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Os 70 anos do
Estado Novo de Vargas
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Poltica Democrtica Revista de Poltica e Cultura Braslia/DF:
Fundao Astrojildo Pereira, 2007.
N 19, novembro de 2007
200 p.
1. Poltica. 2. Cultura. I. Fundao Astrojildo Pereira. II. Ttulo.
CDU 32.008.1 (05)
Ficha catalogrfca
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Poltica DemocrticaRevista de Poltica e CulturaFundao Astrojildo Pereira
Os 70 anos do
Estado Novo de Vargas
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Sobre a capa
Para homenagear o arquiteto do Sculo XX Oscar Niemeyer, em seu cen-tenrio de nascimento, que transcorre no dia 15 de dezembro, nossascapa e contra-capa trazem ricos desenhos e fotos de obras nascidas dasensibilidade deste genial artista. Criado em um pas que buscava rompercom seu passado colonial, vendo na industrializao a chave para eliminar oatraso em que se encontrava, sua arquitetura reete as mudanas em marcha.
Diplomado em 1934, pela Escola Nacional de Belas Artes, Niemeyer in-tegraria, junto com Lcio Costa e o suo Le Corbisier, o grupo de trabalhoresponsvel pela edicao do ento Ministrio da Educao e Sade, hojePalcio da Cultura, no Rio. Em 1940, projetaria na histrica cidade de OuroPreto, um hotel ao mesmo tempo moderno e respeitoso das linhas arquite-tnicas tradicionais do barroco. Contudo, seu trabalho principal, poca, Pampulha, o novo bairro que projeta nas cercanias de Belo Horizonte. Coma Igreja de So Francisco, por exemplo, rompe com a chamada ditadura dongulo reto, introduzindo a linha curva, para no dizer ondulada, nesse tipode construo. Em 1946, soava a hora da consagrao internacional e ele pro-jetaria nada mais nada menos do que a sede da ONU, em Nova Iorque. Mas omelhor ainda estaria por vir Braslia.
Oscar realizou os principais projetos da nova capital, do Palcio da Alvora-da ao Palcio do Planalto, do Congresso Nacional esplendorosa Catedral va-zada de luz. Tudo em Braslia leve, como que utuando no ar. A nova capitalempolga o pas e o mundo. A tal ponto que Andr Malraux, clebre escritor eento ministro da Cultura de De Gaulle, no vacilou em dizer que as nicascolunas comparveis em beleza s colunas gregas so as do Palcio da Alvo-rada. Com o advento da ditadura militar de 1964, Niemeyer perseguido porsuas ligaes com o PCB praticamente se estabelece no exterior. E as portasdo mundo se abrem denitivamente para ele. Projeta prdios importantes,como a sede do PC Francs, em Paris, e a da Editora Mondadori, em Milo.
Com a redemocratizao, volta a trabalhar plenamente no Brasil, projetandoduas obras importantssimas, respectivamente o Hotel Nacional, no Rio, e oMuseu de Arte Contempornea, em Niteri.
Dir-se-ia que Oscar Niemeyer contesta pelo Belo, como a demonstrar queo mundo que ele imagina para o nosso povo tem de ser melhor do que aque-le em que leva sua sofrida existncia. a imaginao do gnio recriando omundo real. E a realidade imaginada sempre mais bela. Ou seja, o arquitetopercebeu que nas argamassas das construes tambm pulsam os nossoscoraes. Mais: que a alma encantadora das ruas a mais singela das arqui-teturas. Com essa tica, o espao existe para ser apropriado pelo homem oua arquitetura perde a sua razo de ser. E justamente essa concepo huma-
nista da arquitetura que ele nos deixa como lio.
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Sumrio
I. Apresentao
Caetano E. P. Arajo ................................................................................................11
II. Tema de capa. Os 70 anos do Estado Novo de Vargas
Ascenso e queda do Estado Novo
Severino Theodoro de Mello......................................................................................15
70 anos depois: busca permanente de um Estado Novo?
Rud Ricci ...............................................................................................................23
Lembrai-vos de 1945!
Antonio J. Barbosa ..................................................................................................33
Um auto-retrato do Estado Novo
Simon Schwartzman ................................................................................................38
III. Observatrio Poltico
UGT: uma resposta crise do movimento sindical
Francisco Pereira de Sousa Filho (Chiquinho Pereira) ...............................................49
Hiper-realidade ou hipoteoria?
Maria Lcia Teixeira Werneck Vianna......................................................................55
Aquecimento global, ecologismo dos pobres e ecossocialismo
Joo Alfredo Telles Melo...........................................................................................64
IV Batalha das Idias
Jeitinho brasileiroe desigualdades sociais: como o mtodocientco pode exercer violncia simblica
Tmara de Oliveira.................................................................................................. 73
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A problemtica atualidade de Gramsci
Edgardo Mocca ....................................................................................................... 82
A falta que o liberalismo fazCarlos Pio ............................................................................................................... 86
V No compasso das reformas
O m de uma era
Almir Pazzianotto Pinto ........................................................................................... 91
Sindicalismo: autonomia e representatividade
Augusto Carvalho ................................................................................................... 94
Os resultados de lngua portuguesa da Prova Brasil
Lucilia Garcez ......................................................................................................... 97
VI Mundo
O terceiro mandato est na moda na Amrica Latina
Dina Lida Kinoshita ..............................................................................................109Brasileiros de esquerda no Chile de Allende: protagonismos,divergncias, lies
Alberto Aggio ........................................................................................................114
Alguns aspectos do crescimento recente dos Estados Unidos:1990-2001
Vitor Eduardo Schincariol.....................................................................................123
Nossa Fronteira Sul
Cuauhtmoc Sandoval Ramrez.............................................................................136
VII. Vida Cultural
Realidade e co:Apontamentos sobre literatura e a crtica marxista
Ana Amlia Melo...................................................................................................143
De Antonio das MORTES ao Capito NASCIMENTO: Mocinhos e bandidosno cinema moderno brasileiro
Martin Cezar Feij ................................................................................................152
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VIII. Ano Caio Prado Jr.
Depois de quarenta anos, releitura de uma polmica
Marco Antonio Coelho...........................................................................................157
IX. Memria
Centenrio de Lencio Basbaum
Ivan Alves Filho ....................................................................................................165
Saudade de Almir Matos
Carlos Henrique ....................................................................................................168
Uma homenagem a Ivan Ribeiro
Raimundo Santos .................................................................................................170
X. Resenhas
Sob o ponto de vista da poltica
Gilvan Cavalcanti de Mello....................................................................................185
Cdigo da vida, fragmento de um tratado
Paulo Bonavides ...................................................................................................188
Guerreiras da sombra
Uelinton Farias Alves ............................................................................................191
Stefan Sweig: Brasil, um pas do presente
Vicente Palermo....................................................................................................194
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I. Apresentao
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Autor
Caetano E. P. ArajoProfessor do Departamento de Sociologia da Universidade de Braslia (UnB)e consultor legislativo do Senado Federal. [email protected]
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Ofoco temtico da presente edio de Poltica Democrtica amemria do Estado Novo. No dia dez deste novembro, cum-priram-se os setenta anos do incio daquele perodo, marcadopela ocupao da Cmara dos Deputados e do Senado Federal por tro-pas da Polcia Militar, a mando do ento presidente Getlio Vargas.
Quatro so os artigos aqui publicados sobre o tema. SeverinoTheodoro de Mello relata a ascenso e queda do Estado Novo a partirda perspectiva de sua situao poca: prisioneiro do regime, desde aderrota do levante militar de 1935, at 1942. Sua anlise revela, eviden-temente, o trabalho de reexo posterior do autor e do Partido Comu-nista Brasileiro, de que foi militante e dirigente, mas guarda tambmo esforo de formulao e interpretao dos presos polticos naque-le momento, numa situao difcil, a partir de informaes restritas.
Rud Ricci procura a comparao sistemtica das caractersticasmais relevantes do lulismo, entendido como maneira de governar, como modelo estado-novista do passado. Antnio Barbosa, por sua vez,ao reetir sobre o perodo, chama a ateno para o ocaso do regime,incompatvel tanto com a nova ordem internacional que surge da der-rota do nazi-fascismo, quanto com a mobilizao democrtica que aguerra provocara no Brasil. A adaptao pragmtica aos novos tempostomaria a forma do queremismo, movimento que guardaria seme-lhana com propostas defendidas ou implementadas hoje, no Brasil e
em outros pases da Amrica Latina, de defesa da possibilidade inde-nida de reeleio.
Simon Schwartmann, por sua vez, comenta o conjunto de textospreparados nas reparties do regime, dedicados ao histrico e sntesede sua obra poltica e administrativa.
Est claro que a discusso sobre o Estado Novo est iluminadapelos movimentos da poltica presente, pela busca de analogias e des-semelhanas, de tendncias subjacentes histria brasileira, queirrompem sempre que encontram a conjuntura propcia. No se trata
de construir interpretaes esquemticas, de simplicidade enganosa,
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I. Apresentao
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mas de buscar na histria elementos para uma reexo mais fecundasobre o presente. Penso que os quatro textos cumprem essa funo.
