:
flexibilidade, formação continuada e bem realizada. A importância desse fator está na
necessidade de se avaliar a influência de outros tipos de informações, além dos
técnico-operativos, nas ações dos sujeitos.
Com relação aos entrevistados, a escolha também seguiu critérios que
colaborassem com a investigação a que nos propusemos. Assim, por uma questão
operacional, todos os profissionais entrevistados trabalham em unidades de negócios
91
ou empresas localizadas na cidade do Recife. Também foi dada preferência àqueles
com formação superior completa e atuação em um dos estratos escolhidos:
desenvolvimento de software, gerenciamento de projetos e outras atividades, além dos
cargos de executivos.
Ou seja, todos os entrevistados estão envolvidos no processo de
desenvolvimento de softwares, implantação, teste e ajuste de soluções computacionais.
E também na prospecção de demandas por programas no mercado formado por
empresas e órgãos públicos e instituições privadas, além de comercialização da
produção efetiva das fábricas de software.
O envolvimento em todas essas áreas do trabalho da fábrica de software exige
dos profissionais não somente o domínio da técnica, mas a disponibilidade para
incorporar novos conhecimentos e novas formas de realizar o trabalho para o qual se
foi treinado. A disponibilidade em reordenar a base do conhecimento necessária para a
realização de tarefas operativas não é exigida de todos os profissionais que trabalham
nas fábricas de software. Esses profissionais não estão envolvidos nos processos de
desenvolvimento de programas e, por isso, não precisaram ser entrevistados. É o caso
dos jornalistas que trabalham nas assessorias de imprensa das empresas, secretárias,
seguranças, entre outros. A faixa etária dos entrevistados não foi determinante para a
escolha de quem deveria ser entrevistado.
3.5 Entrevista
O modelo de entrevista, aplicado a 22 profissionais, serviu como um roteiro de
perguntas e respostas cuja principal finalidade era mesmo servir como um guia básico.
As perguntas foram elaboradas considerando-se um pré-teste realizado em janeiro de
2004, cujo objetivo era testar alguma das hipóteses e obter informações para as
92
questões a serem realizadas. A entrevista foi semi-estruturada. Além da gravação
realizada durante a sessão de perguntas e respostas, foram feitas anotações.
As sessões de entrevista foram programadas para durar cerca de 30 minutos.
Embora algumas delas tenham durado bem menos ou bem mais que isso, a média geral
ficou em 30 minutos de conversação. As perguntas foram elaboradas com a intenção
de que surgissem novos temas ou questionamentos ao longo da entrevista.
As transcrições estão disponíveis no volume anexo a esta dissertação. É
necessário observar que o nome dos entrevistados, bem como o das empresas nas quais
eles trabalham, foi omitido. A razão desse procedimento está em evitar que eventuais
críticas realizadas ao modelo de trabalho possam prejudicar os entrevistados no
ambiente da empresa. Os cargos dos entrevistados foram mantidos.
Modelo da entrevista
Formação
1 – Qual seu nome e em que você é formado?
2 - Como você chegou a trabalhar neste lugar?
Trabalho atual
3 – Em que constituem suas atividades na empresa atualmente?
4 – Quanto tempo de trabalho é realizado no ambiente da empresa?
5 – Você prefere realizar seu trabalho na empresa ou noutro lugar? Por quê?
6 – Você tem idéia de quanto tempo durante a semana você trabalha na empresa ou em
casa?
93
Atualização de conhecimento
7 - Que maneiras você encontra para renovar ou atualizar seu conhecimento?
8 - Com que freqüência você checa newsletters e fóruns durante um dia normal de
trabalho?
9 – Se essa checagem não acontecer, sua performance no trabalho pode ser de alguma
forma prejudicada?
10 – O que você sente quando não verifica e-mails, ou as newsletters ou fóruns que
utiliza?
11 - Qual a importância das rotinas de avaliação e atualização de conhecimento?
12 - Você participa de outro tipo de fórum ou assina algum tipo de newsletter?
13 – A internet é útil para obter conhecimentos para seu trabalho?
Futuro
14 - Como e onde você vê seu futuro profissional?
15 - Quais as perspectivas futuras de sua profissão e como ela vem se modificando?
Diversão e hobbies
16 - Fora do trabalho, o que faz para se divertir?
17 - Qual a importância dessas atividades para a realização de seu trabalho?
18 - Você já teve vontade de participar de alguma atividade cultural? Qual? Por quê?
Qual a importância de uma atividade como essa?
19 - Essa atividade que você tem hoje ajuda a refletir sobre sua vida e/ou trabalho? De
que forma?
20 - As atividades que reduzem a tensão das pessoas na sua empresa são parecidas?
21 - Você vê alguma razão para isso?
94
22 - Você sente que o trabalho é mais bem realizado se as pessoas estiverem
envolvidas por essas outras atividades?
23 - Em que medida o trabalho exige que as pessoas se envolvam em atividades
culturais ou físicas?
24 - Como você divide o tempo entre trabalho e lazer?
95
4. Campo de estudo
4.1 Caracterização do pólo de informática
O pólo de informática de Pernambuco é formado por cerca de 200 empresas,
que juntas são responsáveis por aproximadamente R$ 200 milhões da arrecadação de
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A face mais importante
desse pólo é constituída pelo sistema local de inovação chamado Porto Digital, que se
estende por 100 hectares da ilha do Recife, no Bairro do Recife. O Porto Digital é um
projeto de desenvolvimento econômico que envolve investimentos públicos e privados,
instituições de ensino e fomento, além de núcleos de pesquisa. Esse sistema local tem
por principal finalidade desenvolver e consolidar a infra-estrutura e as condições
necessárias para inserir a produção de softwares local no cenário tecnológico mundial.
Os últimos dados da participação desse setor na riqueza do Estado de
Pernambuco indicam que, em 2003, as empresas de tecnologia da informação e
comunicação representaram 3,49% do Produto Interno Bruto total do Estado. A taxa de
crescimento em relação ao ano anterior (2002) foi de 5,23%, o que em termos
financeiros representou um valor global de R$ 1,367 bilhão. O PIB do Estado, nesse
mesmo ano, foi de R$ 36,5 bilhões, com um crescimento de 4% em relação ao ano
anterior.
O PIB devido somente às atividades de tecnologia da informação no ano de
2003 foi estimado em R$ 408,21 milhões – com taxa de crescimento de 6,83%. Com
esse resultado, o PIB produzido pelas empresas de tecnologia da informação tem
participação de 29,85% no setor todo (que inclui ainda as empresas de comunicação).
A participação das empresas de TI é de 1,04% no PIB do Estado.
96
Se levarmos em conta as empresas do setor de tecnologia da informação e
comunicação (portanto, incluindo as empresas de telefonia), a participação do setor de
TIC no PIB sobe para 3,49%.
Embora a participação da produção de riquezas devida ao setor de tecnologia
da informação e comunicação na economia do Estado ainda seja singela, a taxa de
crescimento é mais elevada que as taxas de crescimento do Estado, o que revela a
dinâmica desse segmento. Esses dados fazem parte do estudo Tecnologia da
Informação e Comunicação do Estado de Pernambuco, coordenado pela Agência
Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (Condepe/Fidem) e divulgado
no mês de abril de 2005.
Há dois anos, 10% da participação no PIB estadual era devido às atividades
comerciais no Porto Digital. Hoje, estima-se que metade da riqueza produzida pelo
pólo de informática nasça no Porto Digital. A projeção é que em 2007 esse percentual
suba para 70%. O Porto Digital foi criado em julho de 2000. Desde então, concentra as
principais iniciativas na área de tecnologia da informação e comunicação. Atualmente,
86 instituições, entre empresas, serviços especializados e órgãos de fomento, fazem
parte da iniciativa ou, como é comum dizer, estão embarcadas – 75% desse total estão
envolvidas com o trabalho e tecnologia da informação e comunicação.
Existem diversos segmentos de TIC no Porto Digital. Alguns deles se destacam
pelo alto faturamento que geram, pelo alto nível técnico que requerem ou ainda pela
presença em múltiplos aspectos da vida cotidiana.
Assim, destacam-se no Porto Digital as produções de games para celulares,
softwares para gestão, softwares para o setor de segurança, sistemas para
gerenciamento de tráfego e transporte, sistemas financeiros, sistemas para análises de
crédito, usabilidade de software e soluções integradas para desenvolvimento de portais,
97
extranet e intranet. Do total de empresas instaladas no Porto Digital, 46 migraram de
outros locais da Região Metropolitana do Recife.
Mas também há presença de empresas de fora do Estado de Pernambuco e do
país com presença no Porto Digital e no pólo de informática de Pernambuco. Empresas
de outros Estados, como Impacta (SP), Telematic (Bahia) e Conecta (Brasília),
instalaram filiais no Porto Digital ainda em 2003.
Entre as empresas de outros países, a lista inclui IBM, Motorola e Microsoft. A
primeira transferiu para o Bairro do Recife sua sede regional. A Motorola desenvolve,
em parceria com o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar),
softwares para celulares. A Microsoft instalou um centro de pesquisas XML
(Extensible Markup Language, linguagem de programação para internet), em parceria
com a Hewlett-Packard e a Fundação de Amparo à Ciência do Estado de Pernambuco
(Facepe).
A importância do pólo de informática está na possibilidade de ele se constituir
num meio de inserção da produção de softwares e soluções de informática de
Pernambuco na economia mundial. Essa possibilidade por si só já representa uma nova
via de desenvolvimento da economia estadual que aumente as opções de produção de
riqueza localmente. O objetivo dessa inserção prima por acontecer justamente numa
área estratégica – a produção de software –, base para funcionamento diário de boa
parte da economia atual.
O pólo de informática também está diretamente vinculado a iniciativas de
empreendedorismo – criação de negócios que gerem empregos para pessoas
capacitadas, serviços desenvolvidos e consumidos localmente, além de tributos para o
Estado.
98
A importância do pólo está também na formação e no aproveitamento de uma
mão-de-obra muito especial, preparada nas escolas de nível superior e técnico do
Estado. Criar condições para que essa mão-de-obra continue em Pernambuco é uma
orientação governamental – a própria iniciativa do Porto Digital faz parte dessa
política. A criação do Cesar, anos antes, também segue essa orientação de criar
oportunidades para que esse pessoal possa continuar a trabalhar no Estado.
Existe um amplo leque de profissionais que direta ou indiretamente estão
envolvidos no desenvolvimento de softwares. Programadores, analistas de sistemas,
engenheiros de software, designers, músicos, administradores de empresas,
contabilistas, matemáticos, jornalistas e até psicólogos e professores podem,
eventualmente, estar envolvidos, de forma direta ou tangencial, no projeto de criação
de um programa de computador. Mas nem todos se relacionam diretamente com o
processo ou participam de todas as etapas. Por isso, resolvemos nos dedicar à
investigação do trabalho de uma parcela importante desses profissionais, formada por
programadores, analistas de sistemas, engenheiros, designers e administradores de
empresas. As razões são simples: essas são as categorias profissionais que interferem
de forma direta e mais constante no trabalho de identificação das necessidades do
cliente por um software, na modelagem e no desenvolvimento propriamente dito de
programas ou conjuntos de programas.
Esses profissionais também sentem a necessidade de atualização do
conhecimento básico necessário para a realização de suas tarefas cotidianas. A
vivência da obsolescência técnica e os tipos de ameaça que ela oferece foram, portanto,
critérios utilizados para a escolha de que tipos de profissionais entrevistar e comparar.
É importante observar que todos os tipos profissionais entrevistados também vivem a
99
realidade da aceleração contínua de processos, de aprendizagem, de adaptação e
readaptação a processos de trabalho e de novos conhecimentos.
4.2 Caracterização dos profissionais entrevistados
A escolha das profissões neste trabalho foi guiada pela relação de proximidade
desses profissionais com o trabalho de criação de software propriamente dito. São
programadores, engenheiros de software, analistas, designers, webdesigners,
webmasters, profissionais diretamente envolvidos na identificação de necessidades de
clientes, no planejamento, desenvolvimento, nos testes e na implantação de softwares,
sistemas computacionais os mais variados, redes de computador e outras aplicações
computacionais possíveis.
Esta dissertação se propõe a investigar as estratégias de reflexividade do
trabalho de criação computacional nas fábricas de software. Tais processos são
encontrados, por excelência, na atuação pessoal e profissional dessas pessoas. Ao
mesmo tempo, as reflexividades estão relacionadas à necessidade de atualização
acelerada do conhecimento necessário para a realização do trabalho. A reflexividade
nas fábricas de software, assim, está vinculada à obsolescência de processos de
trabalho e desenvolvimento, de ferramentas de trabalho, de linguagens de codificação e
de serviços requisitados.
E são os programadores, engenheiros de software, analistas, designers,
webdesigners, webmasters e os gerentes os que se encontram imersos na luta contra a
obsolescência, que é analisada mais adiante. A necessidade de atualização parece ser
mais evidente e restrita aos desenvolvedores listados acima. Mas também é um desafio
aos gerentes e executivos das empresas investigadas.
100
É claro que, como em toda empresa, outros profissionais participam das
equipes: secretários, contabilistas, administradores de empresas, relações-públicas,
jornalistas, entre outros. Mas, na vida profissional dessas pessoas, a exposição e a
necessidade de atualização técnica não desempenham papel central, ao contrário dos
profissionais do software. Além disso, eles só se relacionam com o desenvolvimento
de soluções computacionais de maneira muito remota e distante.
O conceito de algumas profissões ainda não é preciso entre os próprios
profissionais. Essa é a razão pela qual as caracterizações que seguem abaixo foram
extraídas das experiências concretas expostas nas entrevistas realizadas.
4.2.1 Desenvolvedores
Em computação, o termo programador se refere de forma muito geral ao
sujeito que faz programas de computador. Os engenheiros de software em geral
planejam como sistemas computacionais ou softwares vão funcionar. É comum essas
duas funções serem realizadas numa empresa pela mesma pessoa. Por isso, esses
profissionais são conhecidos como engenheiros de software/programadores e as duas
funções são confundidas. Mas existem diferenças claras entre elas, que serão
explicadas a seguir. Outro aspecto em comum é que a formação do programador e do
engenheiro de software é a mesma: engenharia da computação. Da mesma forma, os
analistas de software, os analistas de sistemas e os analistas de segurança
entrevistados têm formação ou em engenharia da computação ou em ciência da
computação. O que difere é a função de cada um.
101
Engenheiro de software
A profissão do engenheiro de software é relativa especificamente ao desenho,
desenvolvimento e manutenção de aplicações de software utilizando tecnologias e
práticas da ciência da computação. Sua função também é criar, manter e auditar
metodologias de desenvolvimento de sistemas em uma empresa. Os engenheiros de
software também planejam e desenham o funcionamento de servidores e outros
equipamentos de internet, além de se assegurar de que todos os recursos de internet de
uma determinada empresa estão funcionando corretamente.
Essas tecnologias e práticas usadas pelos engenheiros – e demais
desenvolvedores também – são constituídas de linguagens de programação e
ferramentas, paradigmas e regras gerais de codificação, bases de dados, interfaces
gráficas, linguagens de design, além de processos e metodologias para utilizar todos
esses recursos – de gerenciamento de projetos e de outros campos do conhecimento.
Os engenheiros de software planejam o funcionamento de sistemas de
software – qualquer programa que ajuda um sistema computacional a funcionar. Eles
são responsáveis por controlar, integrar e gerenciar os componentes de um hardware
individual ou de um sistema computacional mais complexo. Os engenheiros de
software se relacionam diretamente com sistemas de software na construção de
programas ou no gerenciamento de serviços baseados em computação. Os sistemas
operacionais (Windows, Linux, BSE, entre outros), as ferramentas de programação e
os compiladores são exemplos de sistemas de software.
102
Programador
O programador redige a seqüência de instruções codificadas que fazem o
programa de computador funcionar. Ele é o responsável pela codificação do software,
ou seja, é ele quem implementa (instala, associa com outros trechos do código, faz
testes de eficiência) a arquitetura lógica que faz os softwares funcionar. Nessa
atribuição, o profissional de TI também coloca para funcionar e acompanha o
funcionamento de servidores e outros equipamentos necessários para o funcionamento
de um site de um cliente, por exemplo.
As aplicações de software são uma subclasse de programas para computador
que empregam as capacidades da máquina diretamente para determinada tarefa que o
usuário deseja realizar. O desktop, os processadores de texto e os media players
(programa para tocar música ou vídeo no computador) são aplicações usadas em um
amplo campo de atividades, da indústria pesada à indústria de entretenimento. As
aplicações de software melhoram a produtividade e a qualidade de vida do usuário,
pois servem diretamente a ele. Também são exemplos de aplicações de softwares os
pacotes de programas para escritório (Office suítes), os videogames e a World Wide
Web (www).
Webdesigner
É o profissional responsável pela concepção e produção visual de websites.
Geralmente, a formação recomendada e verificada nas fábricas de softwares visitadas é
curso superior em desenho industrial/comunicação visual. Esses profissionais detêm
conhecimentos em HTML (linguagem de criação de sites), animação, arquitetura da
informação, digitalização e tratamento de imagens, paleta segura de cores. As
ferramentas mais usadas são Photoshop, FreeHand, Illustrator, Fireworks, GIF
103
Animator, CorelDraw e DeBabelizer. As principais atividades são criação e adaptação
de identidade visual, manutenção de páginas, digitalização e tratamento de imagens,
diagramação, animações e confecção de banners.
Analista de software
O analista de software também é um programador. Ele desenha – ou seja, diz
como será a arquitetura do software, como a codificação deverá ser realizada, o que é
necessário para que ela funcione com eficiência – e acompanha o desenvolvimento das
aplicações.
É um profissional que está mais envolvido na tarefa de planejamento e desenho do
software do que com o trabalho diário de codificação. Essa é uma caracterização
genérica e de certa forma arbitrária. Diferentes empresas e diferentes companhia
definem de maneira diferente as atribuições de um e outro profissional. O analista de
software é responsável por desenvolver e implementar sistemas de automação em
tempo real, assim como sistemas embutidos, utilizando aplicações de baixo nível
(aplicações cuja codificação é realizada em linguagem de máquina) e de
conhecimentos sobre sistemas de redes.
Analista de Sistemas
É o profissional responsável pelo levantamento das necessidades do cliente e
pela elaboração de um modelo conceitual do sistema a ser desenvolvido. Ele faz
levantamento de requisitos do sistema, definição de cronogramas, eventualmente cria
um protótipo de testes ou demonstração do serviço ou produto a ser vendido, faz
modelagem de dados, testes e também pode coordenar a implementação dos projetos.
Geralmente é formado em engenharia da computação. É um profissional que domina
104
tecnologias relacionadas a bancos de dados, computação gráfica, orientação a objetos e
redes, modelos matemáticos, programação, técnicas de fluxo de trabalho.
4.2.2 Gerentes
Gerente de projetos
É responsável pela condução de projetos de desenvolvimento. A formação
recomendada e requisitada pelas empresas é algum curso superior na área de
tecnologia da informação e comunicação. Esse profissional coordena os profissionais
envolvidos em projetos, faz o controle de qualidade dos serviços ou produtos em
desenvolvimento, bem como dos processos utilizados, elabora relatórios de
desempenho e cumprimento de tarefas, faz a previsão e cobrança de prazos e é
responsável também pela interação entre diversos profissionais do estrato de
desenvolvimento. Ou seja, ele faz a ponte entre webdesigners e webmasters (quando o
projeto envolve internet) com programadores, engenheiros, analistas. Entre as
principais atividades, estão: controle do desenvolvimento e estruturação de projetos de
alta complexidade, com arquiteturas distintas, busca de parcerias que consigam
suportar as necessidades do mercado, capacitação de profissionais das áreas de vendas
e implementação de projetos.
Gerente de negócios
Profissional responsável por analisar as condições do mercado para a aceitação
de produtos. Também é responsável por identificar clientes em potencial e torná-los
clientes efetivos. Em alguns casos, esse profissional pode fazer uma análise financeira
geral do mercado. A formação recomendada é em ciências da computação, engenharia
de telecomunicações ou outra na área de TI. Matemática financeira, microinformática,
105
contabilidade e marketing são alguns dos conhecimentos úteis para o desempenho
dessa função. A principal atividade é lidar com compradores de software em potencial,
realizar análises financeiras e saber o que o mercado está comprando, ou seja, ser
capaz de identificar demandas por produtos e serviços em tecnologia da informação e
comunicação.
Gerentes de incubação
As incubadoras são instituições que oferecem suporte operacional, consultorias
técnica e de marketing, estrutura de trabalho com computadores, sala, telefone, para
empresas que ainda não entraram no mercado. As incubadoras preparam essas
empresas para concorrer. A atividade do gerente de incubação engloba as áreas de
gestão de empresas incubadas (empresas que recebem apoio logístico e empresarial
para desenvolver seus produtos antes de serem efetivamente colocadas no mercado) e
planejamento e investimento. O foco da área é o acompanhamento e suporte em todos
os aspectos relativos a formação, capacitação e gestão das incubadas. Por meio desse
acompanhamento, o gerente verifica o momento mais acertado para o processo de spin
off, ou seja, de lançamento da empresa no mercado de forma autônoma.
4.2.3 Diretores e executivos
Essa categoria de profissionais do software é formada por pessoas formadas
em diversas áreas, não somente nas faculdades de computação ou engenharias. Em
geral, os diretores e executivos já atuaram em diversas empresas de desenvolvimento
de software, embora entre os entrevistados haja quem tenha trabalhado em instituições
de outros setores da economia.
106
Os cargos de diretores e executivos não são, necessariamente, ocupados por
pessoas que tenham criado as empresas. É comum esses cargos serem exercidos por
profissionais contratados.
A formação é muito variada. Economistas, administradores de empresas,
engenheiros elétricos, cientistas da computação e publicitários exercem os cargos de
diretores e executivos das empresas investigadas neste trabalho. É comum, entretanto,
a obtenção de títulos de mestrado, doutorado ou especialização em áreas como
administração e computação.
Os gerentes ou executivos com formação em computação também já atuaram
na linha de frente de codificação, como desenvolvedores, e como gerentes. Assim
sendo, conhecem de perto o processo de criação de softwares, de consultorias técnicas
a clientes e de implantação de serviços e produtos computacionais de uma forma geral.
A faixa etária também varia muito. Encontram-se diretores e executivos de meia-idade,
como também profissionais na casa dos 30 anos. O mais comum é a faixa etária entre
esses dois pólos.
4.3 Resultados de campo
As entrevistas realizadas tiveram como alvos principais os três níveis
hierárquicos nas fábricas de software: um deles é aquele formado pelos profissionais
que trabalham diretamente com codificação, implantação de softwares e sistemas para
clientes e desenvolvimento de soluções computacionais, descrito acima. São
programadores, engenheiros de software, analistas de sistema, designers,
webdesigners, e webmasters, chamados aqui de profissionais de desenvolvimento.
Outro nível focalizado é o de administradores de negócios e gerentes. São
responsáveis, na maioria das vezes, pela coordenação dos processos de
107
desenvolvimento e acompanhamento da execução dos projetos de criação e/ou
implantação de programas computacionais. Também são responsáveis por prospecção
de negócios, divulgação dos serviços e produtos da fábrica de software onde trabalham
e negociação de preços e condições de pagamentos ou prestação de serviços. Esses
serão chamados de profissionais de gerência. Muitos deles são originados do setor de
desenvolvimento e, embora trabalhem como administradores, são formados na área de
computação.
O terceiro e último estrato explorado é formado por gerentes de maior patente
ou donos dos negócios. São os diretores, empresários e executivos à frente das
empresas. Alguns são formados em computação, mas essa não é uma regra geral.
A principal característica comum aos três níveis hierárquicos estudados é a
necessidade de atualização e de renovação do conhecimento necessário à execução de
tarefas. Tal atualização é sempre acompanhada de aceleração, da necessidade de
mudança rápida – seja com fins operativos, seja com fins estratégicos ou gerenciais.
Pode ainda acontecer para suprir as necessidades dos clientes. Essa necessidade não é
exatamente a mesma de um estrato para o outro, mas produz efeitos análogos para
quem trabalha com desenvolvimento, gerenciamento e entre os executivos. Como ela
se verifica para cada um dos estratos profissionais estudados? Como esses indivíduos
estão expostos à obsolescência da informação e do conhecimento? Quais soluções são
encontradas para as situações problemáticas decorrentes desse contexto?
4.3.1 Os desenvolvedores, a obsolescência e a insegurança
A prática do desenvolvimento do software requer – para que se tenha chances
de competir num mercado globalizado, de competir em regime de classe mundial – que
ele seja realizado dentro de padrões os mais atuais. Isso significa o uso dos mais atuais
108
softwares e processos de desenvolvimento. Requer, principalmente, que o
conhecimento necessário, que atribui classe mundial não somente aos softwares
desenvolvidos, mas também às soluções tecnológicas para empresas, seja contínuo e
sempre renovado.
Os profissionais de desenvolvimento vivem essa realidade em suas tarefas
operativas, com a necessidade constante de verificar novas informações que possam
colaborar com a excelência do produto final. Essa realidade é particularmente crítica
para o desenvolvimento de ferramentas de segurança, por exemplo, porque essas
ferramentas permitem que transações bancárias sejam realizadas sem oferecer riscos
aos clientes comuns e às instituições bancárias.
A aceleração da renovação de conhecimento, de atualização técnica do
profissional de desenvolvimento, é uma obrigação formal da qual depende a
continuidade dele no mercado de trabalho. O profissional desatualizado é
desnecessário, descartável. E aquele atualizado é disputado. E essa atualização de
conhecimento técnico do profissional de desenvolvimento acontece no próprio
ambiente de trabalho, durante o ofício, determinada, na maioria das vezes, pelas
contingências e demandas pontuais encontradas no trabalho. Ao mesmo tempo, se
instaura como uma regra que perpassa toda a carreira do profissional desse setor da
economia, seja nos cargos de desenvolvimento, gerente ou executivo.
Não é por outra razão que é por meio da própria estrutura do trabalho, das
ferramentas das fábricas de software, que essa atualização ocorre. O profissional de
desenvolvimento utiliza-se do acesso à internet e dos computadores das empresas para
atualizar-se. As entrevistas mostraram que a assinatura de listas de discussão (fóruns) e
de newsletters são dois dos meios mais usados para a verificação de novas informações
e atualização de informação. É comum, entre os entrevistados, o acompanhamento de
109
mais de dez fóruns de discussão e newsletters. A verificação de boletins é uma das
primeiras atitudes tomadas ao se chegar aos escritórios. Nesses casos, os entrevistados
se sentem inseguros quando não fazem a checagem.
A fuga do acompanhamento desses boletins, entretanto, não é fácil. Por um
lado, em virtude da própria pressão exercida pelo receio de não saber de alguma
novidade técnica descoberta de um dia para o outro, e da possibilidade de que aquilo
interfira no trabalho a ser realizado naquele dia ou no projeto em que se está
envolvido. Por outro, os boletins são enviados para a caixa de mensagem de e-mail de
quem os assina – não há como escapar.
A gente trabalha com tecnologia de ponta e velocidade. Às vezes, por causa de uma vulnerabilidade de um programa (mantido ou desenvolvido pela empresa), você precisa consertar seu funcionamento imediatamente. A importância da verificação de newsletters não é psicológica. É uma realidade da empresa, é necessário ter acesso às informações o mais rápido possível. Celso, desenvolvedor
O mesmo entrevistado afirma:
Eu trabalho com tecnologias que eventualmente podem ter sofrido alguma mudança no funcionamento ou aplicação e eu preciso saber quando isso ocorre... A analogia é com o médico de UTI e o médico de emergência. O médico de UTI está monitorando o instrumento e, se houver uma mudança em seu funcionamento ou no quadro do paciente, ele precisará da informação para reagir rápido. A checagem das listas funciona como um alarme para o médico da UTI. A informação serve para que se proceda a ações rápidas e eficientes.
A idéia de emergência e de ansiedade está ligada aos problemas de insegurança
e risco enfrentados pelos profissionais do software. As pressões e o estresse por prazos
e qualidades se associam à obsolescência de informação e conhecimentos técnicos,
bem como à necessidade de atualização crônica operativa.
110
Durante as entrevistas também foi possível verificar que nem todas essas
mensagens são úteis ou mesmo lidas. Muitos boletins são guardados “para serem lidos
depois, quando forem necessários”. Esses profissionais que trabalham com
desenvolvimento assinam as listas e fazem uma varredura diária em tópicos de
interesse que, selecionados, acumulam como que uma memória ainda não utilizada –
disponível para quando necessário for. Também é comum, entre os entrevistados, o
armazenamento de 3 mil, 5 mil tópicos interessantes enviados por esses serviços de
atualização e que ainda não foram lidos, mas estão guardados nas caixas de mensagem.
A informação contida nesse material é recuperada segundo a contingência,
segundo a demanda específica dos problemas encontrados no trabalho. Nesses casos, o
profissional lembra-se de que já recebeu um boletim sobre determinado assunto e que
assim poderá esclarecer a dúvida técnica que ele tem diante de si. Essa é uma
atualização que se lança para o presente. E cuja principal característica é a adequação à
realidade que se apresenta no trabalho.
Minha caixa postal está com cerca de 5 mil mensagens não lidas enviadas pelas listas de discussão ou pelos serviços de newsletters que eu assinei. Eu guardei essas informações porque achei interessantes. Cláudio, desenvolvedor
Há outro tipo de atualização de conhecimento que é ainda mais efêmero e
revela a própria essência da aceleração e da contingência do trabalho de
desenvolvimento, bem como a obsolescência do conhecimento: é a atualização de
informação técnica determinada por problemas pontuais, específicos e contingentes e
que é realizada com informações obtidas por meio de mecanismos de busca na
internet. Se o programador, analista de sistema, webdesigner ou engenheiro de
software não sabem como resolver determinado problema técnico, é comum a procura
111
pela solução usando-se ferramentas de busca como Google, Alta Vista ou Yahoo.
Essas ferramentas procuram soluções em listas de discussão ou em tutoriais
disponíveis na rede de informações. Esse tipo de solução contingente é não somente
muito utilizada, mas também fortemente recomendada.
E ela é recomendada por ser rápida, por permitir que aquele problema não tome
tempo em demasia do profissional de desenvolvimento, como atesta Arnaldo, gerente e
desenvolvedor de projetos da unidade Wireless do Centro de Estudos e Sistemas do
Recife. A unidade Wireless desenvolve softwares para funcionarem nos celulares da
Motorola, fabricante mundial de celulares.
O uso da internet e principalmente de mecanismos de buscas é uma ferramenta útil (às vezes imprescindível) para a solução de problemas técnicos pontuais. Usar a internet permite aplicar soluções desenvolvidas por outros programadores em questões semelhantes às que encontramos no nosso dia-a-dia. Arnaldo, desenvolvedor e gerente
Tem-se a crença, entre os entrevistados, de que a maior parte dos possíveis
desafios técnicos, problemas de ordem lógica ou defeitos e nuances de programação, já
foi tratada em alguma lista de discussão sobre o tema. Daí ser tão corrente a orientação
para que não se tente “inventar a roda”, ou seja, não se perder tempo na tentativa de
criar uma solução que já está descrita em algum “canto na rede”. Mais uma vez fica
clara a adaptação da prática do profissional às exigências do trabalho cotidiano.
Esse recurso é tão utilizado, que a procura de respostas a tais problemas
acontece várias vezes ao dia – aliás, muitos dos profissionais que trabalham com
desenvolvimento não podem prescindir da internet justamente por esse motivo. Esse
tipo de procedimento é virtualmente disponível para qualquer pessoa que trabalhe com
desenvolvimento e que tenha acesso à internet. Isso significa que os profissionais que
trabalham com desenvolvimento sabem que atuam em pé de igualdade – pelo menos
112
do ponto de vista do acesso a informação e conhecimento – com profissionais de
qualquer parte do mundo.
Eu hoje não vejo muita necessidade de se assinar listas de discussão ou newsletters. Hoje você tem o Google, que procura as eventuais dúvidas nas listas de discussão. Cláudio, desenvolvedor
Nunca tive problemas em lidar com grande quantidade de informação. É necessário somente separar e classificar se aquela informação é necessária, útil, ou não, naquele momento. Isso envolve vários critérios, um deles é o aspecto da relevância daquela informação naquele momento. O outro é a confiabilidade da informação. Davi, desenvolvedor
A formação do profissional, assim, além de ser contínua, realiza-se de forma
fragmentada. Ela é pautada em grande parte pela contingência e pela demanda. Ela se
associa e se sobrepõe à formação formal obtida nas salas de aulas das escolas de
computação – notadamente da Universidade Federal de Pernambuco (Centro de
Informática), da Universidade Católica de Pernambuco (Departamento de
Computação) e da Faculdade Unibratec – Ensino Superior e Técnico em Informática.
Esses dois tipos de atualização mencionados são menos sistematizados do que
aquelas atualizações realizadas com cursos de certificação em tecnologias bem
específicas em linguagens de programação, bancos de dados, ambientes de
desenvolvimento, entre outros. Nesses casos, a busca por atualização é menos
contingente e se lança para o futuro, para a capacitação que possa colaborar com o
“valor de mercado” do profissional.
113
Os fóruns e newsletters são ideais para a retirada de dúvidas, embora ajudem no acúmulo de informação que o programador detém. Mas essas ferramentas não permitem analisar o mercado, compreender ou antecipar tendências tecnológicas. Para essas outras necessidade, são mais utilizados os congressos, as feiras, a assinatura de revistas. Arnaldo, gerente
Existe um enorme mercado de formação e atualização por meio de cursos
rápidos. Esses cursos atribuem certificados que são requeridos por várias empresas do
mercado. Mas eles não atendem somente a requisitos técnicos. Atendem também à
necessidade de o profissional se mostrar, para o mercado, inteirado das últimas
tendências, processos e linguagens de programação. A busca da atualização, assim,
também está associada à obtenção de certificados de especialização. Nesse sentido, a
preocupação em se capacitar está vinculada a uma norma claramente objetivada de
renovação de conhecimento.
O custo para obtenção de um certificado desses é alto. Além disso, existe um
variado leque de ofertas. É comum as empresas onde determinado profissional trabalha
custear parte da certificação, ou toda ela. A escolha do curso a ser feito depende de um
variado conjunto de fatores. Depende das demandas encontradas na empresa onde o
programador, analista de sistemas ou engenheiro de software trabalha. Depende
também do tipo de especialização desejada pelo profissional.
A pressão por atualização em requisitos operativos gera, entre os profissionais
de desenvolvimento, ansiedade e uma insegurança pontual, diária. O receio de não
estar informado do que é necessário para a realização do trabalho ou de não conseguir
encontrar a informação necessária produz ansiedade e tensão diárias. Tal estresse não
está relacionado somente à necessidade de resolver pontualmente os problemas
técnicos – está vinculado à necessidade de se consolidar como profissional que
114
consegue resolver, dar conta do recado. Esse quadro geral é um problema que os
profissionais precisam resolver, sob pena de serem descartados do mercado.
As mudanças em linguagens de programação e em outros mecanismos de
desenvolvimento contribuem com esse estresse na medida em que atribuem incerteza à
longevidade das tecnologias escolhidas pelo profissional para nelas se especializar.
Durante as entrevistas, os profissionais se ressentiram da ameaça que as tecnologias
em que se especializam e investem tempo, energia e dinheiro se tornem ultrapassadas
em pouco tempo – e aí surge a ameaça de serem desnecessários para o mercado de
trabalho. Esse dilema envolve praticamente todos os profissionais de desenvolvimento
entrevistados.
O que a gente quer na vida, o que o profissional quer é trabalhar naquilo por que ele optou, ser muito bom naquilo e crescer em experiência e em mercado. A área da gente é muito solta. Digamos que eu queira ser um grande desenvolvedor Java [linguagem de programação]. E se daqui a dois anos o Java decair, aparecer alguma coisa muito melhor? Eu sei que o investimento é válido, nada é jogado fora. Há pessoas que há pouco tempo eram mestras em Cobol e essas pessoas foram demitidas com a chegada avassaladora do Java, do Delphi [linguagens recentes de desenvolvimento de software], depois de passar décadas programando em Cobol. Essas pessoas se perderam, tiveram que estudar. Agora você imagina a pessoa com 50 anos tendo que estudar tudo de novo. Mauro, gerente
Assim sendo, a necessária aceleração do tipo de informação requisitada para as
operações contingentes do setor de desenvolvimento provoca a busca incessante,
crônica, da atualização técnica. O problema que se estabelece é de insegurança em
relação ao conhecimento que se detém e mesmo em relação às perspectivas de futuro,
na medida em que a adoção de uma determinada linha de especialização vive à sombra
da obsolescência. Esses fatores, articulados, se realimentam – a insegurança leva à
115
procura por atualização constante, que sugere novas possíveis linhas de especialização,
que gera insegurança quanto ao futuro... As conseqüências desse quadro serão
mostradas mais adiante.
As entrevistas revelaram que, por causa dessa aceleração, os profissionais de
desenvolvimento acabam se vinculando à máquina por uma hiperatenção às novidades
técnicas, por terem que acompanhar os lançamentos de novos produtos e
complementos aos principais recursos de que eles lançam mão para realizar seu
trabalho: o conhecimento. A focalização na codificação não é apenas um aspecto
operativo. Pode ser melhor resumida nas palavras de um dos entrevistados:
Quem trabalha com internet e programação geralmente está sobrecarregado de informação. Se você não selecionar, você acaba não fazendo nada de sua vida. Paulo, desenvolvedor
É justamente a orientação dessa seleção que nos interessa. É comum a todos os
desenvolvedores entrevistados a impressão de que eles vivem em uma inflação de
informação inevitável. E, da mesma forma, parece ser inevitável a necessidade de criar
estratégias de seleção e de controle do excesso de dados.
Outro ponto importante a ser salientado é a noção de risco. A dependência das
informações pinçadas na internet para a solução problemas contingentes e particulares
do trabalho é um fator de desconforto. Depende-se de uma infra-estrutura externa, cujo
funcionamento correto não está sob o controle de quem precisa dela – os profissionais
de desenvolvimento aqui mencionados. “E se a internet cair?” Essa é uma pergunta
que pode ser lida de outra forma: “O que faço, como resolvo problemas contingentes
do trabalho sem o acesso às informações necessárias para isso ou o acesso ao sistema
onde supostamente estão as perguntas para a contingência problemática?” Esse receio,
esse risco iminente e possível, os profissionais tentam compensar, por exemplo,
116
acumulando os tais boletins de 3 mil, 5 mil mensagens em seus computadores, fazendo
cópias dos trabalhos, investindo em segurança, assinando mais listas de discussão e
newslleters do que são capazes de acompanhar. O risco ligado à credibilidade da
informação que servirá para a solução do eventual problema contingente também está
em jogo e também é um problema a ser superado, ou pelo menos com o qual se deve
conviver. É por essa razão também que o número de listas, de fóruns de discussão e de
assinaturas de revistas é numeroso. O raciocínio para driblar esse problema, ou reduzir
as possibilidades de utilização de informação técnica precária, é o excesso, a
quantidade. O excesso, o supérfluo, no entanto, é parte do problema.
Do pessoal que trabalha aqui, eu sou o mais neurótico. Eu assino 12 listas. Há umas 4 ou 5 que eu leio com mais freqüência, porque se algum cliente ligar pra mim agora com algum vírus novo ou vulnerabilidade eu já vou estar sabendo. Então antes de eu ler o e-mail dele [do cliente] pedindo ajuda eu já preciso ter lido as listas para saber o que está acontecendo (e novo em termos de novas vulnerabilidades em programas ou vírus circulando na internet).
Aluízio, desenvolvedor e gerente
O mesmo entrevistado diz:
Eu fico neurótico se eu não verificar a cada meia hora as novidades nas listas e newsletters. Eu fico com a preocupação de estar acontecendo alguma coisa e eu não estar sabendo, de alguém ter enviando um e-mail importante ou estar acontecendo alguma coisa bombástica, algum tipo novo de ataque (atividade hacker)... Se eu não fizer a checagem das newsletters, vai me fazer falta efetivamente.
Do ponto de vista operativo, então, os profissionais de desenvolvimento
enfrentam as cobranças por cumprimento de prazos, as dificuldades para gerenciar
uma grande massa de informação (muitas vezes não muito confiável) de forma
racionalizada e eficiente sob a obrigação de se manter tecnicamente atualizado.
Esses elementos articulados provocam a necessidade de uma dedicação ao
trabalho que em muitos casos extrapola os limites do horário de atividade nas fábricas
117
de software. Muitos profissionais, sobretudo nos primeiros anos de desenvolvimento,
levam trabalho para casa. A atividade do trabalho parece colonizar outras esferas da
atividade pessoal. Há relatos do pouco tempo dedicado à família e a atividades físicas.
Essas duas esferas da vida pessoal parecem ser suspensas, ou sacrificadas, em virtude
de uma necessária capacitação técnica e da obtenção de segurança operacional.
A partir de determinado momento na carreira dos desenvolvedores, todo esse
clima de estresse, insegurança pontual e incerteza parece chegar a um limite. Foi
comum identificar entre os entrevistados a intenção de realizar uma migração para o
setor de gerenciamento com o objetivo de reduzir essa insegurança, como é mostrado
no tópico seguinte. Até este momento, entretanto, as entrevistas revelaram que o
questionamento sobre o sentido do trabalho, os limites de bem-estar e mal-estar com a
dedicação e a sensação de insegurança, o pouco tempo para a família, a prática de levar
trabalho para casa ou a falta de exercícios não são colocados sob reflexão até
determinado momento. Mas esse quadro muda, como é comentado mais à frente.
4.3.2 Soluções
Como mostrado, os desenvolvedores são expostos a problemas em suas
atribuições específicas que seguem certo padrão: risco em lidar com elementos
necessários à realização do trabalho que não dependem inteiramente de seu controle;
elementos cuja materialidade às vezes não podem nem mesmo ser medida e que têm
por maior característica a inconstância, a incerteza – são informações em que não se
pode depositar inteira confiança de eficácia ou de que continuará a ser útil por muito
tempo. Também há o risco de se apostar em linhas tecnológicas que podem se tornar
inviáveis e toda a insegurança que advém desse contexto. A necessidade de dedicação
118
e de alerta à renovação de conhecimento, como os outros fatores mencionados,
constitui contextos problemáticos a serem resolvidos.
Nas entrevistas, de forma geral, o desenvolvedor apontou esse risco nas fontes
que fornecem a informação contingente para a solução de problemas contingentes. Isto
é, os dados técnicos obtidos em listas de discussão ou em mecanismos de busca nem
sempre são considerados plenamente confiáveis pelos entrevistados, o que estabelece
um risco na utilização dos dados garimpados. Não é por acaso a prática de se assinar
várias listas de discussão – esse é um recurso que permite aumentar o número de fontes
sobre uma mesma área de conhecimento e eventuais soluções técnicas. A escolha das
soluções é feita por intermédio de um histórico de acertos de cada fonte – o que
constrói com o tempo a confiança no serviço oferecido por determinado site
especializado ou lista de discussão – além da referência fornecida por outros usuários.
De uma forma ou de outra, os entrevistados se referem à necessidade de verificar em
variadas fontes a informação obtida, uma vez que ela será usada, sob sua
responsabilidade, na implementação de serviços, mecanismos ou projetos em que está
envolvida a empresa onde trabalha.
Esse é um risco que na verdade não é considerado sério pelos entrevistados.
Quando perguntamos por quê, a resposta indica que o próprio sistema técnico racional
abre as possibilidades para se ter a certeza da veracidade e eficiência dos dados
técnicos obtidos de forma contingente. A comprovada origem das informações é
importante e por isso é procurada. Mas, para reduzir a margem desse risco, os
profissionais lançam mão da quantidade – assinam maior número de listas, participam
de mais fóruns, fazem mais cursos, viajam a mais congressos.
Outra solução encontrada é a capacitação formal em cursos de curta duração. A
intensa e numerosa oferta e aceitação de cursos de certificação ratifica essa busca pela
119
redução dos riscos da não-atualização, da perda de informação ou treinamento que
venha a ser requisitado no futuro, ou a qualquer hora do dia. A superação da ameaça de
desatualização é obtida com os mesmos mecanismos que geram essa ameaça: a falta de
informação precisa.
Esse quadro descrito acima é familiar aos três estratos estudados. Mas é no
trabalho dos desenvolvedores que ele é mais evidente – entre gerentes e executivos
acontece também, com aspectos diferenciados, como será mostrado a seguir.
A noção de risco também é presente no funcionamento da infra-estrutura
maquínica, que o permite trabalhar e eventualmente atualizar pontualmente a base de
conhecimento necessária para seu trabalho: o bom funcionamento dessa infra-estrutura
não depende do profissional que a utiliza, é um fator externo. Assim como é um fator
externo a qualidade da informação necessária para a implementação de soluções. A
estabilidade do complexo material que permite o trabalho – estabilidade de rede de
dados da empresa, velocidade de processamento, acesso ao banco de dados, acesso em
banda larga à internet, estabilidade da grande rede – é um elemento que só pode ser
conhecido e controlado (monitorados) em parte. Novamente é o relacionamento com o
que está para além do controle imediato e material do indivíduo – um aspecto comum
aos três estratos dos profissionais de software. O trabalho na fábrica de software
depende, nos três níveis estudados, dessa infra-estrutura básica. A busca da solução do
problema representado por esse risco, nesse aspecto, está no reforço dessa estrutura.
Novamente, os próprios mecanismos que geram esse risco de indisponibilidade do
serviço geram seu reforço.
Há, finalmente, o problema representado pelo risco das escolhas feitas por
especialização em determinadas tecnologias – escolhas realizadas ainda durante os
anos de graduação. Nesse último sentido, as escolhas empregadas na criação de
120
softwares são sempre passíveis de se tornar obsoletas em pouco tempo – o que
acarretaria a perda não somente de tempo, mas de energia e investimento financeiro,
além de ser uma ameaça à manutenção no mercado de trabalho. Esse aspecto do risco
com o qual se relacionam profissionais do software acontece não somente com o
desenvolvedor, mas também com as instituições, que apostam em certas linhas de
desenvolvimento tecnológico. Individualmente, entretanto, esse risco concretamente se
estabelece na escolha por especialização em determinadas linguagens de programação
ou em áreas específicas do setor de desenvolvimento de software – segurança,
educação, jogos, telefonia móvel, administração, entre outros. Como saber se
determinada linguagem continuará a ser usada e evoluirá? Como determinar que área
poderá ter mais chances de gerar empregos e bons salários? Como escolher o melhor
curso e a certificação adequada para obter os melhores resultados pontuais e de
projeção profissional? São questões relacionadas ao risco e que se projetam para o
futuro.
Esse talvez seja o único problema com o qual os desenvolvedores se deparam
que não tem uma resposta, ou uma solução definida, clara. As apostas de
especialização passam pelo gosto pessoal de cada um, pela preferência em trabalhar
em determinada área. Informações sobre tendências de mercado ou de serviços que
demandarão conhecimento de determinada tecnologia também interferem na escolha –
escolha essa que viverá sempre sob a ameaça de obsolescência. Por não ter uma
resposta clara e sugerir uma contínua incerteza na profissão, a obsolescência aponta
uma solução radical: a migração do setor de desenvolvimento de software para a área
de gerência. A sombra da obsolescência técnica parece disparar um processo que se
acumula em virtude do estresse do trabalho de desenvolvimento, do pouco tempo
121
dedicado à família e a si próprio. A migração significa a busca por relacionamento
mais direto com outras pessoas.
Eu quero com o tempo tratar mais com gente e menos com a máquina. Mauro, gerente
Os desenvolvedores e gerentes entrevistados esclarecem que essa migração
representa a tentativa de obtenção de maior estabilidade em oposição à aceleração; da
permanência em oposição à obsolescência; do tempo em oposição à derrelição; da
certeza em oposição à incerteza. Ainda que o trabalho de gerenciamento seja carregado
de pressões por atualização de conhecimento, ela acontece de forma mais difusa no
tempo. Esse é um aspecto diametralmente diferente do trabalho feito pelo
desenvolvedor, cuja necessidade de atualização, de verificação de novidades, de carga
de informação nova ou que virá a ser útil é concentrada no dia-a-dia e se expressa na
obsolescência constante e muitas vezes inevitável – devido à grande quantidade de
informação disponível para apreensão .
A mudança do círculo de desenvolvimento de software para a área de gerência
acontece por meio de mais capacitação – cursos específicos, pós-graduações, MBAs,
obtenção de certificações, treinamentos, seminários e congressos. Essa migração se
mostrou uma das principais expectativas de parcela importante dos profissionais de
desenvolvimento entrevistados com relação ao futuro – parcela formada por
desenvolvedores maduros e que já obtiveram certo reconhecimento no meio.
É fundamental ressaltar que o desenvolvedor interessado nessa migração, em
“abandonar” a codificação, delineia um plano estratégico racionalmente montado a
partir de determinado momento de sua carreira e que se desenvolve ao longo de certo
tempo de maturação e aprendizagem. Essa pretensão foi identificada em engenheiros
122
de software, analistas de sistemas e programadores com já algum tempo de trabalho na
linha de codificação, de desenvolvimento – não foi identificada entre os muitos jovens
profissionais recém-formados ou entre os que ainda estão na universidade. A
expectativa de futuro para jovens desenvolvedores, em geral, é continuar trabalhando
com codificação e sujeitos às pressões típicas desse setor de trabalho da fábrica de
software, à contingência de problemas e soluções e à adaptação a esse contexto. Entre
jovens desenvolvedores, é rara ou inexistente a perspectiva de um trabalho diferente do
que eles realizam ainda nos anos da faculdade e depois de formados.
A importância do interesse em investir em formação gerencial, aparentemente,
é fruto de insatisfação em conviver com o risco pontual e diário e com a ameaça de se
tornar descartável porque está obsoleto. Mas também está relacionada, segundo os
relatos colhidos, ao enorme desgaste que a ligação com a máquina exige – os
instrumentos físicos de desenvolvimento, os softwares adequados para esse trabalho, a
estrutura técnico-racional que exige atualização e estado de alerta e a crônica
implementação de novos recursos técnicos à prática cotidiana. Essa ligação parece
forçar uma dedicação que acaba restringindo o convívio com outros setores da vida e
que se reflete no pouco tempo dedicado à família, em problemas de saúde ligados à
estrutura óssea e muscular, à irritabilidade, ao cansaço e ao estresse. A conexão com a
máquina, para alguns dos jovens desenvolvedores, chega a ser identificada, por sua
necessidade, quase como uma segunda natureza. Um dos entrevistados verbaliza que o
estado natural de sua vida é a conexão constante com a internet, seja em casa, onde há
uma célula de trabalho semelhante à que ele tem no escritório, seja no ambiente do
trabalho, seja num bar ou no trânsito, pelo aparelho celular.
Eu passo 24 horas conectado [à internet]. Hoje eu me acostumei tanto a isso que não consigo trabalhar sem estar conectado. Eu não consigo viver, chega a ser até um pouco de vício... Por exemplo,
123
sempre gostei de jogar, hoje eu não consigo me ver jogando sem estar online [conectado]. Quando eu estou em casa, onde eu não estou conectado com a internet, com a infra-estrutura que eu tenho no trabalho, eu me sinto estranho. E isso me faz refletir sobre um mundo que ainda não é natural para as pessoas. O natural é estar conectado, é uma tendência e hoje é minha realidade. Celso, desenvolvedor
As entrevistas mostraram que essas exigências de dedicação à máquina, depois
de alguns anos, acaba desgastando a relação indivíduo-máquina. Isso leva à
insatisfação e ao desgaste físico, a problemas de saúde e tensão. A expressão mais
forte desse contexto é o tempo dedicado, num dia normal de semana, ao que pode ser
considerado atividade de trabalho de desenvolvimento. A maior parte dos entrevistados
trabalha efetivamente entre 10 e 12 horas diárias. Um aspecto, entretanto, precisa ser
considerado. Durante as sessões de entrevistas, os muitos desenvolvedores mencionam
uma carga horária formal de oito horas diárias.
Essa carga horária formal se projeta para outros ambientes – a casa, a
universidade (para os que ainda estudam), os cursos de certificação e atualização.
Esses outros tempos também são considerados horário de trabalho pelos entrevistados.
Esse tempo dilatado de trabalho foi muito mencionado na entrevistas como um dos
fatores problemáticos na profissão. A maior parte das atribuições do desenvolvedor, ao
longo desse tempo, é realizada na interface computacional, ou seja, no relacionamento
com a máquina, com o computador. Uma solução encontrada para alcançar desconexão
do trabalho é a prática de esportes e atividades ligadas à música. As duas atividades se
colocam como opostas à prática diária de codificação, de incerteza das bases
cognitivas necessárias para a realização do trabalho de criação de softwares.
Quando eu pratico kung fu eu me desligo completamente, como se eu voltasse a séculos passados. É como se a vida fosse mais simples. Antigamente as pessoas não tinham essa corrida por informação. As artes marciais são praticadas da mesma forma há séculos e têm influência no corpo e na mente. O reflexo dessa
124
prática no meu trabalho, no relacionamento com a máquina, é o mesmo em relação à minha vida inteira e me ajuda a ser uma pessoa mais calma e que aceita mais as coisas. Davi, desenvolvedor
O trabalho de gerenciamento, ao contrário, está baseado majoritariamente na
relação com pessoas e com valores individuais – sejam eles técnicos ou não. A
administração de uma gama humanizada de qualidades é um contraponto à solitária
prática de construção das linhas de código de um software. Essa condição de solidão
diante da interface onde dançam os algoritmos é ressaltada em várias entrevistas
realizadas com desenvolvedores, assim como são citados por gerentes o gosto e o
interesse pelo relacionamento com pessoas.
Entre os desenvolvedores, esse interesse na migração para atribuições de
gerência é acompanhada por mudanças de outros tipos também. Ela coincide, muitas
vezes, com uma mudança na forma de encarar a posição que o trabalho ocupa na vida
do indivíduo, ou que deveria ocupar, coincide com novas prioridades profissionais e
pessoais escolhidas em função do convívio familiar e de interesses relacionados a
afinidades culturais.
Se por um lado a migração para áreas de gerência representa uma tentativa de
redução do risco com o qual se convive, por outro ela representa a possibilidade de
materialização dessas novas prioridades, que não se restringem ao contexto
profissional. A busca por elementos e vivências subjetivas e a valorização desses
aspectos em determinado momento da carreira obtêm maior força e determinam novos
comportamentos, novos pontos de vistas, novas escolhas e prioridades. A definição de
novos aspectos de relevância se amplia e se projeta para além do amadurecimento
técnico-profissional. Novos aspectos subjetivos, ligados a valores culturais, éticos e/ou
religiosos ganham maior espaço com o tempo.
125
4.3.3 Os gerentes e a busca pela serenidade concreta
Entre os profissionais dos cargos de gerência, a situação é, não por acaso,
semelhante. Ou análoga. Os problemas a serem solucionados no dia-a-dia são menos
de ordem técnica (o caso dos profissionais de desenvolvimento) e mais de ordem de
gestão. Gestão de pessoas, gestão de processos, gestão de custos, gestão do tempo e
gestão técnica também, que se concentra principalmente na busca por compreender a
necessidade do cliente – esse cliente em geral é uma empresa privada ou uma
instituição pública que solicita a criação ou instalação de um software, um conjunto de
programas ou qualquer sistema computacional. É em função da necessidade desse
cliente que são definidas as pessoas, os processos, os custos e a técnica (as técnicas)
para o desenvolvimento de determinado software ou solução computacional.
O gerente, então, precisa definir o pessoal adequado à execução de tarefas,
planejar e controlar os gastos necessários para a materialização de projetos. É dele
também a responsabilidade de eventualmente definir as tecnologias mais adequadas às
necessidades do cliente. E isso exige atualização de conhecimento.
Os gerentes são chamados a compreender em pouco tempo as demandas dos
clientes. A compreensão do que o cliente precisa, ou quer, segue a mesma lógica,
verificada nas entrevistas, da necessidade de atualização técnica entre os profissionais
de desenvolvimento: aceleração é a palavra de ordem. Essa compreensão envolve
também vastos campos de conhecimento para os quais o gerente não foi treinado e
efetivamente não conhece. Essas obrigações são, para o cliente, desafios problemáticos
a serem resolvidos no trabalho.
Além da necessidade de se informar sobre essas áreas, é necessário observar e
acompanhar as tendências que se verificam nesses mercados em termos de tecnologias
126
e de serviços, as técnicas mais adaptáveis às necessidades, o comportamento da
concorrência e o que espera o consumidor final. Essas demandas constituem desafios e
problemas que operam sob o signo da velocidade e da aceleração. Ou seja, atender a
essas demandas requer antecipação, disponibilidade e flexibilidade, além de
disponibilidade para aprender de forma rápida e eficiente.
O gerente é chamado a compreender as nuances de mercado e atividades tão
díspares como contabilidade bancária, administração hospitalar, mercado de aplicações
financeiras, locação de automóveis, gestão de recursos hídricos – só para citar alguns
exemplos de negócios e empresas clientes dos serviços oferecidos pelas fábricas de
software. Essas são algumas das áreas para as quais o trabalho dos profissionais do
software em geral (e do gerente em particular) cria soluções computacionais em
projetos de administração de recursos, automação, controle de processos.
Decorrente desse contexto, a necessidade de apreender campos de
conhecimento para os quais não houve treinamento formal se torna um desafio e
também um problema a ser enfrentado. O espectro de incerteza também ronda essa
necessidade.
E vinculada a essa necessidade está a cobrança permanente pelo cumprimento
de prazos de conclusão e entrega de protótipos de serviços ou produtos baseados em
desenvolvimento de softwares coordenados pelos gerentes.
Existe muita pressão não somente feita pelo cliente, mas também pela concorrência. Se você demora muito para entregar o projeto, você já fica imaginando que o cliente pode ficar insatisfeito e achando que a execução do projeto vai ser complicada e aí pode procurar a concorrência. Você fica pressionado por isso. Mas às vezes a pressa vem de seu próprio diretor, que diz “a gente vai entregar isso em x tempo”. E é esse x tempo que faz você trabalhar fora do contexto porque não é suficiente. Quando o tempo comercial não bate com o tempo técnico, criam-se sobrecarga de trabalho e estresse. André, gerente
127
Os gerentes, em geral, não têm formação específica para administrar um
banco, uma loja de departamentos, uma escola. Mas, via de regra, detêm os
mecanismos para a administração do projeto de desenvolvimento de software ou da
solução computacional requerida pelo cliente. Um dos entrevistados, aliás, explica que
este é precisamente um dos pré-requisitos para ser um bom analista de sistemas: a
capacidade de entender o negócio do cliente e, em função dela, desenvolver
mecanismos computacionais para que esse negócio se desenvolva.
Esse raciocínio não é gratuito. É que a maior parte dos gerentes de negócios
não vem de áreas de administração. Em sua maioria são programadores, analistas de
sistemas ou engenheiros de software que comandam equipes de desenvolvimento.
Como os profissionais de desenvolvimento, os gerentes são submetidos a pressões e
cobranças, à falta de tempo, à necessidade de atualizar, cronicamente, novo
conhecimento.
Também é comum a dificuldade em separar as atribuições do trabalho das
atividades cotidianas: é comum levar trabalho para ser concluído em casa; assim como
também é comum trabalhar até depois do horário-padrão estabelecido, principalmente
quando se está envolvido em projetos mais complexos. Nesses casos, foram
constatadas queixas quanto à quantidade de atribuições dadas aos gerentes, durante as
entrevistas.
O meu trabalho se expande para outros tempos além daquele delimitado comercialmente. Principalmente porque o meu ciclo de amizades é no setor de tecnologia da informação. É muito natural que eu encontre essas mesmas pessoas em saídas que eu faça, happy hours, aniversários, e em alguns desses momentos é inevitável que a gente aproveite para acertar algum detalhe, acertar algum negócio. [...] 40% do meu tempo livre é direcionado para coisas do trabalho. Ivone, gerente
128
Um dos fatores que diferenciam os gerentes dos profissionais que trabalham
diretamente com desenvolvimento é que as pressões e cobranças são pelo cumprimento
de prazos e para respeitar limites dos custos dos projetos. Outro fator que diferencia a
atividade da gerência das atividades de outras áreas é justamente o que as aproxima e
identifica com o trabalho de desenvolvimento de software: a constante atualização do
conhecimento necessária ao trabalho, sem a qual se é expulso desse competitivo
mercado – ainda que esse conhecimento atualizado e reatualizado seja de outra ordem
técnica e envolva a noção de tendências de mercado, de modelos de gerenciamento e
administração de negócios, de formas para tornar o negócio do cliente mais rentável,
entre outras.
De fato, essa atualização acontece em um nível diferente do que é verificado
entre os desenvolvedores de software. Ela acontece menos em relação à lógica e às
ferramentas inerentes aos processos de codificação; menos por intermédio da máquina,
dos sistemas de busca na internet por soluções pontuais; ela se lança para o futuro e
pouco para a contingência operativa, embora seja aplicada a esta também.
Nesse sentido, a contingência enfrentada no trabalho pelo gerente tem um
caráter diferenciado daquela com a qual se depara o profissional de desenvolvimento,
porque ela não é somente operativa, relacionada a tarefas e dificuldades enfrentadas
num dia de trabalho. Ela aparece ao longo de um período de tempo mais longo e
difuso.
Pode-se dizer que o campo de atualização de conhecimento desse profissional é
mais amplo, porque inclui a necessidade de conhecer novos mecanismos e processos
de desenvolvimento de software, o acompanhamento de novas áreas de negócios que
eventualmente possam fornecer clientes, o acúmulo de dados que possam sugerir a
exploração de novos serviços e o monitoramento das preferências e necessidades do
129
homem comum, além dos casos de serviços e produtos fornecidos no mercado de
tecnologia. É também necessário ressaltar que, ao lado dessa necessidade de
atualização, o profissional gerente está imerso em atividades burocráticas de
acompanhamento de custos, compra de materiais, acompanhamento do rendimento de
seus funcionários, contratações e desligamentos de outros profissionais, etc.
É assim que, de certa maneira, os gerentes estão próximos de uma atividade
que se assemelha a um tipo de prospecção de futuro.
A quantidade de informação que serve a esse processo contínuo de atualização,
e que os gerentes administram, é multifacetada e fragmentada. A escolha de qual faceta
de conhecimento usar, diferentemente do que ocorre entre os desenvolvedores, não
segue uma regra de contingência pontual, de urgência. Ela se instaura em prazos mais
dilatados, embora a compreensão de novas informações sofra intensa pressão de
prazos. As entrevistas mostraram que a necessidade de antecipar ou conhecer
tendências de mercado, a capacidade de compreensão do negócio e das necessidades
dos clientes e a capacidade de transferir conhecimento e comando às equipes que o
gerente coordena são desafios enfrentados com diversos recursos. Entre eles, os cursos
já mencionados, as ferramentas de atualização como listas e fóruns de discussão, o
envolvimento com as áreas gerenciais das empresas clientes e o uso intensivo de redes
de relacionamento pessoais.
As listas e os fóruns de discussão usados pela maior parte dos gerentes
entrevistados são de uma categoria diferente das usadas pelos desenvolvedores. Se
estes fazem uso de listas técnicas, com amplo vocabulário computacional, os gerentes
preferem listas mais generalistas sobre economia, segmentos específicos de atuação
das empresas de tecnologia da informação, gerenciamento e administração de recursos,
ao lado de informações sobre conhecimento computacional. Mas os gerentes não
130
acessam essas informações com a mesma assiduidade e emergência verificadas entre
os gerentes.
Os fóruns e os serviços de newsletters são bons em geral para tirar dúvidas técnico-operativas, ver o que as pessoas estão fazendo e verificar dúvidas similares. Mas essas ferramentas não ajudam a fazer análises de mercados ou de tendências tecnológicas. Arnaldo, gerente
As entrevistas revelaram ainda que a necessidade de renovação de
conhecimento é acompanhada pela necessidade de apresentar resultados para a
empresa, o que leva esses profissionais a associar a sua própria performance à da
instituição onde trabalham. São os casos dos gerentes que “vestem a camisa”.
Ainda assim, apesar do tempo dilatado de demandas e efetivo trabalho, o nível
de tensão entre essa parcela dos entrevistados é alto. Parte disso se credita às
responsabilidades inerentes à atividade de gerenciamento de custos, orientação do
trabalho de programação e atendimento aos requerimentos dos clientes. E parte se
refere à dificuldade de se administrar a necessidade constante e crônica de atualização,
monitoramento e acompanhamento de tendências e tecnologias. A constância não é um
estado muito experimentado; sua contraparte é um estado de alerta, que, vinculado às
ameaças da concorrência, gera um contexto de contínua insegurança. Esse contexto é
mais claro entre os gerentes (e também entre executivos) porque são eles que encarnam
as metas e tarefas a que se impõem as empresas.
Os relatos dos gerentes apontam, ainda, para uma outra dificuldade: a de
separar o trabalho das demandas privadas. É comum que, em oposição aos
desenvolvedores, os gerentes sejam casados e tenham filhos. A necessidade de dividir
o tempo entre as demandas profissionais e as de ordem familiar ganha uma
importância maior, que precisa ser administrada – resolvida – da melhor forma
131
possível. Ou seja, não é possível deixar de fazer e atender bem às necessidades
operacionais do trabalho; como também a dedicação às necessidades familiares ganha
uma dimensão nova e imprescindível, como se verá mais adiante.
O trabalho de gerenciamento permite que os profissionais dessa categoria
estejam mais confortáveis que os seus colegas de desenvolvimento porque a ameaça
que lhes ronda a cabeça também se projeta num ritmo mais lento, e por isso pode,
constantemente, ser superada com o tempo. As entrevistas de campo revelaram que,
apesar da insegurança e das ameaças oferecidas pela forte concorrência, pela
necessidade de administrar grande fluxo de informação e pessoas e pelas cobranças
inerentes ao cargo, a gerência é um cargo que oferece maior nível de estabilidade e
segurança.
As prioridades pessoais e mesmo profissionais declaradas nas entrevistas pelo
pessoal de gerência são diferentes das reveladas nas entrevistas dos desenvolvedores.
Se entre os primeiros as prioridades de vida são tomadas no sentido de identificação
pessoal com a carreira, entre os gerentes essa identificação parece sofrer um
relaxamento; se entre os desenvolvedores a atenção aos processos-fim de
aprendizagem, prática e renovação de conhecimento ocupam um lugar central no
mundo da vida, entre os gerentes são valores (morais, estéticos, culturais) que guiam
normas operativas, prioridades profissionais e mesmo o tempo dedicado às tarefas
objetivas do trabalho.
Foi no segmento dos gerentes que foram identificados de forma mais evidente
aspectos de crítica ao trabalho, de insatisfação com anos de dedicação e da forçosa
tarefa de renovar o conhecimento básico para a execução das tarefas cotidianas.
132
4.3.4 Soluções
A atualização de conhecimento dos gerentes acontece em relação à lógica e às
ferramentas do negócio de seus clientes – vale dizer, em função de áreas de
conhecimento não totalmente por eles conhecidos. E acontece pelo contato direto com
pessoas, em capacitação extensiva, em visitas e viagens, no reposicionamento do
indivíduo no meio de ambientes e diante de tarefas para as quais não recebeu o
treinamento específico. E também em cursos mais longos do que as certificações da
área de desenvolvimento: os gerentes lançam mão de mestrados e doutorados, MBAs,
seminários e congressos. O contato pessoal é ingrediente importante na obtenção de
segurança, o que se configura, pelo menos em parte, como solução para o velho
problema da incerteza do setor. A consolidação de saberes (técnicos e gerenciais)
também se processa com listas de discussão, newsletters, sites e revistas
especializadas.
O longo contato com os processos (e as práticas de desenvolvimento), as
bruscas mudanças de tendências tecnológicas e o fracasso de modelos de negócios que
pareciam certeza de sucesso, entretanto, não calam uma certa tentativa de afastar os
pontos de incerteza e ameaça. Os gerentes do mundo da tecnologia da informação se
recolhem também em aspectos, ambientes e vivências que são antíteses da incerteza.
É assim que uma surpreendente quantidade de profissionais em cargos de
gerência salienta que procura ter uma rotina de horários tradicional com a família.
Muitos deles se referem, por exemplo, à preocupação em fazer com que filhos e
parceiros almocem juntos mesmo durante uma semana normal de trabalho. Mais do
que isso, os relatos ressaltam um ritual no qual os integrantes almoçam sem assistir à
televisão, sentados à mesa. Os relatos mencionam a dificuldade que é enfrentar o
trânsito no deslocamento de ida e volta para casa no horário de almoço, mas também a
133
importância do esforço: estar próximo a uma rotina em que certeza e estabilidade de
laços pessoais é o bem mais valioso.
Eu tenho um relacionamento com a família à moda antiga. Nós tomamos café, almoçamos e jantamos juntos. Nós sentamos à mesa, não tem esse negócio de comer vendo TV ou no sofá. André, gerente
Só uma emergência me faz não almoçar com minhas filhas, porque é a única refeição em que a família se encontra inteira. As terças à noite também são reservadas para esse convívio. [...] Se eu não trabalhasse à tarde, no horário em que minhas filhas estão em casa, eu não teria tanto rigor em que almoçássemos juntas. É o trabalho que cria essa situação. É importante ter alguma rotina com os filhos, mas o tipo de rotina é orientado pelo tipo de trabalho que você tem. Ivone, gerente
A família é algo absolutamente fundamental no processo de separação entre trabalho e vida privada. Ela é um ponto de inflexão na minha carreira. Eu costumo brincar com meus amigos que estão cheios de muito trabalho, dizendo que eles devem casar. E se já for casado, eu sugiro que tenha um filho, porque aí você consegue parar para fazer outras coisas e, quando volta ao trabalho, volta mais disposto para encarar os desafios. Não fossem esses fatores, eu sairia do trabalho todo dia à meia noite, porque trabalho não falta. Lúcio, gerente
Alguns desses depoimentos foram tomados de gerentes que já se envolveram,
durante certo período de tempo, com projetos que os afastaram do convívio familiar. É
comum, nesses casos, que na época o trabalho realizado fosse justamente o de
programação, análise de sistemas e engenharia de software.
Da mesma forma, vêm dos gerentes os depoimentos mais contundentes no que
se refere à disposição de não levar trabalho para casa e, de forma geral, à busca por
separar claramente o que são atribuições e ações a serem assumidas e tomadas no
ambiente de trabalho e no ambiente familiar. A regulação de horários e de dias de
trabalho também faz parte dessa disposição.
134
Nesse sentido, o convívio familiar não é o único meio e a única razão de
ruptura, de desconexão com o trabalho. Outras práticas se revelaram entre os gerentes.
Uma delas foram as vivências e reflexões de fundo religioso. A idéia parece ser a
mesma que guia a busca pela certeza obtida no contato com a família: contato com o
que se crê ser oposto à incerteza, à insegurança, à dubiedade.
A leitura religiosa me ajuda a cair mais no chão, na realidade. Especialmente nos ajuda a pensar... Por exemplo, nós somos acostumados a pensar que o celular é importante. Mas se você pensar que está virando a noite para fazer um programinha para o celular, vai perceber que pode se estressar sem necessidade. E isso é só trabalho, não é minha vida. Arnaldo, gerente
Nos últimos 10 anos uma série de ações me conduziram de volta à minha religiosidade. Pessoas inteligentes, padres inteligentes, a leitura, colocam a gente para refletir. A própria discussão com essas pessoas também. Por essas razões eu comecei a me aproximar de Deus com muito mais força do que eu era há 10 anos. [...] Na minha religiosidade tem uma coisa que eu sempre peço a Deus para conseguir. É ter serenidade para aceitar aquilo que a gente não pode mudar. Serenidade é uma palavra bonita. Mas ao mesmo tempo pedir coragem e tranqüilidade para mudar aquilo que a gente pode. Mais ainda, e isso eu peço com mais intensidade ainda, é poder discernir uma coisa da outra. Isso é importante na definição de minha visão de mundo e na forma como a gente encara as situações em que a vida coloca a gente. Edson, gerente
Quando eu não tenho nada para ler, eu leio a Bíblia, porque não é uma coisa que eu leio como uma história. Todos os dias eu faço pelo menos 40 minutos de exercício e todos os dias eu rezo. O reflexo disso no trabalho é o fim do estresse. Até 1998 meu desejo era ficar milionário, hoje não. Hoje eu quero pagar minhas contas e viver. O trabalho já foi o eixo principal de minha vida, mas hoje não é mais. Clóvis, Gerente
O trabalho nos fins de semana ou em horários fora do estipulado
comercialmente é uma exceção a uma rotina regulada e previsível. A permanência no
ambiente da fábrica de software em geral não ultrapassa oito horas diárias. Por causa
disso, muitos gerentes conseguem estabelecer um dia na semana de lazer com a
135
família. Somente por exceções o trabalho extrapola esse horário comercial previamente
e previsivelmente estabelecido.
Foi possível identificar, nas entrevistas com os gerentes originários do setor de
desenvolvimento, uma visão crítica do trabalho de codificação em particular e do
próprio processo de formação profissional e do funcionamento da fábrica de software
de forma mais geral. Essa crítica ressalta os danos pessoais causados pela dedicação
quase exclusiva ao trabalho: há profissionais se queixando de que não viram os filhos
crescer ou não os acompanharam em momentos cruciais do crescimento; há também os
que ressaltam problemas de saúde obtidos durante os anos de intenso trabalho ligado à
máquina; e há a crítica geral de que a própria essência do desenvolvimento de software
é algo para ser feito enquanto se é jovem, ou pelo menos é algo que deve ser feito
durante pouco tempo da carreira pelos desgastes que gera.
Atualmente eu estou com vários problemas de coluna por ter passado muito tempo em posição de trabalho, vida sedentária: estou com duas hérnias de disco na coluna lombar e uma degeneração na coluna cervical. Então eu resolvi fazer acupuntura e exercícios físicos numa academia. Esses problemas físicos são outro ponto de inflexão na minha carreira, porque eu nunca mais vou voltar a ter um ritmo de trabalho como o de antes. Lúcio, gerente
Muitos desses indivíduos em particular também praticam artes marciais,
apreciam a música ou fazem alguma outra atividade artística e refletem sobre o
trabalho a partir dessas vivências. A seguir, um depoimento de praticantes de niten,
arte da batalha com espadas de aço, legado do conhecimento dos samurais e muito
praticada também no Ocidente:
O niten tem algo de arte e de combate. O samurai, ao escolher entre viver e morrer, escolheria morrer. Isso significa que é preferível não ir à batalha com medo, porque nesse caso ele já teria perdido a batalha. Ele tem que ir livre, para, morrendo ou vivendo, fazer o melhor. No negócio é assim também. Se você pensa em investir R$ 1 mil ou R$ 100 mil, você está indo para a batalha, está investindo
136
esse dinheiro e vai fazer um negócio. Se antes de fazer isso você está estressado porque não pode perder, não vai conseguir fazer a coisa da melhor forma. Não é uma questão de desapego. A prática do niten também me convenceu de que eu não vou morrer de trabalhar. Se precisar trabalhar à noite eu trabalho, não perco a combatividade. Clóvis, gerente
Existe uma associação total entre o niten e o meu trabalho. É um treinamento de guerra, você é treinado como um soldado, não se faz nada andando, você corre o tempo todo. Esse treinamento motiva você a superar seu limite físico, a vender seus limites de cansaço de poder lutar com uma armadura pesada, e também a superar seu limite psicológico. Eu sou a única mulher desse grupo que treina niten em Pernambuco e isso é um motivo a mais para vencer os homens. E no fim do treino ainda tem que meditar um pouquinho. É um tipo de desafio que se assemelha ao trabalho e à vida como um todo. Cecília, gerente
Essa prática esportiva, como relatada pelos entrevistados, se aplica às
atividades operativas no trabalho. As entrevistas mostram também que o niten serve de
estratégia de desligamento e sublimação do ofício desempenhado nas empresas na
medida em que valores éticos e morais também são incorporados à vivência privada
dos sujeitos. E, por sua vez, realinha a ordem de relevâncias pessoais, em que se inclui
o trabalho. O testemunho desses dois profissionais mostrou que a incorporação de
certos valores pode ampliar ou ressaltar ordens de relevância para além do circuito
técnico-operativo da rotina na fábrica de software. Há ainda as práticas ligadas à
música, que da mesma forma têm seu reflexo no trabalho.
Eu sou músico. Eu passei muitos anos tocando violão durante várias horas por dia. Hoje eu toco pouco. E isso tem uma reflexão total no meu trabalho. Eu trabalho com tecnologias musicais. E eu tenho absoluta convicção de que a minha sensibilidade artística foi fundamental para começar uma área de desenvolvimento novo aqui no Recife, que é a área de jogos. Se eu não tivesse convivido muito tempo com artistas eu não teria entrado nessa área, que é um setor interdisciplinar. Lúcio, gerente
137
A necessidade de constante renovação de conhecimento obtida principalmente
pelas certificações formais – cursos de curta duração – também recebe crítica. Embora
as certificações sejam tidas como necessárias, muitos dos gerentes entrevistados
colocam sob questionamento a busca pelas certificações como um fim em si. Essa
crítica feita por gerentes se refere ainda a um certo alheamento do mundo social a que
se chega por causa da ligação intensiva com o trabalho, com as demandas técnicas,
com as pressões por renovação de conhecimento e com a falta de tempo.
4.3.5 Os executivos e o pragmatismo acelerado
Aos executivos se impõe um tipo de trabalho bem diferente do que é realizado
pelos desenvolvedores e gerentes. Embora seja comum haver executivos oriundos da
área técnica – engenheiros, programadores, analistas –, a maior parte de suas
atribuições está vinculada à prospecção de negócios, à representação da empresa e à
consolidação de contratos. Aos executivos é atribuída também a tarefa de negociação
com eventuais empresas-cliente do poder público e da área privada. São os executivos
também que, em virtude dos contratos estabelecidos, fazem as cobranças por prazos
aos respectivos gerentes ligados ao trabalho de desenvolvimento nas fábricas de
software.
E os executivos são responsáveis por muitas das visitas a clientes ou possíveis
clientes, estabelecem, junto com os gerentes, as perspectivas de evolução da empresa
para os anos futuros e, em função disso, determinam os profissionais que serão
necessários ao trabalho de desenvolvimento de softwares. Do ponto de vista pessoal, as
entrevistas com os executivos chamaram a atenção no que se refere à luta por espaços
de decisão na empresa. Esse espaço é conquistado e mantido à medida que o indivíduo,
em qualquer atividade, detém e sabe aplicar conhecimento. Ora, como vimos, o
138
conhecimento necessário para a execução do trabalho no setor de tecnologia da
informação e comunicação é mutável, recondicionado por demandas dos clientes ou
por avanços tecnológicos. Estar atualizado do ponto de vista técnico-operacional e do
ponto de vista gerencial, assim, é uma exigência que adquire novos contornos quando
abordamos os executivos do setor de tecnologia da informação e comunicação.
O conhecimento é a moeda com a qual o desenvolvedor abre espaço e se
consolida como profissional requisitado, e com a qual o gerente adquire respeito e
confiança das equipes que comanda e de suas chefias, além do próprio cargo e das
atribuições. É com o conhecimento que os executivos compram um espaço de decisões
na empresa, que permite o diálogo com clientes, a definição de metas internas, a
participação na escolha dos investimentos em pessoal ou em equipamentos mais
adequados, os ramos de especialização e o tipo de serviço ou produto mais interessante
ao qual a empresa deve se dedicar. As entrevistas mostraram a preocupação dos
executivos em ter uma base de conhecimentos em linguagens de programação e em
modelos atuais de negócios.
A necessidade de acompanhar e dominar essa vasta coletânea de informações –
e, em virtude disso, determinar os rumos da empresa – é o principal desafio técnico-
operacional dos executivos. O objetivo é não somente atender às exigências do
trabalho, mas também controlar uma margem de influência e participação executiva na
instituição.
Os executivos se ancoram ainda em equipes e profissionais de sua confiança,
motivo pelo qual precisam conhecer os bons profissionais do ramo para delegar
funções e responsabilidades. É por isso que ter espaço para decisões e se manter útil ao
trabalho na empresa são aspectos definidos pelo grau de conhecimento atual que o
executivo domina e pela quantidade de conhecimento útil acumulada em sua carreira.
139
O que diferencia esse quadro de outros profissionais, em outras áreas, é a necessidade
constante de renovação do conhecimento. Assim como desenvolvedores e gerentes, os
executivos são compelidos pelo espírito da obsolescência que rege boa parte do
trabalho em tecnologia da informação e comunicação.
Os prazos para essa atualização de conhecimento são ainda mais dilatados do
que os verificados entre os gerentes. Os entrevistados observaram, entretanto, saber
que não podem deixar de renovar seus conhecimentos de mercado, sob o risco de
perderem espaço de decisão na agenda executiva da empresa para executivos mais
jovens, com bagagem teórica e prática mais atual.
As entrevistas revelaram também o quanto as exigências do trabalho forçam a
dedicação de boa parte do tempo às atividades da empresa, com eventual perda da
convivência familiar ou da dedicação a outras atividades não relacionadas ao trabalho.
São esforços que implicam, muitas vezes, o comprometimento de horários privados, a
extensão do tempo do trabalho e reuniões no fim de semana.
Implica também, e principalmente, a conexão constante com os elementos do
trabalho, que nesse caso não são necessariamente a estrutura de codificação formada
por computadores na fábrica de software, nem a grande rede de computadores.
Essencialmente, as atividades do executivo de uma fábrica de software são: formação
de redes de colaboração, troca de informações e contatos para negócios. Ou seja, ele
trabalha diretamente com pessoas. A constituição e manutenção de redes de
informação estratégica e de mercado, que permitem decisões empresariais, é um
desafio e um problema operativo constante dos executivos.
Ainda que a separação entre o tempo dedicado ao trabalho e o tempo dedicado
a outros contextos da vida desses indivíduos seja mais clara, os executivos continuam
ligados às suas atividades profissionais. A condição de “executivo”, aliás, permite a
140
administração de problemas contingentes e de projetos de forma distante, de forma não
presencial. Esse aspecto é mais evidente nas ocasiões em que os executivos viajam a
trabalho. Telefones celulares, programas de comunicação instantânea, e-mail e
videoconferências (serviço oferecido por empresas de telecomunicações que permite
reuniões com áudio e vídeo transmitidos por satélite) suprem essa necessidade de
ausência e permitem que o tempo dedicado ao trabalho extrapole o espaço do
escritório. Adequar essas vivências às necessidades privadas e muitas vezes familiares
é uma questão problemática a ser resolvida.
As entrevistas mostraram que o receio de ser considerado desatualizado, entre
os executivos, também está vinculado a uma questão de idade. Alguns dos
entrevistados revelaram que a diferença de idade em relação a novos profissionais do
mercado é um fator negativo e que essa diferença concorre para que sua condição seja
de ameaça de desatualização. Apesar do esforço para manter atualizada a sua carga de
conhecimento profissional, os executivos entrevistados deixaram transparecer a
impressão de que estar desatualizado, portanto, descartável, é uma condição inevitável,
como se fosse um imperativo e uma característica própria de sua atividade e de toda a
lógica do obsoleto que rege o trabalho no setor de tecnologia da informação e
comunicação: em algum momento você cairá diante da desatualização, do desuso de
sua carga de conhecimento e da impossibilidade de contornar essa condição.
Até lá, predomina o esforço para a manutenção do espaço de decisão com a
atualização de conhecimento em cursos, instrumentos de informação, como fóruns de
discussão, seminários e encontros especializados. É importante observar que essa
necessária atualização de informação e conhecimento não se restringe aos
procedimentos técnicos de codificação e de linguagens de programação. Na verdade, o
executivo é o estrato de profissionais investigado que mais distante está do trabalho
141
lógico de codificação – são privilegiados conhecimentos com outras características,
como aquelas que permitem a administração rentável da empresa; a identificação de
serviços e produtos; a antecipação da oferta desses produtos e serviços a possíveis
interessados; a percepção de linhas de investimento necessário na empresa, entre
outros. Assim, basicamente a relação de acréscimo e de atualização dos
conhecimentos necessários ao trabalho é alimentada por elementos circunscritos ao
ambiente do trabalho. Nenhum dos executivos citou, nas entrevistas, outras fontes.
Eu participo dos fóruns de discussão para me atualizar, não participo diretamente dos debates. As informações mais preciosas são captadas por gente de minha empresa. Alguém tem que fazer esse trabalho sujo. Júlio
Eu atualizo minha bagagem de conhecimento necessária ao trabalho através da internet e principalmente em revistas e na conversa com fornecedores de equipamentos e tecnologias para a empresa. Miguel
4.3.6 Soluções
As formas identificadas de atualização passam pelos cursos de curta duração,
como especializações e MBAs, pelo acompanhamento intensivo da mídia
especializada, pela assinatura de fóruns de discussão e também pelo contato direto com
outros executivos, com fornecedores de serviços e equipamentos, com clientela ou
possíveis clientes em congressos, feiras, seminários.
Mas a manutenção do espaço de decisão no ambiente de trabalho não está
somente condicionada à manutenção de um certo nível técnico de conhecimento. Está
vinculada à rede pessoal criada em anos anteriores da carreira do executivo.
Essa rede de contatos com outros profissionais permite saber estratégias de
empresas concorrentes, movimentação de contratos com outras empresas ou órgãos
142
públicos, o que outros grupos privados estão desenvolvendo ou que tipo de tecnologias
outras empresas estão usando. É essa rede de relacionamento que faz os profissionais
obterem, eventualmente, informações sobre a satisfação dos clientes das empresas
concorrentes, a quebra de contratos ou a ocasião mais propícia para a apresentação da
cartela de serviços e produtos disponíveis. É à atualização dessa gama de informações
que os executivos dedicam grande parte de seus esforços.
Uma solução encontrada para a manutenção dessa rede é a dedicação a laços
profissionais antigos, formados durante os anos de trabalho com estudantes,
desenvolvedores ou gerentes, quando é o caso. As soluções encontradas ainda passam
pela manutenção de uma agenda profissional e pessoal de visita a clientes, de
comparecimento a eventos públicos onde estão representados clientes e possíveis
clientes privados e públicos.
As soluções encontradas para o atendimento das demandas técnicas, do
trabalho, e privadas, relacionadas à família, por exemplo, passam principalmente pela
ordenação de valores numa escala de relevâncias. As possibilidades de envolvimento
com o trabalho sem a necessidade de presença, em vez de representar ameaça à
satisfação e atendimento de prioridades particulares, indicam a capacidade de utilizar o
deslocamento, a velocidade e a tecnologia em benefício da vida fora do trabalho.
4.4 Considerações finais
As estratégias de reduzir os elementos de risco e insegurança acontecem nos
três estratos de profissionais entrevistados. Esses mecanismos ocorrem pela busca de
experiências que se oponham à incerteza vivenciada nas fábricas de software. Incerteza
essa que, como vimos, se projeta para o imediato contingente: a segurança da infra-
estrutura técnica que suporta as atividades do trabalho, a validade de informações
143
necessárias para a solução de problemas técnico-operativos, a urgência da aplicação
dessas soluções, experimentadas principalmente pelos desenvolvedores. A incerteza se
projeta ainda na necessidade de guiar as opções tecnológicas adotadas pelas empresas,
que é experimentada por gerentes e executivos. Esse mesmo tipo de incerteza se
instaura ainda na carreira do desenvolvedor, ao escolher áreas de especialização.
Esse quadro aparentemente inadiável e incontrolável é pautado por aceleração,
além de gerar ansiedades, tensão e frustração nos profissionais do software.
Verificamos o exercício de vários tipos de reflexividade em confronto com esse estado,
na busca por equilíbrio e na tentativa de enfrentar as ameaças psíquicas, técnicas e
profissionais. Essa tipologia é apresentada nas tabelas 1, 2 e 3 que podem ser
verificadas no apêndice desse trabalho. A essas reflexividades associamos tipos de
ação e de racionalidade sistematizados por Max Weber, que respondem às demandas
ao que é mais relevante em determinado momento da carreira dos profissionais do
software. De fato, mais de um tipo de racionalidade é associado a cada uma das
reflexividades identificadas e aqui sistematizadas. E mais ainda: a ordem de
relevâncias, que inclui fatores de caráter subjetivo e também de caráter técnico, define
a importância que cada tipo de auto-reflexão tem ao longo da vida profissional e
pessoal dos entrevistados.
Assim, a ordem de relevâncias que pauta a ação dos desenvolvedores é
marcada principalmente pela atividade operativa: o pleno e eficiente exercício de
atribuições na fábrica de software, a reciclagem diária e pontual de conhecimento e a
consolidação da expertise por meio de cursos de curta duração servem ao objetivo de
continuar na linha de frente do desenvolvimento de softwares, no trabalho de
codificação. A reflexão operativa, nesse momento, é a mais determinante da ação
racional. A busca por soluções, a auto-reflexão, acontece por meio do sistema
144
especialista com o qual os desenvolvedores mais se relacionam: a infraestrutura
técnico-racional formada pela internet, pelos sistemas de e-mail, por newsletters,
sistemas de busca e grupos virtuais de discussão.
Mas essa relação não é biunívoca, ou seja, a associação entre a reflexividade
operativa e a ação não é excludente de outras. A ação recebe a influência de outros
mecanismos de auto-reflexão, como também é mostrado na tabela 1 – verificar
apêndice. A reflexão estratégica e política serve às preocupações por ajustamento
pessoal e ascensão profissional, seja nos quadros da empresa onde se trabalha
atualmente, seja em termos de capacitação técnica individual. É nessa categoria que se
incluem, por exemplo, os planos para se fazer pós-graduação em computação e
administração de empresas revelados nas entrevistas. Especulações mais subjetivas
sobre o sentido do trabalho, sobre o espaço que as atribuições profissionais ocupam na
vida pessoal, não foram verificadas entre a maior parte dos desenvolvedores, o que não
significa que não existam.
A dinâmica entre estratégias reflexivas, racionalidades e ação se torna mais
complexa à medida que os profissionais do software estabelecem novas relações
sociais e vivências. Os desenvolvedores com mais experiência confirmam isso. A
ampliação do exercício da auto-reflexão entre os entrevistados pôde ser verificada nos
projetos de migração dos cargos de desenvolvimento para os cargos de gerência. Na
busca por redução de risco, tensão e insegurança no exercício ordinário de tarefas, a
reflexividade estratégica e política ocupa um espaço fundamental, ao se estruturar um
projeto para isso. O que acontece, então, é que a reflexividade operativa deixa de
operar apenas com as demandas pontuais e contingentes. Pautada por um projeto que
se projeta para o futuro, a ação incorpora, além dos afazeres diários, outras atividades.
Assim, os desenvolvedores interessados em se converter em gerentes continuam a
145
exercer suas atividades normais de codificação, mas seguem projetos previamente
estabelecidos, fazendo cursos para poder ocupar cargos de gerência. A reflexividade
estratégica está associada, nesse exemplo, a uma racionalidade prática e também a uma
racionalidade formal: o exercício de cargos de gerência requer a comprovada
capacitação técnica para isso, o que é obtido com a certificação atribuída por
instituições legalmente reconhecidas. Essa norma faz parte da racionalidade formal do
setor de tecnologia da informação e comunicação.
E a reflexividade existencial nos desenvolvedores amadurecidos parece
completar o quadro ao motivar o questionamento da necessidade de se viver em
contínuo estado de alerta e insegurança. Ainda nesse exemplo, a reflexividade
existencial está fortemente associada à racionalidade substantiva, embora tenha
vínculos com a racionalidade prática. Nenhuma reflexividade está associada de forma
única e excludente a uma única forma de racionalidade. A classificação nas tabelas 1, 2
e 3 – disponível no apêndice desse trabalho - é um modelo sugerido para melhor
exprimir a ação tomada pelos indivíduos, porque parece-nos que os processos de auto-
reflexão abarcam diferentes aspectos da vida dos sujeitos, mas não se separam: elas
operam integradas, atribuindo novos sentidos à experiência individual.