Chamam a ateno, no texto de Severino Theodoro de Mello, a fra-gilidade da democracia brasileira naquele momento, derrotada por umconluio simples do presidente com o comando das Foras Armadas,para impedir, alegadamente, o retorno da velha ordem; assim como odescrdito jogado sobre os partidos polticos e o Congresso Nacional,supostamente espaos exclusivos de interesses particulares.
O texto de Simon Schwartzmann uma anlise do discurso delegitimao do regime: ecincia para a consecuo dos grandes obje-tivos nacionais, com destaque para a modernizao, em contraste coma suposta inoperncia do regime democrtico.
Antnio Barbosa, por sua vez, aponta para a lgica intrnseca aoqueremismo, ou seja, mais uma vez, tudo precisaria mudar para con-tinuar como est. Em 1945, esse movimento foi interrompido por maisum golpe, que assegurou a Constituinte sem Getlio.
Finalmente, o texto de Ricci identica, de maneira sistemtica,semelhanas e diferenas entre aquela conjuntura e o estilo do gover-no Lula, em dilogo constante com o trabalho de Werneck Vianna,O Estado Novo do PT, publicado no nmero anterior desta revista.
No fundo, o centro da discusso , ainda, a questo democrtica,
que retorna num momento de crise da representao poltica no mun-do, agravada, na Amrica Latina, por uma crise dos partidos polticosda regio, num quadro de persistncia de profundas desigualdadessociais. Nesse quadro, no h muitas alternativas. A manuteno dossistemas polticos dos pases latino-americanos constitui, na maioriados casos, inclusive no Brasil, fator de produo e manuteno deinstabilidade. O descrdito na poltica e nos polticos assemelha-se aode setenta anos atrs. O clamor pela ecincia e rapidez maiores naconsecuo de objetivos nacionais, hoje menos a modernizao e maisa incluso e a eqidade, persiste.
A tendncia mudana , portanto, poderosa. Seus caminhos po-dem passar, por um lado, pela ampliao e consolidao da democra-cia, o que implica aperfeioar a representao, aumentar a participa-o e reconhecer a centralidade, nessa perspectiva, do poder local.Podem, contudo, passar tambm pela regresso da representao, atsua concentrao extrema na gura de um presidente da Repbli-ca cada vez menos sujeito a controles constitucionais. A balana, naAmrica Latina, parece pender hoje para essa ltima opo.
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II. Tema de capa
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Autores
Severino Theodoro de MelloUm dos ltimos, seno o ltimo, dos remanescentes da insurreio armada de 1935,que dela participou no Recife, na condio de cabo. Ele est em fase nal de reviso
de seu livro de memrias, com lanamento previsto para 2008. dirigente histricodo PCB/PPS.
Rud RicciSocilogo, Doutor em Cincias Sociais, membro da executiva nacional do Frum Brasilde Oramento e do Observatrio Internacional da Democracia Participativa.
E-mail: [email protected]. Site: www.cultiva.org.br. Blog: rudaricci.blogspot.com
Antonio J. BarbosaProfessor de Histria Contempornea naUnB.
Simon SchwartzmanDiretor da AirBrasil (American Institutes for Reseach Brasil), no Rio de Janeiro.De 1994 a 1998 foi presidente do IBGE. Autor, dentre outros, do livro Bases doautoritarismo brasileiro, A sociedade do conhecimento e a educao tecnolgica
(com Micheline Christophe) e Pobreza, excluso social e modernidade: uma introduoao mundo contemporneo.
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Ascenso e queda do Estado Novo
Severino Theodoro de Mello
Este 10 de novembro marca os 70 anos do golpe de Estado queenterrou a Constituio liberal de 1934 e imps a ditaduragetulista do Estado Novo. Ao amanhecer daquele dia, um pe-queno contingente da Polcia Militar foi posta diante do Senado e daCmara dos Deputados para impedir a entrada de parlamentares e,
s 10 horas, no Palcio do Catete, Getlio Vargas ocializou, com asua assinatura, a entrada em vigor da nova Carta e falou nao, pelordio. Em sua edio vespertina, os jornais estamparam uma nota doministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, comunicando o apoio doExrcito ao novo regime.
guisa de justicativa para o seu ato, Vargas alinhavou duas or-dens de argumentos. Comeou alegando que a campanha eleitoral emcurso, para eleger seu sucessor na Presidncia da Repblica, esta-va se prestando para que Armando de Sales Oliveira, candidato daoligarquia paulista, e Antonio Flores da Cunha, seu aliado e entogovernador do Rio Grande do Sul, se armassem com o intuito de seimporem pela fora nao, o que os tornava uma grave ameaa unidade nacional; e que essa conduta dos dois era tanto mais danosaao Brasil quanto dela se estavam aproveitando os comunistas, que jplanejavam atacar as instituies nacionais.
A seguir, Vargas critica acerbamente a Constituio de 1934, que,com seu liberalismo poltico e sistema representativo estava se mos-trando incapaz de fazer face s novas realidades do mundo, que exi-gem governos fortes, capazes de responder com agilidade e rmeza s
crescentes exigncias da administrao pblica e das novas ameaas
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II. Tema de capa
internas e externas; governos apoiados em sistemas representativosde novo tipo, em que tenham assento as corporaes que dinamizama economia e onde capital e trabalho encontrem ambiente propicio
harmonizao de seus interesses. Vargas argumentava que, no siste-ma da Constituio de 1934, no havia partidos polticos verdadeirosmas ajuntamentos estaduais produzindo parlamentares que, com ra-ras excees, nada conheciam dos problemas nacionais e cuidavamapenas de seus interesses eleitorais e negcios privados.
Para os cerca de 150 companheiros que ento nos encontrvamospresos no Recife, condenados ou aguardando julgamento pelo Tribunalde Segurana Nacional (TSN) como implicados na insurreio de 1935,a chegada de um regime de tipo fascista passara a ser uma possibili-
dade a considerar desde que, em maro de 1936, o estado de guerrafora criado e, pouco tempo depois, o Superior Tribunal Militar deixoude ser a corte de apelao das sentenas proferidas pelo TSN, funoque passou para a competncia desse prprio tribunal, com o que elecou afastado do sistema jurdico do pas. Com esse estado de guerra,que durou 14 meses, tivemos suprimidos, no presdio, quase todosos direitos que a lei estabelecia para o preso poltico, principalmentea de receber visitas regulares de familiares e amigos, jornais e livros.
Assim vivemos at comeos de junho de 1937, quando, por exign-cias constitucionais, o estado de guerra teve m. Recobramos, ento,
todos aqueles direitos que haviam sido privados, e os companheiroscontra quem no havia culpa formada e eles somavam dezenas re-cuperaram a liberdade. A Constituio mandava cessar todo estado deexceo 180 dias antes da data estabelecida para as eleies, e a que de-veria escolher o substituto de Vargas estava marcada para 3 de janeiro.
Livres agora daquelas restries, que se destinavam principalmen-te a nos privar do conhecimento do que acontecia alm dos muros dapriso, lanamo-nos busca de compreenso do que se passava noBrasil. Em comeos de setembro, o quadro que havamos composto
mostrava um presidente em m de mandato, sem candidato prpriocapaz de eleger-se, manobrando para evitar o pleito, porque sabia quea vitria do candidato oposicionista traria de volta ao poder a plutocra-cia paulista derrotada em 1930. Alm disso, a esse candidato estavaaliado o governador Flores da Cunha, do Rio Grande do Sul, que deh muito trabalhava para arrebatar a Vargas a condio de lder pol-tico mximo gacho e nacional. Para evitar o julgamento das urnas, onico caminho legal de que este dispunha era conseguir do CongressoNacional emenda constitucional que abrisse as portas prorrogaodo seu mandato, mas, para tanto, precisava do apoio dos governado-
res dos demais estados, controladores que eram dos votos de suas
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Ascenso e queda do Estado Novo
bancadas no Congresso, e para isso Vargas lhes oferecia que com aemenda constitucional haveria tambm a prorrogao dos seus man-datos. Mas trs desses governadores haviam repelido esse caminho: os
da Bahia, Pernambuco e Santa Catarina, e os votos controlados pelosdemais no bastavam para alcanar os 2/3 exigidos pela Constituio.
Enquanto isso, era evidente a expanso mundial da ideologia fas-cista, em detrimento das democrtica e liberal, fenmeno pelo qualse rejubilavam certos crculos civis e militares brasileiros. As relaespolticas do Brasil com a Alemanha e a Itlia vinham se tornando, acada dia, mais estreitas, e, com o acordo dos marcos compensados,rmado no ano anterior, a nossa economia passava a ter, nas exporta-es para a Alemanha, seu plo mais dinmico e promissor.