Entre os gerentes, a reflexividade operativa não ocupa posição central,
diferentemente dos desenvolvedores, mas não deixa de existir. A ordem de relevâncias
é realinhada em função de experiências que alimentam o conjunto de conhecimentos
do indivíduo. Assim, a experiência da maternidade e da paternidade entre os gerentes
tira, em geral, a prioridade do trabalho. O contato com os filhos no universo familiar se
coloca como experiência oposta à incerteza, ao risco, à obsolescência e à aceleração
vivenciados no trabalho. Da mesma maneira, doenças físicas decorrentes do esforço
realinham a ordem de prioridades e, portanto, de dedicação integral ao trabalho.
146
Estar em casa a maior parte do tempo possível com a família, acompanhar o
crescimento dos filhos, cuidar da saúde e dar atenção a demandas subjetivas – estéticas
e até mesmo religiosas – ocupam mais espaço no mundo da vida dos profissionais do
software a partir de determinado momento da carreira. Novas experiências se juntam
aos conhecimentos acumulados, alteram a ordem de relevância e fortalecem o
exercício de outras reflexividades para além da meramente operativa. Esse ciclo,
virtuoso, se realimenta de forma reflexiva.
Fica clara, então, a limitação da caracterização dada por Anthonny Giddens e
Scott Lash ao conceito de reflexividade. Ela não pode ser considerada um movimento
da consciência apenas cognitiva ou apenas estética. Em vez disso, deve-se considerar
os mecanismos de auto-reflexão em diferentes contextos da vida objetiva e subjetiva
dos sujeitos, conectando interesses e ações em função de ordens de relevância pessoal
que são alteradas por novas informações e conhecimentos apreendidos. A construção
de narrativas de vida que atribuem sentido às ações e às experiências vivenciadas é
permeada pelo cruzamento de diferentes reflexividades associadas a variadas
racionalidades.
147
5. Conclusão
Partindo das entrevistas realizadas, verificamos que o trabalho realizado pelos
profissionais de software é marcado pela necessidade de se atualizar constantemente o
conhecimento necessário à execução de suas tarefas técnico-operativas. Essa
atualização precisa ser realizada de forma contingente e acelerada, porque as demandas
por prazos e qualidade são pautadas pela velocidade. A obsolescência de processos e
dos conhecimentos necessários ao ofício nas fábricas de software condiciona
desenvolvedores, gerentes e executivos a conviver com insegurança, risco e ansiedade.
A insegurança se projeta para o presente, na medida em que a atualização de
informação para a solução de problemas contingentes precisa ser testada e comprovada
em mais de uma fonte, antes de ser usada na solução de problemas técnico-operativos.
As condições para a realização das tarefas pontuais e de funcionamento das fábricas de
software não podem ser completamente controladas pelos profissionais, o que aumenta
o conjunto de riscos e inseguranças vivenciados.
A evolução de diferentes tecnologias pode tornar obsoletas expertises formadas
ao longo de anos de trabalho, dedicação e atualização constantes, abrindo espaço para
perda de empregabilidade. Essa é uma categoria de risco que se projeta para o futuro e
também força os profissionais do software a tentar antecipar as tendências de mercado
e de linhas de desenvolvimento tecnológico. As entrevistas mostraram ainda que os
três estratos dos profissionais do software precisam lidar e aplicar em pouco tempo
grande quantidade de informações de sua área de conhecimento – e também de fora de
sua especialidade, relacionadas às especificidade dos clientes – em soluções
computacionais.
148
Esses fatores articulados provocam ansiedade, tensão e incertezas, além de
problemas de ordem física causados pelo excesso de trabalho, como as lesões por
esforço repetitivo. Os danos envolvem ainda perda de autonomia e principalmente do
controle das prioridades pessoais em virtude da alta carga de trabalho e da necessidade
de se manter em condições perfeitas de empregabilidade.
Mas o que verificamos é que esses fatores articulados não são suficientes para
anular a reflexão dos indivíduos sobre o estar no mundo. Verificamos que os
profissionais do software conseguem desenvolver estratégias de auto-reflexividade que
redefinem suas relações com o trabalho e com o mundo que os cerca. Essas estratégias
operam em relação ao trabalho de variadas maneiras e geram caminhos de
autodeterminação pessoal.
Para atender às demandas de ordem operativa e prática que formam esse
contexto problemático, os profissionais do software aplicam o que chamamos
reflexividade operativa. Com a reflexividade operativa, eles executam mudanças em
suas próprias tarefas com informações obtidas na prática profissional diária. Os
mecanismos usados são ferramentas técnicas ou procedimentos burocráticos que
compõem o modus operandi nas fábricas de software.
Quando utilizada pelos desenvolvedores, a reflexividade operativa é vinculada
às operações de codificação, resolução de problemas pontuais e otimização de
resultados técnicos. Esses profissionais executam essa reflexividade para melhorar
resultados de projetos em andamento com listas de discussão, assinatura de newsletters
e de revistas especializadas. A busca de soluções de problemas técnicos na internet é
uma forma de reflexividade operativa.
Os gerentes também exercitam a reflexividade operativa buscando informações
sobre o controle de custos e prazos, acompanhando desempenhos individuais e
149
distribuindo tarefas. Essas atribuições geram informação e também a necessidade de
novas decisões que são reavaliadas e acionadas em função desse conhecimento
vivenciado anteriormente. Os gerentes se alimentam de informações geradas no
próprio trabalho para executar a reflexividade operativa.
A reflexividade operativa executada pelos executivos e diretores das fábricas de
software está a serviço da imagem da empresa e dos resultados obtidos. Os executivos
pautam suas ações práticas, operacionais, pelas informações que apontam o que a
empresa precisa para funcionar bem e crescer. No campo de trabalho do executivo,
essas informações são geradas por variados setores da empresa e também por clientes,
pelo mercado financeiro, pelo movimento de empresas concorrentes. A reflexividade
operativa dos empresários ocorre na atenção a essa série de informações que
alimentam a ação individual voltada para a solução de problemas em nível executivo.
A ação gera novas informações e o ciclo, assim, recomeça.
Associada à reflexividade operativa, temos de forma mais clara um tipo de
racionalidade: a racionalidade prática. Mas essa associação não é excludente. Outras
racionalidades interferem nas ações reflexivas técnico-operacionais diárias. Sobretudo
quando a ordem de relevância e de prioridades pessoais e profissionais é alterada.
À reflexividade operativa são adicionadas, na prática dos indivíduos, a
reflexividade estratégica e política e a reflexividade existencial. A reflexividade
operativa é constituída por estratégias de adequação ao ambiente técnico e cultural das
fábricas de software e alimenta também práticas para crescimento nos quadros da
empresa. A reflexividade existencial está vinculada de forma mais forte a valores e
experiências subjetivas, que também alimentam ações no âmbito do trabalho.
A sistematização dessas reflexividades nos permitiu verificar que sua
articulação orienta as ações no sentido de reduzir a carga de tensão, de insegurança e
150
de risco vivenciada pelos profissionais do software. Esse movimento acontece por
meio de sistemas especialistas, como afirma Giddens, os amplos campos de
conhecimento que servem como fontes de referência e respostas a questões técnicas e
operativas. Mas também responde a questionamentos éticos, estéticos e transcendentes.
Nesse aspecto, os sistemas especialistas envolvidos incluem também conjuntos de
valores, afinidades culturais e experiências subjetivas que se adicionam ao
conhecimento pessoal.
Mais explicitamente, os sistemas especialistas são formados por conhecimentos
sobre cultura, história local e música nos casos em que esses campos de conhecimento
interferem em movimentos de reflexividade. Podem ser formados por experiências
religiosas e éticas que pautam a ação ao atribuir sentido a relacionamentos pessoais e
profissionais. A própria experiência familiar se alinha à idéia de sistema especialista,
na media em que adiciona conhecimento à formação do indivíduo. Articulados, esses
campos de interesse também formam sistemas especialistas, ao lado de outras áreas de
conhecimento.
A atenção à atividade do trabalho deixa de acontecer somente no plano
operativo, e a reflexão também. A atenção à estratégia da ação para além do
contingente decorre de ter sido acionada a reflexividade estratégica e política. Os
profissionais, nesse estágio, planejam e agem a fim de manter o trabalho operativo e
também se capacitar. As informações geradas e os conhecimentos obtidos, bem com a
imagem guardada e eventualmente recuperada, realimentam a estratégia: os
desenvolvedores, por exemplo, moldam o interesse por um ou vários tipos de gerência
a partir de determinado momento de suas carreiras.
A redução do tempo dedicado ao trabalho, seja nas fábricas de software, seja
em casa ou em outros ambientes, e o empenho em não levar trabalho para casa e não
151
trabalhar no fim de semana, por exemplo, abrem espaços, em todos os estratos dos
profissionais do software, que precisam ser preenchidos no mundo da vida.
E, com efeito, são preenchidos com a atenção dada à família e aos cuidados
com a saúde do corpo. Também são preenchidos com atividades culturais, esportes
radicais, música e artes marciais. Essas ações não só interferem na separação das
vivências privadas e pessoais do mundo do trabalho, mas também colaboram com a
construção de autodeterminação e com o sentimento de pertencimento a um lugar, em
oposição ao modelo de trabalho que é realizado de forma muito parecida nos melhores
pólos de tecnologia do mundo.
Assim, ao ampliar as prioridades e a ordem de relevâncias, o indivíduo
modifica a forma como sua consciência se abre para o mundo. Os interesses subjetivos
ganham mais volume, ao ocupar mais espaço na vida dessas pessoas. E ganham mais
peso também, ao adquirir mais importância na orientação da ação. Essa é a
fundamentação da reflexividade existencial. É dela que partem as especulações críticas
sobre o espaço que o trabalho ocupa na vida particular dos profissionais de software e
a necessidade de se criar formas de controle do rumo da própria vida. É com a
reflexividade existencial que os profissionais do software indagam-se sobre a
experiência da incerteza e do risco, que perpassa toda a sua vida profissional, bem
como o setor de tecnologia da informação e comunicação. A reflexividade existencial
opera ainda as considerações de ordem transcendente. É nessa ordem de auto-reflexão
que os profissionais se perguntam sobre o sentido do mundo, vivenciam suas crenças
religiosas e praticam seus pressupostos éticos, o que tem reflexo direto na contingência
e no risco: as condições que oferecem insegurança ganham menos espaço e
importância à medida que a orientação religiosa e os valores se configuram como
152
âmbito de certeza, em oposição à fluidez das mudanças técnicas e processuais no
mundo das fábricas de software.
Assim sendo, a ordem operativa dos sujeitos, suas tarefas diárias, passa a ser
pontuada por vários tipos de reflexividade. As reflexividades foram separadas e
classificadas aqui por necessidade metodológica: compreender a relação entre ação e o
trabalho de desenvolvimento de softwares.
As reflexividades se articulam, se cruzam. Elas não se opõem, como indica a
idéia de uma reflexividade cognitiva, cujo maior representante é Anthonny Giddens,
versus uma reflexividade estética, sugerida por Scott Lash (BECK, 1995). Essa
conceituação é estanque e ofereceria sérias dificuldades para a compreensão das ações
dos indivíduos, de forma geral, e para o caso particular aqui analisado. No mundo da
vida dos profissionais do software, interesses de ordem estética se alimentam ou são
motivados por prioridades de ordem cognitiva. Ordens de relevância cognitivas são
alteradas em função de prioridades subjetivas, transcendentes.
Nesse sentido, as racionalidades associadas à ação no mundo da vida também
se cruzam, funcionam em paralelo, o que confirma as múltiplas dimensões dos
processos de racionalidade. É por esse meio que os profissionais de software
encontram soluções para ansiedade e saídas para a condição de insegurança associadas
à prática operativa e ao horizonte profissional. É por esse caminho de associação entre
as múltiplas dimensões da racionalidade que se efetivam as estratégias de combate à
derrelição e de desenvolvimento de autodeterminação.
Da mesma forma, respostas a problemas de ordem existencial passam pelo uso
da racionalidade prática, a partir do exercício da racionalidade substantiva, assim como
a racionalidade formal está presente, delimitando o enquadramento da ação
profissional a um conjunto de normas e preceitos do setor.
153
O interesse em encontrar uma condição de trabalho e de vivências menos
marcada pelo risco, pela insegurança e pela contingência é acionado por demandas de
ordem subjetiva, como vimos. É a presença da racionalidade substantiva como
expressão da emancipação pessoal. A mudança na ordem de relevâncias altera o
sentido da racionalidade prática, da ordem de ação operativa contingente. Assim, os
profissionais do software passam a recondicionar sua ação e sua capacitação em
função de valores.
Nesse processo, também fazem uso da racionalidade teórica, tendo em vista
que a capacitação continua como norma do setor e pré-requisito básico. O interesse dos
desenvolvedores em migrar para o estrato de gerentes, a necessidade dos gerentes em
coordenar o trabalho de forma produtiva e a tentativa dos executivos em manter os
espaços de decisão estratégica ocorrem sob as normas de desenvolvimento de
softwares e de outros sistemas computacionais nas fábricas de software. Da mesma
forma, a necessidade de atualização dos conhecimentos necessários ao exercício do
trabalho também se constitui numa norma geral. Assim, nenhum dos tipos de reflexão
e de racionalidade acontece de forma isolada. Eles se articulam em processos
contínuos e virtuosos.
154
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157
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior
REFLEXIVIDADE E ACELERAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS RACIONAIS DE SOBREVIVÊNCIA
O caso dos profissionais do pólo de informática do Recife
ANEXOS
158
ENTREVISTAS
159
DESENVOLVEDORES
160
Cláudio - Desenvolvedor
Qual tua profissão e como você chegou a trabalhar atualmente nessa fábrica de
software? “Eu sou engenheiro de software, eu trabalho justamente nessa parte de
desenvolvimento de software, eu ainda to cursando o superior na Católica, o curso
de Ciência da Computação, to no quinto período, agora, e eu comecei a trabalhar
aqui por indicação; eu trabalhava no ITECI e me chamaram pra cá”.
O que exatamente você faz aqui? Quais são suas atividades?
“A gente tá com um projeto que é grande, bastante robusto, e todos os desenvolvedores
do projeto ficam responsável por um aspecto completo que vai desde a interface com o
usuário até banco de dados; então, cada um tem uma responsabilidade. Ou seja, você
tem a parte de design e tem uma parte de estrutura, de lógica do negócio até o
armazenamento de dados”.
Como você faz pra dividir o que é tempo do seu trabalho, aqui na Provile e o que é
tempo pra você estudar? O tempo que você dedica pra Católica, o tempo pra
namorada, família?
“Veja bem, felizmente o computador lá de casa não tá funcionando; o meu
computador já não funciona há mais de dois anos. Então, chega final de semana
eu não toco em computadores; geralmente eu dedico final de semana à namorada,
eu a vejo durante a semana porque ela mora longe, ela mora em Boa Viagem e eu
moro em Olinda. Mas, durante a semana, o dia todo é dedicado ao trabalho. À
noite vou à faculdade e o que tiver de trabalho de faculdade vai ter que competir
com a namorada, nos sábados e nos domingos”.
161
Você disse que não pega no computador final de semana e durante a semana, quanto
tempo você dedica ao computador?
“Aqui no trabalho são oito horas fechadas. Na faculdade duas ou três vezes por
semana, depende das cadeiras que você tem que ir pra laboratório, eu evito
laboratório. Geralmente se eu quiser fazer algum trabalho no computador, eu
procuro fazer na hora do almoço tenho; aí, ao invés de ir pra casa almoçar, eu fico
aqui, dou uma esticada e passo a hora do almoço fazendo trabalho pra faculdade
ou o que tiver”.
Você está na metade do curso, já tem idéia de como vai ser a evolução da
tua profissão? Como você se vê nela?
“Olha, em termos do que eu to fazendo agora, não vai mudar muito, não. Talvez o
retorno financeiro seja melhor no futuro, até porque eu vou ter uma base melhor,
um conhecimento maior, mais experiência. Mas, em termos do que eu to fazendo
agora, eu acho que pouca coisa vai mudar”.
Em termos de linguagem, de ferramentas?
“Exatamente”.
Você não tem uma noção muito clara, de quanto tempo exato tá dedicado
ao trabalho e quanto tempo tá dedicado ao estudo por semana?
“Eu acho que em torno de 25 a 30 horas por semana de faculdade”.
E você leva algum trabalho do trabalho pra casa, pra fazer?
“Não. Eu poderia levar, mas aí eu prefiro sacrificar um almoço ou prolongar meu
trabalho aqui e continuar”.
Então, você prefere sempre trabalhar na empresa?
“Exato”.
Por uma questão de produtividade?
“É mais produtivo e também porque eu não tenho as ferramentas em casa. Mas,
mesmo se eu tivesse, acho que ia optar mais por trabalhar aqui porque não se
deve misturar as coisas de família e trabalho. Da mesma forma que você tem a
162
política de deixar as coisas de casa em casa, eu procuro fazer a mesma coisa pra o
trabalho”.
Essa prática você já tem há muito tempo? É recente? É uma orientação da
empresa?
“Não, não é. Eu preferi assim porque eu não tenho tempo pra me dedicar
exclusivamente pro trabalho; eu tenho outras coisas pra fazer, eu tenho
namorada, tenho faculdade e tudo mais. Então, se eu for me dedicar única e
exclusivamente pro trabalho, eu não vou ter tempo pra fazer outras coisas. Então
eu estabeleci essa regra já pra facilitar o que já não tá tão fácil. Também daqui há
dois anos, quando terminar a faculdade, deve melhorar um pouquinho e pode ser
que as coisas mudem”.
Você participa de listas de discussão sobre o teu trabalho?
“Sobre o meu trabalho, não necessariamente; mas sobre ferramentas que eu
uso”.
Linguagens de programação?
“Exatamente”.
E quantas listas são?
“Eu estou em duas listas, uma de Java e a outra, sobre uma modalidade de
programação que usamos no trabalho na fábrica de software”.
Você já teve um número maior de listas assinadas?
“Não porque eu não vejo muita necessidade de você ficar em listas. Hoje em dia
você tem um Google e qualquer dúvida que você tiver, em vez de ficar discutindo
lista, você coloca lá no Google. Ele procura o que você quer nas listas! Se você tá
com uma dúvida em alguma coisa, você coloca lá no Google, tem uma opção que
é Grupos, você clica lá e ele já varre todas as listas”.
Com que freqüência você faz esse tipo de atualização e informação?
Acontece muito durante o dia?
“Três vezes por hora. É muito constante a necessidade de atualizar e como a
gente ta trabalhando com software livre, que tem esse conceito de não
proprietário, então há uma mudança constante e você não tem uma
documentação apropriada pras coisas. Então você economiza por um lado, mas
163
você tem a contra partida porque você tem que ter um investimento muito maior
porque você tem que gastar mais tempo pra poder assimilar aquela ferramenta,
você não tem a quem recorrer, vai pro Google e sai procurando”.
Você tem a necessidade o tempo todo de tá atualizando sua base de
conhecimentos. Isso causa alguma insegurança de você não conseguir
encontra?
“Causa. Esse é um grande problema, você não ter certeza absoluta de que no
outro dia você vai colocar aquilo como o cliente quer. Talvez se trabalhasse com
plataforma de documento, tivesse um pouquinho mais de segurança. Mas, isso é
mais no começo, depois que você pega o experiência da coisa, você tem mais ou
menos uma idéia de como resolver as coisas, você já sabe quais são os melhores
sites pra procurar informações, até o tipo de pesquisa que você faz, as palavras
chave que coloca. A gente até brinca com o pessoal dizendo que se tirar a internet
a gente para de programar porque a gente é bastante dependente da internet”.
Isso é bom ou ruim? Causa alguma ansiedade?
“Por um lado sim e por outro não, Todo mundo que trabalha na área de
informática gosta do tal do desafio; acha que uma coisa que você tem que fazer
que os outros tiveram dificuldade, eles acham isso super legal e tal. Então, eu não
me incomodo de forma alguma de tá trocando informações até porque às vezes
em debate eu encontro coisas que eu não tava procurando, ou que me ajudam na
faculdade, e outras informações que apesar de não me interessar no momento e
mais pra frente, a próxima vez que eu encontrar com aquela dificuldade, eu já vou
saber solucionar”.
Esse tipo de informação que você pega no Google e as informações que
você tem nas tuas listas são diferentes?
“As listas, elas geralmente são mais atualizadas. Nessas de banco eu recebo cerca
de 20, 30 mensagens diárias. Mas, geralmente você recebe os e-mails, olha o que
te interessa e apaga o resto porque se não... Minha caixa postal agora tá com
cinco mil mensagens, não lidas! Que eu falava que era interessante e ia guardar,
fora as que eu li e deixei lá pra se futuramente eu precisar”.
No dia que você não vê uma lista dessa, ao acha informação ou fica com
uma pulga atrás da orelha? Nem que seja só por psicológico, com
segurança?
164
“Olha, eu não sei. Geralmente eu tenho já o hábito de chegar aqui e a primeira
coisa que eu faço é abrir a caixa de e-mail, abrir o jornal do Commercio e me
atualizar. Se um dia eu não puder fazer isso eu vou deixar pra fazer mais tarde,
todo dia eu tenho que checar meu e-mail”.
Não vai ter um impacto?
“Não, não vai ter um impacto tremendo. Mas, o e-mail, não só por causa da lista,
a gente usa pra comunicação entre a equipe; então, a gente tem que tá sempre
abrindo pra qualauer novidade a gente tá por dentro”.
Você participa de algum outro tipo de fórum que ao te a ver com teu
trabalho, tua profissão?
“Participo, um hobbie, digamos assim. É um videogamezinho da Microsoft e eu
participo desses fóruns”.
Essas outras listas que tu participa tem a ver com tua profissão, né?
“Indiretamente, talvez, porque é informática. Mas não é algo que eu requeira pro
meu trabalho, eu nunca que vou precisar comprar uma placa de vídeo; é o tipo de
coisa que eu gosto de ver”.
Fora futebol, o que faz parte da tua listinha de diversão?
“Rapaz, a gente já tentou montar uma equipe de windsurf. “.
Você é surfista ou já foi?
“Surfista de passagem, digamos assim, tenho uma prancha e já surfei há muito
tempo. Eu curto muito o mar, então, passeio de lança kitesurf eu já fiz. Então,
tem uma galerinha aqui do trabalho, mesmo, que quando quiser passar fim de
semana na praia, cada um leva o seu, pega uma onda lá e tal”.
Tem alguma dessas atividades que você ainda tem hoje?
“Não. É só namorar, trabalho e faculdade; mais nada”.
Você está o tempo todo com muita facilidade de acesso à informação;
você trabalha conectado o dia todo e esse tipo de informação eu suponho
que além de necessária pra o seu trabalho você tem acesso às informação
em geral. Você acompanha esse tipo de informação ou não dá?
165
“Olha, se eu tivesse condições de acompanhar lá em casa eu acompanharia até
porque eu tenho interesse em mercado de ações, de investimentos em bolso e tal.
Mas, infelizmente ocorre que lá em casa a conexão é péssima, é conexão discada
e conecta em 14 e 400, quando é muito é em 20 e alguma coisa; aí você perde a
vontade de ver, eu deixo tudo pra ver no trabalho, seja na hora do almoço ou no
final do expediente”.
Esse tipo de informação ajuda você a refletir sobre teu trabalho, sobre tua
profissão?
“Ajuda porque você, justamente nessa área de Java, vê como o pessoal está se
guiando no mercado. Você tem uma noção melhor do todo, de quais são as
demandas. Tem vários sites que são de emprego pro exterior, aí: não, o pessoal
ta pedindo certificado, o pessoal ta pedindo PHD de não sei o quê. Então, você
tem a noção de quais são os requisitos do mercado pra você ser um bom
profissional. Eu tenho interesse de ir pra Inglaterra, eu já morei fora, então se um
dia eu quiser ir pra fora eu já to me atualizando, sabendo quais são os requisitos
lá fora e já programando pra mais na frente tirar certificado, fazer esse curso e
aquele outro pra chegar lá já ter oportunidade de emprego”.
Você já teve algum tipo de reflexão sobre como tua vida está dentro do
teu trabalho ou como teu trabalho está dentro da tua vida? O que é maior,
o teu trabalho ou a tua vida? Um controla o outro? Quem controla quem?
“Um único problema é a faculdade que está no meio dos dois, é o enxerido da
história; mas, tem que está lá até eu me formar. Pensando mais pra frente,
quando terminar a faculdade, eu acho que eu vou continuar às oito horas no
trabalho, vou ter mais tempo livre mais pra noite e possivelmente eu vou fazer um
curso já visando meu emprego mais pra frente. Eu vou me dedicar mais pensando
pra frente e vou continuar dedicando os finais à família, aos amigos, à namorada.
Eu acho que em momento nenhum um influencia o outro; são raras as vezes que
eu preciso vir aqui no sábado, acontece, mas são raras as vezes. Às vezes a gente
tem que vir no sábado porque tem um prazo, que é pra entregar segunda-feira e
sexta-feira não deu, aí tem que fazer de todo jeito. Então, acontece da gente vir
no sábado. Mas, aí nunca fiz tanta questão”.
Então eles têm participação igual na sua vida?
“Exato. Eu não dou nenhuma prioridade específica. Eu tenho que enganchar a
faculdade no meio; faculdade é o que tem menos prioridade”.
166
167
Arnaldo – Desenvolvedor
Qual a atividade você tem no C.E.S.A.R.? Como você chegou a trabalhar na
empresa?
“Eu trabalho como arquiteto de softwares no C.E.S.A.R. desde 2000 e estou no projeto
(de criação de softwares para celulares) da Motorola desde 2001. O trabalho da gente é
bem focado para o desenvolvimento de aplicações (softwares) e serviços associados
aos celulares dessa empresa”
Desde o início você trabalha com desenvolvimento de software para celular?
“Sempre com desenvolvimento, não necessariamente para celulares. Somente há
quatro anos é que eu estou focado mais na área de celular.”
Chegou a fazer doutourado?
“Não. Eu fiz graduação na Paraíba, na UFPB em João Pessoa, e mestrado aqui na
UFPE mesmo.”
Quais são as estratégias que você utiliza para atualizar os conhecimentos
que você utiliza no trabalho? Você participa de fóruns?
“Os fóruns na Internet são a fonte mais comum de atualização de informação”
Newsletters também?
“Exatamente. Outro mecanismo que a gente usa bastante são os congressos, onde em
geral você consegue ter um panorama muito grande sobre o que está acontecendo de
mais atual.”
Em termos de fóruns, de newsletters, quantas você assina?
“Três fóruns, eu acho. Mais associados às coisas que eu faço. O mais utilizado é o
sobre J2NE, linguagem de desenvolvimento de softwares.
E newsletters?
“Faço uso de umas três.”
168
É o suficiente?
“É. Não tenho grandes dificuldades não. Os fóruns em geral são bons porque você
pode tirar dúvidas ver o que o pessoal está fazendo, vê algumas perguntas de pessoas
que estão tendo dificuldades similares. Eu acho que não é o suficiente para você ficar
sabendo o que está acontecendo na ponta, o objetivo do fórum na verdade é um pouco
diferente disso. Nos fóruns de discussão normalmente você vê coisas bem pontuais.
Você tem o trabalho tal, está com o problema tal e quer resolver. Mas é bom porque
você consegue saber o que os outros estão fazendo e se estão tendo problemas
similares. São coisas relacionadas especificamente com tecnologia. Neles, você não vai
identificar quais são as tendências de mercado, que tecnologia está sendo mais ou
menos utilizada. Para isso aí, o ideal seria um congresso, em que a gente vê mais essa
coisa de tendências.”
Em um dia normal de trabalho, a falta de consulta a um fórum destes faz
falta? Você encontra problemas nisso?
“Às vezes o que acontece é que a gente fica muito preso no nosso problema e a se
esquece de verificar – principalmente quem que trabalha com tecnologia aberta como
Java, ou o que for – a gente sempre tem alguém que já passou por problemas similares,
é muito comum. Então às vezes você fica preso lá no seu problema o tempo inteiro ao
invés de parar um pouquinho, ir ao Google, ou verificar no newsletter o que há de
novo, e você encontra a resposta que você estava precisando. Problemas com banco de
dados, com servidor, o que for, tem sempre na Internet. Sempre tem alguém que já teve
o problema pelo qual você está passando. Mas é bem comum o cara ficar lá, rodando e
remoendo sobre o seu problema, ao invés de ir ao Google (sistema de buscas na
internet), fazer uma pergunta. E não vai dar 10 ou 15 minutos até você achar uma
solução.”
Você fica preocupado quando não entra no fórum?
“Não, eu relaxo com isso. Eu particularmente não fico preocupado, mas tem gente que
fica. O pessoal que trabalha com segurança de dados tem que ficar vendo mais os
fóruns. Eu fico mais preocupado em identificar as tendências. Nesse sentido, eu
preciso freqüentar congressos e me informar através de revistas especializadas. Eu
169
tenho que saber o que está acontecendo porque como eu trabalho com muitas
tecnologias de ponta, eu preciso muitas vezes ficar discutindo com o pessoal da
Motorola. Então, eu preciso estar sabendo destas coisas para poder discutir. Isso agrega
conhecimento a mim, e agrega conhecimento para a empresa na hora em que a gente
vai discutir. Então eu não ligo muito para o fórum, porque é muito específico. Para os
que trabalham com segurança da informação, já é diferente, porque nos fóruns técnicos
é justamente aonde o pessoal descobre as falhas de sistema. Então o cara tem que estar
lendo as listas do Linux todo dia para saber se alguma coisa aconteceu em algum lugar,
um protocolo também quebrou, alguma coisa do tipo. Por isso o foco deles é um pouco
diferente. Já os técnicos da gente usam os fóruns para resolver problemas pontuais.”
E quanto tempo você trabalha em uma semana normal?
“Normalmente, 40 horas. A empresa sempre busca manter esse tempo. Não
necessariamente acontece o tempo todo.”
Você prefere trabalhar dentro da empresa ou chega a levar trabalho para casa?
“Não, eu não levo trabalho para casa nunca. Minha cabeça não deixa eu levar.”
O que é que tem na sua cabeça que não deixa você levar?
“Eu acho que não vale a pena. É difícil ficar trabalhando aqui e em casa ao invés de
dormir, no outro dia eu já acordaria mais cansado ainda. Então eu acho que isso é
improdutivo para mim, no final das contas.”
Então é uma questão de produção?
“Tanto em termos de produção como de qualidade de vida, também. Não quero chegar
em casa e ficar fazendo a mesma coisa que eu faço no trabalho. Não vale a pena.”
Sempre foi assim?
“Eu acho que o mestrado nem era tanto assim. Era muito mais difícil chegar em casa e
desligar. Você sempre quer ler mais alguma coisa, ver mais alguma coisa. Os horários
de mestrado são estranhos, tem hora que você pára de ter aula e fica só com a tese, e aí
qual o horário de fazer a tese? Para fazer a tese é todo o horário, né?”
170
Ainda mais porque você trabalha.
“Aí é pior ainda, porque o horário de fazer a tese é exatamente o horário em que você
está em casa, então é domingo, final de semana, feriado. E nos dias de semana eu estou
sempre trabalhando, então eram 24 horas pensando no mestrado. Tem dia que eu ia
trabalhar e não conseguia fazer nada, só conseguia começar a escrever alguma coisa às
10 horas da noite. Com trabalho é um pouco diferente, porque você tem suas
atividades claras, que precisam ser realizadas em um determinado horário. O que
acontece às vezes é que esse horário não dá, e você tem que alongar um pouco o
horário, mas eu alongo o horário aqui. Quando eu vou para casa, eu vou para casa.”
Você consegue desligar?
“Depende um pouco da época. Nos últimos dois meses, por exemplo, eu estou numa
pilha enorme. Tem projetos que estão com um estresse muito grande, muita coisa para
fazer. A gente está estourando todas as horas de trabalho durante a semana. Eu chego
em casa ligado ainda. Eu demoro muito para desligar, e até na hora de acordar eu já
acordo pensando nas coisas que eu tenho que fazer durante o dia.”
O que você faz para desligar? Tem alguma estratégia, um hobby?
“Não é bem um hobby, mas eu tento fazer exercícios, ir para academia malhar, em
geral eu consigo desligar um pouco. Isso ajuda bastante. E como eu tenho família em
João Pessoa eu vou para lá, visito meus pais, esse tipo de coisa. Consigo dar uma
desligada boa.”
A família é importante?
“É importante. Mas a minha família trabalha muito também. A minha forma de me
desligar é essa. Tem que ter alguma coisa de fora. Antigamente eu tinha mais, hoje eu
não consigo ter tanto. Antes eu trabalhava com uma comunidade religiosa, esse tipo de
coisa. Hoje eu não consigo mais fazer isso, até porque no trabalho tem muita viagem,
fica mais complicado.”
Até nos finais de semana, eventualmente?
“Sim, com certeza. Não que isso seja ruim, de certa forma é bom. Como eu estou
fazendo o que eu gosto, é sem problemas.”
171
Você assina alguma newsletter de outra área?
“No computador não. Em geral eu só uso o computador para coisas de trabalho
mesmo. Tanto que eu nem tenho computador em casa. Então eu faço outras coisas. Eu
leio livros, eu não pego em nada que tenha a ver com trabalho.”
Tem alguma área de leitura específica?
“Leitura religiosa, livros de filosofia, tudo o que tem a ver com História eu gosto
bastante. Eu não gosto muito de romance, eu acho meio babaca. Quando é romance
que tem a ver com essa parte histórica eu acho interessante. Mas leitura religiosa eu
gosto bastante mesmo. São leituras bem diferentes das que eu faço durante o trabalho.
“
Você faz alguma ligação da religião com o trabalho?
“Não. É mais um interesse pessoal mesmo.”
Te ajuda a quebrar essa ligação com a máquina?
“Ajuda muito. Ajuda até a colocar os pés no chão, a encarar a realidade. Porque o
trabalho da gente tem uma tendência a nos fazer achar que celular é importante. Você
trabalha a semana toda, às vezes final de semana, fazendo um programa para celular e
começa a pensar se isso realmente é importante. Se você não se distanciar um pouco
você pode se estressar sem necessidade. Porque na realidade é um trabalho só, não é a
minha vida. E é diferente até, em termos de importância, na minha opinião de, de se
construir uma ponte. Se a ponte cair vão morrer duzentas pessoas só naquele
momento. Na minha opinião, é diferente. O nível de responsabilidade é diferente. No
trabalho da gente, se tiver alguma coisa errada, o máximo que vai acontecer é o celular
quebrar na mão de alguém, o cara vai reclamar e vai querer o dinheiro de volta.
Essa é uma reflexão sobre o seu trabalho, bem perspectiva. Você
consegue fazer uma reflexão quase distanciada.
“É uma característica pessoal.”
172
As tuas leituras são responsável por refletir sobre a importância do
trabalho e sobre sua vida?
“A parte religiosa me ajuda. Mas é muito uma questão pessoal também. Minha esposa,
que é médica, não consegue desligar. Ela não consegue ler nada que seja outro tipo de
leitura. Todos os livros que têm lá em casa, que são dela, são sobre Medicina. Tudo o
que ela lê, tudo o que ela faz na vida tem a ver com Medicina. Eu já evito isso ao
máximo. Não quer dizer que eu não gosto do trabalho. Não seria mais feliz se estivesse
fazendo outra coisa, nunca. Eu tenho um ambiente de trabalho bom, a gente é pago
para fazer um trabalho interessante, divertido, isso é fundamental. Eu tenho
possibilidade de viajar, conhecer pessoas legais. Vale muito a pena, mas isso não é o
total da minha vida. É uma parte fundamental dela, mas eu tenho outras coisas
também. Se eu passo 10 horas do dia no meu trabalho, eu tenho que me sentir bem, né?
Você pretende fazer esse trabalho sempre?
“Eu não consigo pensar em parar de trabalhar.”
Mas você acha que vai continuar fazendo durante muito tempo?
“Eu gosto bastante, não tenho o que reclamar do trabalho não. Uma das dificuldades
que a gente tem aqui no mercado local é que você trabalha muito tempo e depois o
negócio estagna um pouco. Então a tendência é mudar para uma área gerencial,
administrativa, depois de um tempo.
É interessante fazer essa mudança?
“É, tem gente que nasceu para fazer isso. Eu não me vejo nunca como gerente,
trabalhando com dinheiro. Eu gosto de trabalhar produzindo as coisas, softwares, e
trabalhar com a parte técnica, com computador, discutir com as pessoas. Eu até poderia
ser um gerente, mas eu não seria um gerente feliz. Mas aqui não, eu acordo de manhã
todos os dias com vontade de trabalhar.
Como você trabalha com a possibilidade de que a tecnologia com a qual
você trabalha hoje se tornar obsoleta?
173
“Isso é um problema. Por isso a gente sempre tenta estar por dentro do que está
acontecendo, para ir pegando as tecnologias que estão chegando mais para frente. Não
necessariamente como um jogo de gato e rato, você pode estar fazendo isso e não
conseguir.”
Isso te incomoda muito?
“Eu penso sobre isso algumas vezes, mas no geral não. Mas eu tenho consciência de
que é um problema sério. Desde a época da graduação – a gente tinha um professor
que era horroroso, mas ele falou uma coisa de que eu nunca esqueci: “Desde que eu
comecei a trabalhar com informática, com computador, há 20 anos atrás em João
Pessoa, todos os melhores que tinham na minha época já mudaram de área”.
Isso é comum por aqui, pensar em mudança de área?
“Algumas pessoas sim. Mas não necessariamente para sair da área da computação, mas
mudar de uma área técnica para uma mais gerencial, administrativa, mas continuando a
trabalhar com informática.”
É medo do que?
“Algumas vezes o medo do obsoleto, em outras tem a questão do estresse, e às vezes
não conseguir acompanhar o cara que acabou de sair da faculdade, com o gás de sair
programando. Então eu não quero nem pensar no estresse que a gente tem passado. Eu
quero ficar sempre acompanhando o que está acontecendo de novo e continuar dando
conta do trabalho que eu estou fazendo agora. A minha sorte é que o trabalho ajuda.
Parece que é complicado, mas na realidade não é. Se você gostar do que está fazendo,
dá para seguir na boa. A gente está sempre trabalhando com coisas novas. Na verdade,
quando tem um projeto novo, é mais uma coisa de ponta que a gente está aprendendo.
Numa empresa mais restrita, na qual você fica sempre fazendo o mesmo tipo de coisa,
chega uma hora em que você fica ultrapassado. É comum que nesses casos, os
profissionais usem tecnologias que ninguém usa mais. Eles ficam anos fazendo só isso
na mesma empresa. Eles não conseguem mudar de empresa, por exemplo. Tem que
ficar usando o mesmo sistema, com a mesma tecnologia, na mesma empresa.
Até enquanto a empresa quiser continuar com ele.
174
“Se ele for demitido, vai ter uma enorme dificuldade de conseguir emprego em outro
lugar. Mesmo que ele tenha experiência e seja muito competente, mas ficava só
naquela mesma linha. Quando a empresa tem clientes muito diferentes, com projetos
totalmente diferentes, evita-se ficar desatualizado. Eu posso fazer um projeto agora e
daqui a três meses entrar em outro que não tem nada a ver com o primeiro. A gente
fica calejado, fazendo coisas às quais a gente não está acostumado. Imagina você
jornalista, sempre cobrindo informática e de repente tem que fazer medicina, tem que
mudar tudo. A gente passa por isso direto. Neste ano, eu já passei por isso pela terceira
vez. Já usei três tipos de tecnologia diferentes. Mas se você gosta, é uma coisa
desafiadora. Você tem que mudar de área, com clientes novos, demandas novas,
tecnologias novas, problemas novos. Você tem que correr atrás.
Tem que se adaptar rápido?
“Tem que se adaptar rápido. E tem que ter um certo nível de cara de pau para aceitar as
loucuras que o pessoal manda a gente fazer.”
175
Celso - Desenvolvedor
Você tem uma noção clara de quanto tempo você trabalha durante a semana?
“Por volta de oito horas, diariamente.”
Quanto tempo esse trabalho é realizado na empresa, quanto tempo
acontece em casa ou em outro ambiente?
“Só na empresa, uma média de oito horas, de trabalho mesmo. Se contar os dias em
que eu estiver estudando ou fazendo alguma coisa com o trabalho, acho que chega a
umas 12 horas.”
Você tem uma idéia de quanto tempo aqui, quanto tempo em casa, ou em
outro ambiente?
“Seis horas, definitivamente, no escritório.”
E o que você prefere? Trabalhar na empresa ou em casa?
“Eu não sei se isso é muito aplicado à gente, porque nesse setor se tem muita
liberdade. Normalmente eu hajo de acordo com a demanda. Se eu tiver algum
compromisso com a empresa e estiver chovendo, tanto faz trabalhar aqui como ficar
em casa. E aí como conectividade hoje em dia é uma coisa barata, é rápida e funciona,
então eu posso trabalhar em casa. Mas quando eu tenho reunião ou algum
compromisso coletivo, tenho que vir até a empresa.
E quais os tipos de fóruns de discussão, newsletters você usa para atualizar suas
informações durante o dia? Ou você não usa?
“Eu assino três revistas de Informática, fora alguns sites da área de segurança.”
E a freqüência de verificação das listas durante o dia, seria de quanto? É
toda vez que você olha o seu e-mail?
“É. Porque acontece o seguinte: você cria dentro do seu e-mail um dispositivo para
direcionar as mensagens de acordo com o conteúdo das listas. Você automaticamente
checa logo uma coisa que é relacionada às suas demandas. Faz parte do processo. É
complicado você gerenciar muito essa questão da produção de TI com a vida de quem
176
gosta de tecnologia, porque o trabalho de TI não é muito claro. Você não tem ainda
papéis claros. Normalmente o pessoal dessa área – e isso deve ser verdade até 2010 –
são pessoas que se interessaram por tecnologia independente da existência da
profissão.
E o efeito da verificação destes e-mails, é efetivo no trabalho, você utiliza
todas as informações que você pega na lista, ou o efeito é mais
psicológico?
“O efeito não é psicológico não. Existem dois lados. Tem um lado pessoal e um lado
profissional. Muita gente gosta de receber e-mails porque aquilo faz parte da vida da
pessoa, é comunicação. Sente falta, e está o dia todo esperando uma novidade ou coisa
parecida. No nosso caso, a gente trabalha com tecnologia de ponta e velocidade. Então
às vezes sai uma vulnerabilidade de um programa ou de um software, você precisa
estar acompanhando isso imediatamente. Então, não é psicológico. É uma realidade
porque você precisa ter acesso às informações o mais rápido possível. Porque quando a
revista sai, a informação dela já está ultrapassada. Então, no meu caso, eu trabalho com
uma tecnologia onde eu necessito saber de uma mudança do quadro no momento em
que ela ocorre. É como um médico de UTI, que é diferente de um médico que está
atendendo na emergência. O médico da UTI está monitorando os instrumentos do
paciente e, se houver uma mudança, ele precisa daquela informação para agir rápido.
Esta seria uma analogia interessante. No nosso caso, a checagem destas pistas funciona
quase como o trabalho de um médico da UTI. Ele pode até dormir, mas se o alarme
toca, se um instrumento dispara alguma coisa, é essencial uma tomada de decisão
rápida para que o estado do paciente não fique complicado.”
Você trabalha com mercado de todo tipo, com várias pessoas, ou prestando
atendimento a algum cliente. Tem essa verificação constante das listas, que é
extremamente necessária. Essa infra-estrutura ao seu redor, que permite você
realizar o seu trabalho, permite também ou desperta em você uma reflexão sobre
o seu trabalho? Ela te ajuda a ter informações sobre outras coisas não
relacionadas diretamente com o seu trabalho?
“Isso é uma barreira para as empresas enfrentarem. Tem algumas empresas aqui no
Porto Digital em que a Internet é bloqueada. Porque as pessoas têm que decidir entre
177
estar pesquisando uma informação consciente ou inconsciente. Eu me disperso e isso
vai influir na minha produção no local de trabalho. Aqui a gente tem um lado pessoal e
um lado profissional coexistindo. Então você tem que ter disciplina para desligar. Eu
praticamente passo 24 horas on-line, porque eu tenho Internet aqui em casa ligada a
noite toda, e quando eu chego aqui também. Sempre que eu estou em um ambiente que
não tem conectividade, como num barzinho, ou um canto parecido, sempre tem o
celular. Então eu posso considerar que eu estou 24 horas conectado. As informações
todas lhe alcançam de todo jeito. Isso faz com que você dilate mais o que você pode
chamar tempo de trabalho. Quando eu digo 12 horas de trabalho, normalmente são de
seis a oito horas oficiais de trabalho e você chega a ter quase 50% disso com uma
quantidade de informação que contribui de maneira secundária para o seu trabalho e
uma que não contribui para ele de maneira nenhuma.”
Em que medida essa estrutura em que você está imerso te ajuda a refletir
sobre o trabalho?
“Hoje eu já me acostumei tanto a isso que eu não consigo trabalhar sem esta estrutura.
Eu não consigo viver, chega a ser até um pouco de vício. Por exemplo, eu sempre
gostei muito de jogar. Quando eu comecei a jogar, com nove anos de idade não existia
nada sobre Internet, nada sobre entretenimento digital que existe hoje. E eu gostei
daquilo. E hoje eu não me vejo jogando nada que não seja on-line. Quando eu estou
num lugar que não tem Internet, num computador que não tem a infra-estrutura que eu
tenho no trabalho ou em casa, eu me sinto estranho. Isso me provoca uma percepção de
o quanto eu estou vivendo num mundo e que a conexão em tempo integral ainda não é
o natural das pessoas. Se eu estou trabalhando com Informática onde não tenha essa
estrutura isso me deixa mal.”
O natural, então, seria estar conectado?
“Eu acho. É uma tendência que eu sigo, que hoje é a minha realidade.“
O natural seria também estar conectado mesmo quando não se está trabalhando?