Estvamos nesse p quando desabou sobre o pas, com o maiorestardalhao, uma sucesso de notcias que levavam a crer queo Exrcito estava em marcha batida para desfechar um golpe e assu-mir o poder.
Tudo comeara com uma declarao do general Goes Monteiro, deque o Estado Maior do Exrcito, do qual ele era o chefe, havia apreen-dido o que ele chamou de Plano Cohen, que revelava estar iminenteum sangrento golpe comunista. Feita em meados de setembro, a essadescoberta do general teria se seguido uma reunio sigilosa de ge-
nerais, convocada pelo ministro da Guerra, da qual sara a decisode conjurar o perigo comunista por meio da tomada do poder pelosmilitares. E na seqncia dessa reunio tinha havido a decretao doestado de guerra e a, seguir, a defenestrao de Flores da Cunha dogoverno do estado sulino.
Se alguma dvida nos restasse, naquela manh de 10 de novem-bro, de que o golpe tinha esse carter, ela teria sido desfeita depoisdo encontro de um ocial superior da 7 Regio Militar, com Silo Mei-reles, no nal da tarde daquele dia. Esse ocial fora incumbido dedar-lhe conhecimento do que era o novo regime e, segundo Silo em se-
guida nos informou, o tal ocial encerrara sua informao com a fraseagora, manda a espada. A lembrana do que havia sido aquele anoe pouco sob o primeiro estado de guerra, no nos deixava alternativaseno esperar o pior desse segundo, de vez que este, agora, estava aservio de um regime de tipo militar fascista. E quando nos deitamospara dormir, pairava sobre nossos pensamentos aquela frase como orasga mortalha agourento de uma coruja vestida de verde oliva.
Mas acordamos, na manh seguinte, sem encontrar qualquer mu-dana contra ns, e o mesmo foi acontecendo nos dias, semanas, me-
ses, at que, com a anistia, deixaram a priso os ltimos presos polti-
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II. Tema de capa
cos que ali ainda restavam. Talvez porque ns, presos polticos, j noapresentvamos ameaa real a Vargas e ao regime, ou porque ele, po-ltico com vista de longo alcance, como era, vislumbrasse a vantagem
de nos guardar como carta de baralho poltico que, algum dia, poderiaser-lhe til. O fato que, em todo o perodo do Estado Novo, em ne-nhum momento, sofremos qualquer restrio aos nossos direitos, sejano presdio do Recife, seja na ilha de Fernando de Noronha, onde fomosreunidos, em maro-abril de 1939, os presos sentenciados do Rio deJaneiro, Recife, Natal, Alagoas e, mais adiante, um grupo de So Pau-lo, seja, enm, na Ilha Grande, para onde fomos transferidos depoisdos torpedeamentos de navios brasileiros na costa leste americana.
A verdadeira histria do golpe de 10 de novembro est contada
por Hlio Silva, no volume de sua obra A Era de Vargas, que trata doassunto. Segundo ele, o golpe resultou de uma proposta de Vargas aoseu ministro da Guerra, no dia 18 de setembro. Vargas vinha daquelafracassada tentativa de prorrogao do seu mandato e, na conversacom Dutra, depois de mostrar suas preocupaes com ArmandoSales, Flores da Cunha e os comunistas, e da acusao democraciae ao Congresso de no o deixarem governar, props-lhe uma revoluofeita de cima para baixo, pelo prprio governo, para mudar o regimee reformar a Constituio. Dutra respondeu que podia contar comele, mas no podia avanar tanto a respeito do Exrcito. Com esse
objetivo e j havendo antes ouvido a opinio de alguns chefes militares,ele promoveu uma reunio de generais, no dia 27, para dar-lhesconhecimento da proposta e deliberarem a respeito. O plano consistiaem, obtida a concordncia dos generais, arrancar do Congresso adecretao de novo estado de guerra e, apoiado nele, derrubar Floresda Cunha do governo do Rio Grande do Sul e anular a convocao daseleies. O plano foi executado e o golpe marcado para 15 de novembro.
No entanto, o ambiente no Exrcito no era o de concordnciatotal. Hlio Silva cita os generais Pantaleo Pessoa, Manuel Rabelo,Pompeu Cavalcanti, Coelho Neto, Pantaleo Teles Ferreira e o coronel
Eduardo Gomes como militares de alta patente que, desde cedo, sehaviam manifestado contrrios ao golpe em preparao, e constataque a ocialidade em geral mantinha-se indiferente ao que ocorria nosaltos escales. E que deve ter sido por isso que os ministros militaresresolveram que as Foras Armadas no tomariam a iniciativa do des-fecho do golpe, apoiariam o que fosse deliberado pelo chefe da naoe pelos polticos.
O ltimo fato militar, antes de desfechado o golpe, corrobora comaquela observao de Hlio Silva sobre o alheamento da ocialidade
em geral. Na noite de 8 de novembro, o que deve explicar o cuidado
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Ascenso e queda do Estado Novo
na nota de Dutra de atribuir a Vargas e aos polticos e as pessoaspara tanto competentes a autoria do golpe e at a demora para dara pblico o comprometimento do Exrcito, Armando de Sales Olivei-
ra lana manifesto, dirigido aos chefes militares, denunciando a imi-nncia do golpe e concitando a resistirem a ele. Portadores especiaispercorreram a cidade levando cpias aos militares. Exemplares forammandados para So Paulo. Na manh do dia 9, ele lido das tribu-nas da Cmara e do Senado. Ao anoitecer, Dutra comunica a Vargasque o manifesto estava sendo distribudo nos quartis, e que ele nogarantiria a manuteno da ordem se no fossem tomadas medidasde represso. Deliberou-se, ento, antecipar a data do golpe para odia seguinte, 10 de novembro, e que o Congresso seria fechado. Dutradiscordou do emprego de tropa do Exrcito para isso, da haver cabido Polcia Militar cercar o Senado e a Cmara.
O acompanhamento que z dos oito anos de vida do Estado Novo,do seu nascimento, acima descrito, ao golpe militar de 29 de outu-bro de 1945, que a Histria registra como a data de bito do regime,se divide em duas fases, a primeira das quais vai at junho de 1942quando recobrei a liberdade por cumprimento da pena.
Enquanto permanecemos no Recife, nossa fonte de informaesera a imprensa pernambucana, que cada vez mais se reduzia a umboletim divulgador de atos administrativos de Vargas e de comentrioslaudatrios ao chefe da nao, como passou a ser referido. Mesmoassim, podamos ver que o fascismo no estava com a bola cheia noEstado Novo. Primeiro, eram as contradies internas existentes noBrasil, no as contradies em tese, mas as reais, que havamos vistose entrechocando naqueles cinco meses em que estivemos livres doestado de guerra. O regime no as resolveria, nem elas deixariam deexistir por decreto, como se diz. A essas viriam juntar-se, depois, asprovocadas por duas medidas governamentais que atingiam, direta-mente, a inuncia nazista nas colnias alemes no Sul do pas. Uma
delas foi a obrigatoriedade do aprendizado da lngua portuguesa pelosdescendentes de alemes, e o ensino de nossa lngua nas suas esco-las; a outra, foi a proibio da existncia de ncleos do partido nazistaentre os colonos de origem germnica. (Mas, surpreendentemente, oEstado Novo praticamente acabaria, ao atingir sua meia vida, pelodesembarque, dele, de dois de seus trs pilares de sustentao, con-forme veremos logo adiante). Embora esses jornais dedicassem poucoespao situao internacional e publicassem apenas um sumriodos despachos das agncias de notcias europias, ainda assim po-diam-se ter notcias dos principais acontecimentos que tinham lugar
na Europa. Assim, podemos acompanhar a maneira impassvel como
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II. Tema de capa
os governos ingls e francs assistiam a toda preparao alem paraa guerra, na esperana de que Hitler a desencadeasse contra a UnioSovitica, onde havia muito espao vital para ele ocupar.
Quando chegamos a Fernando de Noronha, onde j estavam oscompanheiros idos do Rio de Janeiro, o comeo da guerra j estavacom os dias contados. Esses companheiros haviam levado um rdiode ondas curtas, e por ele acompanhamos o ataque alemo Polnia,que levou a Inglaterra e a Frana a declararem guerra a Alemanha,um compasso de espera de nove meses, at que Hitler ataca na frenteocidental, e vence a guerra em cinco semanas.
No dia 11 de junho de 1940, quando os franceses j estavam dejoelho e os ingleses haviam sido expulsos para sua ilha, levando apenas
as roupas que vestiam, ouviu-se, pela ltima vez, a voz de Vargas reci-tando o slogan fascista de que o mundo dos regimes fortes, e no temlugar para naes com regimes liberais e democrticos. Na verdade,essas palavras j deviam soar falsas a seus ouvidos, pois quela horaele sabia bem como os Estados Unidos de Roosevelt j se preparavampara enfrentar os alemes, e como o potencial militar americano erasuperior ao de Hitler e seu recm aliado na guerra, a Itlia. Passadoum ano, quando Hitler j dominava toda a faixa fronteiria que vai daFinlndia Bulgria, invade o pas socialista. Nenhum Estado-maiorde Exrcito de qualquer pas deu mais do que trs meses para que os
alemes destrussem o Exrcito Vermelho. Ao que parece, todos elesacreditavam nas mentiras de Hitler de que os russos estavam prestesa atacar a Alemanha, caso em que os seus exrcitos, inclusive as re-servas estratgicas, estariam cerrados sobre a fronteira. Como a vidamostrou, isso no era verdade. A Unio Sovitica reconhecia sua des-vantagem inicial diante dos alemes, e se preparou para uma troca deterreno por tempo, para por em p de guerra todo seu potencial militar,e quando, passados seis meses, aconteceu Pearl Harbor, os alemesestavam detidos e xados diante de Moscou e Leningrado, esta, cer-cada e o mito da invencibilidade do soldado alemo estava quebrado.
Ao ser instaurado, o Estado Novo se assentava sobre trs pilares:Vargas, que levava consigo o prestgio de que gozava entre as massastrabalhadoras, prestgio que no parou de crescer com o correr dotempo; os militares, estes, pelo menos de incio, com aqueles desen-contros citados, e as chamadas classes produtoras, e no s aque-las tradicionais, que exportavam matrias primas e alimentos paraa Alemanha, ou dela importavam produtos industrializados, desde1936, beneciados pelo acordo dos marcos compensados. Desse pi-lar participava tambm um novo ramo da burguesia industrial, aque-
la que em conseqncia da crise da Grande Depresso, que reduziu
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Ascenso e queda do Estado Novo
drasticamente nossa capacidade de importar mquinas, motores eferramentas, comeou a produzir esses itens, sempre estimulados enanciados por Vargas, que lhes assegurava crdito barato, com o que
vinham alargando o leque de substituio de importaes. Eles noproduziam para a Alemanha, mas para o mercado interno. Prevendoo incio da guerra, Vargas forneceu-lhes crditos baratos e a longoprazo, para que estocassem matrias primas e insumos para a fa-bricao garantida de seus produtos. Era nessa nova burguesia queVargas tinha apoio rme em So Paulo, e assim continuaria a ser,depois do Estado Novo.
Vargas, por seu lado, nunca foi to entusiasta do estreitamentodas relaes com a Alemanha e a Itlia, ao ponto de esquecer que os
Estados Unidos eram, ento, os compradores de 25 por cento de todaa exportao brasileira; nem to ignorante das coisas militares queno soubesse que o Brasil se encontrava inapelavelmente no campoda geopoltica americana. Assim, ele teve como ministro das RelaesExteriores, Oswaldo Aranha, conhecido antifascista e amigo declaradodos Estados Unidos, pas, alis, onde havia sido nosso embaixadornos dois anos que antecederam o Estado Novo.
Com a guerra e o bloqueio naval mtuo, estabelecidos pela Gr-Bretanha e a Alemanha, o nosso comrcio com esses dois pases dimi-nuiu at quase parar, e os que se beneciavam do acordo dos marcos
compensados viram sua galinha dos ovos de ouro fugir-lhe pelos de-dos. Por seu lado, mesmo antes da guerra eclodir, a convite do governoamericano, Getlio aceitou entabular entre os dois pases, no nvel dechefes de Estado Maior de seus respectivos exrcitos, conversaes arespeito da localizao estratgica do saliente nordestino e do papelque Natal (RN) e Recife (PE) poderiam exercer para a defesa do conti-nente como bases aeronavais.
Foi ento que aconteceu Pearl Harbor, os Estados Unidos entra-ram na guerra e, no Encontro de Chanceleres das Amricas, realizado
em janeiro do ano seguinte, colocaram duas questes que, de fato,liquidaram com o Estado Novo: exigiram a solidariedade dos pasesdo continente que, em reunio da Unio Pan-americana, haviam pro-metido a qualquer pas do continente que fosse agredido por outrode fora, o que signicava entrarem na guerra; e, ao mesmo tempo,comprometiam-se a comprar dos pases do continente tudo quantoeles produzissem de uma extensssima lista de coisas destinada aosesforos de guerra americano. Para o governo brasileiro, a solidarieda-de limitou-se, no comeo, cesso de bases aeronavais naquelas duascidades. Para os nossos rfos do comrcio com a Alemanha, aquela
pronta compra, vista, do que eles produzissem, representava uma
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providencial tbua-de-salvao, ou melhor, um bote salva-vidas re-cheado de dlares. Que restava, assim, do Estado Novo, seno a cascainstitucional que teimava em sobreviver?
O golpe foi sentido pela Alemanha e a Itlia que, imediatamen-te, torpedearam cargueiros brasileiros que se aproximavam de portosamericanos, como a conrmar que j nos consideravam do outro lado.Foi nesse momento que cheguei ao Rio de Janeiro, e a dvida queocupava a cabea dos anti-fascistas era se Getlio tinha mesmo mu-dado de opinio e desembarcado do Estado Novo ou se seus atos eramfalsos. A vida mostrou que eram para valer.
O sentimento anti-nazista, que j vinha crescendo no pas, sobre-tudo depois da entrada dos americanos na guerra, explodiu em ma-
nifestaes de massas, nas capitais e em algumas cidades maiores,exigindo a declarao de guerra dos pases do Eixo e a demisso dogoverno de conhecidos fascistas, quando cinco navios fazendo cabota-gem foram torpedeados quase simultaneamente, na costa sergipana,causando a morte de mais de cem passageiros e tripulantes. Dessasmanifestaes resultaram a declarao de guerra Alemanha e Itlia,e a demisso de Felinto Muller, da chea da polcia da capital federal.
Todas essas manifestaes tiveram seu papel na liquidao doEstado Novo, mas elas movimentaram quase que exclusivamente pes-
soas j politizadas. A grande mobilizadora e educadora permanentede massas, que movimentou toda a populao brasileira por todo operodo em que ela esteve no teatro de guerra, foi a FEB. Ningum noBrasil deixou de saber da sua existncia, de torcer diuturnamente porseu sucesso, de odiar o inimigo que ela fra combater. E em torno daFEB, nasceu e se desenvolveu, por todo o tempo em que ela esteve noscampos de batalha, um dos mais amplos e duradouros movimentosde solidariedade de massas j criado no Brasil, no qual se destacou,especialmente o das madrinhas, que mobilizou milhares de jovens,esposas, lhas, namoradas, amigas, colegas de estudo, e mesmo des-
conhecidas, que se correspondiam e enviavam pequenos presentespara os pracinhas que estavam nofront.
O golpe de 20 de outubro de 1945 teve seu papel na destruio doEstado Novo, escrevendo seu atestado de bito.
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Rud Ricci
1. O Estado Novo ainda uma inteno poltica?
Recentemente, dois fatos zeram emergir o Estado Novo das ca-
tacumbas da histria poltica do Brasil. O primeiro foi a pro-posio de Luiz Werneck Vianna (IUPERJ), esboada em entre-
vista ao jornal Estado de So Paulo(de 05 de agosto) e na ConfernciaCaio Prado Jnior, sobre as coincidncias entre o governo Lula e oiderio que gerou o trabalhismo brasileiro. Foi alm e sugeriu que apresena corporativa de trabalhadores e empresrios nos fruns deconcertao das propostas governamentais, a diculdade presencialde conciliar interesses conitantes e a centralizao ostensiva sotraos de um Estado Novo do PT. mais do que metfora, avaliouWerneck Vianna em sua entrevista. Multiplicam-se os sinais de es-
vaziamento da conana poltica a partir do Legislativo. Lula estariacatapultado pela popularidade que se soma ao declnio dos partidos ea banalizao dos escndalos parlamentares.
Em seu artigo publicado na Revista Poltica Democrtica n 18,Vianna argumenta:
Assim, o governo que, no seu cerne, representa as foras expansivasno mercado, naturalmente avessas primazia do pblico, em especialno que se refere dimenso da economia marca da tradio republi-
cana brasileira , adquire, com sua interpelao positiva do passado,uma certa autonomia quanto a elas, das quais no provm e no lheasseguram escoras polticas e sociais conveis. Pois, para um go-verno originrio da esquerda, a autonomia diante do ncleo duro daselites polticas e sociais que nele se acham presentes, respaldadas pe-las poderosas agncias da sociedade civil a elas vinculadas, somentepode existir, se o Estado traz para si grupos de interesses com outraorientao. A composio pluriclassista do governo se traduz, portan-to, em uma forma de Estado de compromisso, abrigando foras sociaiscontraditrias entre si em boa parte estranhas ou independentes dospartidos polticos , cujas pretenses so arbitradas no seu interior, e
decididas, em ultima instncia, pelo chefe do poder executivo. Capi-
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II. Tema de capa
talistas do agronegcio, MST, empresrios e sindicalistas, portadoresde concepes e interesses opostos em disputas abertas na sociedadecivil, encontram no Estado, onde todos se fazem representar, um ou-
tro lugar para a expresso do seu dissdio. Longe do caso clssico emque o Estado, diante da abdicao poltica das classes dominantes,se erige em patro delas para melhor realizar os seus interesses, aforma particular desse Estado de compromisso se exprime na cria-o, no interior das suas agncias, de um parlamento paralelo ondeclasses, fraes de classes, segmentos sociais, tm voz e oportunidadeno processo de deliberao das polticas que diretamente os afetam.Nesse parlamento, delibera-se sobre polticas e se decide sobre suaexecuo. falta de consenso, o presidente arbitra e decide.