“Pra mim não é possível não estar conectado. Isso não tem um cunho de escravidão,
embora eu tenha até um pouco de vício, de necessidade. É necessidade da sensação de
controle. Você tem a sensação de controle, você tem a idéia de que você pode
178
pesquisar qualquer informação quando você precisar, acessar pessoas quando você
precisar, e isso dá segurança. Talvez o próximo passo para isso seja o celular ficar 24
horas conectado, você não ter que ligar, vai ficar tudo on-line como um ICQ, ou MSN
(programas de comunicação instantânea). E naquele ponto você vai poder ter acesso a
qualquer coisa que você precise ou queira. Isso dá segurança no trabalho, é um
diferencial. Se eu precisar de alguma coisa agora eu sei que eu posso procurar e
pesquisar e encontrar.”
Essa segurança no trabalho também te dá segurança no restante da tua vida?
“Sim. Esse é o ponto. Porque o mesmo modus operandi que eu tenho no trabalho é o
que eu tenho na minha vida. A maneira com que eu faço as coisas ou a tecnologia que
eu utilizo para trabalhar é a mesma que eu utilizo para não trabalhar. Até por uma
questão acadêmica, das pessoas que se formam em Ciências da Computação, que é
meio-filósofo, meio-homem, meio-máquina. Você acaba considerando isso como a sua
maneira de viver: se eu for fazer pesquisa, se eu for estudar, se eu for agir, se eu for
pintar, eu devo consultar a Internet para ver qual é a melhor técnica, quais são as
melhores tintas, as melhores telas. E isso é para lazer, é para tudo. Se eu vou trabalhar
e vou ter que descobrir como usar o programa X, eu vou fazer o mesmo tipo roteiro, é
a mesma estrutura. Não que você não viva sem, mas é que sem usar a Internet, surge
um desconforto muito grande. Demoraria muito até eu me acostumar de novo a não ter
essa sensação de poder, de que está tudo sob controle.
Você recebe outras listas, newsletters sobre esportes?
“Sobre esportes? Várias. De vôlei, pára-quedismo.”
Você pratica?
“Sim.“
E cultura?
“Sim. Eu gosto muito de cultura japonesa, de mangá, anime, culinária japonesa.”
179
Você cozinha?
“Sim. Eu gosto de cozinhar por arte, não é hobby. Atingir um certo sabor, conseguir
um tempero diferente, combinar sabores. É interessante, mas não é hobby. É uma
experiência: não é nem hobby, nem é cozinhar só para se alimentar.”
Tem um aspecto de desafio também?
“Sim. Eu penso que tem esse componente de desafio, porque sempre que você sempre
vai fazer alguma coisa que poderia ter sido melhor acabada em todas as áreas. Então,
normalmente se você vai comprar um aparelho, vai querer fazer uma comida ou vai
querer realizar qualquer coisa, a tendência é encarar aquilo como um desafio - procurar
tomar a melhor decisão ou fazer o melhor possível. Qualquer pessoa normal iria
pensar: ‘sashimi de salmão é o que? Pega um filé de peixe, corta e pronto’. Só que não
é. A primeira idéia é que é simples. Aí você vai pesquisar, e vai descobrir que,
primeiro, não é qualquer salmão, não é qualquer faca, não se corta de qualquer jeito.
Eu já descobri que mulher não faz sashimi, tem que ser o homem. Você vai começar a
pesquisar sobre a cultura e acaba combinando informações. Quando você vai
descobrir, já entendeu como é a origem do prato, a cultura e aí você começa a procurar
aquela visão mais holística, mais global.
Por que a associação com arte?
“Porque você começa a entender porque alguém está combinando aquilo com aquele
determinado sabor, ou a maneira como ele preparou o prato para que você possa
agradar todos os seus sentidos. Olfato, paladar, visual, auditivo. E aí você começa a
entender a arte que existe nesta distribuição dos alimentos e no equilíbrio nas cores. O
chef colocou um matinho ali do lado, cortou um tomate, para desenhar aquilo ali. Só
que ela está combinando as cores do prato para que aquilo agrade a um sentido seu,
que é a visão. Ninguém se alimenta porque está olhando alguma coisa. Mas aquilo vai
proporcionar uma experiência e isso já começa a ser arte. Você começa a entender a
culinária como arte. Você passa a perceber que isso é arte. Buscar novos sabores,
tentar um novo equilíbrio, para fazer a mesma coisa – que é se alimentar, mas de
maneira diferente. E com esse tipo de coisa você começa a entender sozinho.
180
Os saltos de pára-quedas, algum mergulho que você dá, a prática de cozinhas te
ajudam no afastamento do contexto do trabalho?
“Sim. Você encontra seus amigos, as pessoas que estão ali têm diversas origens do seu
trabalho social, cultural, praticam esportes. E aquilo faz com que você tenha uma outra
visão. Você é obrigado, se coloca em outra posição e você passa a discernir tudo aquilo
que você faz de maneira totalmente diferente. De uma ótica de pessoas que não estão
ali porque estão valorizando o seu trabalho.”
Você sente liberdade para pesquisar sobre muitos assuntos no horário de
trabalho?
“Sim. É uma liberdade que o trabalho da gente dá. Eu posso agora passar duas horas
sem fazer nada. Mas eu tenho que produzir, eu tenho prazos, deadline. Mas se hoje eu
quiser chegar ao meio-dia e sair às oito da noite, não tem problema. Isso vai ser uma
tendência, uma verdade mundial para todas as profissões contemporâneas de serviços.
Isso porque você começa a ter um equilíbrio de cultura entre as pessoas. Antigamente
havia um abismo muito grande entre o chefe e empregado. Há hoje um estilo de vida
ligado ao trabalho que não é mais o aquele de há 30 anos. Hoje esta mudança foi
brutal.
181
Paulo - Desenvolvedor
Quais suas atribuições na fábrica de software?
“Sou engenheiro de software e desenvolvo aqui um sistema na área de micro-finanças
e microcrédito.”
Como é que você chegou aqui? Você estuda ainda?
“Estou me graduando na Universidade Católica, já passei pela Finacap e pelo Ipespe
também.”
Em que constitui a sua atividade?
“Minha atividade é desenvolver elementos lógicos necessários ao funcionamento do
sistema e fazer levantamento de que instruções lógicas o programa vai necessitar.”
Há quanto tempo você trabalha nessa fábrica de software?
“Desde novembro de 2003.”
E como você faz para distribuir o tempo para as atividades dedicadas ao teu
trabalho e as atividades ligadas ao lazer?
“Meu lazer é mais no final de semana, ir para um cinema, sair com amigos, viajar.”
Você tem alguma regra, tipo de só trabalhar oito horas?
“Meu trabalho aqui é de oito horas, só que é claro que, como eu gosto da área e tenho
interesse, às vezes levo trabalho para casa e acabo misturando um pouco. Mas é
também uma questão de prazer, você quer conhecer as novidades, as tecnologias mais
novas. É uma questão de interesse, e também acabo sempre puxando um pouco para a
faculdade, que também está dentro do meu trabalho.”
Como você faz para atualizar seus conhecimentos, você participa de fóruns de
discussão, assina newsletters?
“Acho que na área de informática todo mundo assina alguma coisa. Mas a maioria das
coisas que recebo, não presto muita atenção. Eu leio somente os tópicos e se não me
interessam, eu vou logo apagando.”
182
Você tem idéia de quantas newsletter recebe diariamente?
“Acho que entre 10 e 20. Tem as newsletters e os grupos de discussão. Eu participo de
uns dois ou três grupos. Tem um deles em que eu presto muita atenção.”
E sobre o que?
“Sobre uma nova tecnologia chamada ‘structure’. Permite que você desenvolva
projetos dentro da web.”
É nova essa tecnologia?
“Tem uns dois anos e já está sendo muito usada.”
Com que freqüência durante o dia você costuma dar uma olhada nesses grupos de
discussão ou abre o e-mail para ler as newsletters?“Pela manhã gasto uns 10 ou 15
minutos lendo os tópicos. “
Se você não fizer isso, o que acontece? Se você chegar um pouco atrasado,
esquecer, faz falta?
“De qualquer jeito vai estar lá no meu e-mail e eu vou ver depois. Mas dizer que vai
fazer falta, vai atrapalhar minha vida, não.”
Nem atrapalha o que você vai fazer durante o dia?
“Não.”
E por que você assina 10?
“Às vezes você entra num site para assistir a uma entrevista on-line, aí
automaticamente é cadastrado. Mas não necessariamente todas que recebo são
importantes.”
Tem a questão também de você não conseguir acompanhar porque não tem
tempo?
“Acho que é muita informação. Sites na internet, televisão, jornal. Você não tem como
acompanhar tudo. Independente de trabalhar com informática ou não, mas quem
183
trabalha com internet normalmente está sobrecarregado de informações. Se você não
selecionar, você acaba não fazendo nada na sua vida.”
E que critérios você usa para selecionar o que é interessante para o teu trabalho,
o que é legal para tua informação?
“Tem que ver o que é interessante de lazer, o que interessa para o trabalho, para a
faculdade, tem coisas que você separa para enviar para alguém. No meu caso eu gosto
de cinema, de viajar, então tudo que eu pego de e-mail de viagem eu separo. Se eu
trabalho com a tecnologia Java e sai alguma coisa eu separo. Se eu tiver um tempinho
eu vou lá e leio.”
Depende dos seus interesses?
“Do meu interesse pessoal, interesse para o trabalho.”
O que é interessante para o seu trabalho, você separa. Mas tem outro critério,
mais ligado à cultura, que te leve a separar uma informação ou outra?
“Busco informações para o meu lazer e meu trabalho. No lazer, dou prioridade a
viagens e cinema para buscar informações. Também procuro informações para a minha
namorada, que trabalha com biologia.”
Tem algum tipo de cinema que você gosta mais, algum tipo de filme que você
prefere?
“O que eu não gosto é de filme de terror. O resto eu vejo tudo, seja no cinema ou
pegando em locadora.”
Você tem alguma outra atividade?
“Eu quero voltar a fazer musculação, que eu parei. Mas quero ver se volto agora, no
máximo em janeiro, que é quando eu vou estar saindo da universidade. Aí eu vou ter
mais tempo livre para mim.”
Você, como outros profissionais de TI, funciona muito à base de pressão, pela
questão de tempo, dos prazos para entregar determinado módulo de um projeto
184
etc. Como é que isso funciona, como você lida com isso? Mexe com a cabeça?
Você tem que levar trabalho para casa?
“Mexe com a cabeça por causa da pressão, os trabalhos têm que estar prontos no prazo.
É agüentar a pressão e fazer a sua parte. Normalmente eu não levo para casa, fico mais
tempo aqui.”
Como é que você vê seu futuro nessa profissão? Tem alguma expectativa de fazer
pós-graduação? O que você faz hoje vai mudar?
“Eu penso muito sobre isso. Todo mundo quer crescer. Tem a questão do emprego no
Exterior. Tenho um amigo que está indo trabalhar fora. Mexe com a cabeça, é uma
oportunidade.”
Nessa quantidade enorme de informação que você tem à sua disposição, tem
muita informação técnica, necessária para o teu trabalho? Ou tem mais
informação geral – cinema, política, noticiário?
“Eu diria que de 50% e 70% é lixo, vai direto para a lata do lixo.”
E como é que você consegue identificar e destacar?
“Eu vou direto no título. Se o título me pegar, eu vou ler a matéria.”
Isso vale para o geral, para as newsletters?
“Vale para qualquer coisa. Eu vou pelo título, pela primeira impressão.”
Já aconteceu de você gostar de um título, ir lendo e depois ver que não serve?
“Às vezes acontece. Quando eu vejo que não serve para mim, mando pro lixo. Nem
toda newsletter tem um subtítulo. Você tem que clicar no link para poder ver o
conteúdo.”
Como é que você identifica que aquela informação é lixo?
“Acho que é uma questão de experiência. Você está lá mexendo todo dia e acaba se
acostumando.”
Você acompanha o noticiário nacional?
185
“Acompanho. Leio revistas toda semana e assisto ao Jornal Nacional, quase todo dia.”
Você acompanha o noticiário pela internet?
“Não, acompanho mais pela revista Veja.”
E no dia-a-dia? “No dia-a-dia eu pego mais informação sobre o meu lazer e trabalho. Mas no
conhecimento geral é a revista Veja.”
186
Jorge - Desenvolvedor
Qual a sua formação, há quanto tempo você trabalha nessa fábrica de software?
“Eu me formei em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Campina
Grande, terminei o curso em maio e em junho de 2004 vim aqui para o C.E.S.A.R e faz
pouco mais de três meses que eu estou aqui. Tem esse projeto novo da Motorola
(desenvolvimento de software para celulares), estão contratando muita gente da área,
então eu vim e estou trabalhando aqui agora há mais de três meses.”
A tua formação é em Ciência da Computação?
“Sou engenheiro de software.”
Como você faz para separar as suas atividades de trabalho, atividades ligadas a
hobby, atividades que não são trabalho? Você define horários, costuma levar
trabalho para casa?
“Não , eu não costumo levar trabalho para casa, fiz isso durante muito tempo durante a
graduação, porque o curso era muito puxado, então a gente ficava o tempo todo
trabalhando. Agora aqui eu procuro trabalhar as minhas oito horas diárias no Cesar e
encerrado esse tempo aí eu passo a me dedicar ao meu lazer.”
Quantas horas mais ou menos você trabalha por semana?
“Quarenta horas semanais.”
Mas isso é certinho ou extrapola?
“Raramente extrapola. Apenas quando ocorre uma necessidade do projeto é que eu
tenho que fazer alguma hora extra, alguma coisa desse tipo. Mas no mais é isso
mesmo.”
Quando extrapola você prefere levar o trabalho para casa ou prefere estender
mais aqui?
“Geralmente eu estendo mais aqui. Porque geralmente quando o trabalho extrapola
assim envolve também outras pessoas, então a gente tem que trabalhar aqui. Como eu
me mudei há pouco tempo, eu ainda não tenho computador...”
187
Você está morando aqui no Recife?
“Estou morando no Recife desde que eu vim trabalhar no Cesar, aí não trouxe
computador ainda, por isso não dá muito certo levar trabalho pra casa não.”
Você trabalha integralmente conectado, todo o tempo que você está trabalhando
está conectado?
“Isso.”
Eu imagino que você faça atualização de conhecimento, dê uma verificada em
newsletters... Você assina newslewtters, fóruns de discussão?
“Participo de alguns fóruns e newsletters.”
Quantos?
“Fóruns, assim, eu consulto eventualmente, com as necessidades. Agora newsletter eu
acho que assino umas três relacionadas com Java, com a tecnologia do programa.“
E a freqüência de verificação é muito grande durante um dia normal de
trabalho?
“Não. Digamos que cada uma delas eu veja uma vez por semana, mais ou menos.”
Você verifica uma vez por semana?
“Isso. Dessas newsletters eu recebo um e-mail semanal”.
E existe muita pressão para você atualizar conhecimento e aplicar no trabalho?
“Existe. Eu mesmo tenho esse objetivo de estar sempre atualizando o meu
conhecimento. Então eu gosto de estudar, sempre gostei muito de estudar, e eu estudo
tecnologia fora do trabalho e no próprio trabalho, se eu tenho demanda de aplicar, eu
estou estudando.”
Como você se atualiza? Revista, Internet?
188
“Internet, basicamente materiais na Internet. Eu procuro tutoriais e procuro praticar
tudo aquilo que eu estou vendo para absorver melhor o conhecimento.”
É muita informação, não é? Como você faz para administrar, para saber o que é
mais relevante?
“Eu acho que a idéia principal é focar em algo que você quer estudar e em todo o
material disponível, que é grande, ver o que se enquadra melhor com aquilo que você
quer, com aquilo que você está usando na hora, com seu objetivo do estudo. Assim
como tem muito material, tem muito material de boa qualidade e muito material que
não tem qualidade.”
E como você faz pra separar?
“Dou uma olhada rápida, procuro dar uma olhada rápida, geral no material. E aí já dá
pra fazer alguma coisa. E tem agora umas revistas boas na área também, de uma ano
pra cá, voltadas para Java, que é a área que eu gosto de trabalhar, que a Java Magazine
e o Mundo Java, que são brasileiras e têm reportagens muito boas. Algumas
tecnologias dessa área, eu dou uma lida nessas matérias, acho legais, e elas muitas
vezes elas têm referências para outros sites, e eu procuro estudar por eles. Listas de
discussões também, às vezes o pessoal sugere materiais sobre determinados assuntos e
costumam classificar – “esse material aqui é bom” – então a gente corre atrás desse
tipo de coisa também.”
Em termos de relevância, às vezes você vê que não tem toda essa relevância, não é
tão importante assim... Como você faz para saber se é interessante aquele tipo de
informação? O senso crítico mesmo?
“O senso crítico com certeza ajuda bastante nisso aí, mas a gente procura referências,
de onde está baseada aquela informação, às vezes até a quantidade de lugares que estão
falando sobre aquilo importa. Mas no final das contas, não essa parte relacionada a
material de estudo sobre tecnologia, mas tudo que é notícia que circula pela Internet
sempre deixa aquela dúvida se aquela informação é verdadeira ou se é apenas mais
uma das brincadeiras da internet.”
189
Além desses fóruns e grupos de discussão da área técnica, você participa de algum
outro fórum de discussão, alguma outra newsletter sobre algum tipo de atividade
que te interessa?
“Geralmente eu trabalho nessas listas assim apenas como consumidor, eu gosto muito
de ler as informações que tem lá. Acho que tem umas duas listas de discussão que eu
escrevo mais, que são do Java Users Group. Tem uma aqui no Recife e tem outra lá na
cidade onde eu morava, Campina Grande. Aí a gente troca e-mails, o pessoal manda e-
mail com dúvidas, e eu gosto de responder.”
Além desse tipo de newsletters, fóruns de discussão, tem alguma outra newsletter
em outra área que te interessa também, que você participe?
“Não, eu não participo de nenhuma não.”
O fato de você estar o tempo todo conectado pela Internet com outras pessoas,
outras instituições, ao mesmo tempo que ajuda a realizar o teu trabalho, eu
imagino que às vezes também dificulta você saber o que está rolando no mundo...
Ou não? Isso acontece contigo por conta da quantidade de informação que chega
para você? Para se informar, para conseguir se manter atualizado sobre as
informações do mundo, isso acontece contigo?
“Em relação ao trabalho, especificamente, a gente está o tempo todo conectado por
necessidade, às vezes precisa de alguma coisa e entra na rede, então a gente vai atrás
disso, a informação não chega. Mas no meu tempo livre eu uso bastante a Internet
também, e aí sim, quando eu vou olhar os meus e-mails e que chegam muitas coisas
das newsletters que eu participo, e chega muita informação, e muitas vezes eu não dou
conta de ver toda aquela informação e simplesmente eu vou deixando pra lá pra ver se
algum dia eu vejo aquilo tudo.”
Você consegue ter alguma reflexão sobre o seu trabalho? Porque eu imagino que
seja muita informação que você tem que administrar, absorver, deixar pra lá...
“É complicado lidar com isso, mas a Computação, além de ter muita informação, é um
mercado que está se expandindo ainda e tem muita gente interessada nisso. Então do
mesmo jeito que tem muita informação tem muito mais gente atrás dessa informação
também, e acaba que vai disseminando o conhecimento e um olha uma coisa aqui, o
190
outro lê outra coisa ali, e depois troca experiência um com o outro, vai um passando
pro outro. Mas ao mesmo tempo em que chega mais gente também vai gerando mais
informações. Mas eu nunca parei para fazer uma reflexão assim, para onde isso vão
levar, essa quantidade de informação.”
Você diria que seu trabalho é sua vida?
“É, o que eu gosto de fazer é isso, então é a minha vida, é o que eu tenho como
perspectiva para o meu futuro.”
Você pretende fazer isso para o resto da vida?
“Não necessariamente trabalhando do mesmo jeito, como programador, mas sempre
nessa área de computação.”
Já te passou pela cabeça mudar desse trabalho direto com a máquina, com
códigos, para uma perspectiva mais de gerenciamento talvez?
“Já sim, passou.”
Você acabou de se formar, não é?
“Exato, mas já passou (pela minha cabeça) trabalhar com gerenciamento, só que eu
não tenho tanta facilidade de trabalhar com outras pessoas. Eu gosto de trabalhar em
grupo, mas não no sentido de gerenciar. Mas existem várias outras possibilidades de
trabalho nessa área, ainda com a máquina mas não necessariamente só com código,
com programação. Trabalho com redes, eu gosto. No fundo ainda vai ter um pouco de
programação, mas eu gosto de redes, de arquitetura de sistemas, que eu não preciso
necessariamente estar codificando, eu posso fazer o design de um sistema, o que eu
acho interessante.”
Você tem alguma atividade cultural ligada à música ou outra coisa?
“Eu gosto muito de música mas como ouvinte. Eu já tentei algumas vezes tocar alguns
instrumentos, mas eu não tenho muito talento para isso não. Mas eu gosto muito de
música, gosto muito de filmes... as atividades culturais que eu participo são filmes,
shows...”
191
Você já se ambientou no Recife? O Recife é um pólo cultural bem intenso...
“Eu estou conhecendo aos poucos, estou procurando sair, conhecer gente nova, lugares
novos, e estou me acostumando, conhecendo aos poucos.”
192
Davi - Desenvolvedor
Qual é a sua profissão?
“Minha formação é Ciência da Computação, sou formado desde o ano passado.
Quando eu entrei na fábrica de software que trabalho agora, era nem formado ainda.
Me formei trabalhando aqui. E aqui eu trabalho com infra-estrutura e desenvolvimento.
Eu estou alocado no Projeto Simbiose em que eu faço desenvolvimento de software e
planejamento..
Como é que você faz, ou que instrumentos ou procedimentos você utiliza para
separar o que é trabalho e o que não é trabalho, as tuas atividades na vida da
empresa e aquilo que você não considera trabalho?
“Eu separo bem esse tipo de coisa, separo por meio de disciplina mesmo, não tenho
nenhum instrumento em particular não. Sei o que o trabalho e sei o que é que eu não
devo considerar trabalho.”
Você sempre soube diferenciar?
“Sim, sempre soube.”
E o que é que faz diferenciar o que é trabalho e o que não é trabalho?
“Eu acredito que o próprio estar no lugar de trabalho e o não estar já dá uma
diferenciação: a localidade.”
Significa dizer que você não leva trabalho para casa?
“Às vezes eu tenho que levar, mas eu tento não levar, tento me disciplinar para não
levar.”
E a questão do prazer, também tem a ver com o que é trabalho e o que não é
trabalho?
“Eu tenho prazer trabalhando aqui, senão eu não estaria trabalhando. Mas precisa
diferenciar bem do que é o prazer relacionado ao trabalho e prazer relacionado à
atividade extra que eu estiver fazendo.”
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São prazeres diferentes?
“É, completamente diferentes.”
E o fato de você trabalhar o dia todo conectado, ou MSN, ou pegando
informações na Internet, ou eventualmente trabalhando em conjunto com um
grupo de pessoas? A quantidade de informações técnicas a que você é submetido é
bem grande.
“Essa coisa que você falou aí do MSN, eu tenho uma coisa de ficar bastante. E aí é a
questão de separação de trabalho e diversão. Eu tenho um MSN no trabalho e tenho
um MSN que eu uso em casa. Contas de MSN diferentes.
A sua conta do MSN do trabalho está mais cheia do que a do não trabalho?
“Está, está mais cheia.”
Você consegue lidar bem com essa quantidade de informação que chega para
você?
“Eu nunca tive problema em lidar com a quantidade de informação. Você deve separar,
classificar que tipo de informação é e se ele é importante ou não naquele momento.”
Essa situação envolve também confiabilidade da informação?
“Envolve vários fatores, não só confiabilidade. Envolve qual a relevância daquela
informação naquele momento. Se ela não tem relevância naquele momento, eu não vou
ler ela agora, eu não vou trabalhar come ela agora. Se é uma informação que, por
exemplo, tem que ser gerida e entregue logo, como resultado, aí eu vou ter que pegar
ela com mais prioridade.”
E a confiabilidade entra também? Do ponto de vista técnico, se por exemplo você
precisa fazer a atualização de uma informação para resolver um bug, ou para
resolver uma ocasionalidade qualquer, você busca numa lista de discussão, ou em
algum tutorial disponível e tal?
“Normalmente, quando isso acontece, eu procuro buscar mais fontes de informação
para solucionar o problema.”
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E aí é o cruzamento disso que dirime as dúvidas?
“É, quando eu tenho alguma dúvida sobre a confiabilidade de alguma coisa eu tento
ver se tem várias fontes falando sobre isso.”
E isso é comum?
“Não, eu quase nunca tenho dúvidas... se alguém coloca alguma coisa no fórum e eu
acho que é relevante, eu acho que é por ali mesmo que ela tem que ir, então eu sequer
procuro mais fontes.”
Você assina fóruns de discussão na Internet?
“Não, normalmente eu procuro na Internet, em algum sistema de busca.”
E é muito comum isso acontecer em um dia?
“É muito comum.”
Quantas vezes por dia?
“Procurar por informação? Acho que de cinco a oito vezes por dia, até dez.”
E entre essas cinco a dez, costuma haver problemas de confiabilidade nessas
informações?
“Não, eu nunca tive problemas. Não é muito comum não esse problema com
confiabilidade.”
Existe algum tipo de ferramenta como fórum ou newsletter que não tenha
necessariamente a ver com o seu trabalho mas com a qual você está envolvido,
você assina também? Alguma coisa que tenha a ver com cultura, por exemplo?
“Fórum que eu assino e que não esteja relacionado com o meu trabalho... Por exemplo
não sei se você já ouviu falar em RPG. Tem fóruns que eu assino sobre RPG e que não
têm a ver com o meu trabalho, e de vez em quando eu leio aqui.”
Você se importa com a informação sobre a política? Quais são as fontes que você
consulta?
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“Normalmente eu vejo a Folha Online, vejo algumas coisas no UOL, estou tentando
ver informações naquele jornal, Valor Econômico que tem na Internet também, mas
tem que fazer um cadastro lá. Fora trabalho, eu também sou interessado na área de
Economia e Política.”
E Cultura?
“Cultura não, não costumo consultar nada na área de Cultura não.”
A maior parte dos teus amigos não é da área?
“A maior parte dos meus amigos é da área de Design. Tem muitos na área de
Tecnologia também. Por exemplo, a minha namorada é de Design.”
Como é que eles interferem no teu relacionamento com o trabalho? Como você
acha que a presença deles na sua vida faz você ver essa diferença?
“O tipo de ambiente é diferente, o tipo de conversa também... O comportamento é
totalmente diferente, você fica mais à vontade com os seus amigos do que aqui. Aqui
você tem que se comportar de uma forma mais formal. Se eu fosse sair com alguém
daqui do trabalho eu não iria beber bastante, eu iria moderar mais. Com meus amigos,
a gente vai para a casa de um e acaba apagando lá. É bastante diferente, o
comportamento muda bastante.”
Algumas pessoas tentam identificar fora do trabalho coisas com as quais elas têm
mais proximidade, meio que com o fim de se afastar da máquina. Isso acontece
com você também?”
“Acontece. Eu estou meio sem conseguir fazer isso porque eu estou trabalhando
bastante. Mas eu gosto muito de sair, por exemplo, sábado praticamente eu não estou
em casa. Eu gosto muito de artes marciais, eu fazia Aikido, só que quando eu comecei
a trabalhar bastante – eu estou dando aulas também – eu estou sem a possibilidade de
voltar a fazer. “
Você fez Aikido por quanto tempo?
“Fiz um ano e meio. Eu tentei fazer outras artes marciais também e não deu certo, era
fora do meu horário. Mas é uma coisa que eu gostaria muito de voltar a fazer.”
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Qual é a relação disso com o trabalho? É uma coisa que serve para se afastar,
desligar do trabalho?
“É uma coisa que naquele momento eu me desligo totalmente, até de Computação, que
eu gosto muito. Mas eu me desligo totalmente. É como se eu voltasse ao século
passado. Eu me sinto assim quando eu faço artes marciais.”
Fala um pouquinho mais disso... É como se fosse uma oposição à máquina?
“É como se a vida fosse mais simples. Antigamente as pessoas não tinham essa
correria de informações, de saber várias coisas o mais rápido possível.”
É como se você praticamente estivesse experimentando um ambiente diferente?
“É como se eu estivesse me desligando desse mundo.”
E isso é dentro de um tempo, de uma temporalidade diferente? É mais ou menos
isso?
“É, eu sinto assim. Quando a gente vê as pessoas praticando artes marciais... elas
praticam artes marciais dessa mesma forma há séculos. A forma é mais ou menos a
mesma, mudam por exemplo alguns estilos, mas a forma é a mesma. Você se sente
como se você estivesse naquela época ainda, praticando naquela época ainda.”
Há quanto tempo você não está conseguindo praticar?
“Acho que vai fazer um ano. Eu já tentei voltar algumas vezes mas não consegui. Por
exemplo, no meio do ano passado eu tentei voltar, só que pela falta de tempo eu
começava a faltar as aulas e terminava me desligando.”
A prática do Aikido ela interfere de alguma forma na sua forma de ver o mundo e
ver as pessoas?
“Acho que interfere.”
Como?
“É difícil dizer, porque como toda arte marcial toca tanto no corpo quanto na mente.
Sempre passa os ensinamentos na forma de movimentos e também na forma de lições
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que ele viu na vida. E ele diz que na prática do Aikido a pessoa vai se aprimorando
tanto fisicamente quanto mentalmente, vai se tornando uma pessoa mais completa,
talvez.”
Mais simples?
“Mais simples. Não sei se mais simples, mas mais sábia. Quando você vê a
personalidade do meu professor... ele é uma pessoa que, segundo me contaram a
história dele, ele já foi autônomo do Porto, já foi alcoólatra, e hoje em dia é uma
pessoa totalmente zen, não se estressa com nada, procura não fazer confusão com
outras pessoas.”
Embora seja um cara que provavelmente saiba se defender muito bem...
“É, embora saiba se defender muito bem. Mas ele sempre diz que se você quiser
aprender a se defender, compre uma arma. Porque Aikido não é pra você se defender, é
pra você crescer como pessoa.”
Você traz isso para o seu trabalho, tem um reflexo disso no seu trabalho, na sua
forma de lidar com a máquina?
“Como lidar com a máquina? Talvez como a forma de lidar com a vida inteira? Nesses
momentos em que eu fiz o Aikido, eu achei que eu fui me tornando uma pessoa mais
calma, que aceita mais as coisas que vêm.”
Essa sua falta de tempo atual, você de certa maneira está aceitando ela. Mas você
acha que vai chagar um limite de não estar praticando alguma coisa ou é uma
coisa que dá pra agüentar mais tempo?
“Eu defini que até o fim do ano eu vou voltar a fazer, porque essas aulas que eu estou
dando depois do horário de trabalho, pra mim tá sendo mais como um desafio meu,
como eu aprender a dar aula. Só que eu acho que se continuar nesse mesmo ritmo até o
fim do ano, eu não vou voltar a dar no outro semestre, a não ser que alguma coisa
mude aqui, eu passe a trabalhar menos.”
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E o seu futuro no trabalho? Você pretende continuar trabalhando fazendo o que
você faz hoje ou você vê a possibilidade fazer uma mudança ou de nível, ou do
tipo de coisa que você faz hoje?
“Mudança de tecnologia eu acredito que não, acredito que eu vou continuar sempre na
área de TI. Mas eu vejo mudanças na área que eu estou fazendo, por exemplo. Não
vejo que eu vou continuar fazendo a mesma coisa até eu ficar velhinho, até me
aposentar.”
E essa mudança é uma mudança do tipo de tecnologia, da linguagem?
“Não, acho que é uma mudança do tipo de trabalho. Por exemplo, eu antigamente era
da área de infra-estrutura, de suporte. Trabalhava lá em cima com os meninos, aqui (no
Cesar). Só que eu me aloquei num projeto em que eu comecei a ficar tanto na área de
infra-estrutura desse projeto quanto na área de desenvolvimento também,
desenvolvimento e planejamento. Essa já foi uma mudança bem significativa.”
A questão de pressão, por prazos corretos, como você lida com isso? É uma
questão com a qual você se debate muito?
“Não, é uma coisa que acontece, faz parte do trabalho. Tem pressão em todo lugar, não
adianta se desesperar por isso porque você sabe que vai ter pressão. Se nãp tiver
pressão... tem dois problemas, né? Tem pressão de mais e pouca pressão. Com pouca
pressão o negócio não avança, porque a pessoa não está motivada pra isso. E muita
pressão às vezes a pessoa se desespera, mas é uma coisa que sempre acontece, não dá
pra se desesperar, o cara não pode se desesperar por isso.”
Numa semana típica quanto tempo você trabalha aqui ou em casa?
“Numa semana típica aqui eu acho que oito horas diárias. Agora juntando o trabalho
com o trabalho que eu faço depois dá bem mais de oito horas. Porque por exemplo, eu
pego o horário do almoço aqui para preparar o material de aula. E quando eu chego em
casa ainda não está pronto ainda, e eu vou continuar a fazer.”
Você leva trabalho para casa?
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“Eu estou evitando fazer isso. Antigamente eu até poderia levar trabalho para casa,
mas hoje em dia eu estou evitando para não interferir com o pouco tempo livre que me
restou.”
Nesse tempo livre você sai com os seus amigos? O que você faz para se divertir,
para se desligar?
“Olha... assistir filme, sair... ver televisão. Hoje em dia eu estou com pouco tempo para
fazer qualquer coisa. O máximo de exercício físico que eu estou fazendo é esteira em
casa, quando dá eu faço.”
Alguma atividade cultural? Violão, alguma coisa assim?
“Eu até tenho um baixo em casa, só que estou sem tempo...”
Você já tocou baixo?
“Já tentei começar a tocar, comecei a formar uma bandinha, fui fazendo as músicas, só
que não foi para a frente.”
Com o pessoal que trabalhava em TI?
“Não, com os meus amigos mesmo.”
E não foi para a frente porquê?
“Porque o pessoal não tinha tempo mesmo”
Mas você leva jeito para música?
“Tive umas aulas de baixo com um professor muito bom, só que tava muito no
princípio ainda. Mas era uma coisa que eu gostaria de voltar a praticar também, é
muito importante.”
Por que?
“Eu gosto muito de música, e gosto principalmente do próprio baixo?”
E isso daí tem alguma relação com o trabalho?
“Não, acho que isso é uma coisa totalmente oposta.“
200
No sentido de fazer desligar da máquina, como o Aikido?
“No sentido de me fazer desligar também.”
Engraçado que a música e qualquer outro tipo de envolvimento com arte é um
processo sistêmico também... Prepara, passa por um processo de preparação e
tem um resultado final. Você vê alguma relação com esse processo sistêmico?
“Eu nunca encarei a música dessa forma. Encarei mais como uma coisa livre
assim. Às vezes eu pegava um violão e ficava tentando tirar músicas na hora, só de me
lembrar. Eu não vejo isso como algo sistêmico, não vejo um processo não. Eu não vejo
algo que foi produzido no final. Porque nunca tem final, fica sempre tentando
aprimorar mais aquela música.”
Numa ordem de prioridade viria o Aikido ou a volta à música?
“O Aikido.”
Você também não vê esse processo sistêmico no Aikido?
“Não, não vejo também não. É um processo de aprimoramento.”
De talvez elevação, para colocar uma palavra correta?
“Não, eu acho que aprimoramento é melhor. Elevação dá idéia de que é uma coisa de
que você vai ficar maior que os outros, e aprimoramento você está sempre se
aprimorando, não tem um limite. Elevação talvez você chegue num determinado
limite.”
É correto fazer uma associação com a necessidade constante de atualização que
você tem no seu trabalho? Porque da mesma forma que você tem que estar o
tempo todo atualizado em algum tipo de linguagem, ficar prestando atenção em
alguma novidade do mercado, a par de tudo... É um aprimoramento também
constante.
“Se você parar de fazer Aikido você fica desatualizado, embora você possa voltar
rapidamente.”
201
GERENTES
202
José – Gerente e executivo
Qual sua formação, como você chegou nessa empresa e o que faz aqui
dentro? Qual a sua evolução aqui, o que você fazia e como isso foi
mudando?
“Eu sou formado em Ciência da Computação pela UFPE, sou um dos sócios
fundadores da empresa. A empresa surgiu de uma idéia de trabalhar criando jogos, não
existia essa possibilidade aqui em Pernambuco. Desde o tempo de colegas de
graduação que a gente fez um projeto pra uma disciplina da universidade e nesse
projeto a gente resolveu criar especificações de um jogo. Resolvemos levar em frente
essa história e chamar um outro colega para elaborar um plano de negócios; então, a
gente passou as férias de final de ano todinha montando um plano de negócios pra criar
a empresa e submeter isso a um edital do Recifebeat que é uma pré-incubadora da
Universidade. Isso foi no final de 99 e começo de 2000, vai fazer 5 anos agora. Éramos
cinco, em determinado momento, algo como seis meses depois, todo mundo já tinha
largado os empresgos que tinha. Pra mim tava até sendo difícil porque eu estudava;
tinha um emprego, um estágio de quatro horas; depois disso ainda tinha de estudar e
assistir aula. Então, foi um período bem complicado, até que tive que largar o emprego
e foi muito bom porque começou a progredir à medida que todo mundo passou a se
dedicar integralmente. Naquela época, meu tempo de trabalho durava 16 hora. No
primeiro ano na empresa, a gente fez basicamente duas coisas: procuramos um
investidor, e essa procura de investidor significava escrever plano de negócios, fazer
viagens pra São Paulo, fazer apresentações. E também procuramos especificar o que
seria nosso primeiro jogo. No começo a empresa não gerava renda, recebíamos uma
bolsa, depois passamos um ano sem receber nada e gastando as economias e no final
do ano a gente conseguiu um investimento. No primeiro ano a minha atribuição era
basicamente escrever, escrever plano de negócio e escrever especificação do jogo”.
Especificação é o que vocês vão querer ter no jogo?
“É. Descrever as funcionalidades do jogo. É um programa muito complexo. Não é um
produto simples e haviam muitas decisões a serem tomadas, funcionalidade, se a gente
vai querer desse jeito ou daquele. A gente tinha jogado uns 40 jogos e a gente
precisava fazer um que se destacasse, o elemento diferente é que ele seria jogado pela
203
internet. Quando a gente começou ainda não existia nenhum jogo desse tipo que você
pudesse jogar na internet contra outras pessoas, você jogava sozinho contra o
computador. Era bem limitado”.
Então, o trabalho nessa fase já implicava em codificação?
“Não, ainda não. Ficou acertado que a gente não tinha recursos pra construir aquele
jogo; não ia adiantar a gente começar a se envolver sem ter recursos pra pagar. Aí a
gente começou a idealizar, a escrever todos os requisitos do jogo e isso foi bom porque
quando a gente começou a codificar idéia já tava bem madura”.
Hoje em dia, operativamente, o que você faz em dia normal?
“Bom, ao longo de cinco anos muita coisa muda. Então, eu já fiz vários e vários
trabalhos porque quando você é dono de uma empresa e é uma empresa pequena,
então você faz cafezinho e tem reuniões de sócios. Então, de tudo um pouco você
acaba fazendo. Mas, num dia normal de trabalho eu geralmente chego entre umas
oito e meia, saiu daqui mais ou menos umas sete, sete e meia da noite; esse é meu
dia padrão, eu tenho duas horas pra almoço. A gente estipulou que não ia mexer
nessas duas horas, se você quiser, você pode trabalhar na hora do almoço; mas,
oficialmente a gente não vai reduzir porque e um período que a gente utiliza pra
poder integrar a equipe porque como é uma empresa de jogos, então na hora do
almoço fica todo mundo jogando, jogando em grupo. Isso não só deixa todo
mundo mais leve pra segunda parte do dia, como integra as pessoas. Quando eu
chego de manhã, a primeira coisa que eu faço é olhar o dia, olhar minha agenda,
quando não aparece alguma coisa surpresa pra fazer. Hoje eu sou gerente de
projetos dentro da empresa, então eu sou encarregado dos projetos da gente.
Também estamos desenvolvendo um jogo junto com o SEBRAE no segmento de
restaurantes. Então eu tenho que manter o cronograma atualizado. Então, o
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trabalho de gerente de projeto envolve recursos humanos, administração de
pessoas, administração de tempo, de custos, de cronograma, de riscos. Então, tem
uma serie de técnicas pra manter o projeto sob controle, pra manter ele dentro do
custo, pra manter o padrão de qualidade dentro do padrão desejado pra que os
prazos não estourem, pra que todo mundo saiba o que vai fazer em cada
momento, não só hoje, mas pelo menos na semana toda. Que todo mundo tenha a
mesma visão pra onde o projeto vai, todo mundo entenda quais são os problemas
que a gente ta sofrendo hoje; manter uma visão unificada do projeto. Essa é a
minha principal atribuição que envolve uma série de atividades, como: prestar
atenção se as pessoas estão motivadas no jeito de falar, uma forma de se
posicionar na cadeira, se bota a mão no queixo; prestar atenção no que motiva as
pessoas, prestar atenção se a carga de trabalho de determinada pessoa está muito
alta ou muito baixa e as tarefas chatas se estão sendo distribuídas igualmente, se
as pessoas estão chegando dentro de um horário razoável. A gente tem vários
estagiários aqui, então eu tenho que ficar muito perto deles e acompanhar o
desempenho deles na faculdade; saber quando eles vão ter prova, quando eles vão
precisar faltar pra estudar pra prova, quando eles pretendem se formar, fazer um
planejamento da carreira deles aqui dentro, na medida do possível porque com é
uma empresa pequena é muito difícil fazer um plano com cargo e salário”.
Então, são basicamente atribuições de gerenciamento de pessoas e processos?
“Exato. Eu converso também com clientes, onde está o estágio do projeto, entendo
o que eles querem. Então, gerenciamento de pessoas e processos também”.
205
Em termos de planejamento e estratégia, você lida também com isso a longo e médio
prazo pra empresa?
“Esse é um outro chapéu que eu coloco, que é o chapéu de sócio que eu assumo. A
gente tem reuniões periódicas, no mínimo uma vez por mês, entre os sócios; a
empresa é dividida hoje em uma estrutura hierárquica, é uma hierarquia, mas ao
mesmo tempo é uma hierarquia bem democrática. Então, tem o chefe, que pensa
estrategicamente o futuro da empresa, logo abaixo vem o gerente de projetos e os
gerentes funcionais: os gerentes funcionais são os gerentes voltados a áreas, a área
de gestão, a área de negócios, a área de produção, criação; isso descendo
verticalmente porque horizontalmente encontramos com essas pessoas o gerente
de projetos e ele recruta pessoas dessas áreas funcionais pra trabalharem com
projeto e aí ele garante que as pessoas que teoricamente teria apenas uma visão
da função que tava fazendo, elas pensem no projeto como um todo e não apenas
na parte delas; ele é um aglutinador. Então, como gerente da empresa eu faço
todas essas atribuições que comentei e como sócio da empresa, como
administrador, eu tenho que me preocupar em como vai estar a empresa daqui a
cinco anos, daqui a dez anos”.
E como você faz pra pensar isso? Que tipo de fonte você usa?
“Tudo começa como que você quer, o que você quer pra empresa, que tipo de
lugar você quer trabalhar, que tipo de coisa você quer fazer. Então, a idéia é que
a gente tem que colocar essa vontade da gente dentro do planejamento da
empresa; direcionar as atividades. Claro que o mercado dita muito o que você vai
fazer, às vezes você quer fazer uma coisa e o mercado não está pronto ou não
206
existe mercado pra fazer. Nisso, o mercado tem levado os rumos da empresa pra
alguns lugares que a gente não tinha se planejado pra isso. Hoje, por exemplo, a
gente trabalha muito numa linha de jogos sérios, são jogos de treinamento, jogos
publicitários, jogos políticos e a gente quando montou a empresa não
imaginávamos que íamos trabalhar com isso; mas, era um mercado que tava
aberto e a gente avançou no mercado e está cavalgando muito bem nele”.
O que você faz para atualizar sua base de conhecimentos?
“Uso a internet e a gente sempre está presente nos principais eventos de jogos, do
Brasil e do mundo. A gente ajudou a fundar o Congresso de Jogos Brasileiro; a
gente participou agora da EGS, uma exposição de jogos, que a maior da América
Latina, uma das mais importantes; a gente está presente nas principais feiras de
jogos do mundo desde 2001. Então, todos esses eventos, onde serão discutidas as
tendências do mercado, o que é que tá acontecendo, a gente sempre está
presente”.
O que você quer pro seu futuro como profissional?
“Eu acho que cada pessoa tem que ter um planejamento de carreira, que é
independente de onde você trabalha, é um planejamento como pessoa e um dos
fatores de sucesso desse planejamento, como conseqüência de sua carreia, é a
quantidade de conexões que você forma e a quantidade de informações que você
tem. Então, você tem que estar sempre atualizado; uma pessoa que não lê um
jornal, que não entende o que é que está acontecendo, ela começa em
207
desvantagem e se ela não entender também do mercado onde ela trabalha, quais
são as novidades, ela vai ficar pra trás”.
Então, esse acompanhamento do mercado é pessoal?
“É, eu acho que é iniciativa pessoal. As pessoas que são mais antenadas, elas se
dedicam a isso, passam parte do seu tempo se atualizando”.
Eu pressuponho que você tenha que gerenciar uma quantidade de informação muito
grande.
“Tenho. Realmente o volume de informação pra qualquer pessoa é imenso e pra
quem trabalha com tecnologia é maior ainda porque a tecnologia evolui demais.
A primeira turma de Java no Brasil foi a minha turma, então o que eu aprendi de
Java, se eu tivesse parado ali, hoje em dia eu não saberia mais nada”.
Dessa malha de informação que você precisa, como é que você faz pra separar o que é
tua vida pessoal do que é trabalho? Como você faz pra identificar o que é relevante do
que não é relevante? Que mecanismos você utiliza?
“Eu sempre procuro quando eu to na internet buscar informações de lugares
onde eu já sei que as coisas que tão ali são relevantes pra mim e isso já é uma
seleção. E quando eu vou ver coisas mais genéricas, não necessariamente de
208
tecnologia, aí eu dou uma olhada no geral o que é que tem e alguns pontos
específicos, que eu acho mais interessantes, eu me aprofundo”.
Que recursos técnicos você usa para encontrar soluções para problema de ordem
operativa?
“Se você tem um problema específico você sabe o que procurar. Quando isso
acontece eu faço uma busca no Google e vejo... Às vezes eu quero estudar um
tema, por exemplo, eu tô estudando pro APlication agora, e é um negócio super
difícil, é uma prova que dura 4 horas, são 200 questões, o livro pra se estudar é
300 páginas. Mas não dá pra estudar só por ele, você tem que estudar mais dois,
três livros, tem pessoas que estudam esse livro normalmente três, quatro vezes
pra fazer a prova. Então, eu fiz uma busca na internet pra pegar assunto
relacionado a esse tema e aí descobri um lugar não muito ortodoxo, eu diria
assim, um artigo que só nesse artigo tinha 72 livros; obviamente que eu não abri
nenhum. É impossível, é um volume de informação que é impossível. Aí eu
comecei a começar a conversar com as pessoas, a procurar na internet revistas e
aí peguei os três principais que normalmente as pessoas estudavam por ele e eu
comecei e ler por ele. Eu leio muitas revistas, o que as pessoas escrevem sobre
determinado tema é de fundamental importância; a opinião do usuário pra mim é
a mais importante de todas”.
Uma das coisas que me fez procurar você é o fato de vocês trabalharem numa empresa
de jogos. Eu suponho que seja uma coisa muito interessante, diferente o fato de vocês
trabalharem com jogos e ao mesmo tempo se divertirem jogando. Existe uma diferença
209
entre o seu trabalho, quando você tá trabalhando, ou é trabalho e um pouco de diversão
também e em que medida isso acontece?
“Primeiro, pra você trabalhar com prazer e conseguir trabalhar com jogos, você
tem que gostar de jogos. Não necessariamente todo mundo que gosta de jogos vai
se dá bem numa empresa de jogos. Agora, é verdade que se você não gostar, você
não consegue. O trabalho é difícil, envolve uma série de conhecimentos que torna
difícil a tarefa e você tem desafios extras porque não basta o softwear fazer aquilo
que você planejou; aquilo que você planejou ser feito tem que ser engraçado, tem
que ser divertido. Não basta a sua especificação ta correta e você fazer bem,
aquilo que você pensou tem que ser um negócio que vá agradar a todo mundo. E
aí é a fase inicial muito interessante, tentar colocar, tornar a realidade aquele
jogo que você sempre quis e nunca foi possível você jogar. Existe um glamour
também porque tem pessoas que realmente adoram determinados jogos, gostam
muito e então eles ficam, assim, muito agradecidas às pessoas que fizeram os
jogos, às vezes parte até um pouco pra idolatria e aí isso dá um certo glamour pra
profissão de gamedesign”.
210
Antônio - Gerente
Qual sua profissão e o que você faz exatamente nessa fábrica de software
em que você trabalha atualmente?
“Eu sou gerente de design aqui da empresa eu tenho responsabilidade tanto do
acompanhamento dos projetos com foco na usabilidade de software, seja pra web,
ou dispositivos móveis. Tenho uma responsabilidade de política de segurança da
produção da empresa e tenho que tentar descobrir quais são as novas
possibilidades encontradas na interação do homem com a máquina que possa
facilitar a vida das pessoas”.
Eu imagino que você tenha que estar o tempo todo entendendo, compreendendo
qual são os objetivos dos softwares e como ele vai ajudar o cliente; eu imagino que
isso você deve fazer em pouco tempo. Isso é verdade?
“De fato, sim. Mas, na verdade você tem dois níveis, aí. Você tem que ter um
entendimento de qual é o negócio do cliente, qual é o objetivo do cliente e no caso da
gente, mais ainda, qual é o objetivo do usuário do cliente. Variavelmente, 70% das
vezes o cliente não entende exatamente o que é que o usuário dele realmente precisa.
Pra isso, dentro da metodologia de trabalho por nós desenvolvido, seguimos uma série
de procedimentos para avaliar o uso das dos produtos e serviços criados”.
E essas metodologias consistem em você acompanhar a necessidade do cliente
final? Ou seja, há interação direta com esse cliente ou não necessariamente?
“Depende de uma série de fatores, depende desde do nível de conhecimento que a
gente já tem sobre determinado sistema até qual é a possibilidade técnica de existir um
acompanhamento desses, passando inclusive pela viabilidade de orçamento, por
exemplo. Você tem situações que é impossível ter contato direto com o usuário final.
Por exemplo, se a gente faz um software de acompanhamento do fluxo de energia, que
seja feito através de um site pra indústria de geração hidrelétrica, a possibilidade de
acompanhamento disso é pequena.”
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Como você faz pra se atualizar? Existe alguma preocupação, estratégias ou
ferramentas pra você atualizar o teu conhecimento hoje?
“Tem as ferramentas que auxiliam nesse sentido, como chats, grupo de discussão. Tem
um ponto específico, com um técnico que trabalhava aqui, que é criar, fortalecer uma
comunidade de design gráfico, design de aplicação, design de arquitetura e formação.
Sentimos necessidade de fazer com que a informação produzida no Porto Digital
circule, seja distribuída e compartilhada. Por enquanto, o conhecimento que está se
produzido está parado. Precisamos de um convívio entre profissionais dentro dessa
mesma área de design gráfico, de interface, mas com formações diferentes e que
tenham visões multidisciplinares; isso enriquece consideravelmente. Na equipe da
empresa, hoje, a gente tem gente que foi formada em artes plásticas, design de produto
e não design gráfico e aí, essa amálgama que está se formando enriquece muito. Não
existe propriamente uma disciplina pra você ir atrás do conhecimento, mas existe uma
questão de bom senso. Um exemplo é o Orkut. Todo mundo da minha equipe tem
interesse em entrar num sistema desses pra saber como ele funciona com o usuário;
isso é uma coisa que é meio natural, não tem nenhuma regra, não tem nenhum tempo
definido no cronograma do trabalho, eles têm interesse natural. É aí que as coisas se
misturam muito e talvez seja a chave pra o que você está procurando entender, a gente
tem um instrumento de trabalho que cada vem mais se transforma em instrumento de
lazer e o limite entre uma coisa e outra é muito tênue. Há a quebra do limite geográfico
também. Hoje eu converso muito mais com um amigo meu que mora na Alemanha do
que na época que ele tava aqui, morando em Brasília Teimosa; eu encontrava com ele
aqui uma vez por semana, a gente tomava uma cachaça. Eu acho que isso chega a um
extremo com o pessoal que desenvolve games. Eles passam às vezes mais de 8 horas
por dia jogando game e no final do expediente, pra relaxar, eles vão jogar um
pouquinho! Ao mesmo tempo, eu tenho uma relação muito forte com música, arte
digital. Isso acaba enriquecendo muito uma instituição em que eu trabalho, que
consegue enxergar o lado positivo desse quadro todo. O contrário é aquele tipo de
empresa que trabalha de forma dura, que impede o uso do MSN, sei lá o quê, vigia o
acesso à internet, restringe ao máximo e investe numa produtividade alucinada.
212
Em que medida é interessante que esses limites sejam claros? Esses limites entre
trabalho e prazer ou hobbie? Até que ponto é importante que ele seja claro e que
instrumento você lançaria mão pra deixa-lo claro?
“Tem um limite que eu acho que tem que ser claro. Mas esse limite não é linear. Um
exemplo é o Re:combo. O grupo apareceu, começou com um monte de gente que hoje
de Pernambuco e de gente de fora do estado, de fora do país com o interesse de
produzir mídias de forma colaborativa e isso no início era uma forma de discutir as
bases da propriedade intelectual e direito autoral de obras de arte; a gente recebeu
apoio de infra-estrutura, mas agora o Re:combo assumiu um projeto para gerar um
produto através do tratamento das mensagens de texto via telefone (SMS) de forma
gráfica. É um negócio bem bonito que está envolvendo 4 engenheiros de software, um
deles com perfil de analítico, e uns três designers, além de envolver operadora... ; o
Re:combo nasceu de interesses pessoais. Normalmente quando você coloca muita
paixão da sua vida pessoal dentro do trabalho, uma forma de se concretizar seus
objetivos, com muito prazer, é através de arte. Isso é engraçado porque em vários
níveis, nada disso é por acaso, mas quando você faz com vontade, por prazer, é porque
tem interesse anterior de tudo. Então, é assim: como é que a gente consegue separar as
coisas? É complicado!”.
Vocês trabalham hegemonicamente conectados, vocês tão o tempo todo cercados de
um aparato pra que o trabalho seja efetuado e através desse aparato vocês têm acesso à
informação. Inclusive a informação é variada...
“É a profissão da informação”.
Esse aparato acaba ajudando a você perceber o próprio aparato?
“É engraçado porque eu vejo esse aparato todo como abstração. A única coisa que me
incomoda mais é basicamente eu ter que ficar sentado numa posição que normalmente
eu tô no trabalho; mas, se eu tivesse trabalhando com um notebook, deitado na rede, eu
praticamente não perceberia. Eu acho que ao contrário! Mas é uma questão
complicada. Você fala se ele ajuda a perceber ou a entender melhor o aparato?”.
213
As duas coisas. Esse aparato lhe permite ter uma reflexão sobre seu próprio
trabalho, você observa e percebe que está cercado por uma certa racionalidade.
Pelo que eu percebo vocês sofrem uma demanda muito forte por conta dos
projetos e estão sempre submetidos a uma carga de informação muito grande pra
gerenciar, pra permitir, reproduzir, etc. Eu imagino que chega o momento em
que essa demanda toda impede você de ter uma reflexão sobre seu trabalho, sobre
sua vida. Mas, eu imagino também que existe em certa medida uma possibilidade
desse aparato...
“Fortalecer essa visão crítica”.
É.
“Eu acho que sim. Inclusive a partir do momento que você considerar que esse aparato
é útil na vida da gente, pelo menos 50% da produção de conhecimento, não só pra você
receber informação, mas você produzir e entrar em discussões, ele é um instrumento de
crítica muito forte. Tem um exemplo, que eu acho engraçado, talvez esse instrumento
de crítica seja num extremo, tanto que você chega a um ponto, tem um limite que ele
começa a ser um instrumento de crítica, a partir desse limite”.
Mas, isso acontece?
“Eu acho que acontece. Por exemplo, vou dar um exemplo bem prático, eu
participo de uma lista de discussão de um evento que vai se realizado em São
Paulo, o evento tem todo um arcabouço teórico, e discutirá muito mídia tática e
uso de software aberto. Ninguém tinha pensado, em quatro dias de debate da
necessidade de uma redonda questionando a validade pra sociedade brasileira de
software livre. Tipo: a própria tecnologia virou um fetiche tão grande que confia
em si, não se questiona; se você for ver objetivamente, se for pegar o jornal e for
ler, nos últimos seis meses o que você vai ler de software livre... 90% dos casos é
irrelevante, só se fala em software livre num nível que não passa do Linux
(sistema operacional concorrente do Windows, da Microsoft, baseado em
214
plataforma aberta). No máximo se menciona a existência Open Office (pacote de
programa concorrente do Office, da mesma Microsoft). O debate se dá sempre
sobre o que representa em termos de economia na compra de um outro tipo de
software. Agora, qual o impacto dessas coisas? O que ta acontecendo? Ninguém
tinha parado nessa discussão pra se questionar. Talvez eu tenha essa visão
inclusive por trabalhar direto com software; por exemplo, eu uso um software
que eu acho maravilhoso da Alemanha pra composição, ele é feito pra tocar. Eu
não sei se alguém tenha que pagar alguma coisa pra ele ser tão bem desenvolvido
do jeito que ele é; é isso o que sustenta os caras lá. É a mesma questão da
propriedade intelectual. Tudo o que a gente produz no Re:combo é aberto e
aberto dentro de uma licença que você pode fazer que quiser; você pode pegar as
músicas todas que tão lá, gravar um cd e vender na rua por 5 reais e você estará
ganhando dinheiro honesto, você tem todo direito, ou uma gravadora pode
chegar, fazer 15 mil cópias, vender e não precisa dar nada pra gente. Nesse caso a
gente está abrindo pra ter um impacto na sociedade que já começou a ter algumas
discussões em cima disso. O que isso significa? A partir do momento que você
consegue ter tantas redes formatadas fisicamente, você consegue formar nós que
estão fora das redes ideológicas. Só pra citar exemplo: rede de trabalho, rede de
grupos de discussão sobre uma linguagem específica, sobre um evento. Se essa
tecnologia não existisse esses grupos continuariam extremamente fechados, seria
mais difícil pra esses grupos, nesses aparatos ideológicos, receberem influência de
fora”.
215
Então, é como se a conexão via tecnologia permitisse que esses grupos trocassem
afinidades para além do plano ideológico?
“Exatamente. Tem um negócio que é bem interessante que é o protocolo que se
usa na Internet. No protocolo de comunicação da internet, o básico, geral, se você
cria uma censura pra algum tipo de informação, algum nó na rede, o protocolo
entende aquilo como um erro. Isso talvez seja meio a gênese dessa historia toda;
por mais que ideologicamente aquilo seja censura, o aparato tecnológico entende
isso como erro e a ordem é procurar outro caminho pra chegar no mesmo ponto.
É isso o que o protocolo faz. Por isso que é extremamente difícil você censurar
hoje na rede, por isso que tem que entrar aí um outro aparato. Esse exemplo
mostra como a regra básica de funcionamento de uma coisa tão comum como a
Internet está sendo aplicada à vida das pessoas no sentido de crítica possível ao
sistema e de resistência a valores impostos.”
216
Ivone - Gerente
Diga sua profissão, como você chegou a trabalhar no C.E.S.A.R. e o que
você faz hoje aqui.
“Minha formação é em Ciências da Computação, fiz graduação e mestrado nesta área.
Meu relacionamento com o C.E.S.A.R. vem, indiretamente, desde a época da
fundação. Quando o C.E.S.A.R. começou eu já tinha concluído meu mestrado fora, já
tinha voltado para a equipe e trabalhava em um projeto de pesquisa lá na UFPE. E
trabalhar com inovação colaborou muito com o meu histórico, não só por ter estudado
fora, mas também de ter trabalhado em empresas estrangeiras. Isso dá uma visão mais
ampla de contexto de mercado. Também ajudou muito a experiência com institutos
tecnológicos, que eu tive contato no Exterior, porque aí eu deixei de ver só o lado da
inovação e da tecnologia da informação pra ver inovação como algo mais amplo. A
pessoa começa a colocar a coisa em perspectiva, no contexto de como é que a
tecnologia, de modo amplo, pode trazer inovação, qualidade e melhoria. Muitas vezes
a inovação de que a gente está falando não é inovação só tecnológica, mas também
inovação de negócio, inovação do modelo de gestão da empresa – e é isso que faz a
diferença. Esse tipo de visão se adquire quando se distancia levemente do mundo de TI
pura. Quando a pessoa não está só focada em TI, tem uma visão de outras tecnologias
que podem agregar valor a esse mundo.”
E hoje, no C.E.S.A.R., quais são exatamente as suas atividades?
“A área de inovação do C.E.S.A.R., na qual eu estou inserida, é responsável por pensar
a visão de futuro, do ponto de vista da inovação. E para isso existe um conjunto de
ações que a gente tem que desenvolver. A gente faz a prospecção junto aos institutos
de pesquisa, junto aos outros institutos de inovação, e junto ao mercado, incluindo
empresas consolidadas, tanto locais quanto de grande porte, que têm uma demanda
específica ou que atuam no mercado globalizado. Toda essa prospecção nos dá um
norte, de uma demanda mais ampla e não só de uma coisa pontual. O processo de
prospecção é continuo. O que a gente tenta fazer depois é trazer isso para perto da
academia. Hoje em dia a academia está um pouco mais próxima, mas historicamente
ela tinha um papel muito distante da visão mercadológica. A gente tenta formar um elo
no qual tentamos buscar, dentro das linhas de pesquisa, as soluções que apóiem os
217
projetos que estão sendo desenvolvidos aqui, que vão rebater em melhor
produtividade, melhor qualidade para as empresas que são clientes.“
E esse trabalho é desenvolvido aqui no C.E.S.A.R. ou na Universidade?
Existe um lugar central aonde você trabalha ou você trabalha se
deslocando?
“Não, do ponto de vista da gestão do processo de inovação, o trabalho é realizado aqui.
Mas tudo é desenvolvido onde for mais interessante para o projeto em questão. Às
vezes o projeto tem uma demanda por um laboratório, por exemplo, ou por um grupo
de pesquisadores e de repente é mais conveniente que ele seja desenvolvido no âmbito
da universidade. Dentro da parceria que se estrutura, talvez seja mais interessante que
ele seja desenvolvido lá, fisicamente – ou às vezes é mais interessante que ele seja
desenvolvido aqui (na empresa). Depende muito de como é que o projeto é formatado.
Depende às vezes da exigência da empresa que fez a encomenda. Algumas solicitam
que o projeto seja desenvolvido em um local exclusivo, hermeticamente fechado.”
O horário de seu trabalho se expande para outros horários de sua vida
privada ou ele é restrito ao tempo dedicado à empresa?
“Ele se expande para outros tempos. Ele acontece majoritariamente aqui (na empresa),
mas ele se expande para outros tempos. Isso porque, inegavelmente, o meu ciclo
principal de amizades é da área de TI, e eu tenho um vínculo muito forte com o Centro
de Informática. Eu tenho um relacionamento de muito longo tempo com os
professores, com os pesquisadores, então, é muito natural que eu encontre essas
mesmas pessoas em momentos de lazer, em happy hours, em aniversários, em coisas
do gênero. E em alguns destes momentos a coisa também cai para o lado profissional,
porque, inevitavelmente, a gente comenta alguma coisa, aproveita para acertar algum
detalhe, marcar algo. Logicamente a gente não se encontra para isso, mas é inevitável
que, uma vez ou outra, no meio da conversa, isso (o trabalho) também apareça.”
Você tem como estabelecer percentualmente quanto do seu trabalho é
realizado efetivamente no tempo do C.E.S.A.R., no tempo de trabalho
oficial, e quanto acontece em casa, em campo, ou nestes encontros?
“Quando você fala trabalho, você está incluindo a questão de pensar o trabalho? “
218
Em tudo.
“Às vezes se desligar do trabalho é algo meio complicado, independentemente de você
estar fazendo alguma coisa (não relacionada a ele). Porque grande parte do tempo fora
do ambiente de trabalho, você está voltado para alguma coisa a respeito dele. Você
está lendo o e-mail que te lembra alguma coisa, está acessando o site, está falando com
alguém pelo telefone. Eu nunca fiz essa avaliação com exatidão, mas eu diria que pelo
menos alguma coisa como 40% do meu tempo livre, fora dos horários convencionais
de trabalho, é direcionado indiretamente ou diretamente para as atividades do trabalho.
Quer eu esteja no sábado trabalhando, fazendo algum relatório ou preparando um novo
projeto, ou quer eu esteja no telefone com alguém, avaliando alguma coisa.”
Quando é que você estabelece que acaba o trabalho e agora vai cuidar da
saúde, do lazer, família?
“Há eventos que você obviamente tem que priorizar, como atividades familiares, jogos
que as minhas filhas competem... Eu não vou marcar nada naquele sábado ou naquele
domingo porque é claro que eu não vou deixar de estar lá, de forma alguma. Existem
questões de saúde que a gente também tem que priorizar, mas eu acho que a gente
tende a se sobrecarregar. É uma tendência natural, de temperamento até. De dizer ‘eu
faço, deixa que eu resolvo’. E eu acho que a mulher, de uma forma geral tem mais isso
do que o homem, até pela natureza de querer ser mãe, esposa, profissional. Então, essa
coisa de você querer resolver as coisas da família inteira e achar que você é o ponto
central. A gente tem essa ilusão. Normalmente, eu tento separar as coisas. Tentar estar
presente em eventos da minha família, como reuniões de escola, jogos, provas das
minhas filhas, quando eu tento dar um apoio maior e me programo para não marcar
nada naquelas noites em que elas vão estudar. Tem outras datas e horários que eu tento
estar com elas (as filhas). Por exemplo, eu tento sempre almoçar em casa, com elas. É
difícil isso não acontecer, a não ser quando há uma emergência que me obrigue a ficar
direto no trabalho. Mas sempre que eu posso eu tento almoçar com elas, já que é uma
das únicas refeições que a gente pode fazer juntas. O café da manhã é aquela correria
para sair de casa, à noite elas treinam e cada uma tem seu horário, então fica difícil. O
esforço que a gente faz, meu esposo e eu, é de sempre estar lá no horário de almoço. A
gente não deixa de pegá-las no colégio todos os dias, para ter este contato também. E
219
nas terças à noite a gente tem uma saída com elas, nas quais a gente vai para um
rodízio de pizza, alguma coisa diferente, para começar a semana legal.”
Essa separação ou priorização, ela é estabelecida por vocês, ou de alguma
forma é o trabalho que impõe e estabelece as prioridades?
“Se eu não trabalhasse à tarde, no horário em que elas estão em casa, talvez eu não
tivesse tanto rigor em almoçar com elas todos os dias. Mas como o trabalho tem
horário, tem compromissos a serem agendados, então eu me obrigo, naquele horário
que não é o do trabalho, a criar uma rotina. Para mim seria muito mais cômodo não ter
que dirigir para cima e para baixo. Mas a hora que eu passo lá (em casa) é uma hora de
qualidade. A gente senta, conversa, elas me contam o que aconteceu na escola. Tem
essa troca. A gente orienta sobre o que elas devem fazer à tarde. Elas não ficam soltas
o dia inteiro. Talvez se eu ficasse em casa à tarde talvez não fosse tão complicado. É
importante ter alguma rotina com elas, mas o tipo da rotina muitas vezes é bem
orientado pelo tipo de trabalho que você tem.”
De que recursos você lança mão para atualizar conhecimentos e
informações necessárias ao seu trabalho?
“Às vezes você tem que ver a informação e fazer a interpretação do impacto dela. É
diferente de você ter simplesmente uma atualização apenas técnica, em cima de um
novo paradigma, uma nova linguagem. Às vezes você vê uma notícia na Imprensa,
mas isso vai ter um impacto sobre alguma coisa. Um negócio entre duas empresas
pode fazer com que uma nova tecnologia seja descartada, uma tecnologia na qual você
achava que deveria ter apostado. Existe um conjunto de coisas. Um fator importante é
o network que se mantém. A gente está sempre trocando mensagens, se comunicando,
isso gera uma troca interessante de informação, uma atualização de conhecimento. Eu
estou sempre recebendo e-mails, links, de profissionais com os quais eu me relaciono,
e estou sempre mandando notícias, artigos, coisas que vêm a somar. E, por outro lado,
existem algumas atualizações mais técnicas. Eu participo também de congressos,
conferências, tanto de encontros que falam de tecnologia de um ponto de vista mais
geral quanto política, para trabalhar um alinhamento com as políticas estaduais,
federais, de Governo. No meu caso particular, já que gerencio um projeto da
Microsoft, também participo de eventos da empresa, inclusive dos eventos técnicos
220
que ela realiza mesmo em São Paulo. Eu tento participar de todos eles para poder
continuar mantendo esse network.”
Em que fonte exatamente você obtém essas informações, além das palestras,
eventos?
“Tem muitas fontes on-line. Além disso tem revistas especializadas. É importante ter
essa visão, sobre a situação do mercado nacional das empresas de TI, é preciso correr
atrás, ver como elas estão se impondo.”
Você está sempre alerta para verificar tendências de mercado, de novas
tecnologias?
“E tendências de empresas também, de linhas de investimentos que grandes empresas
estão fazendo. Isso é importante para deixar a gente com base consistente de
conhecimento sobre o mercado está apontando. Logicamente não é o único fator, você
não pode se orientar só por isso porque a empresa pode estar fazendo uma aposta
errada, mas a gente precisa ficar antenado com o que está acontecendo. Como é que as
empresas como um todo estão vendo o mercado – não uma, mas o grupo.”
E essa tensão, este estado de alerta, em algum momento do ano, ou de
algum projeto em que você está envolvida, chega a ser sufocante?
“Dependendo da época eu certamente não tenho tempo para ler todos os livros que eu
gostaria. Como eu te falei, a gente faz a prospecção do projeto com as empresas, e a
partir da prospecção a gente encaminha a proposta para submissão, ou ao órgão
financiador, ou à própria empresa. Se a gente está numa fase de conclusão de proposta
ou submissão de projeto, às vezes é difícil se manter atualizado e ler tudo. Às vezes (a
informação) se acumula e alguma coisa você descarta. Quando passa aquele período
você volta a ter um tempo maior para ler. De qualquer forma, eu sempre leio antes de
dormir.
Há outro tipo de informação que não tenha ligação direta com o trabalho,
mas que você está sempre freqüentando? Que tenha a ver com cultura,
arte, alguma coisa deste tipo?
221
“Eu sou extremamente curiosa, então gosto muito de ler revistas de divulgação
científica, que trazem novidades científicas de pesquisa. Isso supre o meu lado de
curiosidade. Além disso, eu gosto muito de filmes. E eu tento ir, realmente, a cada
duas semanas, para assistir alguma coisa com a minha família. É uma outra fonte de
informação que eu tenho e da qual eu gosto. De outro ponto de vista, eu entrei no
Orkut (plataforma de relacionamento na internet). A princípio eu relutei um pouco,
pensei ‘mais um, eu não agüento mais, já tenho MSN (software de comunicação
instantânea), já tenho Skype (software para telefonia via internet), agora vou entrar no
Orkut?’. Mas aí começou a chegar tanto convite pelo e-mail, e aí você começa a ver
que todo mundo com que você se relaciona está entrando também e acaba indo na
onda. Eu ainda não uso com uma freqüência rígida, ainda estou me habituando a entrar
nas comunidades. Eu ainda não entro no intuito de buscar informação técnica ou
alguma coisa ligada ao trabalho. É mais como uma diversão, para ver o que está
acontecendo. E tem uma curiosidade do ponto de vista da tecnologia, de entender isso
como uma ferramenta de comunicação da rede e das comunidades de relacionamento,
de ver como a Internet está evoluindo. “
Você já disse que fazia bordado. Isso evoluiu, você continua fazendo?
“Eu faço, mas com menos freqüência, por falta de tempo. É algo do qual eu me lembro
com muita freqüência, eu tenho o meu material todo ainda. É algo que eu gosto de
fazer para mim mesma, só como terapia. É algo que eu gostaria de voltar a fazer com
maior regularidade. Sempre foi algo para eu me desconectar por algumas horas do
exterior. Era uma forma de entrar num processo quase meditativo. Foi o mais próximo
que eu consegui chegar da ioga. Mas nunca foi uma coisa séria, de tomar horas,
pensando em levar aquilo para uma escala maior. Começou como uma brincadeira,
sempre ficou uma brincadeira.”
De alguma forma, serviu para você se afastar do trabalho? Isso te ajudava a pensar
sobre o trabalho, a fazer uma crítica sobre o trabalho, sobre o regime em que você está
engolfada?
222
“Aquele momento era mais um relax, não era muito um momento de crítica. A minha
busca era mesmo de barrar o trabalho, de desconectar a mente daquele tipo de estresse,
de ansiedade, para gerar um alfa.”
Você conseguia?
“Conseguia. Era engraçado, porque até as pessoas que convivem comigo, quando me
viam bordando, brincavam dizendo que a minha expressão mudava. Porque realmente
eu ligava o piloto automático e fazia bem. Acho que tudo o que você faz que normaliza
a sua expressão, que te desconecta do exterior, é legal, dá uma tranqüilidade, você
volta renovada.”
Você substitui essa atividade por alguma outra?
“Eu acho que eu tenho visto mais filmes, talvez lido um pouco mais.”
E chega no alfa, também?
“Eu tenho um poder de concentração muito grande e isso me ajuda. Apesar de eu estar
escutando as coisas ao meu redor, eu tenho uma capacidade de me concentrar a ponto
de outras pessoas não interferirem na atividade a qual eu estou direcionando minha
atenção. Isso ajuda sim. É um período de recarga do organismo. É como se eu desse
uma chance para a mente se recuperar de outras coisas. Eu me sinto assim: é como se
uma parte do meu corpo estivesse focada naquela atividade, mas é como se todo o
resto estivesse se reconstruindo de alguma forma. Tendo a chance de receber um
benefício, de não estar sendo agredido.”
Isso de alguma forma tem reflexo no seu trabalho? Você se sente mais disposta?
“Eu acho que recarrega as energias, sim.”
223
Cecília - Gerente
Em que você é formada e o que você faz atualmente no C.E.S.A.R.?, Como você
chegou nesse lugar?
“Eu sou tecnóloga de processamento de dados. Formada em Belém, porque eu sou
paraense. Fiz especializações lá, em análise de sistemas, e vim para cá por causa do
mestrado. Como eu não consegui bolsa, comecei a procurar lugar para trabalhar. Vim
parar aqui no C.E.S.A.R. por indicação do próprio Sílvio Meira, que foi meu professor
de uma das disciplinas. Eu estou aqui como analista de negócios, que é no que eu
espero me formar nesta disciplina.
Quais são as suas atribuições? Há quanto tempo você trabalha no C.E.S.A. R.?
“Eu entrei aqui em final de abril. Minha atribuição é justificar recursos para projetos,
verificar as necessidades do cliente, e fazer a implantação, basicamente. Verificar os
requisitos, acompanhar os programadores para o resultado ser da forma que o cliente
queria, e no final fazer a implantação no ambiente do cliente.
E ao lado desta atividade você faz o mestrado?
Isso. E além disso eu agora comecei a dar aula também, na Fapesp, uma faculdade
pequena. Vou ver se eu consigo dar aula até o final do ano, pelo menos, até para pegar
experiência, porque eu nunca dei aula. Nem sei como conseguiu que me aceitassem no
mestrado, porque eu não tenho nenhuma experiência acadêmica, embora minha
experiência prática fosse bem grande. Eu trabalhei três anos com desenvolvimento de
softwares.
E como é que está sendo a experiência do ensino?
“Está bacana até agora. Já tinha dado uns cursos de um produto Microsoft, por
exemplo, lá em Belém. Eu gosto, acho legal. Não sei meus alunos, se eles estão
gostando...
Como você faz para separar, quando é possível separar, trabalho no C.E.S.A.R.,
as obrigações do mestrado e da sala de aula?
224
“É complicado você separar. Quando eu tinha aula na faculdade – agora eu estou de
férias – eu faltava um dia aqui no C.E.S.A.R., e nos outros dias eu trabalhava 10 horas
por dia, para cumprir a carga horária. Na época de trabalho (do mestrado) era uma
loucura. E eu ainda tinha que cuidar de casa, porque eu moro com uma colega que veio
de Belém também, e aí tinha que fazer comida, lavar roupa...”
Você usa alguma estratégia para delimitar, por exemplo, o tempo do trabalho?
“Não, pelo contrário, eu sou extremamente indisciplinada. Eu acho que eu sou o alvo
da sua pesquisa, depois quero até ver o resultado. Eu não consigo fazer nada com dois
dias de antecedência, é impressionante. Nos trabalhos da faculdade, para entregar
amanhã, eu passo a madrugada produzindo, sai tudo uma beleza. Mas eu não consigo
fazer um dia antes. Não sei até quando vão funcionar esses meus insights noturnos.”
Então a questão de tempo, o que é tempo de trabalho, é muito relativo?
“Sim, e ainda mais porque eu estou sempre correndo atrás do relógio, com relação às
aulas. Eu sempre ficava achando que estava devendo tempo no C.E.S.A.R., então,
sempre que aparecia uma coisa para fazer eu fazia, mas com a consciência pesada.”
Então você ficava com a impressão de que estava devendo tempo? “Por causa do mestrado. Eu passava um dia na semana sem vir para cá. Não sei
como vai ficar agora o segundo semestre. Eu me matriculei em só uma disciplina
com aula, a outra vai ser um trabalho que a gente vai ter que fazer.”
Você é analista de negócios. Eu imagino que você precise, eventualmente, entender em
pouco tempo quais são as demandas do seu cliente, para adaptar o produto que ele está
querendo às expectativas dele. Que instrumentos você utiliza para entender o negócio
dele? É somente o contato direto com ele ou você tem uma estratégia de avaliar
tendências de mercado, tendências de produto, tendências de linguagem?
“Faço uso do auxílio dos colegas e de entrevistas. Basicamente entrevistas mesmo, via
internet, via telefone (quando o cliente não é aqui do Recife), ou até de forma
presencial, como já aconteceu algumas vezes. Mas, é como eu já falei, depende das
225
características do projeto. Quando eu entrei ele já estava iniciado, então já tinha
diretrizes definidas. Mas o refinamento é feito basicamente com entrevistas.
Você utiliza muito newsletters, newsgroups?
“Eu entrei em alguns grupos, mas relativos mais ao meu mestrado, nada com relação
aos projetos.”
Quantos, em geral?
“Quatro.”
E a freqüência de verificação deles? É diária?
“É diária, às vezes eu apago logo. Eu vejo o que existe, leio os resumos.”
Você dá uma olhada no resumo, se lhe interessar...
“Se me interessar eu uso.”
E você sente falta das informações atualizadas que você não observar o que foi
enviado para o seu e-mail?
“Não, não percebo, só quando você está esperando aquele material interessante.”
Você prefere fazer seu trabalho aqui ou prefere levá-lo para casa?
“Eu prefiro fazer aqui. Em casa já tem muita coisa para fazer. Tem que me concentrar
e estudar.”
Nestes casos, quando você precisa trabalhar um pouco mais?
“Eu fico aqui. Saio à noite, ou então chego mais cedo. O horário de almoço é bem
reduzido, eu tenho só meia-hora.”
Você, como outros colegas de sua profissão, é uma das pessoas que trabalha
conectada, o tempo todo numa sala de trabalho. E é justamente nessa infra-estrutura de
226
conexão que faz você ter acesso às informações que saem do seu grupo de trabalho. No
meio destas informações, que eu imagino que tenha muita coisa, tem muita
informação do Mundo, não? Você presta atenção nisso, é uma coisa que lhe interessa,
você vai atrás, ou não necessariamente, você fica mais focada no trabalho?
“Durante o trabalho realmente não. Não é por frescura nem nada, mas é que a gente
acaba tão envolvido com aquilo, como eu te falei, correndo atrás do tempo, que acaba
não tendo como ver isso. Em casa eu só abro a página do Uol, pelo menos dá para dar
uma lida, mesmo quando eu não leio jornal, pelo Uol eu fico sabendo das coisas.”
E essa mesma infra-estrutura de trabalho, ela permite você pensar sobre o seu trabalho,
analisar a sua presença dentro trabalho? Algumas pessoas falaram que, às vezes essas
coisas todas ao mesmo tempo em que as colocam em contato com o Mundo, as
impedem de ter uma visão do que está rolando no Mundo.
“Eu não acho que impede, pelo contrário. Quando eu estou na universidade eu estou
em contato direto com as pessoas que eu gosto e eu acho que atrapalha um pouco o
rendimento. Eu perco a noção do tempo e fica comentando alguma coisa do meu dia
com meu noivo que mora lá, minha mãe que mora lá, e você poderia estar produzindo
alguma coisa nesse tempo. Não que isso impeça a gente de ter uma visão, mas
atrapalha um pouco a produção do trabalho.
Você faz alguma atividade cultural, alguma coisa ligada à música, ou esportiva?
“Sim. É uma arte marcial, o Nitten, a arte da guerra dos samurais. Comecei a praticar
quando cheguei aqui no Recife. É minha única atividade.
E qual a relação disso com o trabalho? Você vê alguma associação?
“É total. É superinteressante. É um treinamento de guerra, né? Você é treinado como
um soldado. Você não faz nada andando, você corre o tempo todo. E te leva a
extremos. Muitas pessoas da are de informática também pratica. O Nitten te motiva ao
extremo para superar os limites físicos. Você está cansado ali e tem que fazer o
227
exercício, eu até estou toda dolorida, toda roxa. Eu sou a única menina, e é até mais
motivante tentar ganhar dos meninos. E tudo é de igual para igual lá. É motivante em
termos de vencer desafios. Vencer seus limites tanto físico – eu te falei do cansaço,
você luta com uma armadura pesada, capacete, luvas, é quente, fede - e psicológico. Eu
sou a única menina, todo mundo querendo fazer melhor. No final do treino ainda tem
que meditar um pouquinho.
Isso de vencer desafio no treino é algo análogo ao ambiente de trabalho?
“Não é só trabalho, é vida como um todo eu já fico levando assim. Chega ao final do
dia e eu estou acabada, acho que não consigo fazer mais nada, e penso “vai lá, você
consegue, ainda tem roupa para lavar, tem prova amanhã e você tem que estudar para a
prova amanhã”. Eu acho interessante você conversar com o pessoal. Por coincidência,
a maioria é da área de Informática.”
Você acha que é coincidência?
“De repente, pode ser, né? Pode ser um reflexo. Muita gente faz escalada, rapel, pára-
quedas. Eu até tenho um colega que quebrou o pé todinho nessa brincadeira com pára-
quedas.”
Parece que esse tipo de atividade lhes coloca diante de uma coisa bem real, bem difícil.
Não somente real por causa da questão do toque. É um real confiável, que você sabe
que está ali. Você tem uma impressão oposta no seu trabalho? A distância que essa
tecnologia te dá, te coloca?
Pelo contrário, eu vejo proximidade. Eu saio com o pessoal da universidade, converso
com outros colegas, até sobre oportunidades, sobre cursos, que eu não falaria se não
tivesse toda esta infra-estrutura. Voltei por causa do bendito Orkut – ou do maldito
Orkut, porque é uma coisa que rouba o nosso tempo - mas por causa dele eu já
encontrei pelo menos 10 colegas que eu não falava há pelo menos cinco anos. A
maioria também está na área. Eu tenho colegas em São Paulo, em Belém. Você vai
aumentando o seu leque de opções, também não fica só preso, bitolado aqui no
228
trabalho. De repente preciso viajar para São Paulo e tenho algum contato. Pelo
contrário, não acho que barra não, até melhora.
229
Aluízio - Gerente
Você tem idéia de quanto tempo você trabalha durante a semana?
“Pelo menos dez horas por dia. E, dependendo do projeto em que eu estiver, eu posso
trabalhar no fim de semana ou virando noite. Já virei na madrugada do sábado para o
domingo. Pior se eu estiver viajando, porque você trabalha o dia todo com o cliente e,
quando chega ao hotel, ainda vai fazer relatório, vai documentar o que você fez
durante o dia todo.”
E você leva trabalho para casa também?
“Com certeza, quase sempre. É muito comum sair daqui e chegar em casa para checar
o e-mail de novo, ver o que está acontecendo, acertar uma pendência. É muito
comum.”
Você tem uma idéia de quanto, destas dez horas, você passa aqui na
empresa ou em casa?
“Eu diria que oito ou nove aqui, e pelo menos uma hora por dia em casa.”
E qual dos ambientes você prefere?
“Eu prefiro em casa. Inclusive aqui na empresa a gente tem uma política de, às vezes,
dependendo do que a gente está fazendo – escrevendo relatório, por exemplo –, ir para
casa para fugir do barulho. Todo mundo daqui tem uma infra-estrutura em casa. Eu
montei meu escritório, com banda larga, cadeira, mesa, tudo direitinho, para poder
fazer lá tudo o que eu faria aqui. E, como a gente trabalha com segurança, montou uma
infra-estrutura para isso. Então, você trabalha em casa como se estivesse aqui. É
completo. O bom é porque lá é calmo. Você trabalha sozinho, sem ninguém
atrapalhando ou interrompendo no telefone. Mas a estrutura no escritório, com certeza,
é mais sofisticada.”
Você atualiza o seu banco de conhecimento através de fóruns, newsletters?
“Especialmente por segurança, eu assino 12 listas. Tem umas quatro ou cinco que eu
leio com mais freqüência. Estas eu leio o tempo todo mesmo. Se algum cliente ligar
para mim agora com algum problema, com vírus novo, alguma vulnerabilidade, a
230
gente já está sabendo. Então, antes de eu ler o meu e-mail, eu checo as listas para saber
o que está acontecendo. Na área da gente, de um dia para outro podem acontecer mil
coisas. Então eu uso listas principalmente de sites especializados. Fóruns nem tanto, eu
não gosto muito.”
E quantas vezes você lê essas listas? Duas vezes por dia?
“Não, não. A cada meia hora, ou uma hora, eu estou lendo as listas. E à medida que vai
chegando e-mail, eu já vou lendo. Se juntar as listas e os e-mails, acho que dá uma
freqüência de meia em meia hora. Se eu ler de manhã e só deixar para ler de novo à
noite, e acontece alguma coisa à tarde, eu já fico sem saber.”
Você consegue analisar em que medida esta checagem é realmente necessária? É
importante de fato ou apenas cria uma sensação psicológica?
“Eu fico neurótico se passar muito tempo sem ler e-mail. Fico com a sensação de que
está acontecendo alguma coisa e eu não estou sabendo. Você fica pensando se alguém
não mandou um e-mail importante, com alguma notícia bombástica, aconteceu algo
novo de ataque com relação ao trabalho. É “neura” mesmo, eu penso que está
acontecendo alguma coisa que eu não estou sabendo. É pura “neura”. Mas ao mesmo
tempo é extremamente necessário estar lendo, porque a gente recebe muita solicitação
e conversa muito via e-mail. O cliente também, quando está viajando, por exemplo. Às
vezes está com um problema e não liga, manda um e-mail. A gente presta todo tipo de
suporte através do e-mail.”
Diga se eu estiver equivocado. Você trabalha conectado a outras pessoas,
fazendo esse tipo de atualização de informação. Eu suponho que
eventualmente você compre pela internet também...
“Eu nunca gostei. Em todo esse tempo, eu só comprei pela internet três vezes, uma na
semana passada. Eu só faço isso por um motivo: quando a coisa que eu estou querendo
não vende aqui. Uma vez eu comprei um livro que só tinha lá fora. Mas eu não gosto.
Como eu trabalho com segurança, eu sei exatamente como as coisas funcionam. Então
eu aprendi a ter um cartão de crédito com limite baixo e comprar só com ele. Eu não
gosto e não estimulo muito.”
231
Isso é comum para quem trabalha com segurança?
“Não, não, isso aí é relativo. Tem quem compra tudo no Mercado Livre (site de
compra e venda de artigos pela internet), todo tipo de bugiganga, acessório, álbum,
software, tudo. Eu já sou mais neurótico. Para outros amigos, tanto faz. Eu só comecei
a acessar internet banking depois de uns três anos. Achavam até engraçado, mas eu não
usava de jeito nenhum. Aí depois eu fui perdendo um pouco da “neura”. Quando você
trabalha com segurança, sabe como funciona e como é fácil invadir, então não
consegue relaxar. Você sabe que aquilo ali é vulnerável e vai comprar naquela loja?”
Essa infra-estrutura que permite o seu trabalho também coloca você em
contato com informações de todo o mundo que não têm nada a ver com
segurança...
“Mas eu procuro separar. Procuro evitar porque geralmente você perde o foco e para
voltar dá muito trabalho. Às vezes você começa vendo alguma coisa na internet que
não é relacionada ao trabalho e quando você percebe já perdeu meia hora vendo uma
besteira. Porque é muita informação interessante e uma puxa a outra. Eu procuro evitar
mesmo.”
Você se concentra no trabalho, então?
“Só no trabalho. Procuro até separar as tarefas. Se preciso pesquisar, então eu vou só
para pesquisar. Se eu estou fazendo um relatório agora e começo a pesquisar, eu saio
do foco e dá problema.”
Quais são as formas que você utiliza para se informar sobre política,
economia, entretenimento, ou outro assunto que te interessa?
“TV, jornal. Só uso internet quando é uma coisa que eu sei que não vai ter em outro
meio, quando é uma coisa muito específica, sobre segurança ou informática. Ou então
coisas em que a internet tem uma velocidade maior. No dia em que aconteceu o ataque
do 11 de setembro, pela internet eu ficava sabendo das coisas mais rápido do que pela
televisão. Eu via o passo-a-passo, a explosão, tudo pela internet. Mas geralmente eu
prefiro jornal e televisão.“
E fora essas listas que você assina, existem outras que não tenham a ver
com trabalho? Tenham a ver com diversão, cultura?
232
“Eu já entrei em lista de webdesign. Dava um trabalho danado, mas eu encarava como
um hobby, mas isso foi em 1998, 1999. Eu já assinei uma lista de bike, de trilhas. Mas
hoje em dia não. Eu já tenho muitas listas, se eu fosse assinar outras, ia complicar
demais. Se você deixa de ver certas listas acumula muita mensagem, você perde o
gosto, acaba saindo.”
Você tem algum mecanismo para se afastar do trabalho, para evitar estresse?
“Para desligar é complicado. Eu fico pensando que tenho de cobrar dos integrantes da
equipe que coordeno, tenho que ocupá-los, se eu não der as tarefas, eles ficam ociosos.
Então, para desligar mesmo, acho só quando eu não estou perto de um computador
com acesso. Se eu estiver na casa de alguém, no interior, qualquer lugar, se existir
computador perto, com acesso, eu vou lá. Vejo o e-mail em 15 minutos, para ver as
mensagens mais novas. É muito difícil desligar. E e-mail é trabalho. Para mim, não é
algo muito pessoal não. Acho que os meus e-mails pessoais não chegam a 10% ou
15%, o resto é tudo trabalho. Mas eu gosto. É “neura”, eu sei, mas para desligar é
difícil.”
Toda essa infra-estrutura que você tem, todo esse acesso à informação,
ajuda a refletir sobre o trabalho ou não interfere?
“É estranho. Exatamente porque eu trabalho com rede, com segurança... Eu trabalho
com um negócio que há dez anos não existia. Meu trabalho surgiu por uma demanda
criada pelo próprio computador, para resolver um problema do computador. Estou
aqui para resolver um caos criado pelas pessoas e pelas máquinas. É estranho saber que
a gente tem que resolver um caos que a gente mesmo criou.“
E esse seu interesse por bike, nasceu quando, por quê?