O segundo elemento da conjuntura a levantar suspeitas foi a re-corrente proposta de lderes petistas sobre a possibilidade de mudan-a constitucional que possibilitaria a disputa de Lula para um terceiromandato. No seria um exagero, se tal proposta se congurar comoalgo alm de discurso, relacionar este desejo com as movimentaesqueremistas de Hugo Chavez.
O objetivo explcito deste artigo ponderar sobre os traos do Es-tado Novo getulista e as caractersticas do que podemos denominarcomo lulismo. Os dois fenmenos polticos so emblemticos do modode fazer poltica popular em nosso pas. Um tema central para enten-
dermos os rumos de nossas experincias democrticas. Comecemospelo Estado Novo de Getlio Vargas.
Skidmore, em seu livro Brasil: de Getlio a Castelose pergunta quaisas bases polticas que teriam gerado um golpe de Estado quando, trsanos depois da poltica nacional (em 1934) ter se reavivado. A respostaque o autor sustenta a habilidade de Getlio Vargas em manipularas foras polticas, umas contra as outras. Esta uma das caracters-ticas importantes do Estado Novo: a manipulao poltica a partir dopoder central, diminuindo o grau de autonomia das agremiaes par-
tidrias. A manipulao do perodo, conturbado internacionalmente,tinha um aspecto peculiar: o constante discurso sobre as intenessubversivas de algumas lideranas. A ameaa era diariamente repisa-da por um Congresso Nacional de maioria conservadora, tendo frenteparlamentares como Raul Fernandes, que produziu os primrdios deuma ideologia de segurana nacional. Por sua vez, o discurso cada vezmais radical de Prestes, sustentando todo poder Aliana NacionalLibertadora, dava o pano de fundo necessrio para que a paraniapoltica ganhasse alguma veracidade. A reao do governo varguistafoi imediata e, alm de fechar a ANL, mandou prender muitas lideran-
as de esquerda. A campanha eleitoral de 19361937 (para eleies
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presidenciais previstas para 1938, sem a possibilidade de reeleiode Vargas) cou, assim, circunscrita candidaturas de centro-direita(Armando de Sales Oliveira, da UDN; Jos Amrico de Oliveira e o in-
tegralista Plnio Salgado).
Para os ns deste artigo, contudo, interessa analisar as caracte-rsticas do Estado Novo, embora o jogo poltico armado por GetlioVargas dena seus contornos desde o incio. Os tempos so outros eas foras do espectro poltico de centro tm, hoje, uma posio mui-to mais proeminente que a que ocorria nos anos 30. Vale, contudo,rearmar como um Congresso Nacional conservador e submisso svontades do governo federal facilitaram a manipulao poltica para ocontinusmo de Vargas no poder.
O Estado Novo, na literatura especializada, se congura como umEstado Planejador (em Octavio Ianni) e de construo da unidade na-cional. At ento, os governos estaduais possuam grande autonomiaadministrativa e poltica. Emprstimos com agncias internacionaiseram negociados diretamente pelos governadores. reas sociais, comotrabalho e educao, eram facultadas ao estadual, embora desde1930 esta situao se alterasse rapidamente.
Alm da maior interveno e participao do Estado na conduo eco-nmica (incluindo criao de empresas estatais nas reas de transporte
e empresas de economia mista em indstrias de base), em 1938, Vargasinaugura a construo de um forte aparato burocrtico. Com a criaodo Departamento Administrativo do Servio Pblico (DASP), o aumentodo controle poltico sobre a ao pblica e a denio de um padro deexcelncia de todo servio estatal passou a ganhar contornos slidos.
Na rea estritamente poltica, ou da engenharia poltica, Vargascomandou, a partir da nova burocracia federal e centralizao da po-ltica num regime autoritrio, a desmontagem das mquinas polticasem federaes de destaque na poltica nacional, como So Paulo eMinas Gerais. Vargas apoiou ostensivamente foras oposicionistas em
vrios estados, criando uma rede de alianas regionais. Este foi o casode Francisco Campos, em Minas Gerais. Em outras palavras, mes-mo com o poder poltico em suas mos, nunca deixou de armar umaaliana local ao redor das benesses e apoios que partiam do governofederal. Prtica, alis, que j se disseminava desde a nomeao deinterventores estaduais.
Outro de seus movimentos signicativos foi a construo de umalegislao previdenciria que procurava ocupar o espao antes reser-vado s foras de esquerda e sindicatos. Nascia da o trabalhismo.
O Ministrio do Trabalho passou a controlar a estrutura sindical nacio-
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nal, via reconhecimento legal ou adoo do imposto sindical (distribu-dos aos sindicatos a partir do Ministrio). Em 1944, num importantediscurso, conclamou os trabalhadores a se liarem aos sindicatos e
encaminharem uma revoluo na mentalidade nacional. A partir doEstado Novo foram xados os primeiros salrios mnimos nacionais.
Finalmente, no que diz respeito poltica externa, Vargas transi-tou, durante o Estado Novo, entre o apoio ao Eixo ou aos EUA e aliadosanti-nazistas. Tirou proveito desta oscilao calculada e, a partir dela,conseguiu dividendos importantes dos EUA (via Export-Import Bank)para promover a siderurgia nacional (o Plano Siderrgico Nacional foiesboado ainda em 1940), a aeronutica e programas de cooperaotcnica em algumas reas sociais.
Mas o m da Segunda Guerra Mundial alimentaria uma vagaliberal-democrtica e, com ela, o avano da oposio ao Estado Novo,materializada inicialmente no Manifesto dos Mineiros.
possvel destacar, sumariamente, algumas caractersticas doEstado Novo que podem sustentar uma base de comparao com olulismo. Seriam elas:
a) Congresso Nacional conservador e manipulvel a partir do po-
der central, conferindo maior poder decisrio ao presidente daRepblica;
b) Articulao poltica dos estados a partir das benesses e apoiospoltico-nanceiros s foras regionais muitas vezes minorit-rias que se comprometessem a apoiar o projeto nacional var-guista;
c) Construo de uma forte burocracia estatal federal, prossio-nalizada;
d) Consolidao de um projeto de desenvolvimento industrial apartir do Estado, via negociao de investimentos norte-ame-ricanos e instalao de indstrias estatais ou de capital misto;
e) Formatao do trabalhismo, poltica federal de organizao domercado de trabalho a partir do controle estatal federal e emer-gncia de polticas previdencirias e trabalhistas nacionais;
F) Montagem de um Estado corporativo, com negociao depolticas nacionais a partir de concertaes com elites eco-nmicas e trabalhistas, em fruns especcos criados pelo
governo federal.
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2. O Lulismo est construindo um Estado Novocontemporneo?
A pergunta instigante. O que aproximaria o lulismo do Estado Novovarguista? O primeiro passo compreender o que seria o lulismo. Lan-o mo de uma tentativa de explicao que esbocei em ensaio publica-do na Revista Lutas Sociais, da PUC-SP (segundo semestre de 2005).
Neste ensaio, sustento que o lulismo no , ainda, um movimentopoltico, mas uma engenharia poltica ou modelo gerencial de Estadoe governabilidade poltica. No possuiria, portanto, um projeto de de-senvolvimento nacional. O que sugiro que a engenharia poltica demontagem do ministrio um arranjo que acomoda vrias proposi-es de desenvolvimento. A rea econmica evidentemente mais libe-ral que alguns ministrios como os do desenvolvimento social ou de-senvolvimento agrrio. O ncleo duro de gerenciamento do governo mais centralizador e desenvolvimentista (ou neo-desenvolvimentista).H conitos evidentes entre o gerenciamento do Programa de Acelera-o do Crescimento (PAC) e os gestores da poltica ambiental federal.
O segundo turno das eleies presidenciais passadas geraramuma pequena inexo na formulao do lulismo, aumentando suaaproximao com lideranas empresariais e polticas estaduais eregionais. Segundo levantamento realizado pelo Instituto Cultiva,
13 dos governadores eleitos comandam entre 50% e 75% das ban-cadas estaduais no Congresso Nacional. Lideranas de grandes pro-dutores de gros (em especial, sojicultores) negociaram apoio a Lulae foram decisivos na queda do crescimento da oposio nos estadosdo Sul. Lula iniciou, a partir de ento, a construo de uma teia delealdades regionais, combinada com uma ofensiva sobre partidosoposicionistas, notadamente o DEM e o PSDB. No caso do DEM,operou para sua desidratao (termo utilizado pelo deputado ACMNeto, admitindo a perda de parlamentares e prefeitos para partidosaliados ao governo federal). No caso do PSDB, o lulismo adminis-
tra e incentiva a disputa interna, envolvendo os governos de MinasGerais e So Paulo, o que sufoca outros expoentes do tucanato.