“Primeiro porque estou sedentário há muito tempo mesmo. Sei lá, eu acho que a última
vez que eu fiz exercício foi no tempo de colégio, há uns dez anos. Estava engordando,
e tal. E eu sempre quis fazer alguma atividade. Oitenta por cento das pessoas da
empresa fazem pára-quedismo, virou uma coqueluche aqui, coisa de um ano para cá.
Minha chefe já tinha feito um ou dois saltos. Todo mundo procurou alguma coisa para
fazer. Rapel, pára-quedismo, alguma coisa. Todo mundo tinha essa necessidade, de se
agarrar a algum esporte. Aí começou essa mania de pára-quedismo. Tem gente aqui
233
que tem uns 12 saltos. Só eu e outro aqui não saltam. É porque não dá para mim
mesmo, é um brinquedinho muito caro. O cara deixa de fazer outras coisas para pagar
o salto, porque é uma coisa muito apaixonante. Eu sou meio medroso e prefiro uma
coisa mais no chão. E eu escolhi bike porque eu gosto. Eu conheço a galera que faz, eu
vejo as fotos das trilhas do pessoal. Inclusive eu nem comecei, eu estou querendo
começar. Ainda estou esperando bicicleta, sei que não tenho condições ainda de fazer
trilha. Mas foi pela vontade de ter um esporte, uma paixão, alguma coisa pessoal.”
Você tem algum contato com cultura, com música?
“Eu já tive muita vontade de entrar no maracatu. Mas eu não sei se tenho pique para
ficar no carnaval, batendo não sei quanto tempo. Eu não sei tocar nenhum instrumento
e pensei que percussão teoricamente seria mais fácil. Você precisa de um pouco mais
de ritmo, mas você consegue. Mas também não é muito fácil, não. Isso está vinculado
à preparação física mesmo. Ficou na vontade.”
O interesse pela bicicleta é uma coisa só de momento? O maracatu ainda
está na vontade?
“Está na vontade. Porque também tem que ter dedicação. A bike eu vou quando quiser,
em qualquer sábado. Mas o maracatu, a bronca é que tem que ir aos ensaios, que são
no meio da semana e estou na faculdade, não posso. É mais complicado por causa
disso. Eu não encaro o maracatu mais por causa dos horários. E tem também fim de
semana que eu não posso porque estou viajando a trabalho. Para deixar de ir, não vale
a pena. Com a bike eu acho que vou ter muito mais liberdade. Quando eu não puder ir,
não vou. O maracatu tem que ter uma certa regularidade. Mas eu não estou nem
afirmando, eu estou imaginando já. Ainda nem procurei saber os horários, se tem no
fim de semana.”
234
Mauro - Gerente
Qual sua profissão, o que você faz está aqui no C.E.S.A.R.?
“Faz três anos que eu estou aqui no C.E.S.A.R.. Hoje eu trabalho na numa empresa
incubada. Eu sou gerente de produto da empresa. Eu já trabalhei como engenheiro de
software, fazendo criação. Hoje eu trabalho na área um pouco mais comercial, mais no
contato com os clientes.
Mas você já trabalhou no planejamento de sistemas?
“Até bem pouco tempo. Eu trabalhei dois anos e pouco como engenheiro de software e
como gerente de operação, que fica responsável pelo controle de todos os artefatos que
são gerados pelo projeto. Eu trabalhei na Petrobras e no projeto da Fapesp. Depois eu
saí e vim para cá, para esta nova atividade. “
Essa atividade tem uma conotação mais comercial mesmo?
“Nem tanto. A gente faz os dois lados do trabalho. A gente faz o controle na área de
gerência de projeto, mas também um pouco de contato comercial, de saber como anda
o produto, o que o cliente está achando.”
Como é que você faz para dividir o tempo de trabalho e o tempo de lazer?
“Tem um complicador, que é o fato de que a gente precisa estar sempre aprendendo. É
impressionante como a gente se preocupa muito em estudar, em estar sempre
atualizado. Mas eu também procuro sempre sair com os amigos. Eu sou músico e
procuro tocar sempre que eu posso.”
Têm importância estas formas de relaxamento para o seu trabalho?
“Demais, porque o trabalho com tecnologia é uma coisa muito solitária. Trabalhar com
a máquina em si... ela não tem olhar, ela não tem um gesto, não há troca de idéias, não
dá um feed back – que seria uma atitude humana. Então às vezes você fica muito só. A
tecnologia traz um pouco de solidão para a gente. Quando a gente brinca com os
amigos, a gente consegue suportar um pouco mais. “
235
Vocês são profissionais que trabalham conectados. Praticamente todo o tempo
em que você está trabalhando você está conectado, ou em MSN, ICQ, ou
newsletters. E o pressuposto de se estar conectado é de que você não está só.
“Exatamente, é um paradoxo. Porque ao mesmo tempo em que a pessoa está conectada
com o mundo inteiro, também está sozinha. Eu digo que a tecnologia e o avanço da
Internet trouxeram essa coisa estranha. Você é capaz de ficar em casa, sentado no seu
quarto, passar um dia e não estar só. E o que é estar só? Eu gosto muito de estar num
lugar com as pessoas, conversando, de observar a expressão, o olhar, de tocar. E tem
gente que não, que gosta de ficar no seu cantinho, no computador. No começo eu tive
até uma resistência a essa coisa de MSN, mas eu já estou me acostumando. Eu acho
que isso é estar só, por mais pessoas com quem você possa falar.”
Essa solidão é cercada por uma infra-estrutura que permite você
trabalhar. Isso permite que você tenha acesso a um monte de
informações do mundo todo. Isso fez com que você refletisse sobre o seu
trabalho?
“Muito.“
Isso já mudou a sua visão de trabalho?
“Já e eu decidi isso há um tempo atrás – hoje esse cargo que eu estou já tem um
planejamento de dois anos. Já foi um limite, porque eu já não agüentava mais aquela
coisa de diariamente desenvolver, passar o dia fazendo aquilo. Então eu fiz um curso.
Eu sou formado em Ciências da Computação e sou pós-graduado em planejamento e
gestão de empresas. Eu quis partir para uma área mais humana, em que eu pudesse
trabalhar mais com as pessoas. Eu converso muito com os amigos sobre essa coisa de
estar conectado ao mundo e ao mesmo tempo estar só. É meio estranho isso. A gente
convive com uma pressão muito grande diariamente. O jornalista, com 40 anos, vai ter
uma bagagem que qualquer empresa da área vai querer. Eu não sei, se eu passar dois
anos fora da minha área se alguém vai me querer. Se quando eu estiver com 40 anos,
alguma empresa vai me querer.”
Essa sua reflexão sobre o trabalho acontece por causa do desconforto de
demanda, de pressão, ou é por causa das informações e das pessoas a
que você tem acesso?
236
“De certa forma nós somos privilegiados. Trabalhamos aqui no C.E.S.A.R., estamos
interligados à universidade, temos muito incentivo ao estudo e temos um vasto acesso
à informação. Essa avaliação sobre o trabalho, eu acho que tem mais a ver com meu
perfil. Eu conheço pessoas que vêm, sentam perto de mim, para elas não tem
problema, mas são minoria. O grande desafio para as empresas é desenvolver um
trabalho de gestão de pessoas em cima da área tecnologia. Porque as pessoas estão lá
quietinhas e você acha que elas estão felizes da vida. E se entrar no mundo delas, vai
ver que precisa motivá-las.”
Profissionalmente, você está feliz, se sente realizado?
“Estou.”
Apesar desta necessidade de atualização o tempo todo?
“ Tem a parte ruim, profissional, mas tem a parte boa. Essa ansiedade, quando você a
leva para a sua vida pessoal, lhe faz estar muito mais ligado no mundo. Quando você
trabalha na área tecnologia, a tendência é chegar em casa, querer ler mais um pouco. É
como se fosse um vício, mas é um vício gostoso. Um vício do aprender sempre. Isso é
uma coisa boa. Aprender não apenas sobre a máquina, sobre tudo. Você começa a ter
uma necessidade de estar sempre estudando, lendo. Quando você trabalha numa coisa
mais técnica, sempre tem vontade de chegar em casa e ler algo diferente. Isso lhe torna
uma pessoa mais aberta para o mundo, com uma visão mais ampla. A área de
negócios, principalmente, associada com tecnologia, traz uma visão muito boa. A
gente percebe que o desenvolvimento de software é uma rede de trabalho e o que podia
ser melhor. Eu procuro levar isso para o dia-a-dia.
Em uma semana normal, você trabalha quanto tempo, levando em
consideração o trabalho na empresa, planejamento fora, reunião,
trabalhos em casa?
“Às vezes eu preciso mesmo levar trabalho para casa. Quanto ao tempo, eu não sei se
eu posso precisar, porque tem semanas que são mais puxadas. Aqui, muita gente não
tem horário. Mas tem gente que chega às oito, almoça às 12h, sai às seis da noite. Aqui
na empresa a gente tem horário livre. Eu posso chegar, trabalhar duas horas pela
manhã, seis horas à tarde ou posso chegar mais cedo e sair mais cedo. É uma liberdade
237
que a gente tem na área de tecnologia que é muito boa. Respondendo à sua pergunta
com relação à semana, eu diria que varia muito. Pode ter semana em que eu trabalhe
12 horas por dia, porque tinha relatório para entregar. Mas já teve semana que deu para
segurar um pouquinho, eu trabalhava só seis horas, às vezes chegava um pouco mais
tarde. O sistema pelo qual a empresa funciona também ajuda muito.“
É comum você levar trabalho para casa?
“Quando tem alguma coisa para fazer aqui normalmente eu fico até mais tarde, saio às
oito, nove horas da noite. Não tem nem tempo, se você leva alguma coisa para casa, só
vai dormir e voltar no outro dia. Mas se houver uma necessidade, a gente leva.”
Você prefere trabalhar no ambiente da empresa?
“De preferência aqui. Por causa da estrutura, né? A estrutura que a gente tem por trás é
melhor aqui. Às vezes você precisa de alguma coisa, quer acessar um site, falar com
alguém da empresa, é melhor ficar.“
Você participa de fóruns de discussão, newsletters? Como você faz para atualizar
seus conhecimentos?
“Depende muito. Eu hoje estou muito mais focado em ler sobre negócios mesmo.
Então, eu leio revistas, uso sites específicos, para estar atualizado sobre o que está
acontecendo no mundo em geral, mas principalmente sobre empresas, essa coisa toda
envolvendo mercado. Cada um na sua área. O pessoal de desenvolvimento de software
vai estar sempre ocupado em usar um plug-in novo, alguma coisa nova de Java
(linguagem de programação), de protocolo, que possa aproveitar.”
Há quanto tempo você é músico?
“Eu comecei em 1995, já vai fazer 10 anos. Comecei na banda Pagunça. Eu era
menino mesmo, com uns 20 anos, já fazia faculdade. Tocando em alguns eventos,
algumas festas. Foi uma coisa muito boa, hoje somos muito amigos, ainda tocamos
juntos de vez em quando, mas não de maneira profissional. A gente vai em barzinho,
faz o da gente, sempre brincando, se divertindo.”
Você toca o que?
238
“ Percussão.“
Isso tem alguma relação com o trabalho?
“Meus amigos morrem de inveja. Dizem “como é que pode? Você tem um hobby e
ainda ganha dinheiro com isso?” Eu me divirto. É fantástico. Tem gente aqui com
outras bandas:. É maravilhoso, é uma forma de desopilar. Tocar é um hobby
maravilhoso.”
Ajuda a desligar do trabalho?
“Demais. A idéia, não só na área de tecnologia, mas em toda área, é que você tenha
uma forma de relaxamento fora do seu trabalho. Eu sou um cara esportista, por
exemplo. São muito comuns os grupos d corrida de aventura e de mountain bike nas
empresas de software. A corrida de aventura inclui correr, nadar, fazer escalada, bike,
geralmente. Como a faixa etária do pessoal é jovem, a gente procura se encontrar fora
do trabalho para relaxar mesmo. E isso ajuda você a dar uma quebrada e voltar
renovado.”
Todos esses elementos, a música, o esporte, ajudam você a separar o que
é trabalho do resto da sua vida particular?
“Ajuda a ter uma visão melhor as coisas. Hoje eu sou um cara muito mais preocupado
em ser feliz do que em me matar de trabalhar. Eu acho o trabalho importante, acho que
a gente precisa, a sociedade exige isso. Não adianta você abandonar tudo e resolver
viver numa praia – não dá. Se você quer ter uma família, quer construir algo, precisa
trabalhar. Mas a minha visão hoje é mais de que é melhor ser uma pessoa boa para as
outras pessoas do que me fechar no meu trabalho e deixar o tempo passar.”
Você já se chegou a se concentrar totalmente no trabalho?
“Eu já vivi épocas de pensar muito no trabalho. Logo no comecinho.”
O que foi que mudou?
“A questão de fazer música me ajudou muito. Eu nunca imaginei que ia fazer o
sucesso que a gente fez na época. E você vê que as coisas passam muito rápido na vida
e aí eu imaginei que não podia viver só daquilo.
239
Quantos anos você tinha na época em que começou com a banda?
Eu tinha faculdade e tocava. Eu era louco pela minha banda mas eu deixei de viver
muita coisa. Porque eu trabalhava nela. Não era só tocar. A gente montou uma
empresa, era uma coisa muito séria. Eu dizia que ali eu perdi algumas coisas. Hoje em
dia eu não me arrependo de nada, mas há uma grande diferença de rumo. Hoje eu estou
preocupado em fazer um bom trabalho na empresa mas também eu estou preocupado
em sair para almoçar com os amigos, marcar finais de semana para a gente se
encontrar.”
Você percebe que isso acontece com seus amigos que trabalham com TI
também? É comum essa mudança de atitude com relação ao trabalho?
“Não sei se é comum. Eu acho que posso dizer que eu tive uma experiência ímpar.
Tem pessoas que têm outras esferas de vida. Mas eu tenho muitos amigos aqui dentro
que querem mudar, querem viajar, sair um pouco da área. Tem uns que querem ficar
aqui até os 35 anos, depois querem ir pro seu cantinho montar alguma coisa fora da
área. A pergunta-chave é essa: você pretende trabalhar com TI até quando?”
Você pretende ficar até quando?
“Eu? Já quero entrar em outra coisa, já estou até trabalhando para isso. É uma área no
começo muito boa, desenvolver trabalhar com uma linguagem, é uma fase boa que
você passa. Geralmente tem uma fase mais nobre, você sai da faculdade programando,
mas depois, você não quer ficar eternamente assim.”
E essa renovação de que você fala?
“Sim, aí é que está. O novo tem muita coisa boa, mas tem coisa ruim.
Profissionalmente, comparando um homem de quarenta anos e um menino de vinte
anos que trabalham com Java (linguagem de programação), o garoto leva vantagem
porque não está cansado.
Você gosta de seu trabalho?
“Eu gosto do conhecimento que eu tenho, acho que é importante me manter atualizado.
Mas eu quero uma coisa mais...”
240
Mais tranqüila?
“Não, mais... Como eu diria? Quando eu vi para a área de negócios eu queria tratar
mais com gente, diariamente. Deixar um pouco de tratar com a máquina. Eu queria
negociar, conversar, trocar uma idéia. Às vezes as pessoas estão lá chateadas mas
chegam, fazem o trabalho delas e depois vão para casa. Mesmo que não suportem
aquilo. Eu tenho essa visão de muita gente que eu conheço, que falam sobre isso.”
Mas quanto tempo você acha que vai ficar na área?
“Eu gosto da área que eu estou hoje, uma área em que eu estou construindo uma coisa
nova para mim. Mas em desenvolvimento, na área técnica mesmo, não quero mais
ficar. Há três anos eu tinha 29 anos e eu já estava tentando partir para uma coisa nova.
Quando eu coloquei na cabeça no ano passado que ia fazer especialização em uma área
na qual eu sempre tive interesse, comecei a batalhar para ter a oportunidade para
trabalhar com outras áreas e consegui. Se eu tivesse que voltar para a área de
desenvolvimento, por necessidade, eu voltaria. Mas não é o que eu quero para mim.
Daqui para frente eu pretendo continuar tentando trabalhar mais com as pessoas, não
com máquinas.
Você é feliz?
“Sou feliz, mas há controvérsias. Esse trabalho te deixa isolado no mundo. O mercado
no qual a gente trabalha é muito amplo, mas joga sobre a gente uma cobrança muito
grande. O cara manda eu fazer uma coisa, tenho que sair correndo para casa, para
estudar. Chega uma hora que você começa a questionar. O que um profissional quer na
vida é trabalhar naquilo em que ele se formou, ser muito bom naquilo e ter experiência
e se dar bem no mercado. A área da gente é muito solta. Você pode se dar muito bem e
daqui a dois anos aparecer uma nova linha de programação, uma nova tecnologia que
praticamente anula o investimento dos anos passados. Nada é jogado fora. Eu conheço
gente que era mestre em Cobol, esse pessoal hoje está desesperado, perderam o bonde
com trinta anos. E aí? Por isso que as pessoas correm hoje. Um cara de TI consegue
sair daqui para o Rio para ganhar hoje seis mil reais. Tem um amigo meu que está nos
Estados Unidos, trabalhando na Microsoft. Tudo bem, não vai ficar lá o resto da vida,
241
vai para ganhar dinheiro. A gente sofre, mas também goza. É necessário ter uma
estratégia de andar e ganhar dinheiro. O meu tempo com desenvolvimento já passou.
242
André – Gerente
Qual sua profissão e como você começou a trabalhar nessa empresa em que
atua hoje? “Eu sou formado em Ciência da Computação, na minha época Informática.
Comecei minha vida profissional através de uma empresa chamada Dek Sistemas,
onde estagiei na época. Antes disso eu tinha feito um estágio no próprio núcleo da
Universidade Federal de Pernambuco. Na Dek Sistemas eu entrei como
programador, fui analista e depois fui convidado para o Bandepe, para ser o
analista responsável pela parte de previdência privada. Logo em seguida fui
chamado para ser o gerente de Sistemas do Bandepe. Fiquei lá 11 anos como
gerente. Depois eu saí para o Diario de Pernambuco. Fui gerente de Informática lá
durante pouco mais de um ano. Depois do Diario de Pernambuco, eu fui para uma
empresa chamada Politec, que na época prestava serviços para o Governo do
Estado. Passei a coordenar o Projeto Nordeste, da Secretaria de Educação. Passei
quase cinco anos. Depois a Politec teve um problema com o Governo e saiu – o
serviço passou a ser feito pela empresa na qual eu atuo hoje. Aí eu fui contratado
por essa empresa para poder continuar prestando serviços ao Governo. Assumi a
gerência de Projetos da empresa. Hoje eu acumulo as gerências de Projetos e
Tecnologia.
O que você exatamente você faz?
“Na área de projetos, como o nome já diz, eu desenvolvo projetos. Obviamente,
projetos novos. Um exemplo. Projetos de telemarketing político, projetos para
órgão estatal ou privado. Trabalho para divulgar o nome na praça, montar call
center dentro das empresas. Desenvolvo projetos completos, tanto na parte de
recursos humanos, como a parte de infra-estrutura. Na área de Tecnologia, a
gente cuida da infra-estrutura interna da nossa empresa e de nossos clientes, com
os quais temos contratos de infra-estrutura de tecnologia. A gente faz toda a
gestão. Tanto mantém a Provider, enquanto sede, em pleno funcionamento,
porque nós trabalhamos com modelos de 24 horas por sete dias, sem interrupção.
Então a gente tem que manter todas essas estruturas, tanto de telefonia, quanto
de computação.”
Vocês têm call center também?
243
“Internamente aqui nós temos um grande call center. Aqui do lado tem um galpão
enorme com aproximadamente 140 composições. Cheguei aqui através do
Governo e a empresa resolveu me absorver nesse aspecto.”
Você tem uma idéia clara de quanto tempo se dedica ao trabalho durante
a semana?
“Eu procuro fazer meu trabalho dentro do horário comercial. Mas, como trabalho
com projetos, às vezes temos clientes que pedem projetos com uma complexidade
maior e aí você tem que se submeter, senão você perde o trabalho, o cliente. Aí
você às vezes dá uma esticadinha, trabalha no final de semana. Mas no normal eu
procuro exatamente fazer meu horário dentro do contexto comercial, gosto de
marcar minhas reuniões dentro do horário comercial. Só extrapolo quando
realmente há necessidade, quando tem uma coisa muito fora do contexto.
Trabalhamos raramente nos finais de semana, só quando o projeto requer mesmo.
Trabalhamos mesmo é de segunda a sexta, é uma regra da casa. Só se trabalha
fora do expediente e final de semana quando for necessário. Não é um costume
trabalhar no sábado aqui. Eu, como gerente, às vezes venho aqui para ver como
está o pessoal da escala no final de semana. Ou então quando tem um projeto que
requer um tempo mais enxuto, a gente trabalha no final de semana, à noite, de
madrugada. Mas isso não é o normal.”
Hoje em dia, a maior parte das empresas tem uma área dedicada a
projetos desse tipo ou profissionais que são preparados e estão
esperando a definição para entrar em projetos desse tipo. Isso é comum,
vem se modificando muito, esse núcleo de criação nas empresas?
“Normalmente, uma área específica de projetos só tem um sentido quando a
empresa passa a ter um espaço razoável no mercado. Normalmente as empresas
têm seu foco e os projetos, que já são pré-definidos. Quando a empresa cresce
muito e absorve outros nichos de mercado, começam a aparecer projetos
diferenciados. Aí é que é necessário ter uma área de projetos, porque esse pacote,
vamos dizer assim, tem que ser muito bem elaborado, já que você tem nichos de
mercado novos. Tem que ter técnicas de projeto, fazer avaliação de nichos,
avaliação de custos. Dificilmente você encontra empresas pequenas com áreas de
projeto estruturadas, em organogramas, que tem um gerente e pessoal de
projetos. Normalmente você tem uma pessoa que faz projetos, normalmente uma
pessoa de tecnologia, de O&M.”
244
Em termos percentuais, quanto tempo de trabalho você dedica no
ambiente da empresa, e quanto você tem que se dedicar em casa?
“Normalmente eu trabalho 40 horas semanas, 8 horas por dia. Às vezes eu chego
um pouco mais tarde, mas aí só tiro uma hora pra almoço. Eu tenho um
relacionamento familiar à moda antiga. Lá em casa tomamos café, almoçamos e
jantamos juntos, sempre. Na empresa, temos 40 horas semanais de trabalho e
extrapolamos pouco – quatro horas na semana, uma hora a mais por dia. A gente
procura fazer tudo dentro do horário. Quando você trabalha muito fora do horário,
é porque tem alguma coisa está errada. Ou você está com sobrecarga de trabalho
ou não está sabendo administrar seu tempo. Então se você está com sobrecarga
de trabalho tem que colocar alguém para lhe ajudar, ou delegar funções. Aqui na
empresa, como eu sou da área de projetos, quando tem alguma tarefa que não
está no dia-a-dia da empresa, normalmente quem assume sou eu. Quem faz todas
as apresentações da empresa, da parte institucional, de folders, sou eu. Aqui a
gente tem assessor de Imprensa, que cuida da parte mais jornalística, mas no
restante quem faz tudo sou eu.”
Você trabalha com projetos, se relaciona com clientes, tem as mais
variadas atividades. Eu imagino que com isso você tenha que, em pouco
tempo, compreender o negócio do cliente para poder formatar um serviço,
um projeto. Imagino que isso seja uma pressão. Como é que você faz?
“Isso é uma aptidão que a pessoa de Informática – minha formação é em análise
de sistemas – tem que ter. Um analista de sistemas o ferramental dele é para
compreender o negócio de um cliente qualquer. Se ele chega aqui com um
problema, eu tenho que me transportar para entender o negócio e fazer com que
a ferramenta que será desenvolvida atenda às prerrogativas dele. Se ele não tiver
essa habilidade, é melhor fazer outra coisa.“
Mesmo hoje tendo um cargo de gerente, você continua sendo esse
analista de sistemas?
“Antigamente você especificava o sistema. Mas hoje em dia, o analista de
sistemas faz o projeto de um negócio. Um exemplo. Fomos convidados pela Viação
Progresso para fazer um trabalho sobre venda de carga, via telemarketing. É uma
coisa que não é do dia-a-dia da gente. Então eu tive que ir lá, levantar,
compreender, conversar com um diretor ou gerente com visão estratégica da
empresa. Porque ele tem que passar essa estratégia, o que ele quer fazer com
245
aquilo, os resultados que precisam ser alcançados. Não adianta fazer uma coisa
bonita, bem desenhada, mas que não vai trazer os resultados que o cliente quer.
Se ele quer implantar a venda por telefone é porque ele quer aumentar seu poder
de venda, quer trazer mais recursos para a empresa. Primeiro tem que ver qual é
a estratégia da pessoa, sua posição de mercado, qual é o nível de cliente que ele
quer atingir. Então, você compreendendo isso já é meio caminho andado porque
você já tem o direcionamento da estratégia. Depois você parte para a parte tática,
a parte gerencial, para ver como é que o pessoal faz hoje. Em cima da situação
atual você tem que fazer a parte de análise, para saber se aquilo realmente está
bom para a empresa ou se você precisa melhorar algum processo. Por trás sempre
de um trabalho desses vem a otimização de processos. Depois é que você parte
para o terceiro nível, que é o operacional. Vai ver como é no dia-a-dia, como o
vendedor visita as pessoas, para poder adequar o projeto ao que o cliente
realmente quer. Normalmente, quando é uma coisa muito diferenciada, a gente
propõe um piloto e vai ajustando.”
O tempo que você tem para fazer esse levantamento e o tempo que o
cliente lhe dá são compatíveis?
“Normalmente isso é negociável. Tem cliente que tem pressa, mas o que a gente
tem que enfocar mais é no levantamento. Porque se for um projeto urgente a
trabalha à noite, final de semana. O que não pode eu sentar aqui sem os dados
para fazer o projeto, porque aí vou ter que toda hora ficar interrompendo as
pessoas para levantar os dados. Se você tem os dados bem especificados, senta e
faz o projeto numa boa. O tempo depende da abrangência do projeto, do
conhecimento da empresa daquele negócio. Projetos mais complexos, que
envolvem muitos custos, tem que passar pela área comercial, pela área financeira.
Mas se for um projeto que a gente tenha o custo levantado dentro da empresa,
flui mais rápido.”
Em geral existe pressão do cliente?
“Às vezes não é só a pressão do cliente e sim da concorrência. Se você demora
muito com um projeto, o cliente começa a querer procurar a concorrência. E a
pressão às vezes vem do seu próprio diretor comercial, seu diretor-presidente,
que diz ao cliente que a gente vai entregar o projeto com X tempo. Esse X tempo
às vezes faz você trabalhar na pressão, no estresse, porque o tempo comercial
pode não estar ajustado com o tempo técnico.”
246
Em geral está ajustado ou não?
“Em alguns casos sim, em outros não. A gente até compreende qual é a angústia
do vendedor, do diretor comercial ou até do presidente da empresa para entregar
o projeto naquele tempo, porque se demorar muito a concorrência chega perto do
cliente e oferece um projeto parecido. Mas aí é administrável.”
Existem negócios específicos que recorrem a você com mais freqüência,
que você conhece um pouco mais ou que você procura se atualizar mais?
“Existe. Porque a nossa empresa tem duas vertentes. Uma é a parte de call
center, contact center, e outra é a parte de terceirização de mão-de-obra. Nessa
parte de call center, a gente tem pleno conhecimento do negócio, cada um na sua
área. Como a gente é uma empresa que também faz integração de soluções,
temos muitos parceiros que nos fornecem o software para que a gente implante,
dê treinamento e seja responsável pela manutenção.”
Você participa de algum tipo de fórum ou newsletter relativo a seu
trabalho?
“Atualmente, não. A gente está sempre participando de palestras. Somos
associados ao Softex, à Assespro, somos bem relacionados com esses órgãos e
recebemos diariamente comunicação via texto. Participamos de congressos. Então
o nosso fórum de participação está mais voltado para as palestras e órgãos de
classe. Nosso diretor-presidente é diretor também da Assespro e do Softex. “
Você tem alguma atividade cultural, que tenha a ver com diversão?
“Não. Gosto demais de lazer, de me divertir, tenho uma casa em Aldeia, gosto de
estar lá com meus amigos. Mas não participo de nenhum grupo ou associação.
Meu lazer é muito diversificado.”
Você tem alguma atividade própria, que envolva música, cultura?
“Não. Meu lazer é, como eu falei, é altamente abrangente. Eu gosto de uma casa
de campo, de uma praia, de um barzinho com amigos. Toda quinta-feira me reúno
com um grupo de amigos, um tipo de confraria, a gente faz happy hour. Nada que
se estenda até tarde. Gosto de esportes, como futebol, e pratico quando posso.
Faço caminhadas, faço trilha. Topo o que aparecer, mas não tenho um hobby
específico.”
247
Inácio - Gerente
Qual sua formação, como chegou a trabalhar nessa empresa em que atua hoje e o
que você faz? “Sou gerente nacional de tecnologia da empresa. Estou há 25 anos na área de
Tecnologia da Informação, sou graduado pela Universidade Federal da Paraíba e já
trabalhei em várias empresas multinacionais, tanto nacionais quanto no Exterior.
Por uma questão de logística, sou pernambucano e acho que chegou a hora de
voltar para casa. Já trabalhei em várias empresas, em todos os segmentos
praticamente e em várias instituições financeiras do País. Estou voltando ao Recife
para abraçar esse desafio, na WPD, para gerir e encontrar um melhor resultado
para a empresa.“
Qual a sua formação?
“Sou graduado bacharel em Ciência da Computação.”
Você passou muito tempo trabalhando diretamente com a máquina, com
programação ou implantação de sistemas?
“Isso foi na velha guarda. Formei-me em 1979 na Paraíba, ingressei na Empresa de
Processamento de Dados Estadual do Piauí e lá nós fazíamos tudo. Iniciei como
programador, logo depois fui analista, mas naquela época não tinha os papéis tão
definidos. A gente fazia tudo. Operador de sistemas, programador, tudo. Já passei por
todos os cargos possíveis, de carreira, dentro da minha área, desde diretor de
Tecnologia até programador.”
Hoje você trabalha mais diretamente com negócios, prospecção de negócios,
relacionamento com clientes?
“Com pessoas e gestão de processos na área de TI. Minha função é implementar
processos, com o apoio da tecnologia, fazendo qualquer tipo de negócio. Usando
ferramentas, usando técnicas de mercado. Tudo no sentido do negócio ser mais ágil.”
Um trabalho mais de gestão?
“Isso.”
Quanto você passou, mais ou menos, trabalhando diretamente com a máquina?
248
“Fui programador Cobol durante dois ou três anos, já trabalhei em várias linguagens de
quarta geração. Mas hoje eu não mais programo. A minha função hoje é diferente. É
gerir negócios e pessoas. Sou especialista na área de TI. Dependendo da necessidade
eu meto a mão. Mas a minha missão é ensinar aos meus subordinados – gerentes de
sistemas de negócios, programadores, desenvolvedores – as melhores práticas para que
eles utilizem as melhores ferramentas.”
Como houve essa migração desse trabalho de programação que você tinha para
uma posição mais de gerência?
“É o tempo. São 26 anos. Já fui analista júnior, analista premium, analista sênior, já fui
gerente de CPD. Voltei a ser analista de suporte, fui líder de projeto, coordenador de
projeto. Aí passei a ser especialista de negócios, especialista em métrica. Tomei a
iniciativa de estudar, especializei-me em CTRT e agora o que eu gosto é fazer gestão
para agregar grandes projetos. É uma das atividades que eu faço. São 26 anos
trabalhando na área com todos os desafios que a área de TI apresenta.”
Esse processo todo foi natural?
“Não. Eu tive a felicidade de me ter me formado numa época onde a carência de mão-
de-obra era muito grande. Não tinha realmente ninguém no mercado. Fui da segunda
turma da Universidade Federal da Paraíba. Informática talvez tivesse aqui no Recife,
um curso profissionalizante na Católica, mas na Federal não tinha curso de
Computação ainda. Naquela época se escolhia onde ia trabalhar. Então eu aproveitei e
trabalhei realmente onde eu quis, em várias empresas que naquela época tinham os
melhores salários, os melhores desafios. Eu trabalhei em interiores e capitais do Brasil,
mais o Exterior. Já trabalhei num projeto em Garanhuns, como consultor no Chile, lá
em Santiago, e ultimamente, nos últimos quatro anos, eu estava em São Paulo,
trabalhei no Bradesco e na Caixa Econômica Federal.”
Você teve interesse em migrar de uma área de desenvolvimento para o setor de
gerência?
“Na verdade eu virei gerente depois de 15 anos que estava na área de TI. Uma
experiência gratificante, mas essa turminha que acha que vai se especializar em alguma
249
coisa se engana se acredita que é fácil gerir pessoas, isso é muito arriscado. Nossa área
é aparentemente nova, mas como em qualquer área, bons gestores são formados em
grandes experiências na área. Então eu não aconselho ninguém jovem a enfrentar – é
claro que tem raras exceções, tem muita gente jovem com quem eu trabalhei já e se
destacou e se destaca, mas na grande maioria é pura ilusão. Ainda hoje existe uma
idéia de que a área de TI é a área que dá dinheiro, que logo rapidamente vira gerente.
Não é bem assim a coisa. Você passa por um processo de especialização e futuramente
de liderança, um processo muito árduo. Porque é uma área que só quem está nela, que
gosta dela e dá continuidade à vida, tocar a vida da gente, aliado a um projeto mesmo
de vida.”
A maior parte desse pessoal fala que tenta, com essa intenção, fugir um pouco do
estresse, com medo de ficar obsoleto, em termos de tecnologia.
“Volto a dizer. A área de TI sempre está inovando e sempre está buscando algum
segmento que requer especialização. Por isso hoje não tem mais isso, se é gente jovem
ou experiente. Sempre vai ter gente, sempre vai ter segmentos, sempre vai ter produtos,
sempre vai ter outros desafios. Hoje, as grandes empresas – Microsoft, IBM, as
grandes instituições financeiras – têm seus negócios calcados dependentes totalmente
de Tecnologia da Informação. Então necessidade de pessoal vai ter sempre. Então a
pessoa que entra numa área dessa com esse medo, eu aconselho a desistir. Na área
específica de TI, a pessoa fica talhada para entender muito bem. Eu até diria mais:
espero que meu filho não entre nessa área sem antes fazer um estudo vocacional. Não é
como antigamente, só porque o pai é médico, vai ser médico também. Em TI é muito
diferente, as práticas, as informações não são muito fáceis e só quem se dá bem é quem
realmente abraça a profissão com muita firmeza. E tem que estudar muito. A cada dia a
gente sabe menos e a busca de um processo contínuo de aprendizagem é diária.”
Quanto tempo você trabalha normalmente na semana, é maior ou menor que
antes?
“Cada vez eu mais trabalho mais. Mais horas. Principalmente como gerente de uma
área que tem pessoas, profissionais colocados em todo o Brasil, e eu sou responsável
por organizar e gerir essas pessoas de modo que tudo funcione perfeitamente. Então o
250
tempo realmente é um fator muito grande de sucesso para um profissional de TI que
tem essa visão que eu tenho. Principalmente em empresas de médio porte como essa
em que eu trabalho, onde muitas vezes a gente faz muito de tudo. Tenho hora de
chegar. Eu sou o primeiro a chegar na empresa, mas não tenho hora pra sair.
Eventualmente, sou chamado sábados, domingos e feriados. Sempre que é necessário é
preciso dar assistência ao pessoal aqui. Hoje tem a tendência de atender cliente,
atender a empresa de casa, mas isso demanda muito tempo e tira muito a sua
privacidade, o seu lazer.”
Como é que você faz para aproveitar seu pouco tempo?
“Sempre que posso, às vezes dou uma fugida, relaxo, vou à praia, faço uma viagem
para recarregar as baterias. Mas interfere muito no convívio familiar. Se você tiver
uma esposa que não entende, que não seja da área, realmente não é fácil.”
Em termos de posicionamento dentro da empresa, de relacionamento, que tipo de
atitudes são mais indicadas, que você tomaria de novo para ocupar o cargo que
você ocupa hoje?
“Primeiro tem que ter muita segurança técnica, muita experiência em todos os
possíveis e imagináveis pontos críticos do avanço tecnológico. E não ter medo de errar.
Segundo tem que ser um cara muito bom em gestão de pessoas. A gente trabalha com
pessoas. Pessoas são muito complicadas, pessoas não são máquinas, têm sentimentos e
seus problemas pessoais. Para fazer as pessoas trabalharem usando tecnologia, você
tem que ter muita sensibilidade. Tem muitas vezes que entender alguns aspectos
culturais, até regionais, não como incompetência, não como falta de estímulo, mas
como fatores culturais. Tem que ter muita sensibilidade e muita esperteza para que
mostre e se faça valer como gestor, ensinando muitas vezes e fazendo bem feito aquilo
que você pede para ele fazer. Muitas vezes a gente tem que mostrar – não só dizer
como faz, mas fazer e mostrar como faz.”
Como você faz para se atualizar tecnicamente? Que tipo de conhecimento você
lança mão?
“Eu estudei, sou especialista na área de estruturação de sistemas. Tudo que é novo, que
é lançado no mercado, eu procuro saber. Eu estudo muito, capto na internet. Participei
251
recentemente em São Paulo de um treinamento em gestão de processos. A gente está
sempre se atualizando nas melhores práticas. Participo de fóruns de discussão com
colegas de São Paulo e de todo o Brasil, em termos de estruturação de sistemas, as
melhores práticas na área de gestão de processos. Enfim, estou sempre buscando me
aprofundar.”
Até para manter mesmo a referência...
“Exatamente. Ter um diferencial. Hoje em dia na área de TI, a única coisa que garante
ao profissional a possibilidade de buscar relocação no mercado é ter um diferencial. O
que eu quero é fazer perfeito aquilo que eu sei fazer, utilizando todas as técnicas
disponíveis no mercado.”
Você é expert na gestão de pessoas. Você diria que essa atividade tem um
rebatimento na sua vida privada, na sua vida em família? Uma coisa interfere na
outra? Existe troca entre esses dois pólos?
“Interfere, porque, por exemplo, eu tenho muito pouco tempo para a família. Eu
gostaria de ter mais tempo, mas a minha profissão é atrelada a um projeto de vida.
Então preciso me dedicar mais ao trabalho do que à própria família, porque existe um
sentimento próprio de dar para a minha família as condições mínimas necessárias que
eu não tive quando eu era estudante, estava na universidade ou era estudante
secundarista. Então a minha missão é trabalhar honestamente para que a minha família
tenha as condições que eu não tive quando cheguei pobre, do Interior, passei pela Casa
do Estudante e pela república na universidade.”
252
Lúcio - Gerente
Queria que você começasse falando um pouco do teu trabalho e da sua formação.
“Sou engenheiro, professor do Centro de Informática e sou um dos diretores do Cesar.
Sou graduado em Engenharia, com mestrado em Computação, fiz meu doutorado
também em Computação. Trabalho com computação há pelo menos 15 anos. “
Como foi sua chegada ao C.E.S.A.R.?
“O C.E.S.A.R. foi criado no Centro de Informática e eu era professor do Centro. Eu
comecei a coordenar um projeto que exigia um tipo de conhecimento que a gente tinha
lá, aí me aproximei do C.E.S.A.R.. Foi natural.”
Nesse período de 15 anos em que você está trabalhando com Informática, como
você faz para separar o que é trabalho do que não é trabalho?
“A separação é fácil porque eu tenho família, tenho três filhos. Entender o que é ou
não trabalho não representa grande dificuldade. A dificuldade maior que eu tenho
enfrentado é que o tempo que sobra, que não é trabalho, é muito pequeno. Até porque
em função de estar trabalhando com Informática tem certas ferramentas que
supostamente deveriam ajudar a gente a ter mais tempo livre, como e-mails, acabam
funcionando ao contrário. Lembro quando eu fazia mestrado e via um artigo que eu
queria ler, precisava me deslocar fisicamente até a biblioteca, ficar na fila, esperar.
Agora faço uma busca rápida, já tenho o artigo em mãos. Nesses 15 anos, em 14 desses
15 anos eu me recusei a ler e-mail em casa para poder descomplicar. Se eu estou em
casa, estou em casa. Mas eu tenho uma profissão onde é muito difícil fazer essa
separação. Mais recentemente eu abri mão dessa idéia, então de vez em quando eu leio
meus e-mails em casa, quando é uma coisa mais urgente. Mas, de uma maneira geral,
eu evito ler e-mail em casa.”
Essa diferença que você percebe hoje sempre foi clara?
“Durante o doutorado eu trabalhava muito em casa. Para mim ela é clara na medida em
que você separa os espaços físicos. Na hora em que você tem um computador em casa,
conectado em banda larga, aí a diferença de estar trabalhando em casa é complexa. Por
isso que eu tento, pelo menos, fazer uma separação física. Quando estou em casa acho
253
que é mais tranqüilo do que na universidade, mas se estou no horário comercial,
considero que estou trabalhando. Mas à noite, fim de semana, eu radicalizo e paro de
trabalhar. “
A família, nesse sentido é importante?
“Absolutamente fundamental. Eu digo brincando para meus colegas que estão
trabalhando muito que eles precisam casar, ter filhos. Porque a demanda é tal que se eu
não tivesse filho nem fosse casado eu trabalharia até meia-noite. Porque trabalho não
falta.”
Você, como várias pessoas que trabalham com TI, tem à sua disposição toda uma
infra-estrutura tecnológica de conexão com o mundo. Isso em relação a notícias, a
informações necessárias para você desenvolver ferramentas, preparar aulas etc.
Você tem noção de como essa infra-estrutura ao seu redor lhe coloca frente ao
real?
“Eu acho que essa definição do real e do virtual não é pertinente. Eu preparo minhas
aulas e elas estão disponíveis na Web. Então, não faz sentido. Na minha área, de
ensino de Tecnologia de Informação, você tem que usar a Web nas minhas aulas o
tempo todo. São exemplos reais, programas. Mas se você pegar o real como uma coisa
concreta, física, aí deixa de ser real. Eu estou sempre estimulando meus alunos a fazer
coisas na Web.“
Seu ambiente de trabalho oferece confiabilidade nas informações? Algumas
pessoas que entrevistei têm um cuidado especial com as informações que lida no
trabalho, porque é difícil ter certeza o tempo todo lidando com questões virtuais.
Isso acontece contigo?
“Acontece. Mas eu não vejo nenhuma diferença da máquina para o que não seja a
máquina. Até pela minha formação, que é digital, você aprende a questionar as coisas.
Eu consigo questionar um artigo impresso do mesmo jeito que um artigo da Web. Não
faz a menor diferença. A gente tem uma avalanche de informações mais disponíveis na
Web, mas a confiabilidade das informações é sempre uma coisa discutível em qualquer
meio.”
254
Que recursos como costuma utilizar numa semana normal de trabalho para
atualizar informações, ou pegar informações para resolver um problema
pontual?
“Eu uso pouco isso. Porque não uso newsgroups, não sou filiado a nenhum. Já fui
filiado a vários na época em que eu tinha mais tempo. Hoje eu uso dois filtros de e-
mail para evitar problemas, mesmo assim ainda recebo alguns newsgroups. Chego a
receber no mínimo 50 mensagens por dia de coisas que eu tenho que resolver. Esse é
um dos problemas sérios do e-mail, uma ferramenta feita para ajudar e que ao mesmo
tempo complica sua vida.”
Existe alguma regra que você estabelece?
“Esse é um problema muito sério. Se a pessoa for muito sistemática, determina que lê
os e-mails durante X horas por dia. Mas não é o meu caso, eu não consigo ser
sistemático. O que eu tenho feito atualmente é que, se estou muito ocupado com
alguma coisa, eu não leio meus e-mails. Se for alguma coisa importante, a pessoa vai
me telefonar. Mas isso é uma coisa quase que como desobediência civil. A pessoa que
manda e-mail espera que você responda ou se manifeste de alguma forma. Acontece
que é humanamente impossível. Se você é uma pessoa como eu que recebe 70 e-mails
de coisas que eu tenho que responder, por dia, você não faz mais nada na vida. Não
faço mais parte de newsgroups, não leio newsletters, não quero nem saber. Só a
mensagem que é enviada especialmente para mim é que me interessa.”
Além dessa estratégia, tem alguma outra?
“Quando vou ler meus e-mails não leio linearmente. Eu olho geral, vejo quais são as
coisas que são válidas e urgentes e quais são as coisas mais urgentes. Tem coisa que
passa dois anos na minha mailbox e depois é que eu vou responder. Agora, existe
aquela sensação de que você está devendo alguma coisa. Quanto às ferramentas eu uso
MSN Messenger, uso Skype, uso o Outlook Express para montar minha agenda.
Minha agenda é toda no computador. Se você me perguntar qual é o meu dia livre, se
eu não tiver meu computador por perto eu não consigo dizer.”
255
Numa semana típica de trabalho, incluindo as aulas, você tem uma noção de
quanto tempo você trabalha?
“Eu trabalho normalmente 10 horas por dia. Não dá mais do que isso. Na realidade eu
diria que até já trabalhei mais. Talvez hoje eu trabalhe umas 9 horas, por aí. Até em
função dos filhos – você tem que levar para a aula de inglês e outros lugares – eu
termino trabalhando isso. Atualmente tenho tido muitos problemas de coluna, por
passar muito tempo sentado em função do trabalho e da falta de exercício, vida
sedentária. Estou com duas hérnias de disco e uma degeneração na cervical, que dá dor
nos dedos. Aí eu tive que mudar a minha vida. De um mês para cá, tenho levado meu
laptop mas deixo na universidade, não levo para casa. É uma coisa que eu não fazia.
Tenho gastado tempo com acupuntura e também comecei a freqüentar academia.“
Isso faz você repensar a tua carreira?
“Com certeza. Eu nunca mais voltaria a ter o mesmo ritmo de trabalho de antes. Sem
chance.”
E a quantidade de horas que você trabalha hoje, ela tende a cair mais ainda?
“Certamente tenderá para isso. O que eu acho que precisa fazer, que não é fácil, é
melhorar a qualidade das horas de trabalho. Só que nunca dá para zerar a lista de
afazeres. É impressionante. Eu estou aplicando minha dose de irresponsabilidade. Se
eu não leio meus e-mails durante o dia, é a minha dose de irresponsabilidade. Vai ser
difícil eu ser mais eficiente do que sou. Outra coisa: eu não tenho secretária eletrônica
no meu celular da universidade, porque senão eu vou ter outro montão de coisas para
fazer.”
A partir desses dois pontos – família, filhos e a questão da saúde – você faz
alguma reflexão sobre o que é teu trabalho hoje e o que ele já foi?
“Família é fundamental para o equilíbrio emocional. Eu casei muito cedo e antes de
casar eu trabalhava muito. O que eu faço de reflexão é a seguinte: no fim de semana, se
meus filhos dizem “Vamos passear?’, eu vou. Posso ter até planejado corrigir umas
provas, fazer um projeto ou seja lá o que for. Se minha mulher diz “Vamos viajar”, eu
digo vamos. Para mim é muito concreto esse negócio de casar e ter uma família.
256
Renova muito. Você pára, faz outras coisas e volta disposto a encarar novos desafios.
Tem cara que trabalha muito no final de semana e chega reclamando que não teve
tempo de fazer nada.“
Você tem uma visão mais centrada do próprio trabalho?
“Certamente. Senão você acaba tendo um esgotamento mental e não sabe mais o que
está fazendo. Acho importante separar.”
Você tem alguma afinidade cultural, tem alguma ligação com alguma linha
estética?
“Eu sou músico. Fui músico profissional, toquei durante muitos anos muitas horas por
dia.”
Você tocava o que?
“Violão. Hoje toco pouco, até porque estou com os dedos doídos por causa desse
problema na cervical. Mas eu fui arranjador, compositor.”
Isso tem algum reflexo no seu trabalho?
“Total. Eu trabalho na universidade com inteligência artificial aplicada a duas áreas:
uma é a própria música, tecnologia musical, eu dou aula disso, oriento alunos e faço
projetos. E a minha sensibilidade artística eu tenho convicção que é fundamental para
começar uma área nova aqui, que é a de jogos para celular. Só que a área de jogos
exige mais veia artística, tem roteiro. Pra mim foi muito natural, que já vinha da
música, trabalhar com essa parte de jogos.“
Essa área de jogos exige experiência com computação?
“É muito próximo. Mas eu sempre fui um cara interdisciplinar. Paralelo ao curso de
engenharia eu fazia curso de música, então eu sempre vivi tocando e mexendo com
tecnologia.”
Existe alguma contribuição sua da tecnologia na música?
“Não. A não ser coisas pontuais, quando vou escrever um arranjo aí eu uso algumas
ferramentas. Essa foi uma reflexão que eu tive quando comecei a fazer mestrado na
257
área de computação. Tinha muita gente estudando acústica, música contemporânea,
usando o computador. Eu, quando toco, todo à moda antiga mesmo com o meu
violão.“
Você já chegou a refletir sobre viver processos sistêmicos paralelos, sobre o que é
música e o que é codificação, por exemplo?
“Eu estou o tempo todo pensando sobre música e tecnologia. Em modelagens,
processos de raciocínio. Fiz meu doutorado como um baixista de jazz, que inventa em
tempo real o que vai tocar em função do que os outros estão tocando. O tempo todo eu
estou refletindo sobre como é que funciona a cabeça do músico, o que ele está usando
para tomar decisões, como eu posso modelar isso no computador.”
Essa modelagem de música e tecnologia tem influência em algum outro tipo de
decisão não necessariamente técnica?
“Não sei. Tem um estudo que li há muitos anos, que diz que quando um cara faz
música, faz uma coisa diferente, ele está mais apto a fazer outras coisas, como
tecnologia, porque ele exercita uma parte do cérebro mais matemática e dá uma
renovada. Mas eu não sei até que ponto isso tem fundamento. Eu sei o seguinte: eu era
um excelente aluno de Engenharia. E fazia música. Na época eu estudava em casa e no
conservatório. Nas provas, por exemplo, eu ficava muito mais tranqüilo.”
Você atribui isso à música?
“No meu caso foi a música. Mas eu acredito que a variedade de atividades que você
pode fazer ajuda a manter um foco. Se você faz só tecnologia o tempo todo,
matemática ou computação, ou seja lá o que for, não vai render tão bem.”
258
Edson - Gerente
Você hoje tem idéia de quanto tempo dedica ao trabalho, às atividades do
trabalho? E quanto tempo você dedica ao que não é trabalho, ou isso não é uma
coisa clara?
“Eu não tenho uma idéia. Eu posso lhe responder... o tempo que eu dedico no meu dia
útil pra trabalho é certo. Mas se você me pergunta assim sem fazer continha de
números, de tal hora a tal hora, etc., eu acho que eu passo muito mais tempo do meu
dia trabalhando do que fazendo qualquer outra coisa. Meu dia começa cedo, realmente
muito cedo. Cinco horas da manhã começa... por conta de acomodação das agendas
dos meus filhos, da minha mulher... a gente mora em Aldeia, portanto nos
acomodamos com essa coisa do tempo, partilhando o tempo de cada um, acomodando
e ajeitando as agendas para que possam ser mais otimizadas. E acaba tarde o meu dia ,
porque eu costumo fazer atividades noturnas. Porque atividade física mesmo eu faço à
noite. Então eu diria que eu passo a maior parte do meu tempo no trabalho. E o
finalmente do meu dia... Uma outra coisa que tem muita estrutura na minha vida é
assim, como eu moro em Aldeia, existe um momento em que eu desço e existe um
momento em que eu subo. Essa é uma relação legal que acontece comigo. Eu
normalmente desço às 6h20, 6h15 eu começo a descer de Aldeia para o Recife a partir
dessa hora e normalmente chego para casas às 9h30, 10h da noite. Então pra mim o ato
de subir e descer tem um limite, tem uma coisa bem delimitada. Agora em termos de
quantidade de tempo que eu tenho dedicado ao trabalho... Normalmente a minha vida é
assim: pela manhã eu tenho atividade que começam por volta das 8h, 8h e pouco,
atividades minhas mesmo. Se bem que na vinda de Aldeia pra cá é comum eu já estar
processando já coisas de trabalho. O fato de não estar no trabalho, num ambiente
fechado, mas a cabeça já está nele. Aliás, começa até antes disso porque às vezes eu
estou fazendo barba, usando o banheiro de manhã, tomando banho, e a cabeça já
começa a se ligar nas coisas que eu tenho para o dia. E aí várias idéias começam a
aparecer... a estrada também é um elemento interessante, porque eu gosto muito de
conversar na estrada. No momento em que eu estou com a minha mulher e meus filhos,
esse é um momento importante. A gente aí compartilha um monte de coisa também.
Mas aí chegando no trabalho, o que significa ou estar no escritório, ou estar aqui no
Porto Digital, ou estar visitando um cliente, isso aí é por volta das 8h, 8h30, e aí eu vou
259
tranqüilamente até 1h da tarde. 1h a gente pára um pouquinho para almoçar. Eu tenho
almoçado em pouco tempo. Eu acho que a gente deveria ter mais tempo para isso,
conversar mais. 1h é que eu vou pro meu escritório e almoço com a minha esposa e
meus filhos, é um ponto de encontro que a gente tem, durante o almoço. Eu acho que é
um momento importante, a gente promover esse momento. Mesmo que eu não volte
pra casa, volte para o escritório. No escritório a gente tem mesa, a gente almoça junto.
E depois do almoço cada um vai fazer as suas coisas, meus filhos continuam
estudando, vão fazer suas atividades, minha esposa continua trabalhando, hoje ela está
desenvolvendo muito mais atividades. Ela está fazendo um mestrado, e está
desenvolvendo muito mais atividades de estudo do que de trabalho. E eu volto a carga
aí, e vai até umas 7h da noite, 7h30. A gente volta para o escritório, no escritório a
gente troca de roupa e eu vou pra Jaqueira. E aí a gente dá umas voltas, é bom
inclusive porque quando a gente pode estar junto, e na maioria das vezes a gente está
junto, eu e minha esposa, o número de vezes que a gente está dando voltas na Jaqueira,
a gente está dialogando um com o outro. Essa é a forma como eu tenho minha semana.
No final de semana, eu dedico meu sábado de manhã a ter minha atualização de inglês.
No sábado tarde e noite e domingo o dia todo é família. Eu não gosto de trabalhar no
final de semana – já trabalhei muito, mas não gosto e me irrita ter que trabalhar. Volta
e meia e meia eu preciso fazer alguma coisa no final de semana, mas eu faço com uma
certa irritação.”
Pelo que eu entendi, tudo o que é relativo ao teu trabalho ele acontece no
ambiente de trabalho, ou pelo menos a maior parte. Ou não necessariamente?
“Não necessariamente. O celular acaba com isso. Onde você estar, o celular te acha.”
E o trabalho à noite, acontece em casa também?
“Não, à noite não. Quando eu preciso trabalhar até mais tarde eu estico o horário da
tarde. Mas à noite eu não tenho trabalhado com mais freqüência não. Pelo menos nos
últimos meses eu tenho mantido, tenho conseguido não trabalhar durante a noite. Mas
aí um telefonema acontece, eu estou assistindo televisão... O celular quebra isso. O
celular e o notebook, são duas coisas meio perigosas. O notebook você abre em cima
de qualquer canto e você consegue trabalhar. Celular é a mesma coisa, as pessoas me
acham nos locais mais inusitados.”
260
Essa preferência, essa possibilidade que você tem hoje de restringir o seu trabalho
ao ambiente de trabalho, e evitar trabalhar no final de semana, à noite... Você
conseguiu chegar nesse ponto faz tempo?
“Não, isso é uma coisa que tem a ver com o meu momento. O tipo de trabalho que eu
desenvolvo, pode ser que amanhã eu precise trabalhar final de semana, viajar. O tipo
de trabalho que eu estou desenvolvendo hoje me dá essa condição de não trabalhar à
noite. Eu já trabalhei muito durante a noite. Em época de projeto, a intensidade de
atividades para cumprir prazos... isso é uma coisa muito marcante na profissão da
gente. Atualmente, o tipo de trabalho que eu estou desenvolvendo ele me é suficiente.
Conseguindo trabalhar durante a semana, ele é suficiente para eu cumprir meus prazos.
O tipo de trabalho que eu estou desenvolvendo hoje me permite isso. Assim como não
viajar muito. Houve uma época em que eu viajava. Era uma coisa intensa, muito
intensa. Eu não sei se comentei da vez passada, mas ao ponto de uma tripulação da
Varig me reconhecer. Quer dizer, eu reconhecer uma tripulação é mais fácil do que
uma tripulação me reconhecer. E eu tava numa intensidade tão grande para Brasília
que uma tripulação fazia esse vôo de tempos em tempos e uma pessoa disse: “Olá, boa
viagem de novo com a gente”. E eu: “Sei não, eu acho que estou voando muito”.
Nessa época você tinha uma noção de que estava nesse...?
“Tinha. Tinha noção porque isso de alguma forma era medido. É outra coisa, o Smiles
é um grande indicador, ele promove. “Ah, vamos pela Varig, ou pela TAM etc”... essas
promoções de alguma forma funcionam muito mais como indicadores, pode te oferecer
condições, um bom indicador de quanto você está voando e muito menos do que lhe
proporcionando viagens. Nessa época, eu acumulava muito mais milhas do que
usufruía delas. Aquilo era um indicador. Eu tinha a idéia numérica, eu não tinha a
idéia, por exemplo, de uma reclamação que eu recebi da minha filha: “Pai, porque você
está viajando tanto?”. Essa idéia a gente só se depara com ela quando uma pessoa está
descrevendo. Eu não tinha essa idéia. Se você vai para o seu cartão de fidelidade, você
sabe o quanto em milhas você está voado, você tem idéia da intensidade de vôos.”
Mas não tem idéia da ausência?
261
“Do que isso causa?. Isso é muito ruim. Eu desenvolvi um projeto e esse projeto
demorou aí um ano e meio. Eu viajei aí um ano e meio toda segunda-feira e voltava
todo sábado. Minha filha cresceu e eu não percebi isso. Isso eu guardo com muita dor.
É uma coisa que eu não faria.”
Qual é a idade dela?
“Hoje ela tem 19 anos. Muito ruim. A administração desse processo, assim... era um
projeto grande, um projeto nacional, era um projeto que todo profissional sob o ponto
de vista profissional gostaria. Eu estava coordenando a implantação de um sistema
numa rede de bancos nacional. Em mais de três mil agências. Um sistema de
informática para o Banco do Brasil, que implantou a Poupança Ouro no Banco do
Brasil. E eu freqüente Brasília durante um ano e meio. Ia toda segunda-feira e voltava
no sábado. Na segunda-feira, quando eu descia, já descia de mala pronta. Eram duas
trocas de roupa, uma na mala e outra lavando, praticamente isso. Esse foi um período
que profissionalmente foi muito interessante, eu conheci pessoas, conheço tecnologias,
enfrentei diversas situações. Como profissional eu gostaria de ter isso concluído. Mas
como pessoa, como pai, como marido... foi um período na minha vida muito difícil”.
Havia condição de tempo, ciência mesmo, preparo seu visto hoje para refletir
sobre isso naquele momento ou não, isso não acontecia?
“Naquele momento foi um convite, e um convite muito mais visto pelo lado
profissional do que qualquer outra coisa. Os efeitos colaterais ficavam meio que em
segundo plano. Esse foi um momento profissional importante para mim, mas
pessoalmente eu não sei o tamanho do prejuízo, não sei como medir o tamanho desse
prejuízo. Essa administração de tempo hoje, por exemplo, nas minhas atividades, eu
acho que não entraria num projeto dessa natureza. Por mais que remunere – e também
remunerou muito bem – ms por mais que remunere os efeitos colaterais de um projeto
dessa natureza para a situação familiar, de ambiente familiar que eu tenho hoje seria
muito complicado.”
E hoje, o tipo de reflexão que você faz sobre aquele tempo, ela é muito diferente?
A gente pode dizer que essa que você fez agora, essa descrição? Nessa época em
que você estava implantando esse sistema, teus objetivos foram todos
262
direcionados para esses projetos. Mas como era a sua relação, por exemplo, com a
informação? Você se considerar uma pessoa que era informada do que estava
acontecendo no mundo ou o trabalho conseguia te isolar de tal maneira...
“Não. Eu sempre fui uma pessoa curiosa e o hábito da leitura me pertence. Uma
atividade dessa natureza ela me consumiu muito tempo fora, essas coisas todas que eu
comentei agora. Mas isso não me alienou não, alienou do mundo etc. Eu não deixei...
eu fazia questão de estar final de semana em casa com a esposa e filhos, continuava
com as mesmas assinaturas de jornais e revistas. Quer dizer, o meu processo com o
mundo ele acontecia. Eu acho que a intensidade do trabalho e a forma como ele foi
desenvolvido fora inclusive... Imagine se esse trabalho fosse desenvolvido aqui no
Recife. Eu acho que por mais que eu estivesse ausente no período de expediente, o fato
de voltando pra casa seria outra coisa. O meu maior complicador aí foi a freqüência
dessas viagens, a ausência do local onde você está. Mas isso não me alienou não, em
termos de informação isso foi importante. Eu acho que as viagens, mesmo dessa
natureza profissional, trabalho etc., sempre abre muito a cabeça da gente, porque a
gente está se relacionando com pessoas diferentes, com mundos diferentes. Em um ano
e meio em Brasília acontecem muitas coisas. Como eu morei em hotel, eu morava em
hotel, e hotel cada semana tem uma população diferente. Então você conhece pessoas
diferentes.”
Esse período te conectou mais ao mundo, digamos assim?
“Não, eu não faria essa avaliação não. Me conectou a outras partes do mundo e me
desconectou de algumas outras. Então o fato de eu não estar no Recife, eu ter
desconectado das coisas que aconteceram no Recife fisicamente.”
O projeto teve um período X delimitado...
“Um ano e meio.”
Ao final dele, você tinha uma noção crítica de que aquilo poderia estar te
prejudicando?
“Não.”
Se não tivesse um ano e meio você teria continuado com ele?
263
“Não, eu acho que tem aí a questão do limite físico mesmo. Um ano e meio fazendo
toda semana fora você já tem um certo desgaste físico. A outra coisa é que em um ano
e meio você cumpriu etapas do projeto, o projeto não é uma bola de neve infindável.
Você tina etapas e aconteceu de que no final de um ano e meio você conseguiu
implantar, concluiu e implantou o sistema. Então aquilo foi um sucesso psicológico
muito intenso, porque você depois de um determinado período de tempo que você
investiu pesado suas energias, você conseguiu atingir altos objetivos do projeto. Então
esse lado também é positivo. Seria muito ruim se eu tivesse chegado ao final de um
ano e meio e eu tivesse, com o esforço todo que a gente fez, com a colaboração de
todos que faziam parte da equipe – porque não foi sozinho, foi uma equipe... então
nesse contexto foi até interessante porque a equipe funciona como equipe, não era o
indivíduo que estava fazendo aquele trabalho. Era uma equipe que uns estavam
zelando pelos outros. Então ao final de um ano e meio a gente teve o retorno de que foi
bem-sucedido. Então isso trouxe um sucesso psicológico muito interessante para cada
um da gente. E o sucesso psicológico é uma coisa importante para o ser humano,
então eu não tinha condições naquela época de fazer uma avaliação de que o meu
investimento nisso aí tinha sido danoso. Até ao contrário, tinha sido positivo. Eu acho
que naquele momento eu estava, o grupo estava bastante motivado, e isso abriu novas
portas. No aspecto profissional, é uma coisa muito interessante. Já no aspecto pessoal
eu acho que houve um desequilíbrio entre um investimento e a convivência no outro
mundo que não o profissional.”
A atualização da informação necessária para você desenvolver o seu trabalho
hoje, ela advém de que forma?
“Primeiro, as informações que ao longo do tempo eu apreendi. Esse banco de
conhecimento evidentemente ele é processado. Então eu acho que tenho habilidades
que eu também desenvolvi ao longo do tempo que geram a acessam esse banco de
informações. Então esse conjunto de habilidades advêm de observação, de
treinamento, de cursos fora, de congresso, de observação mesmo do que está
acontecendo, de comparação, de conversa, de observação das outras pessoas. E pela
prática. Então eu acho que sou um conjunto de habilidades e disponho de um conjunto
de informações. Eu tenho esse conjunto de habilidades adquirido ao longo do tempo e
tenho essa base de informações. E essa base de informações ela cresce porque eu tenho
264
habilidades de atualização. Eu sempre estou trazendo novos conhecimentos, me
aperfeiçoando. Eu tenho habilidades que me promovem isso. Aí eu falei em
habilidades e em conjunto de informações, mas eu acho que eu tenho características
pessoais que não são habilidades e que me ajudam a desenvolver minhas habilidades.
Eu sempre dei muito valor – características pessoais têm a ver com valor, com
comportamento, e tudo mais – eu sempre dei muita ênfase à leitura, procurar
informação, a questão de prestar atenção às coisas. Na hora que eu faço isso eu
estimulo a entrada de informação. Me organizar. Isso sempre foi uma coisa... por
definição eu gosto de fazer as coisas organizadas, estruturadas e sistematizadas. Eu
acho que a minha formação é uma formação muito disciplinadora. Então eu trago uma
certa carga de disciplina para junto das pessoas. Então se você somar características
pessoais, habilidades e esse conjunto de informações que a o longo do tempo eu vou
gerando é o que me faz mover. Então você vai de alguma forma se utilizando da
experiência que você de alguma forma desenvolveu e que de alguma forma você possa
se utilizar daquela informação. Eu vou buscar essas informações em Internet, eu vou
buscar em leituras, eu vou buscar em conversas, em fóruns de discussões, em
newsletter. A Internet é um Mundo. Através de trabalhos anteriores, através de leituras,
muita leitura. Eu acho que grande parte do meu dia eu dedico à leitura.”
A esse tipo de atualização, você poderia dizer?
“Necessariamente, a atualização por atualização não.”
Atualização direcionada?
“Exatamente. Porque eu acho que também uma outra coisa que caracteriza o meu
trabalho é que eu gostaria de ter mais tempo para me atualizar independente de
projetos. Eu procuro me atualizar na medida que as coisas vão acontecendo.”
O que você precisa?
“É, na medida que eu vou precisando. Hoje eu não tenho aquela dedicação que eu
tinha. No momento em que eu por exemplo para fazer um trabalho de modelagem
sobre uma área específica, aí eu corro atrás pra me atualizar com relação àquilo. E
como eu trabalho com modelagem – modelagem significa a arte de você lidar com a
265
informação, a tecnologia do uso da informação, mas essa tecnologia de uso da
informação me coloca diante do mundo da informação.”
E de muitas áreas para as quais você não foi exatamente treinado...
“Eu não tenho habilidades, eu não tenho informação, não tenho informação. Então eu
tenho que preencher aquela lacuna.”
É uma demanda constante essa... Então tu lutas o tempo todo contra uma
obsoletização?
“Exatamente. E isso para mim é uma neura.”
E isso te sufoca?
“Não.”
Como é que você consegue evitar que isso lhe sufoque?
“Eu acho isso extremamente agradável. É como se eu me alimentasse. Eu vejo meu
cérebro como um músculo. Como eu adoro fazer exercício , adoro botar coisa pra
dentro. Eu me sinto bem me atualizando. Eu disse a voe que eu sou uma pessoa
curiosa. Se eu não fosse, eu acho que eu empanzinava. Mas como eu sou muito
curioso... O curioso para o cérebro eu acho que é o guloso para quem come muito. A
curiosidade alimenta a minha busca por atualização. E não é neurose. Eu acho que
existe aquele cara que passa por diante de uma folha de jornal e já está lendo. Eu gosto
de uma boa prosa, eu gosto de uma conversa, eu gosto de sentar numa roda e contar
lorota. Mas também gosto, por exemplo, no momento em que eu sou convidado –
“Marcos, a gente está precisando do teu apoio. Diga aí, cara, vamos resolver tal
problema”. Esse problema eu não tenho a menor idéia do que diabo é, isso já me
estimula a captar.”
Eu suponho que essa tua curiosidade, o teu tipo de trabalho mesmo, ele ajude a
você ter uma noção do mundo, tem uma idéia sobre muita coisa, sobre desde o
mercado financeiro , tendências de mercado bancário... Numa séria de projetos
em que você está ou já esteve envolvido. É verdade isso, ou seja, teu trabalho, a
266
tua busca necessária para conhecer e fazer modelagem te ajuda a ter noção do
mundo?
“Eu acho que todo mundo tem uma noção de mundo. Me ajuda a consolidar, essas
características pessoais, minhas habilidades, me ajudam a ter uma visão de mundo,
Mas eu acho que todo mundo tem uma visão de mundo. Alguns mais críticos, outros
menos críticos, uma visão mais ampla ou mais restrita. Eu acho que todo mundo tem
uma visão. Essa curiosidade eu acho que me ajuda muito a entender as coisas. Não só
de Economia, de Finanças, mas de comportamento, natureza, cultura, religião. Eu me
permito. Por exemplo, eu pratico religião, sou católico, passei muito tempo sem fazer
isso. Mas de uns dez anos pra cá, não é uma coisa específica, mas um conjunto de
ações que levaram, me conduziram a retornar o meu processo de desenvolvimento da
minha religiosidade. Pessoas inteligentes, padres inteligentes, colocam a gente para
refletir sobre muitas coisas, a leitura, o que a gente consegue descobrir fazendo leituras
bíblicas. A própria discussão entre as pessoas. E aí essas ações que eu falei, passei a
discutir com pessoas não que concordavam comigo, mas pensavam na mesma linha. A
gente podia discutir. Por isso eu passei a me aproximar muito mais de Deus do que eu
era há dez anos. Eu acho que essas habilidades, essas informações elas abrem mais. Eu
tenho essa historinha de religiosidade aqui. Eu digo que eu sempre peço a Deus para
conseguir. Eu acho que é muito importante a gente ter a serenidade para aceitar aquilo
que a gente não pode mudar. Isso é uma coisa muito importante. Serenidade é uma
palavra bonita. Se a gente parar para pensar o que ele significa é muito bonita. Mas ao
mesmo tempo pedir coragem e tranqüilidade para mudar aquilo que a gente pode. Não
ficar de braços cruzados. Mais ainda – e isso aí eu peço com muita intensidade – é a
sabedoria para saber distinguir uma da outra. Acho que aí é que está a questão
fundamental. É você ter a serenidade para aceitar aquilo que não pode mudar, mas a
coragem e essa habilidade para mudar o que pode e a sabedoria para distinguir uma da
outra. E eu acho que tem a ver com essa minha forma de viver as coisas, de
compreender, de fazer essa visão de mundo.A gente sai desenvolvendo uma série de
coisas diante das situações que a vida coloca a gente.”
Você participa de algum outro fórum de discussão ou newsletter que não tem a
ver com o teu trabalho exatamente?
267
“Participo. Eu sou um elemento que tenho características pessoais, de vida, do que eu
faço, e faço parte de grupos. Um desses grupos é o Cursílio, grupo de evangelização
católica que utiliza as artes para alcançar seus objetivos.”
Você chegou primeiro à igreja ou chegou primeiro ao Cursílio?
“Eu cheguei primeiro à igreja, e depois conheci o Cursílio. Conheci através de colegas
meus.”
Que trabalham com TI também?
“Trabalham comigo, meu parceiro aqui vai fazer o Cursílio”
O Cursílio utiliza de forma bastante intensa a arte, a música, plástica, teatro...
“O que me chama a atenção no concílio... primeiro o próprio Cursílio, o momento em
que agente faz o Cursílio. E uma vez fazendo, o compromisso depois de dar
seguimento à questão de você evangelizar os seus ambientes. Essa outra parte eu acho
que é legal assim: o método tem escolas, sempre com pessoas interessantes
conversando sobre assuntos bem legais, pessoas que exploram sobra assuntos que a ge
te faz: “Puxa, mas como é que pode ser desse jeito?”. A gente pára pra pensar e não
são assuntos religiosos necessariamente não. Existem muitos cursos sobre as passagens
da Bíblia, mas existem pessoas que são convidadas a falar, por exemplo, sobre o
movimento da Fetape, trabalhadores rurais. Vai gente falar sobre água. E a gente
compreendendo isso sob o ponto de vista religioso, o que significa isso. Isso me
desperta uma curiosidade muito grande, tem sido uma grande audiência. Mas eu acho
que o forte do Cursílio é você poder fazer de forma orientada as questões das leituras,
as interpretações da Bíblia.”
Tem alguma atividade que te ajuda fora do trabalho a relaxar? Eu sei que o teu
contato com a família ajuda muito a relaxar, se desligar do trabalho, esquecer um
pouco a questão de prazos, demanda, cobranças etc. Existe alguma outra
atividade além dessas?
“Existe. Eu como disse a você eu moro em Aldeia, aí eu consegui desenvolver uma
forma de comunicação com uma família de sagüis. Todo dia de manhã eles passam
atrás do muro lá de casa, vêm assoviando e aí eu começo a assoviar do lado de cá. E a
268
gente criou um canal de comunicação. E eles sabem que quando eu começo a assoviar
aqui vai ter banana. É uma família de 12 sagüis e eu boto duas bananas pra eles. Morro
de pena quando eu saio de lá e eles não aparecem, porque não é sempre a mesma hora
não. É de manhã cedo, 5h, 5h10, por aí. Mas isso pra mim é a coisa mais maravilhosa
do mundo. E eu percebo ali comportamentos do tipo quem é que lidera, como lidera, o
tratamento dos meninos novinhos. O cabra morrendo de fome pega a banana, os mais
velhos, e o pequenininho chega junto, tira e ele não faz nada. Eles respeitam como os
índios respeitam os filhinhos deles. Menino índio faz o que quiser até uma determinada
idade, depois dessa idade entra nos eixos. Sagüi faz a mesma coisa. Então tem o sagüi,
essa relação com o sagüi é uma das minhas prioridades. São cinco minutos que eu
passo ali, mas são cinco minutos que eu vejo um mundo completamente diferente do
meu. Convivo, vejo não, convivo com um mundo completamente diferente do meu.”
Você já estabeleceu alguma relação com arte?
“Já, já toquei em conjuntos (de rock).”
Durante quanto tempo?
“Toquei enquanto eu era menino. Era conjunto na época, não era banda. Conjunto dos
Meninos do Nóbrega. Meu vizinho estudava no Nóbrega e ele tocava violão e estudava
no conservatório. E eu gostava muito dele. Ele era mais velho do que eu, eu tinha uns
12, 13 anos e ele tinha 17, 18. E eu ia muito na casa dele, era vizinho mesmo, e ficava
olhando ele tocar violão. Aprendi a tocar violão olhando. E aí a gente ia sempre lá para
o Nóbrega sábado de tarde fazer o som, os ensaios. Era arretado.”
Nunca mais voltou a tocar não?
“Não, rapaz. Eu tenho um filho, meu filho mais velho tem síndrome de Down. Ele
soube dessas histórias e eu tocava também percussão, bateria, atabaque, essas coisas. E
eu contei essas coisas e ele quis aprender e terminou se dedicando a isso e toca bateria.
Tem bateria lá em casa. E ele tem guitarra também, porque aprendeu a tocar guitarra. E
ele faz “Pai, vamos fazer um barulho ali”, e a gente faz um barulho, fica no barulho.
Mas eu tenho muita vontade de aprender a fazer escultura em madeira.“
Já trabalhou com escultura alguma vez?
269
“Não, mas minha filha já. Com argila e cimento. Ela modelava em argila e depois
passava um cimentinho em cima. Ela chegou a modelar. Tinha uma pessoa perto de
onde eu moro que era um artista, e a minha filha fez uma época dessas. Eu tenho muita
vontade de trabalhar com madeira, a madeira me atrai. Eu gosto muito de madeira.
Uma vez eu passei mais de hora olhando uma pessoa talhando um santo, quer dizer,
esculpindo. Fazendo uma escultura de um santo num tronco de jaqueira. Ele fez um
São José a coisa mais linda do mundo. Eu tenho esse São José lá em casa.”
Você o viu sendo feito?
“Eu vi. Pasei uma hora vendo o artesão acabar a obra. Quando ele acabou de assinar eu
disse “Quanto é o santo?” E levei lá pra casa.”
Deve ser uma sensação bem diferente você ver o santo nascer.
“ É lindo. Bom, ele tava meio nascido, só tirou o excesso. Eu sou devoto de São José e
de Nossa Senhora da Conceição. E no ano seguinte – isso foi em Maceió – e no ano
seguinte eu cheguei lá e ele estava com uma Nossa Senhora pronta. Ele talhou o São
José, eu trouxe, e no ano seguinte eu trouxe Nossa Senhora. Veja, o perfil das pessoas
que trabalham nessa área é um perfil muito interessante. É um perfil normalmente de
quem gosta de enfrentar desafios, são pessoas que naturalmente trabalham com
linguagem sistêmica, ou seja, elas sempre vêem algo entrando, processando e saindo.
Linguagem sistêmica é você estar construindo uma parede e você perguntar para a
pessoa: “O que você está fazendo?”. Uma diz que está construindo uma parede e outra
diz que está construindo uma casa. A que diz que está construindo uma casa tem
linguagem sistêmica. Ela está fazendo parte de um processo de transformação de tijolo
e cimento em uma coisa muito grande, não é apenas uma parede. Normalmente essas
pessoas da área de informática elas têm uma habilidade lógica porque a linguagem de
computador requer lógica, de alguma forma requer lógica. Mesmo que você não seja
um exímio programador, você não precisa ser um exímio programador para trabalhar
nessa área, mas de alguma forma você vai trabalhar com insumos processando e
gerando um produto. Isso é arte.. Se você considera por exemplo que ao talhar você
transforma um pedaço de tronco de jardim em um santo, você trabalhou em cima de
um grosso e conseguiu transformar aquilo numa coisa mais elaborada.”
270
É um processo de transformação sistêmica?
“É um processo de transformação sistêmica. O sistema digestivo é o exemplo mais
tranqüilo para a gente compreender isso. O sistema circulatório é fechado, mas eu
entendo. Existem transformações ali, sangue venoso, sangue arterial, alimentação,
filtragem. Então esse pessoal é um pessoal que naturalmente tem mais habilidade,
lembra que eu falei das habilidades? Eu imagino que o pessoal de informática tem essa
característica. Eu acho que a gente consegue por essa característica, que é uma
característica tão forte, a gente consegue reconhecer o informático no mundo.”
Porque?
“Pelo seu comportamento, suas características. Ironia faz parte do comportamento do
informático. Aspectos físicos... é comum você identificar a pessoa. A própria forma de
se vestir, palavras que são ditas, muitas expressões em inglês mas não só isso. Coisas
do tipo, uma palavra que é muito usada no meio da informática é desconfigurado.
Minha filha olhou pra mim e disse: “Pai, o seu limpador de pára-brisa está
desconfigurado”. Isso é uma linguagem informática. Ela não é informática não, mas
isso é uma linguagem da informática. E ela o tempo todo está fazendo carga de
joguinhos, de softwares pela Internet. E depois que ela faz o download logo em
seguida precisa configurar. Então configurar passou a ser uma palavra usada. Algumas
palavras utilizadas pelos informáticos são muito marcantes. Termo informático
mesmo. É muito interessante. Na linguagem sistêmica, a relação com a arte pode estar
intimamente ligada porque a arte é transformação. Arte é você transformar...
Você vê nas suas estratégias de saída da lógica do trabalho semelhanças com as
mesmas estratégias buscadas por colegas teus de trabalho? O que você faz, o que
você busca, de alguma forma tem alguma semelhança com o que as pessoas fazem
em geral para esquecer do trabalho, esquecer o estresse do trabalho ou ter tempo
para pensar sobre si mesmo? Existe alguma linguagem alguma afinidade?
“Eu vou ter dificuldade em responder isso pelo seguinte: eu acho que isso depende.
Nos meus parceiros eu vejo isso. Eu tenho três parceiros, eu vejo isso com um deles. O
mesmo valor que eu dou à família ele dá, a mesma relação que eu procuro com a
família ele procura. A gente tem uma identidade. Os outros dois não, nesse aspecto.
Mas com um desses com quem eu não vejo essa identidade é com quem mais eu
271
consigo me complementar. No trabalho. A gente tem uma complementaridade de
pensamento muito intensa, mas de comportamento às vezes é diferente. Ele tem um
relacionamento com a família muito interessante também, mas não é a mesma coisa,
tem umas características diferentes. Bom, esse tipo de trabalho que eu desenvolvo tem
características próprias, mas eu vejo por exemplo o técnico, o engenheiro de software
eu vejo o tipo de trabalho, a intensidade de desenvolvimento que ele pratica e as
necessidades por exemplo de no final de semana dar uma carreira e passar dentro de
uma tenda num camping lá não sei aonde. Um final de semana assim bem natural,
longe de tecnologia. Isso acontece muito, de fazer rapel, de fazer isso, de fazer aquilo.”
Eu já ouvi falar, não sei se é verdade, que alguns não têm nem computador em
casa.
“Eu não acho que seja assim não. Eu acho que não. Tem, e pior: está dentro do quarto,
no lugar mais íntimo da casa, no seu lugar mais íntimo. Informática deixou de ser
privilégio de informáticos. Ela penetrou em casa. Então eu acho que não, ele tem
computador em casa. Esse negócio de dizer que não quer nem saber e tal, mas tem
computador em casa. Sobretudo quando você tem notebook. Veja, o meu computador
de casa está no escritório. Eu hoje não tenho computador fixo em casa. Mas na hora
que eu chego em casa com o notebook tem computador em casa. Final de semana
minha filha pede: “Papai, posso usar o seu notebook para acessar a Internet?”. Eu digo
“Pode, claro”. O computador ele passou a conviver no dia-a-dia, ele pode não estar
fixo em casa, hoje você já tem recursos tecnológicos para fazer isso. Mas aí eu não sei
se respondi à sua questão. Eu acho que a estratégia que a gente usa para trabalho é uma
estratégia que diz respeito às habilidades com as informações. E essas habilidades
também valem para o seu dia-a-dia. Você vai fazer qualquer coisa que não aquele
trabalho específico, as habilidades continuam valendo. Eu acho que você vai repetir
aquilo que você faz. É interessante essa sua colocação. Mas eu acho que acho que tem
um comentário que eu poderia fazer. Você num ambiente de Tecnologia da Informação
tem mais intimidade com muito sites além daqueles de que você necessita para
desenvolver o seu trabalho. Por questões de navegação, você de repente passa o olho
ali em cima. Como você tem que estar lendo para ver o que é que tem, alguma coisa
que você está vendo, e às vezes passa em cima de um site que não tem nada a ver com
o que você está fazendo, mas você clica ali. Esse coisa maravilhosa da tecnologia que
272
num clique lhe bota pra ir para um outro mundo, você entra numa outra sintonia, você
fazendo uma pesquisa sobre determinado assunto e de repente aparece um site ali.
Quando você tecla, cai em outro lugar completamente diferente. É um mundo novo
que se abre num clique. A velocidade com que você sai de um ambiente para outro é
muito rápida. Você pode estar num ambiente completamente fechado aqui. Esse
quadradinho aqui na verdade não tem esses limites não. O limite é digitalizável, ou é
bitável quando se está acessando a Internet, de alguma forma já tem alguma coisa na
Internet. Por exemplo, nessa hora você está navegando e descobre um negócio
chamado slow food, que vai de encontro ao fast food. E na hora em que você descobre
o slow food as suas atividades de cozinheiro despertam e você vai entender o que é
aquilo. Quer dizer, a informação do mundo do trabalho, quando você está no ambiente
do trabalho que você estava desenvolvendo, lhe chama a atenção uma coisa que você
gosta de fazer quando não está trabalhando. Nessa hora você diz: “Porque slow food?”.
E você vai entender que o movimento surgiu na França, que popularizou-se na Itália e
hoje o Brasil participa disso. É um movimento que diz assim: “Vamos combater o fast
food”. Porque se no fast food você come em 15 minutos, no slow food você come em
duas horas. Aí já tem idéias de receitas. Na hora em que você abre uma receita, você
diz: “Que bacana, vou fazer hoje de noite”. Então o mundo da informação não é o
mundo da Tecnologia da Informação. Você ora está com informação para sua atividade
profissional e ora está com informação para atividade de lazer. Mas é informação.”
Mas elas se interpenetram, não é?
“É. Então a informação ela está sendo disponibilizada para você e você vai fazer dela o
que suas habilidades conseguirem transformar.
Mas na mesma medida que permite você ter acesso a um monte de informaçõ e
conhecimento, ela também pode impedir esse processo...
“Sim, ela é capaz de alienar dependendo da forma como você está vendo. A riqueza e a
profundidade desse mar é tão grande, é tamanha, que você vai ficar num metro
quadrado. Porque a profundidade é muito grande, porque você tem metros e metros de
fundura na vertical. Esse mundo da gente é meio que um oceano enorme e profundo.
Você pode ficar ali naquele pedacinho e se satisfazer. Isso é alienar. Tem gente que sai
surfando para todos os lados e nunca mergulha, só na superfície. E você também pode
273
se alienar por conta disso, você na verdade fica ali, numa quantidade de informações
que é como se fosse uma goteira. Tem um mar de informação ali. Oceanos e oceanos,
uma profundidade de oceanos. Essa expressão surfar na Internet é muito própria. Você
vai surfar, mas você pode mergulhar. Surfar você vai pegar uma onda, que pode ser
suficiente. Mas tenha a certeza de que tem outro tanto de mar pra trás. Inclusive eu
acho que isso vai ter problema. Não houve o alcoolismo na época industrial? Vai haver
alguma doença de informação.”
Nunca tinha pensado nisso não.
“Lembre-se de que a gente está na Sociedade da Informação. Alcoolismo tem uma
relação muito próxima com você sair da fábrica, da produção industrial, e num dia
extremamente estressante, em que você foi até o limite de horas, saiu exausto, e no
caminho de casa tinha uma bodega. Aí o sujeito vai, bota uma branquinha pra dentro e
chega em casa. No outro dia você faz a mesma coisa, e no outro dia você faz a mesma
coisa. E daqui a pouco vai sentir faltar no seu metabolismo. Isso é uma das causas do
alcoolismo. Você imagine agora que você sai do seu trabalho e se vicia em navegar na
Internet. Vai ter uma doença. E vai ser assim, a necessidade pela informação.
274
EXECUTIVOS
275
João - Executivo Qual a sua formação e como é que você chegou a ocupar o cargo de
executivo na empresa em que trabalha hoje?
“Eu sou engenheiro mecânico formado na Escola Politécnica no ano de 1960; meu
primeiro trabalho foi na IBM, eu trabalhei na IBM durante 10 anos, parte aqui
em Recife e parte na matriz que é no Rio de Janeiro. Eu estava na Matriz do Rio
de janeiro quando a IBM tava sofrendo grandes problemas da política de
informática do governo militar, na época, e nós tínhamos que administrar
diariamente problemas que não tinham nada a ver com informática e números,
eram problemas advindos da política; os meus trabalhos, por exemplo, era
despachar gente do Brasil pra outras filiais da IBM do mundo porque não havia
espaço pra elas no Brasil. Quando eu trabalhava no Recife eu tinha sido o
representante da IBM que atendia a empresa em que atuo hoje. Então já tinha
aquela relação de amizade com o pessoal dessa empresa, que funcionava como
uma unidade de negócios de outra empresa maior. E nessa ocasião eu fui
abordado pelo pessoal da empresa para participar da execução de um projeto que
desmembraria as duas empresas”.
Então empresa em que você atua hoje já existia?
“Sim, só que tinha uns poucos sócios minoritários. Então, em 1978 eu fui procurado
por um pessoal que tinha um projeto diferente, um projeto de uma empresa que fosse
gerida pelos seus próprios participantes, seus próprios técnicos. Então, eu fui abordado
por eles porque basicamente eles estavam pensando em alguém que fosse um reforço
na área de marketing, o pessoal que tava na casa era muito mais técnico e eu tinha essa
experiência, tinha essa ligação com eles, e então eles me convidaram pra isso e então
eu voltei para o Recife pra participar da empresa. São duas coisas: eu vinha pra dar
esse insumo de trabalho, do meu conhecimento de marketing que eu adquiri na IBM; e
vinha também atraído por um projeto de empresa que seria na verdade, criada ou
276
recriada, vamos dizer, em cima de novos municípios, com um aspecto muito forte de
participação do pessoal técnico na gestão da empresa. Então, foi por esse motivo que
eu vim, foi assim que o meu destino se encontrou com o da empresa em 1979”.
E nessa época, quais eram suas atividades exatamente? Qual era o seu dia-a-dia, o
seu papel?
“O meu papel, quando eu cheguei, foi estruturar uma área comercial que a empresa
não tinha. Então, a empresa naquela época basicamente se dirigia muito pra área de
prestação de serviços, de bureau de serviços, a implantação de computador maior, a
questão de oferecer serviços de informática a outras empresas. Ela já era beneficiada
da política de informática, porque como houve a restrição muito grande de importação
de equipamentos, as empresas não tinham como fazer internamente seus próprios
serviços. Então o espaço do bureau de serviço foi muito desenvolvido nessa ocasião.
Então, meu papel também foi estruturar apresentações; propostas; corpo de vendas; de
vendedores, treinar vendedores pra ir pra rua pra vender serviço de informática”.
E hoje em dia é correto afirmar que você é um dos executivos chefes da
linha de trabalho da empresa?
“É”.
Quais são suas atribuições diárias? O que operativamente você faz
diariamente hoje em dia?
“De tudo um pouco. Hoje, o controle da empresa está dividido entre três sócios. E cada
um tem mais ou menos uma área. Eu tenho um trabalho mais voltado pra área externa
da empresa”.
De contato com o cliente?
“É. Sendo que eu, particularmente, me dedico mais ao aspecto institucional, às
relações institucionais; as relações com o governo, com outras empresas, com a
organização do setor de informática de Pernambuco. Eu cultivo uma relação com
a Sucesso (Associação das Empresas de Informática de Pernambuco), e com
outras entidades. Eu procuro marcar presença em reuniões executivas como Gere
277
(Grupo de Executivos do Recife). Então, esse trabalho de projeção institucional é
minha preocupação mais forte no dia-a-dia do executivo; evidentemente que eu
tenho um background, que é a preocupação da empresa como um todo porque eu
sou um dos proprietários e preciso me preocupar com os problemas estratégicos
dela como um todo. Mas, como atividade do dia-a-dia eu sou mais voltado pra isso
e isso evidentemente me leva a ter uma relação também com o cliente, tanto o
cliente ativo como o cliente potencial”.
Nessa atividade o que é desafiante? O que é problemático? Que tipo de barreira o
senhor tem que enfrentar? E como o senhor faz pra manter o nome da empresa
lembrado pelos clientes?
“Sem dúvida nenhuma, é um desafio. É uma questão que a gente tem que se
preocupar permanentemente. Tem uma série de aspectos: aspectos da questão de
assessoria de imprensa, de publicidade, de colocar a marca da empresa na rua;
um trabalho que a gente fez foi o de tentar firmar a marca. Nossa marca tem sido
a mesma desde 1986, desde que a gente deu a última feição à logomarca; ela teve
algumas variações ocasionais, Mas, essa é uma questão importante: firmar a
marca com todas as suas cores, com as tonalidades de cores; pra que essa coisa
fique muito forte, muito presente, tanto do ponto de vista do marketing externo
como do marketing interno também. A gente tem procurado tratar essa questão
de que o próprio funcionário seja um condutor disso aí”.
E vocês lidam também com essa coisa de concorrência ou isso não é exatamente a sua
área?
278
“É uma preocupação minha também pela questão da análise da concorrência.
Porque nesse trabalho institucional, quando eu tento firmar a imagem da
empresa na rua, eu procuro captar também como é que os concorrentes se
comportam. Por dois motivos: primeiro porque é uma força que eles têm, na qual
a gente tem que se aprimorar. E também porque é uma forma de aprendizado
para ser aplicado. Então, isso é uma coisa que eu procuro observar bastante. Se
eu pego um avião e eu vejo na revista da companhia aérea uma reportagem com
concorrente meu, então, aquilo me remete a pensar por que essa empresa
conseguiu uma abertura naquele veícuolo? Aquele é um veículo adequado? Seria
um veículo adequado pra gente também?”