O governo de coalizo, termo cunhado pelo prprio presidente daRepblica, nunca foi to concreto como neste incio de segundo man-dato. Formatado a partir de distribuio de cargos e verbas pblicas.
Enquanto modelo gerencial e de governabilidade poltica, o lu-lismo possui uma ao marcada pelo pragmatismo que objetiva suamanuteno e reproduo enquanto fora poltica. Forjou-se a partirda campanha de 1994, mas atingiu sua congurao atual em 2002,
quando se arquitetou a campanha presidencial, cristalizando-se com a
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divulgao da Carta ao Povo Brasileiro, em junho daquele ano. Alterouprofundamente o projeto inicial petista, que se orientava por um dis-curso estratgico oposto, aliado lgica dos movimentos sociais que
emergiram nos anos 80 que, por sua vez, sustentavam-se na declara-da autonomia poltica (frente ao Estado e aos rgos de representaopoltica), organizao horizontalizada (com prevalncia dos mecanis-mos de democracia direta), cujo discurso assentava-se no anti-insti-tucionalismo e anticapitalismo. O discurso de ento era popular, ob-jetivava a incluso social e poltica de amplas massas que se sentiamdesalentadas. O discurso petista sempre foi, at ento, difuso e sensi-bilizou muitas organizaes e lideranas populares justamente porquenunca adotou um referencial terico muito ntido. No por outro mo-tivo, o discurso original petista foi sempre moralista, mais crtico que
propositivo. Da seu forte apelo de massas, crtico, irnico, autnomoe, muitas vezes, aproximando-se do messianismo e do discurso m-gico carismtico. Sabe-se que o discurso carismtico procura comporas inmeras demandas sociais pela identidade afetiva, pela indignaoem relao s injustias sociais e pela promessa de mudana radical.
Contudo, por incapacidade poltica desta matriz discursiva ori-ginal superar o comunitarismo e forjar uma nova institucionalida-de poltica, outras correntes polticas que fundaram o PT e que, atento apareciam como marginais na constituio da identidade pe-
tista, passaram a ocupar espaos estratgicos e, paulatinamente, re-construir o projeto partidrio. Esta inexo que ocorre nas sombras,sem alarde, teve incio no interior da estrutura burocrtica da seopaulista do PT. Ali, pela primeira, uma estrutura burocrtica se con-solida, criando no partido um primeiro sistema de controle polticointerno, a comear pela mobilidade dos funcionrios da Secretaria deOrganizao e, mais tarde, da Secretaria Geral da Executiva Estadualdo PT paulista. Na segunda metade dos anos oitenta, esta estruturade controle consolida um ncleo dirigente, com ntida funo polticasobre o conjunto dos diretrios municipais paulistas. Tal estrutura
de controle ter na Executiva Estadual da seo paulista do PT seuncleo duro de direo. Este ncleo de controle instalado no coraoda burocracia partidria era composto por dirigentes de antigas or-ganizaes de esquerda, o que alterava signicativamente o escopoterico-conceitual original do PT. O primeiro sinal de avano destanova fora poltica sobre a prtica partidria foi o controle das cam-panhas eleitorais majoritrias do PT, no incio dos anos 90. A partirde ento, o discurso de campanha e seu programa, a agenda dos can-didatos e o perl de marketing passaram a ser mais e mais controla-da pela burocracia partidria. O passo seguinte foi a conquista, pela
burocracia partidria paulista, da Executiva Nacional do PT, passo
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que se revelou mais complexo. A gura pblica central deste rearran-jo foi o ex-ministro Jos Dirceu, cuja carreira no interior da direopartidria ilustra a trajetria deste segmento burocrtico, distinta do
que ocorria com lderes sindicais e de movimentos sociais ou at as-sessores dessas organizaes sociais. A direo partidria, que atento se forjava e se legitimava nas frentes de luta sociais, passavaa assumir um novo papel, onde o conhecimento e localizao da dis-tribuio das diversas foras polticas partidrias e a capacidade denegociao ou controle da poltica interna suplantavam a capacida-de de mobilizao de massas. O saber partidrio, enm, se alterava.
As campanhas eleitorais presidenciais de 1994 e 1998 incorpora-ram outro elemento que se associou ao poder poltico da burocracia
partidria: o saber tcnico na construo do programa partidrio. Atento, o programa partidrio e de campanhas eleitorais era construdoa partir de um complexo mecanismo de consulta e formulao grada-tiva dos consensos. Foi assim nas campanhas estaduais da dcada de80 e na campanha presidencial de 1989. Os coordenadores de realanavam mo de consultas regionais e s diversas foras partidriaspara compor um programa que retratava um discurso hegemnico dopartido. Este mtodo era uma clara herana da matriz discursiva ori-ginal do PT, onde o consenso era construdo a partir de mecanismosde participao direta dos liados do partido. A partir de 1994, estametodologia foi se alterando rapidamente e os prossionais de cadarea, articulados pelo corpo tcnico de economistas e, mais tarde, peladireo de campanha e de marketing, assumiram um papel decisivo(ou mesmo exclusivo), na elaborao das propostas partidrias. Assim,perdeu-se um mecanismo inovador de formao poltica da militncia,que era instada a estudar e formular polticas pblicas. A partir dasegunda metade dos anos 90, o saber tcnico passou a substituir osmecanismos de consulta de base.
A fuso do poder da burocracia partidria com o poder do sabertcnico gerou uma nova estrutura partidria, mais centralizada, mais
prossional, mais tcnica e menos dinmica e participativa que deuvazo, ao que denominamos de lulismo. O lulismo, em outros termos, mais personalista e centralizador e busca a sua legitimao pela pre-ciso tcnica, pela negociao, pelo controle poltico e pela seduo dodiscurso afetivo da liderana partidria. , efetivamente, o oposto doprocesso de legitimao do primeiro perodo do PT, onde o consensoconstrudo num longo processo de debates internos, com ampla par-ticipao e poder da base partidria que denia a conana internae legitimava a direo partidria. Assim, no primeiro momento, a di-reo e a liderana partidria eram depositrios da construo e do
consenso forjado no interior da agremiao. Num segundo momento,
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os sinais se inverteram e a base partidria passou a ser convidada aseguir e a se convencer do discurso produzido pelos dirigentes e lide-ranas do partido.
O lulismo , portanto, uma nova faceta da organizao, prtica ediscurso petistas. mais tcnico e mais negociador com a sociedade. mais pragmtico e exvel para com as foras polticas externas,buscando recompor a correlao de foras partidrias, na tentativa damontagem de um projeto hegemnico que sustente a sua reproduopoltica. Mas mais inexvel com as foras internas do partido, por-que mais controlador, mais centralizador e menos pluralista.
O lulismo compe-se de trs matrizes discursivas mais ntidas quesustentam um equilbrio dinmico interno, assumindo um movimento
pendular que privilegia, circunstancialmente, uma ou outra concep-o. So elas: o pragmatismo sindical, o vanguardismo e burocratismopartidrio e o discurso tcnico de gerenciamento do mercado.
Esta breve caracterizao do que seria o lulismo oferece uma linhainterpretativa que se presta comparao com o Estado Novo var-guista. Sinteticamente, possvel estabelecer algumas referncias deanlise, a saber:
INDICADOR VARGUISMO LULISMO
RELAO COMCONGRESSONACIONAL
Congresso Nacionalconservador emanipulvel a partir dopoder central, conferindomaior poder decisrio aopresidente da Repblica
Congresso Nacionalconservador. Negociainteresses privados apartir da agenda dogoverno federal. Procurainterferir nas bancadas,estimulando desliaode partidos oposicionistase transferncia parapartidos aliados.
RELAO COM EN-TES FEDERADOS
Articulao poltica dosestados a partir das be-nesses e apoios poltico-nanceiros s forasregionais muitas vezesminoritrias.
Acordos pontuais eeleitorais com lideranaspolticas e empresariaisregionais.
BUROCRACIAESTATAL
Construo de umaforte burocracia estatalfederal, prossionalizada
Aumento de contrataes,sem poltica nacionalde formao tcnicaunicada.
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INDICADOR VARGUISMO LULISMO
PROJETO DE
DESENVOLVIMENTO
Consolidao de
um projeto dedesenvolvimentoindustrial a partir doEstado via instalao deindstrias estatais ou decapital misto.
Aumento do controle
governamental sobreagncias de controlesobre servios pblicos.No h um projetode desenvolvimentoarticulado e unicado.
IDEOLOGIA Formatao dotrabalhismo, polticafederal de organizao domercado de trabalho apartir do controle estatal
federal e emergncia depolticas previdenciriase trabalhistas nacionais
Amlgama entreliberalismo econmico,pragmatismo poltico econtrole poltico sobreaes e programas
pblicos nacionais.
CONSTRUO DEACORDO NACIONAL
Montagem de umEstado corporativo,com negociao depolticas nacionais apartir de concertaescom elites econmicas e
trabalhistas, em frunsespeccos criados pelogoverno federal
Montagem de umEstado de naturezaneocorporativa,institucionalizandocmaras de negociaode interesses privados
para estabelecimentode acordos paraestabelecimento depolticas pblicas
Como se percebe, o lulismo no apresenta sinais to ntidos deautoritarismo na gesto. Prefere o estabelecimento de acordos pon-tuais, criando uma espcie de rede de concertaes. Mas fortementecentralizado na conduo poltica. E procura interferir nas disputas
internas de todos partidos, consolidando uma base aliada controladaa partir do governo federal.
No possui um projeto de desenvolvimento nacional ntido, justa-mente porque suas aes so fruto de acordos polticos. Em outraspalavras, o programa de governo um acordo poltico, ao sabor dafragmentao dos diversos interesses em jogo.
Trata-se, enm, de uma engenharia poltica, que acolhe no interiordo governo uma multiplicidade de projetos e interesses.
A confuso analtica surge justamente do pragmatismo e acolhi-
mento de tantos interesses diferenciados e opostos. Lula parece cons-
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truir, como Vargas, uma mquina de acordos no interior do Executi-vo Federal, diminuindo os fruns de negociao tpicos do parlamento.Mas menos articulado e formalizado que no Estado Novo. No lu-
lismo, os acordos so mais difusos e mveis. O pragmatismo maisacentuado, embora a manipulao poltica seja um trao similar.
O Estado Novo deixou traos e marcas na poltica e no Estadonacional. E o passado, como dizia talo Calvino, se impregna nos cor-rimes das escadas, no calamento das ruas, nas placas de sinaliza-o. Contudo, as lutas sociais refazem os iderios e as tradies. E olulismo nasceu de lutas sociais poderosas, que enfrentaram a dita-dura militar.
O lulismo, enquanto projeto de poder, pragmtico, dialoga com o
passado e, portanto, com as tradies do Estado Novo. Mas o recons-tri a partir de seu prprio discurso. Trata-se de um projeto fortemen-te marcado pelo sindicalismo dos anos 80, pragmtico, negociador,centralizador, insinuante, burocratizado e ambguo. Um projeto depoder, antes que um projeto de Estado.
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SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paze Terra, 1979.
VIANNA, Luiz Werneck. O Estado Novo do PT. In Poltica
Democrtica, n. 18, Ano V, Rio de Janeiro: Fundao AstrojildoPereira, julho de 2007.
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Lembrai-vos de 1945!
Antonio J. Barbosa
Passados setenta anos de sua implantao, o espectro do Esta-do Novo insiste em rondar a histria brasileira. Muitas so asrazes que explicam essa incmoda permanncia e a constran-gedora constatao de certa atualidade que resiste ao tempo. Para o
observador de novembro de 2007, no pode haver anacronismo maiordo que supor a mais remota possibilidade de um golpe de Estado maneira daquele perpetrado por Vargas, no longnquo novembro de1937. No apenas porque a roda da histria mundial girou veloz eradicalmente nessas dcadas, mas tambm porque o Brasil alterouprofundamente sua sionomia.
Todavia, por mais diferentes que sejam os contextos histricos, pormaiores e mais profundas que tenham sido as transformaes pelasquais passou o pas ao longo desses anos, no h como escamotear a
caracterstica essencial e aparentemente instransponvel da trajetriabrasileira: a cristalina supremacia da permanncia sobre a mudana.No Brasil, a clebre frase de Lampedusa, segundo a qual preciso mu-dar para que tudo permanea na mesma, ganha contornos precisos desentena denitiva.
A escravido foi mantida por quatro longos sculos e inconclusafoi sua abolio, em 1888, presa ao formalismo legal. A independnciade 1822 manteve praticamente intactos os pilares da colonizao. Em1889, proclamou-se a repblica que no foi, verdadeira negao deseu prprio sentido. A pretensa revoluo de 1930 conciliou objetivosmodernizantes com o pretrito mais que imperfeito do perodo queveio substituir. A ruptura institucional de 1964, comprometida coma modernizao econmica pela via politicamente autoritria, encon-trou amparo na convergncia de interesses e temores das antigas eli-tes ditas liberais, de que germinou um estranho udenopessedismo.A redemocratizao, vinte anos depois, s foi possvel mediante o apeloaos clssicos mecanismos da conciliao, o que, se no um mal em simesmo, cobra pesado tributo por sua utilizao em momentos cruciais.
O paralelo entre duas pocas, separadas por sete dcadas, no
deixa de ser estimulante exerccio de anlise histrica. Sendo verdade
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II. Tema de capa
que o passado no morre, permanecendo sempre espreita de queluzes lanadas pelo presente iluminem os passos percorridos no tem-po, desvelar o Brasil de 1937 com os olhos de 2007 torna-se precioso
instrumento para a compreenso do que a nao foi e capaz de fazerde si mesma. Aos fatos, pois.
O Estado Novo lho de seu tempo. O crtico perodo do entre-guerras externou a crise sem precedentes do liberalismo. Crise global,pois que desconheceu fronteiras entre pases, regies e continentes.Crise abrangente, que destri a crena na trajetria ascensional, retil-nea e uniforme do capitalismo regido to-somente pelas leis do merca-do, fato que a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, em outubrode 1929, tratou de potencializar. Por m, crise das instituies polti-
cas liberais, consideradas ineptas e incapazes de responder alturaao desao daquela terrvel conjuntura, realidade rudemente explicita-da pelo acentuado desprestgio parlamentar.
nesse contexto conturbado que Vargas chega ao poder em 1930, frente do movimento golpista que derrubou o governo WashingtonLus. Alguns anos antes, precisamente no emblemtico ano de 1922,os fascistas comandados por Mussolini assumiram o controle da Itlia.Qual bola de neve, o arrasto totalitrio de direita avanava pelo Lesteeuropeu, tendo na Polnia sua mais conhecida expresso; conquista-va os militares japoneses, que passam a comandar as aes do Esta-
do; penetrava na Pennsula Ibrica, com o portugus Salazar abrindoo caminho a ser seguido pelos falangistas espanhis de Franco. Emmeio ao espetculo da radicalizao totalitria, emerge o nazismo hi-tlerista que, em 1933, assumiu a direo da Alemanha e se consti-tuiu no modelo paradigmtico de regime antidemocrtico, intolerantee policialesco. Enquanto isso, na Unio Sovitica, Stlin aprofundavao carter totalitrio, pretensamente de esquerda, do regime que seriadenunciado espetacularmente por Krushev, em 1956.
A Amrica no cou imune a esse processo. At mesmo nos Esta-dos Unidos, ponto de partida para a edicao histrica da democra-cia contempornea, a crise do modelo liberal deixou seqelas. Quemse der ao trabalho de ler o discurso de posse de Roosevelt compreende-r quo diferentes seriam os caminhos a serem trilhados por um paseconomicamente destroado e moralmente dilacerado.
Foi claro o aviso do presidente eleito com a misso de salvar aAmrica, restituindo-lhe a dignidade momentaneamente perdida ouseriamente atingida em sua integridade. Roosevelt lembrou aos mem-bros do Judicirio no haver mais tempo a perder com rulas legaisou preciosismos jurdicos. Aos integrantes do Congresso, foi enftico e
direto ao adverti-los para a urgncia das medidas a serem adotadas, o
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que praticamente eliminava a possibilidade de o Legislativo fazer usode suas prerrogativas fundamentais: discursar, propor e debater lon-gamente. Era o Executivo assumindo a posio de comando quase ab-
soluto do Estado em meio a mais profunda crise que o pas conhecera.Foi assim que se implantou o New Deal. A democracia norte-america-na, conquanto preservada em seus aspectos essenciais e denidores,perdia claramente sua roupagem acentuadamente liberal.
No bastasse sua formao positivista, que pressupunha a ordemcomo fundamento e condio necessria para o progresso, Getlioage em sintonia com as circunstncias histricas que envolvem seugoverno. A certeza de que o federalismo liberal fracassara, realidadeque as sucessivas crises dos anos 1920 claramente conrmavam, e a
leitura fria do cenrio mundial impelem-no adoo de medidas que,em crescendo contnuo, forjam um Estado centralista e centralizador.Nessa perspectiva, o Estado Novo no propriamente uma inovaoplena, mas a culminncia de um processo cujos primeiros passos fo-ram dados desde a chegada de Vargas ao poder.