Então, esse é um tipo de atividade que não para?
“Não para, é o tempo todo; até mesmo no ambiente social onde a gente está. Isso
vem à tona, você captura em outro ambiente com é que as pessoas entendem,
como é que as pessoas enxergam a empresa”.
Você tem noção clara de em uma semana normal quanto tempo você trabalha ou no
escritório ou em casa, se for o caso de você levar trabalho pra casa, ou em termos de
reunião?
“Normalmente, considerando o trabalho... Eu não sei se eu considero trabalho a
partir do momento que eu pego o jornal, porque já é uma leitura dirigida pra
aquilo que a gente... Mas, pode considerar 11, 12 horas por dia útil. Nos fins de
semana, geralmente no domingo à noite eu já faço uma geral do que eu tenho que
279
organizar pra semana seguinte; eu procuro, por exemplo, no sábado e no
domingo não abrir e-mail, é uma coisa que eu adotei à muito tempo. Mas, no
domingo à noite eu faço isso, eu dou uma revisada na caixa postal.”
Já foi mais ou já foi menos?
“Já foi mais”.
E diminuiu por quê?
“Diminuiu até por uma questão de consciência, mesmo. O tempo passa e você
começa a descobrir que não tem mais o pique que tinha há algum tempo antes e
você começa a conciliar isso aí. Eu passei muitos anos aqui sem tirar férias. O
último período de descanso em que eu ainda trabalhava foi em 91. Aí depois em
diante eu procurei tirar umas férias longas, se afastar mesmo do trabalho; se eu
tirar umas férias e ficar aqui no apartamento, eu vou trabalhar, não tem jeito”.
Então, a questão física, de cansaço foi o fator pra você dá uma diminuída?
“Foi”.
Você faz alguma outra reflexão sobre vontade de fazer outras coisas ou pensar em
outras coisas? Na família?
“Faço, sim”.
280
Isso foi fator determinante pra você dar uma maneirada nesse tempo de trabalho?
“Foi. Eu me conscientizei de que tive muito tempo, um tempo crucial até, pras
meus filhos, muito distante deles”.
Em que fase?
“Na adolescência. Estamos falando coisa de 10, 12, 13 anos, por aí. Eles eram
adolescentes”.
E hoje em dia, como você faz separar um pouco? Quando você vê que está nas doze
horas de trabalho?
“O que eu tenho adotado é não comprometer os fins de semana, pelo menos isso.
Na sexta feira, às oito horas da noite eu encerro a coisa e só vou reabrir no
domingo à noite. Tanto por questão de família como pelo próprio cansaço pessoal,
cansaço físico”.
O que alimenta suas informações em termos de estratégia de empresa, em termos de
planejamento de futuro? Onde você bebe informações pra saber como a Procenge vai
ser daqui há alguns anos? Precisa de análise de mercado, contato com as pessoas,
experiência própria?
“A gente tem o próprio ambiente do Recife que é um ambiente importante pra
isso, o setor de informática de Pernambuco é um ambiente importante porque a
gente tem contato com pessoas com visões e experiências muito importante nessa
281
área. Agora, tem informação na própria internet. Eu e preocupo muito com isso,
com o que tão fazendo as empresas que são bem sucedidas”.
Esse acompanhamento é distante, via internet e noticiário ou é uma coisa mais
próxima, de conversa entre executivos?
“Como eu tenho até como tarefa da empresa me aproximar institucionalmente
dessa coisa organizada do setor, eu tenho facilidade de intimações diretas. E eu
aproveito determinadas situações, isso é a coisa que eu mais faço; recentemente
teve o Encontro Nacional das Empresas de Informática, em Florianópolis, e eu
converso com as pessoas, eu encontro pessoas que eu não via há muito tempo,
procuro saber o que as pessoas fizeram da vida, como é que elas tão fazendo
agora, como é que elas tão se organizado. Isso tem me preocupado cada vez mais,
a idade começa a pesar e você fica interessado em planejar até em benefício da
própria organização; até que ponto eu contribuo ou em que ponto eu contribuo
mais com a organização à medida em que eu adquiro um numero maior de
conhecimento”.
Então, é uma preocupação de continuar dando um contribuição válida e pulsante à
empresa. É isso?
“Isso. Em 2007 eu faço 60 anos e então eu acho que a partir daí eu tenho que ter
um plano diferente da forma de contribuição pra organização. Essa não é uma
organização familiar, não vou deixar meu filho tomar conta. Então, tem que
282
pensar como é que vai formar sucessores, como é que vai poder contribuir melhor
de forma diferente”.
Imagino que por ser uma área bastante dinâmica, com tecnologias o tempo todo
nascendo, processos diferentes nascendo o tempo todo, eu acho que isso também
empurra você a ter essa preocupação.
“Sem dúvida nenhuma”.
283
Clóvis – Executivo
Qual é a sua formação, como é a sua relação com a empresa, como é que você
chegou aqui?
“Eu sou graduado em Economia, com pós-graduações, mas nenhuma na área de TI. Eu
tenho pós na área de Marketing, Comércio Exterior, e a minha entrada na área de TI
veio um pouco porque meu pai já trabalhava nessa área. Eu nasci em 1972, em 81 eu
fiz o meu primeiro curso de programação, de programação em Base. Então eu fiz o
curso de Economia e comecei a trabalhar naquela época com meu pai, que tinha uma
empresa no Grupo Elógica. Ele era um dos sócios-fundadores, e eu fui estagiar lá. Fui
na verdade ajuda-lo durante um tempo, porque ele estava numa área nova da empresa e
precisava de alguém de confiança que pudesse levantar algumas coisas para ele,
algumas informações, e alguém que pudesse trabalhar fora do expediente. Depois eu
saí, fui trabalhar numa empresa de software, depois fui para o Rio Grande do Sul
trabalhar em uma fábrica, foi a época que ele já estava aposentado, já estava sem
trabalhar. E nessa empresa que eu trabalhava no Rio Grande do Sul, era um fabricante
de equipamentos, a gente tinha necessidade de ter um representante forte no Nordeste.
Então eu lembrei que meu pai sempre trabalhou em área comercial. Eu disse ‘pôxa, a
melhor pessoa que eu conheço é o meu pai’... a mesma coisa do passado! Aí chamei
meu pai, agente abriu a empresa junto com outras pessoas que trabalhavam com a
gente na época e a gente começou a trabalhar aqui no Recife fazendo a parte
comercial. Depois eu vim do Rio Grande do Sul e vim novamente trabalhar com ele
aqui. Hoje a gente tem uma empresa, eu e meu pai, e a gente representa e distribui
equipamentos de automação comercial.”
O seu trabalho é basicamente de representação comercial?
“Exatamente. Hoje a gente tem revendas no Norte e no Nordeste”.
Você tem então um trabalho executivo e de gerência?
“Exatamente, seria esse o perfil.”
284
No seu dia-a-dia, no teu trâmite normal de trabalho, em termos de operação, o
que é mais problemático? O que você tem para resolver no dia-a-dia em termos
de operações mesmo... relação de custo, contato com o cliente?
“Não, o mais problemático para a gente, eu diria, seria o operacional da venda. A parte
comercial do sujeito aceitar o produto, concordar com custos, a parte de gerar tabelas
da fábrica, passando por a gente até chegar na revenda não é complicado, dá pra fazer
sem dificuldade. A parte mais difícil é o operacional na hora de fechar a venda.”
A negociação?
“Não, não a negociação. O fechamento da venda. Porque existe um procedimento, vai
chegar o pedido, o pedido assinado pelo cliente, vai chegar do revendedor pra gente, a
gente vai emitir a fatura, vai pro cliente o boleto bancário. Só que o tipo de cliente que
a gente tem é um cliente de baixíssimo nível de informação. Então muitas vezes ele
está acostumado com aquela coisa dele comprar e o vendedor ir receber o dinheiro lá,
ou ele comprar e na hora de pagar dizer ‘eu não vou pagar esse preço não, eu vou
pagar menos’...
E o que é a solução para isso?
“A solução pra isso é treinamento melhor para as equipes comerciais. Porque aí ela vai
conseguir seguir uma linha. Outro problema eu diria que também vem da falta de
conhecimento desse tipo de cliente, ele não ter um ambiente técnico adequado. Então
ele compra equipamentos que são de tecnologia para colocar em um pequeno
supermercado no subúrbio, um mercado lá de 4, 5 equipamentos, um check-out, como
a gente chama. Então o cliente tem lá 4 ou 5 chek-outs e está comprando equipamentos
de tecnologia, está comprando leitores laser, ta comprando microcomputadores, está
instalando programas, comprou um servidor, está instalando impressoras fiscais, mas
ele não aceita por exemplo fazer um aterramento adequado. Então é muito às vezes
difícil pro pessoal do comercial e até de área técnica que vai atender conseguir passar
para o cliente que ele precisa ter um ambiente adequado. Na verdade os dois problemas
vêm da falta de informação. E eu só consigo vislumbrar que a solução seria um melhor
treinamento para que na hora do fechamento do negócio as duas pontas ficassem
esclarecidas”.
285
E a concorrência é uma ameaça?
“Também, com certeza. Até porque quando eu comecei a trabalhar na área, há uns dez
anos atrás, a gente tinha basicamente meia dúzia de concorrentes. Hoje a gente tem
mais de 70. Então é um volume de gente aí no mercado trabalhando que é absurdo.”
E quais são as alternativas que você tem para trabalhar com isso?
“Diversificar. A gente diversifica porque aí diminui os riscos. Como no mercado da
gente a gente não tem tantas possibilidades de diversificar, a gente diversifica em
áreas correlatas. Por exemplo, a gente aqui trabalha com automação. A gente
trabalhava com uma marca que foi agregada a outra e a gente está trabalhando com
essas duas marcas agora que funcionam como uma. O que foi bom porque a gente
agora tem um leque de produtos muito mais amplos. Então já houve uma
diversificação. Se a gente não consegue trabalhar dentro do mercado da gente pegando
outras marcas, até por uma questão de interesse mesmo, porque existem outras marcas
que já procuraram a gente e a gente não manifestou interesse. São duas marcas com o
mesmo preço, mesmo mercado. Eu vou concorrer com as duas? Eu não vou conseguir
fazer meu trabalho nem com A nem com B. Então deixa pra outro vender e ele é meu
concorrente. Questão de estratégia. Então eu diversifico em coisas próximas. Por
exemplo, a gente fez uma parceria com uma empresa dos EUA e a gente está
começando a representar alguns produtos de, vamos dizer assim, daqueles que vendem
em lojinhas de informática.”
Você tem uma noção mais ou menos clara de mais ou menos quanto tempo você
trabalha durante a semana, em termos de hora.
“Eu hoje não daqueles workaholics mais não, mas já fui há uns oito, nove anos.”
E o que foi que mudou? Porque mudar?
“Foi a necessidade de ver que eu tava... Eu tinha uma vida que eu praticava muitos
esportes, uma série de coisas em um momento da minha vida, e depois que eu entrei na
faculdade eu fui trabalhar... Eu trabalhava várias horas por dia, perdia minhas cadeiras
na faculdade... Quando não estava trabalhando ou estudando para a faculdade, eu
estava tomando cerveja. Terminei a faculdade e fui fazer uma pós-graduação, aí eu
estudava à noite, trabalhando o dia todo, viajando muito. Aí hoje, o que é que eu faço
286
hoje por exemplo? Hoje eu tenho uma vantagem. Hoje eu posso tomar decisões e...
nenhum problema. Posso sair mais cedo. Claro, às vezes não dá. Às vezes você marca
alguma coisa em outra hora. Mas hoje eu posso. Se eu tivesse em outra situação que eu
estava no passado eu não podia. Mas hoje eu posso e eu faço isso. O que é que eu
faço? Eu vou pra casa. Digamos que eu precise de uma planilha pra fazer em casa...
não faz mal, eu mando pra casa e em casa eu faço.”
Nessa época quando você trabalhava demais, você trabalhava em geral quanto
tempo?
“Chegava na empresa 8h, almoçava lá, e ficava ata no mínimo 8h, 9h. teve uma época
que eu me lembro, em 98, a gente teve lá uma Certificação ISO, eu me lembro que eu
trabalhei de um dia para o outro todo, e trabalhei o outro dia todo, aí não agüentei e
dormi um pouco lá mesmo. Aí trabalhei o outro dia todo e quando era uma 4h da
manhã eu fui pra casa. Aí dormi um pouco e umas 9h eu estava de volta na empresa.
Aí trabalhei o outro todo, que era a sexta – foi quarta, quinta e sexta – e na sexta foi o
casamento do meu primo, que eu fui padrinho. Eu fui para o casamento, saí da empresa
direto para o casamento. Era padrinho e eu cheguei atrasado. Aí passou o casamento e
eu dormi no sábado. Então eu trabalhei no sábado, trabalhei no domingo, na segunda
foi a certificação. Quando o cara chegou pra certificar a gente, eu recebi o cara, a gente
foi certificado, foram dois dias de auditoria. Mas quando terminou o primeiro dia eu
saí de lá pra ir pra um dermatologista porque eu não sabia o que era, eu estava com a
pele toda manchada. E o dermatologista disse: “Você não tem nada na pele não, é
estresse. Faz quanto tempo que você não dorme?” Eu pesava... meu peso normal que
eu to hoje é 74 quilos, e cheguei a pesar 58 quilos”.
E fazer essa mudança desse sistema de workaholic para uma regime mais
tranqüilo... o que é que te ajudou?
“Atividade física, com certeza. Comprei equipamento de ginástica, botei em casa. E
passei a acordar super cedo, fazer exercício...”
Mas a atividade física serviu para você ter essa desconexão do trabalho?
287
“Eu diria que ela me fez voltar a ter uma vida mais saudável, e isso incluía não
enlouquecer no trabalho. Todos os dias, mesmo quando eu estou sem tempo e não
estou matriculado em uma academia eu faço pelo menos 40 minutos de exercício todos
os dias. Mesmo que seja qualquer coisa, nem que seja ficar pedalando dentro de casa
assistindo televisão. Nessa época, eu me lembro bem, foi que eu disse: ‘eu preciso
fazer três coisas todo dia para poder manter minha sanidade física e mental’. Eu
preciso estudar todo dia, então todo dia eu leio, qualquer coisa, mas todo dia eu leio.
Se eu não tiver nada pra ler eu leio a Bíblia, que é uma coisa que eu não leio como
história, eu abro e leio em qualquer trecho quando eu não estou lendo nenhum livro.
Todo dia eu faço pelo menos 40 minutos de exercício e todo dia eu rezo. E aí eu
mantenho meu corpo, minha cabeça e meu espírito normais, sem nenhum exagero.”
Qual o reflexo disso no trabalho?
“Eu não tenho mais aqueles estresses. Eu vivia com azia, com gastrite, e quase não
tenho mais. Eu sei que todo mundo somatiza de algum jeito, e no meu caso é o
seguinte: se eu tiver um problema, eu na hora, basta estar conversando aqui com você,
ficar estressado, ficar preocupado, eu já começo a ter azia, muita azia. Isso eu não
tenho mais há alguns anos. Eu andava na minha pasta de trabalho, na minha gaveta de
trabalho eu tinha pastilha para azia.”
Essa mudança, esse efeito no trabalho fez você pensar sobre o trabalho, sobre o
trabalho na sua vida, sobre saúde?
“Com certeza. Até 98 a minha idéia era ficar milionário. Hoje não, eu não tenho mais
essa visão. Eu quero ficar milionário e viver. Não se isso foi no meu primeiro trabalho,
mas acredito que não. Claro que tem estresse. Tem que pagar conta no final do mês,
tem que pagar aluguel. Mas de 98 pra cá eu não vou morrer mais pelo trabalho. Vou
trabalhar sério, se precisar trabalhar mais uma noite, claro.... Mas você estar
trabalhando todo dia até 8h, 9h, 10h, todo sábado você estar indo trabalhar, o que a
princípio não estava no cronograma, é porque alguma desorganização está havendo no
seu trabalho.”
Você diria que o trabalho já foi o centro da sua vida e isso mudou, saiu do eixo
central?
288
“Com certeza.”
O setor de vocês é muito competitivo...
“Tem muito a ver com aquilo que eu falei antes. É o seguinte: eu não vou mais
trabalhar, espero, feito louco, morrer de trabalhar. Se precisar eu vou, ou seja, você não
perde a combatividade. Tem um negócio interessante que pode ser trazido para a vida
porque o samurai entre escolher viver e morrer, ele escolheria morrer. Mas e aí você
diz: “E o samurai queria morrer?”. Não, não é isso, é que quando ele ia para a luta, se
ele fosse com medo de morrer era melhor não ir, ele já tinha perdido a batalha. Ele
tinha que ir livre, morrendo ou vivendo, ao final ele ter feito o melhor. No negócio é
assim também e esse conhecimento eu retirei do Niten, a arte da guerra dos samurais,
que eu prático há três anos.
Você percebeu essa proximidade logo ou demorou um pouco?
“Todo mundo já leu, todo mundo já conhece A Arte da Guerra, de Sun Tzu, embora
muita gente não entenda direito, porque quando você lê um livro desses, tem que ter
algum conhecimento do ambiente onde ele foi escrito. Se você vai ler um livro e não
sabe o contexto de como ele foi escrito você não vai entender os porquês da coisa. É a
mesma coisa de dizer que o samurai, entre a vida e a morte, escolheria a morte. Mas o
cara só queria morrer? Não, o cara estava desapegado do problema de vir a morrer.
Então ele podia enfrentar aquilo com uma confiança muito maior, com uma confiança
para pensar sem se apavorar, sem ser levado pelo estresse. Porque se você está
estressado – adrenalina você vai ter de qualquer jeito, não adianta – mas é você saber
usar aquela adrenalina para uma coisa correta, para você fazer bem feito. E não
simplesmente para se tremer nas bases, para fazer xixi na calça, para chorar na frente
do cliente porque precisa vender. É para fazer a coisa como deve ser feita. Então eu já
conhecia o Niten, e eles montaram um workshop aqui. O Niten tem uma coisa
interessante. O nível da gente começou a melhorar um pouco, existe um Kempai mais
graduado – o Kempai é o instrutor da gente, que significa o que veio primeiro, o mais
experiente. Então a gente precisava de um Kempai mais experiente, até para outras
coisas que o pessoal de Maceió ainda não está habilitado, e aí começou a vir um
Kempai de Fortaleza. O que é interessante é que todos esses caras têm a sua profissão.
289
Chicão é marceneiro e vive disso, Fábio tem uma locadora, o rapaz que vem de
Fortaleza tem uma empresa que distribui Ypióca.”
A identificação do Niten com o trabalho foi imediata?
“Eu já via, não só no que a gente faz hoje, mas também na filosofia, muita coisa que
podia ser usada na vida profissional. A coisa de você estar preparado, por exemplo.
Você trabalha, mas você não conhece com o que você trabalha. Então a qualquer
momento pode surgir um cliente e você não vai saber? É uma coisa de você estar
preparado, na guerra você tem que estar preparado. Eu já achava bem parecido, e eu
não procurei só pela coisa de trocar a tapa lá no meio do campeonato não.“
Foi por uma questão existencial?
“Eu não diria existencial, porque eu já tenho uma religião.
Há mais relação entre o trabalho e o Niten?
“Tentamos atingir um nível que os budistas chamam de satori, que é um nível de
iluminação tal que os artistas marciais dizem que é o movimento da arte sem arte, onde
você não executa o movimento, seja com a mão, seja com a espada, seja com outra
arma marcial. Você atinge o satori quando a oportunidade rege o movimento, sem
racionalização, você faz. Piloto de Fórmula 1 ele não pensa, ele já exercitou tanto
aquilo. Eu conheci um executivo da empresa que eu trabalhava em Porto Alegre, o
cara ganhava R$ 70 mil por mês. No final do ano de 2000, ele ganhou de bônus R$
700 mil, aí todo mundo disse que era um absurdo. Não é absurdo não, a gente passava
uma semana fazendo uma planilha pra apresentar a ele sobre vendas, perspectivas... o
cara sentava, abria o laptop, ficava olhando, e num reunião de 30 minutos ele tirava
conclusões que a gente não chegou a ter. Uma equipe de três caras trabalhando uma
semana, 15 dias num negócio, e ele abria o laptop, montava uma apresentação, e
enquanto falava no celular ele montava uma outra planilha, transferia para a gente e ia
embora. Esse cara atingiu na profissão dele um ponto de iluminação tal que ele
consegue ver as coisas que os outros não conseguem, consegue fazer o que os outros
não fazem. Isso é uma coisa natural do ser humano e os artistas marciais não
sobrevivem só de trocar tapas. O cara que procura aquilo com um sentido mais
profundo vai entendendo isso com o tempo. Aristóteles diz que nós nos transformamos
290
naquilo que praticamos com freqüência. A perfeição, portanto, não é um ato isolado, é
um hábito.
Isso vale para os negócios também?
“Claro”
Essa questão da humildade, como é que é isso?
“No Niten, todo mundo é aluno, só tem um professor que é o sensei. Os mais
graduados são os sempais e os menos graduados devem respeito aos mais velhos. Eu
sou o primeiro aluno, então por uma questão de poucos dias, que na verdade eu não
tive nenhum treino, eles mais ou menos me devem respeito. Quando a gente chega
numa academia de arte marcial, tem que o ambiente estar limpo e tudo organizado. Eu
cheguei, eu pago, eu sou cliente. Aqui não, a gente chega no local que a gente alugou,
a gente paga mensalidade para treinar e a gente limpa. E mesmo eu limpo. Então o que
é ensinado? Eu chego antes de todo mundo. Eu não sou o mais antigo e eles não me
devem respeito? Eles me respeitam porque? Porque eu sou o que mais serve a eles.
Então o que é samurai? Samurai traduzindo é aquele que serve. É o serviçal, o objetivo
é servir. Eu faço até uma comparação engraçada com o próprio Jesus Cristo, é uma
associação que eu faço e não tem nada a ver com o que a gente lê. O cara veio aqui, o
cara filho de Deus - para quem acredita, para quem é religioso – na questão puramente
política, ele era filho de José e Maria, esquecendo a questão do Espírito Santo, e Maria
era descendente direta da casa de Davi. Então José era de outra casa também poderosa.
Então na verdade o próprio Jesus poderia brigar pelo trono como rei na terra, porque
ele era de família nobre. Então o cara estava dos dois lados. Então o que foi que ele
fez? Ele veio para servir. E ele dizia que quanto mais ele serviu, e ele morreu servindo,
mais respeito ele teve. Tanto é que faz dois mil anos e até o tempo a gente conta pro
lado daquele cara. Assim, Jesus teve uma importância monstruosa na formação do que
a gente é hoje como mundo. Ninguém pode negar, você pode ser cristão ou não, pode
ter outra religião ou nenhum. Não importa. No mundo ocidental principalmente, a
gente vive sob o cara há dois mil anos falou.”
Como é que todas essas influências aí elas colaboram junto à empresa, a médio e
longo prazo, à tua capacitação?
291
“Ajuda em dois sentidos. A princípio eu não precisaria estar fazendo curso nenhum.
Até um amigo meu diz: “Porque tu não vais dar aula, faz um mestrado e vai dar aula?”.
Hoje eu não faço porque ia tomar muito tempo, Mas eu penso em fazer um mestrado.
Pra quê? Pra estar preparado. E ao mesmo tempo é necessário eu ser desapegado. Isso
também é dado porque eu tenho uma base religiosa.
Aí você começa a não ter tanto desespero, a não ter tanto medo do futuro? Porque
você está o tempo todo fortalecendo esse alicerce de pedra...
“Exatamente. Porque você sabe que você está preparado. Você está sempre estudando,
você está fazendo o bem, não está arranjando inimigos. Como é que as portas vão estar
fechadas para você? Você está preparado, estudando, fazendo amigos.
Você já teve que se defender usando técnica do Niten?
“Já, até porque isso é humano, a gente perde a paciência também. Muitas vezes você
faz a coisa até pro cara entender também. A gente é, antes de ser humano, animal. A
gente tem instinto.
292
Ulisses – Executivo
Qual é sua formação e o que você faz na empresa em que atua?
Sou formado desde 1994 em Ciência da Computação pela Universidade federal de
Pernambuco, onde fiz mestrado e agora finalizo doutorado. Atualmente sou professor
na Universidade Federal de Sergipe. Sou um dos três sócios de uma empresa de
segurança da informação, e também somos uma fábrica de software porque
desenvolvemos soluções para essa área.
Seu trabalho precisa ser realizado na sede da empresa?
Eu não gosto do ambiente de trabalho de Tecnologia da Informação e Comunicação.
Você não pode fumar, há muita dispersão e além disso eu sou um cara com 43 anos de
idade. A faixa etária das pessoas é bem abaixo e por isso eu prefiro trabalhar em casa.
O perfil dos meus sócios é completamente diferente do meu. Nós combinamos do
ponto de vista técnicos, de conhecimento e só. Não precisamos mais que isso. E na
maioria das vezes a troca presencial é desnecesária.
Quais as formas que você utiliza para atualizar as informações das quais você
necessita para o trabalho diário?
Uso o email e fóruns de discussão. Mas de uma forma geral, há alguém para fazer o
trabalho sujo de estar antenado com essas pequenas alterações e novidades técnicas. Eu
recebo espécies de boletins preparados pelos analistas de sistemas da empresa. Eu não
gosto da rede, ela de certa forma cegou muitos dos profissionais que trabalham com
tecnologia da informação. Concretamente, ela deveria ser encarada com um
instrumento de trabalho e não mais que isso. Mas o depósito de confiança que se dá às
informações contidas nela é fora do comum e muito perigoso. De qualquer forma, eu
também participo de conferências e seminários de forma institucional.
Você possui algum hobby ou atividade que te ajude a desvincular do trabalho?
Não sei se é um hobby. Eu estudo estratégias militares que foram esenvolvidas ao
longo da história pelas muitas civilizações que já existiram no Ocidente e no Oriente. É
uma grande curiosidade minha entender e quando possível aplicar pressupostos básicos
de guerra ao meu trabalho, porque minha atividade é de confronto e proteção de dados.
293
Então a linguagem do enfrentamento, as táticas e manobras verificadas nos campos de
batalha possuem, todas elas, seus respectivos correspondentes no mundo da guerra da
informação em que minha empresa atua.Você me perguntou por uma atividade que
permita eu me desligar do trabalho. Bem, o estudo de táticas de guerra me ajuda nisso,
mas também está relacionada ao meu trabalho de uma forma inevitável. A associação é
muito forte.
Você se sente então uma espécie de soldado?
De certa forma sim. O que é um soldado? É um sujeito que tem um gene que lhe
permite certas atitudes drásticas de defesa e de ataque, de enfrentamento e utilização
do que está disponível materialmente para a defesa e se possível para uma ofensiva.
Portar uma pistola, saber armá-la e desarmá-la no escuro não faz de ninguém um
soldado. Você precisa ter aquilo dentro de você. O soldado é capaz de dasarmar seu
oponente, ou descobrir sua vulnerabilidade e atacá-lo por meio de sua fraqueza até
imobilizá-lo ou destruí-lo. Estar de posse de uma baioneta não faz de ninguém um
guerreiro. Montar e desmontar uma arma não faz de ninguém um franco atirador
Qual a associação disso com o seu trabalho na área de segurança da informação.
É total. Minha empresa trabalha para outras empresas e instituições protegendo dados
sigilosos. Funcionamos na expectativa de invasões ou de ações maliciosas que
procurem roubar essas informações. Nosso trabalho é proteger e se possível, detectada
uma invasão, um ataque, seguir a pista do invasor e destruir sua máquina, identificar
sua identidade e procurar formas de punir essa pessoa ou pessoas do ponto de vista
legal.
Que recursos vocês usam?
São recursos técnicos que podem ser associados a instrumentos de batalha reais. Da
mesma forma, os invasores usam recursos técnicos e procedimentos de confronto. Para
a defesa efetiva, também é necessário ter o que eu chamo de gene da guerra e se
entregar ao enfrentamento. Mas as ferramentas sozinhas não garantem a segurança de
ninguém. Nem fazem de um sujeito ou de muitos sujeitos reunidos um exército
vencedor. Essa é a razão pela qual um exército como o dos Estados Unidos nunca vai
conseguir debelar os revoltosos no Iraque.
294
Esse conhecimento e esse relacionamento entre segurança de dados e estratégias
de guerra te ajuda a interpretar as ações das pessoas?
Bem esse conhecimento, não somente sobre estratégias de batalha, envolve também a
história da Guerra. E parece que a origem dos confrontos é sempre a fraqueza das
pessoas, das personalidades, a sede de conquista e de poder, a fraqueza nesse sentido,
de se deixar seduzir. O mesmo tipo de desafio que move um indivíduo interessado em
roubar senhas de cartão de crédito movia os piratas ou mercenários que atacavam
cidade sitiadas na Ásia e mesmo na Europa, deflagrando guerras e conflitos entre
reinos vizinhos.
295
Teodoro - Executivo
O que você faz na empresa em que atua hoje? Como chegou aqui e como foi sua
experiência trabalhando fora do Estado de Pernambuco?
“Eu sou formado pela Universidade Federal de Pernambuco em Eletrônica. Eu
praticamente me formei e me mudei para o Rio Grande do Sul. Então meu crescimento
profissional foi todo no Rio Grande do Sul, onde fiquei 12 anos. Aqui eu tinha
trabalhado na Philips como engenheiro de desenvolvimento de hardware e fui para o
Rio Grande do Sul para ser engenheiro de sistemas de telefone. Em Porto Alegre eu
passei a ser executivo da Alcatel. Trabalhei na Alcatel para a Região Sul inteira, de
Santa Catarina ao Rio Grande do Sul e depois, com a chegada da Telefônica de
Espanha, os projetos começaram a minguar e eu passei a ser consultor das bandas B, C
e D. No meio desse trabalho eu fui convidado a vir para Pernambuco. Voltei para o
Recife para trabalhar com Informática, quando em toda a minha vida eu tinha
trabalhado com telefone. Naquele momento, a empresa tinha somente um cliente
grande aqui, que era o Bompreço, e um cliente grande em Brasília, que era o NCT.
Então fizemos um trabalho de pesquisa nacional, desenvolvemos uma network,
trabalhamos em São Paulo fortemente. Dois anos depois começou a aparecer contrato
com a Nortel, Alcatel, BCP, Motorola, e outros acontecendo em paralelo. Então hoje a
empresa presta serviço para a Motorola, LG, Nokia. Fora na área de tecnologia, como
Sun, HP e muito mais. No final do ano passado, eu passei a cuidar da parte de
Estratégia de Incubação e da área nova de Negócios Internacionais da empresa. Depois
de um certo tempo a tendência era essa mesmo, então eu consegui ocupar os dois
postos, até que passei a ficar somente com Negócios Internacionais. Começamos a
trabalhar com a Apex e eu também recebia diversos convites, em vários momentos.
Hoje, sou o principal executivo de uma nova empresa incubada do C.E.S.A.R.. Agora
vou colocar à prova meus conceitos. Trabalhei de um lado, agora vou para o outro
lado.
Como é o nome da nova empresa?
“AI Leader. Mexe com redes neurais e com reconhecimento padrão. Então eu estou na
AI Leader e acumulando também a coordenação do projeto de exportação do Porto
Digital. Essas são as minhas duas atribuições.“
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É uma mudança radical... Como é que, na tua carreira, como é que você faz para
separar o que é trabalho e o que não pode ser considerado trabalho, tipo família,
hobby, atividade física, cinema?
“Aí é uma questão de opção de vida. Desde cedo eu fiz a opção do trabalho ser minha
prioridade. O que eu tento fazer o seguinte: tento dar todas as condições, possíveis e
impossíveis, para minha família consiga viver independente de mim em alguns
aspectos. Com certeza, o dia-a-dia do trabalho atrapalha se você quiser ter uma vida
paralela, seja atividade física, seja de entretenimento. O que eu tento fazer é conciliar
uma coisa com a outra, para que meu trabalho também seja prazeroso. Eu não trabalho
porque tenho que trabalhar – trabalho porque gosto. Tem o cansaço físico, porque você
ter uma jornada de 12, 14, 15 horas cansa fisicamente. Mas eu tento de alguma forma
conciliar isso com o ritmo da família. Sou bastante franco em dizer que já me
sacrifiquei muito. Eu não sei o que é férias há uns 10 anos. No ano passado, fui
forçado a tirar umas férias acumuladas, mas mesmo assim continuei muito ligado no
trabalho. Meu trabalho está presente o tempo todo. Não digo que sou workaholic, pois
isso pode soar pejorativo. Mas eu procuro estar up to date com o que eu faço. Eu leio
bastante, minha casa é toda wi-fi, meu palm é wi-fi, meu notebook é wi-fi, estou o
tempo todo on-line (referência à tecnologia que permite conexão a internet sem o uso
de cabos ou fios). Então naturalmente estou trabalhando. Às vezes eu nem olho pra
caixa postal, porque se eu olho vou ter que fazer alguma coisa.”
Quanto tempo você trabalha, você tem idéia de uma média de horas trabalhadas?
“Eu nunca fiz essa média, mas eu acho também que tem fases. Eu estava terminando
minha pós-graduação há um tempo atrás que me tomou muito tempo, mas até há um
ano e meio atrás eu vinha num ritmo de ter uma atividade física às 5h30 da manhã – eu
corria. Eu chego na empresa às 7h30 da manhã, isso é padrão. E nunca saio antes das
7h30 ou 8h da noite. Uma média de 12 horas. Essa é minha média fixa, agora no final
de semana eu também trabalho.”
E você ainda trabalha em casa?
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“Trabalho porque tem o notebook. Coloca aí no fim de semana, por baixo, umas quatro
horas em cada dia. Agora por exemplo, para entregar minha monografia, eu virei
muitas noites. Eu acho que a gente pode falar numa média de 13 ou 14 horas todo dia.”
Você falou que é um profissional que está o tempo todo conectado, ou seja, você
está se utilizando de uma estrutura tecnológica que te permite realizar o teu
trabalho e ter contato com o mundo de negócios. Você tem noção de que em que
medida essa estrutura impede que você tenha contato com o mundo?
“Não, acho que é o contrário. Eu tenho contato a todo instante. E é aí que eu partilho
de umas idéias malucas de Sílvio Meira. Uma delas, acho que vem de Einstein, onde
ele diz o seguinte: você não pode fazer algo diferente se ficar fazendo o mesmo que as
outras pessoas fazem. Pela internet, você começa a ter uma outra visão do mundo, que
não é a visão que vem via Jornal Nacional. Eu assisto o Jornal Nacional também, mas
procuro fazer acima da média, acho muito bobo TV aberta. Eu assisto TNT, People &
Arts, Globo News, que é onde eu pego as informações. Normalmente também eu estou
plugado pegando uma coisa ou outra. Eu estou conectado ao mundo, muito mais do
que estava antes. Chega ao ponto de eu não sentir falta de ir ao cinema ou a algum
outro lugar.”
Essa estrutura ajuda a resolver o seu trabalho, a tua vida vem se modificando?
“Vem se modificando, sim. Eu sou formado em engenharia eletrônica e sempre gostei
do que faço, apesar daquela coisa de entrada e saída, de bater ponto. Eu gostava do que
fazia, mas não gostava de como fazia. Sempre gostei do que faço e queria ter
liberdade, de ter hora de trabalhar, de se divertir. Isso cria um conceito de que trabalhar
um dia, outro não, pode ser muito prazeroso. Hoje em dia eu consegui entender que
não é bem assim. Essa estrutura me fez trabalhar muito mais e com mais prazer.”
O que fez isso mudar, foi a tecnologia ou foi um processo de trabalho?
“Foi um processo, porque tecnologia já tinha naquele tempo. Talvez tivesse muito
mais tecnologia na Philips do que quando eu fui trabalhar no Rio Grande do Sul. Na
Philips eu vi o primeiro PC AT, enquanto todo mundo só falava nos primeiros PCs na
Philips já havia um AT colorido, que a Philips mandava da Holanda pra gente. Então
eu acho que up to date era lá. Quando eu fui pro Sul eu comecei a entender que eu não
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dependia tanto de tecnologia para ter um melhor desempenho no meu trabalho. Vivi
várias circunstâncias. Inclusive no Sul eu vi várias pessoas, com dinheiro, morando em
cidades pequenas, de 5 mil habitantes, por opção. Já em Porto Alegre elas se julgavam
a partir do resultado do trabalho. Foi aí que eu passei a entender que necessariamente
eu não preciso depender da Informática para trabalhar, muito mais interessante é o
resultado final. Esse contexto eu entendi como sendo mais prazeroso de trabalhar.
Você pode descansar trabalhando, descansar estudando, mas eu separei muito essas
coisas. Quando eu passei a ser consultor no Sul, foi mais fácil ainda porque eu
trabalhava em casa. A grande história de você trabalhar em casa é você admitir que
acabou a hora de casa e começou a hora do trabalho. É uma questão de disciplina. E eu
passei a participar mais da vida do meu filho e do meu círculo social. Essa formação
me fez ver que dá para fazer as coisas de uma forma diferente. Quando eu vim para cá,
aí a questão era construir um conceito. Acabei tendo de trabalhar dobrado para
alavancar os negócios. Aqui, é diferente do Sul – tem a diferença do clima, as pessoas
lá são mais isoladas e mais frias nos relacionamentos -, mas aqui sempre dá para ir à
praia com a minha família, para o parque de diversões... Então é bom saber que a
família está bem e você vai trabalhar mais tranqüilamente. Hoje eu já cheguei em outro
estágio. Eu não me vejo, sinceramente, me divertindo menos e trabalhando mais que as
outras pessoas. Pode ser que a minha família reclame, mas eu não me vejo assim.
Essa mudança de paradigma que você percebeu lá no Sul foi aplicada em outras
realidades da tua vida? Houve uma transferência desse modo de trabalhar que
você viu funcionar bem lá do Sul, ou para o seu trabalho aqui, ou para outros
níveis de relacionamento, como família?
“Eu acho que trabalho para a sociedade. Todo mundo acha chato ser síndico de
condomínio, mas alguém tem que ser. Se não tiver ninguém, vai ser eu. Porque se eu
deixar alguém que não presta ser esse síndico, o problema vai ser meu no final, por que
vou ter que pagar por sua má administração. Isso eu comecei a fazer lá. Quando eu vim
pra cá, continuei pensando assim. Aqui eu não sou síndico do meu prédio, mas eu
participo de entidades de classe, sou chairman da Câmara Americana. Então tem uma
parte aí da sociedade em que eu trabalho, mas sou seletivo. Me envolvo com o que eu
acho que vale a pena. Não me envolvo com qualquer entidade de classe. E eu não entro
num negócio em que eu não me sinto útil. E eu termino fazendo parte do processo de
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discussão. Isso vai muito do meu procedimento, de gostar de estar no negócio e me
empenhar porque eu estou nele. E trabalho da melhor maneira que eu posso. Com
relação ao pessoal tento ser menos rígido. Sei que preciso espairecer até para poder ter
a cabeça mais arejada com relação a outras coisas. Acho que no pessoal não sei se eu
precisaria ter uma dedicação, acho que tem que acontecer naturalmente.”
Essa conexão praticamente integral que você tem com o trabalho, ou via Cesar
pessoalmente, ou via wi-fi em casa, ela te dá certeza das informações com as quais
você está lidando ou você tem sempre um pé atrás e vai atrás do mercado, de
análises de outras pessoas que trabalham com negócios?
“Eu sou muito crítico e nunca aceito a coisa como ela está escrita. Eu sempre
questiono, sempre paro para pensar se faz sentido. Eu leio sobre tudo mas faço um
filtro muito grande. Não sou daqueles que pegam as palavras de um e transformo em
minhas palavras. A mesma coisa com a internet. A internet é um mundo de
informações, mas você tem que saber filtrar. É uma armadilha e muitas vezes você cai
nessa armadilha. Mas se você tiver um pouquinho de consciência de que você tem que
ficar o tempo todo filtrando, acho que você não corre esse risco.“
O que estabelece o filtro? Que elementos você utiliza?
“Eu acho que é um processo cultural e de experiência. Tenho meus procedimentos,
minhas convicções, sou um cara muito chato nesse aspecto. Eu defendo o que acredito
até a última hora. Só mudo se você conseguir provar que eu estou errado. Nisso eu sou
radical. É uma questão de inteligência empresarial.”
Você aplica isso ao trabalho. E no lado pessoal?
“É a mesma coisa. É a forma de você adquirir conhecimento da sociedade. Você tem
que estar atento, estar muito ligado. Não sei se vou passar a vida toda sendo como sou,
mas eu percebo tudo. Tudo o que está à minha volta, tudo que estou fazendo, consigo
ter controle de muitas coisas ao mesmo tempo. Isso me dá muita informação. Eu tenho
que processar essa informação paralela, usar e concluir com as minhas impressões. É
isso que normalmente eu faço.”
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Essas informações que de que você tem convicção elas se sedimentam, pelo que
entendi, na sua experiência anterior de trabalho.
“Me referencio nela. Naquilo que eu tenho certeza, porque eu tenho experiência, isso
faz o processo imutável, que aquilo ali não tem jeito, por mais que me digam diferente,
são referências fortes, sim. Eu sempre me baseio nelas, não porque alguém falou – o
meu histórico mostra que é assim.”
Isso também serve para analisar o seu trabalho...
“Sou um cara muito coerente com o que eu falo. O fato de eu estar hoje CEO de uma
incubada me diz tudo. Eu era o segundo homem na hierarquia do C.E.S.A.R., podia
continuar no C.E.S.A.R, mas pedi para sair, para ir para essa incubada.
Foi uma escolha sua?
“Minha. Eu fui assediado para não sair, porque eu estava cuidando de uma área nova
do C.E.S.A.R, em fase de estruturação. Mas houve um convite, o momento era aquele,
eu vi que era a melhor hora e decidi ir. E isso pra mim está coerente com o próprio
modelo do C.E.S.A.R. O C.E.S.A.R é uma casa de passagem. Então eu entendi que
aquela era a minha hora. Não adianta eu ficar falando isso para os outros se a gente não
está praticando. Eu tento ser coerente com as coisas que acredito.”
Para onde caminha a tua profissão? Você trabalha gerenciando, você tem alguma
expectativa do que vai estar fazendo daqui a alguns anos?
“Eu trabalho gerenciando, mas nunca teve tempo ruim pra mim. Quando eu fui dono
de empreiteira no Rio Grande do Sul, eu era o cara de instalação. O negócio é você
gostar do que faz e fazer o que gosta. Eu tenho muita capacidade de me adaptar às
situações. Se precisa trocar, vamos trocar. Não tem esse negócio. Eu acho que assim é
que a gente consegue sobreviver. Se a gente tem tranqüilidade para coordenar, tudo
bem, senão a gente progride e faz também. Eu acho que eu vou ter que passar por um
processo onde vou ter que colocar a mão na massa muitas vezes, como já coloquei, eu
sei que isso faz parte da história. O que a gente tem que ter é consciência de pra onde a
gente está andando. Eu nunca entrei num negócio para não evoluir de alguma forma,
acho que nesse não vai ser diferente. Com relação ao futuro da minha vida
profissional, é um negócio complicado. Tive uma experiência quando eu trabalhava na
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Philips aqui – eu tinha um chefe que era muito namorador, eu já estava noivo da minha
esposa e ele me dizia para eu não me casar. Ele me falava o seguinte: já pensou quanto
a universidade já investiu em cima de você? Do outro lado o investimento tem que ser
do mesmo tamanho. Depois eu associei a outra coisa, extrapolei o jeito dele falar e
pensei – eu estudei numa universidade pública, paga com o dinheiro do povo. Se eu
estou sendo um privilegiado, por estar me formando numa sociedade onde pouca gente
se forma, pouca gente tem nível superior, eu tenho que de alguma forma devolver. Daí
quando eu voltei do Sul eu pensei em usar minha experiência de ter rodado o país
inteiro para ajudar nos processos daqui e de alguma forma devolver para a sociedade.
Acho que no C.E.S.A.R eu consegui fazer um pedacinho disso para um determinado
segmento da sociedade. Eu acho que se der tudo certinho daqui pra frente, eu queria
condições de trabalhar em ações mais sociais. Não para ser mentor, mas para trazer
conhecimento de negócios para esse pessoal. Acho que essa será a minha maior
contribuição. Agora, eu não me vejo de jeito nenhum parado. Não sei parar, não vou
parar. E acho que por mais que envelheça eu vou estar lá. Se tem uma coisa que gosto
é de ler, de estudar, trabalhar.”
Como é separar trabalho e família?
“Eu gosto muito do que faço, mas às vezes complica. Eu gosto de futebol, meu filho
gosta de jogar, minha filha é pequenininha e aí eu faço coisas mais livres, brincadeiras
mesmo. Minha esposa, que é gaúcha e descendente de italianos, gosta de música, está
sempre tocando. A gente vai pouco para bar, ficamos muito mais em casa.”
O que você faz para desligar do trabalho ou isso nunca acontece?
“Acontece muito pouco. Meu trabalho é prazeroso. Eu não desligo não é porque eu
tenho que ficar ligado, não. Eu fico porque gosto de estar ligado. Estou sempre atento
ao dia-a-dia. Mas eu sei que uma pessoa de fora percebe mais detalhes. Nós, no
Nordeste, saímos muito, gostamos de festa. Mas o sulista é mais caseiro. Tem o clima,
a cultura, a família. Mas nós saímos, minha esposa sai com amigas, meus filhos vão ao
teatro etc. Agora indo para a incubada eu acho que vou voltar a tocar numa banda. Eu
gosto de rock e blues. Música pode gerar negócio também, se é algo prazeroso. “
Então, é como se a música funcionasse como um fator novo?
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“Sim, principalmente porque usa o fator emocional. A música trabalha com outra
dimensão. Quando você está muito imerso num processo racional, perde muito a visão
lateral das coisas.“
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QUADROS COM TIPOLOGIAS
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