Acrescente-se a esse quadro o clima de radicalizao ideolgicados anos 1930, quando o embate entre as foras de esquerda e direitaultrapassa o terreno das idias e se reveste de agressiva belicosida-de. Disso do exemplo, em primeiro lugar, a Guerra Civil Espanhola(1936-1939), a tenso que acompanhou a experincia da Frente Popu-
lar na Frana e, no Brasil, as fracassadas tentativas armadas de pau-listas (1932), da esquerda (1935) e do integralismo direitista (1938).Estava criado o ambiente de insegurana e de intranqilidade maisque propcio ao projeto poltico autoritrio de Vargas e de grupos quecom ele chegaram ao poder em 1930.
O anncio em cadeia nacional de rdio, a 10 de novembro de 1937,de uma nova Constituio (a polaca, redigida por Francisco Campos,cujo privilegiado saber jurdico sempre esteve a servio de curtos-cir-cuitos democrticos, como se conrmaria mais tarde na elaborao doato legal que institucionalizaria o golpe de 1964) apenas desce o panode uma pea teatral previsvel, uma tragdia anunciada, enm. Deta-lhe signicativo: ningum reagiu ao ato de fora.
O Estado Novo carece de estudos mais aprofundados. Soa estranhoque, em meio a tantos temas que disputam a preferncia de pesquisa-dores, a ditadura getulista permanea envolta em brumas e mistrios.Estudos sobre a poltica externa do perodo, com destaque para o deGrson Moura, sobre o anti-semitismo que chegou a ser praticado,como o comprova o pioneiro trabalho de Tucci Carneiro, ainda soexceo no amplo e duradouro conjunto dessa fase que marca o incio
da modernizao brasileira.
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De um lado, foi no Estado Novo que se deram os passos iniciaispara a industrializao de base do pas. A estratgica utilizao dascircunstncias geradas pela Segunda Guerra Mundial possibilitou a
criao da Companhia Siderrgica Nacional, com a construo da usi-na de Volta Redonda. Soma-se a ela o surgimento da Companhia Valedo Rio Doce. Por outro, foi tambm sob a ditadura estadonovista queos direitos sociais so apresentados ao Brasil. Para um pas acostu-mado ao teatro oligrquico da Primeira Repblica, em que a questosocial identicava-se com caso de polcia, indiscutvel o avano tra-zido pelo conjunto de leis trabalhistas. Quando o pas recobra a liber-dade poltica e, pedagogicamente, vai tecendo a indita experinciade democracia representativa, a partir de 1945, essa massa de traba-lhadores incorporada ao moderno sistema produtivo urbano desem-
penhar signicativo papel eleitoral. Vargas teve a perfeita antevisodesse processo e seus previsveis resultados.
Das entranhas do Estado Novo brotou a estrutura partidria que,conforme o vocabulrio de 2007, garantiu a governabilidade no re-gime de 1946. Demonstrao de habilidade poltica mpar, capaz deaproximar a na or do conservadorismo rural e dos resqucios doesquema de poder local que a ditadura sacramentara (PSD) ao as-cendente trabalhismo (PTB), concebido para subtrair do PCB o nas-cente proletariado. Uma frase, sob a forma de reiterada advertncia,
tornou-se clebre ao longo do complexo, difcil e tortuoso caminho daredemocratizao ps-46. O velho Mangabeira, quando de crises maispronunciadas, no se furtava a repetir o bordo Lembrai-vos de 37,no alerta quanto aos riscos de novo golpe.
Em 2007, talvez fosse mais prudente parafrasear a clebre adver-tncia e evocar algo como Lembrai-vos de 45. H razes para isso.O ano de 1945 marcou o m da Era Vargas. Mal comeara o ano, odestino do Estado Novo parecia estar selado. Afora o esgotamento na-tural de um regime de fora, a Segunda Guerra encaminhava-se parao nal com a vitria das foras brasileiras, inclusive que comba-
tiam a barbrie nazista. A vitria militar dos Aliados simbolizava, emtese, a vitria poltica do ideal democrtico. Mais e mais se tornavainsustentvel a manuteno do regime de fora.
Os fatos se seguiram com extrema rapidez. Escritores reunidos emcongresso clamam por liberdades. Um jovem jornalista, Carlos Lacer-da, pelas pginas do Correio da Manh,publica bombstica entrevistacom Jos Amrico, senha para a abolio total da censura imprensa.Seguem-se a anistia, a permisso para a criao de partidos polticose a xao do calendrio eleitoral. Mas, tambm, segue-se a movi-
mentao, subterrnea s vezes, explcita outras, com o objetivo de
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assegurar a permanncia de Vargas. No meio do ano, o movimentoqueremista (Queremos Getlio) ganha as ruas, no sem antes obterrespaldo da prpria esquerda. Por m, a nomeao do irmo Benja-
mim para o estratgico cargo de chefe de polcia do Distrito Federal,pouco tempo antes da realizao das eleies gerais, acende a luz ver-melha de perigo: o projeto de perpetuao do poder est em marcha.A resposta veio na deposio de Vargas, pelos prprios militares quesustentaram o Estado Novo.
Os bales de ensaio lanados em 2007, com vistas alteraoconstitucional para permitir mais que dois mandatos presidenciaisconsecutivos, remetem aos momentos nais do Estado Novo. Entretragdia e farsa, desenrola-se a histria brasileira. A tradicional falta
de densidade dos partidos mantm-se de p. O apelo populista conti-nua a encontrar farto e aconchegante abrigo. Polticas assistencialis-tas produzem, entre outros resultados, lealdade eleitoral.
Se 1937 no mais assusta a ningum, desejos de 1945 podem aindaalimentar sonhos de poder.
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Um auto-retrato do Estado Novo
Simon Schwartzman
Nos primeiros anos da dcada de quarenta, o ministro GustavoCapanema, da Educao e Sade, assumiu a responsabilidadede produzir uma obra que desse uma viso aprofundada e deconjunto das realizaes do governo Vargas a partir de 1930. Relatos
parciais foram solicitados a todos os setores do governo e os textos quechegavam iam sendo revistos, reescritos e organizados em captulos,mas a obra cou inclusa.
O arquivo pessoal de Gustavo Capanema, parte do acervo do Centrode Pesquisa e Documentao em Historia Contempornea do Brasil daFundao Getlio Vargas, contm a maior parte dos manuscritos, versespreliminares e captulos preparados para esta publicao, que nuncachegou a ser feita. Em 1983, os manuscritos foram editados e publica-dos como Simon Schwartzman (editor), Estado Novo Um Auto-Retrato(Braslia, Editora da Universidade de Braslia, Coleo Temas Brasilei-ros, 24, 1983). O texto que se segue extrado da introduo ao livro.
A leitura deste livro d uma idia bastante ntida de quanto o Bra-sil de hoje ainda vive dentro das concepes e estruturas governa-mentais e institucionais estabelecidas naqueles quinze anos cruciaisda histria do pais. Para entendermos bem esta questo necessriopensar que a ao do governo Vargas como alis, de qualquer go-verno deve ser vista seguindo dois aspectos distintos, os de organi-zao e formao do Estado, e os que se referem ao de governopropriamente dita. As aes de governo so aquelas que tm a ver com
a adoo de polticas governamentais especcas, seja por exemplo napoltica externa, na determinao das prioridades econmicas ou napoltica migratria. As aes referidas ao Estado, enquanto isto, afe-tam a prpria estrutura das instituies de que dispe o governo suacapacidade extrativa, sua ecincia organizacional, seus sistemas desegurana, seus procedimentos operacionais quotidianos.
Na prtica, os limites entre estas duas coisas nunca so ntidos, jque modicaes de ordem estrutural so normalmente feitas tendoem vista objetivos de poltica governamental determinados, e estas,
por sua vez, geram freqentemente estruturas estatais mais perma-
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nentes. De qualquer forma, no resta dvida que, mais do que gover-nar, a nova gerao que assumiu o poder a partir de 1930 viu comotarefa principal sua a reorganizao total do Estado brasileiro, e acre-
ditava que, uma vez conseguida esta organizao, as boas polticasdecorreriam quase que naturalmente. Sabemos hoje que as coisas noso assim. Mas as estruturas criadas naqueles anos sobreviveram pordcadas a seus criadores, muitas delas transformadas em caricaturasde suas intenes iniciais, que ainda nos acompanham.
O arquivo Capanema possui uma primeira prova tipogrca departe do trabalho, composto em 1943, e provas tipogrcas de al-guns captulos feitas em 1945. A reorganizao dos textos para efeitosde publicao exigiu uma srie de decises que esto referidas em
detalhe em cada captulo. Foi necessrio escolher qual verso a serpublicada, quando havia mais de uma; decidir quais dos manuscritosainda no compostos deveriam ou no ser includos; quando haviatextos revistos, se deveria ser mantida a forma original ou a corrigida;e quais partes j deixaram de ter interesse e deveriam ser eliminadas.Alm disto, foi necessrio reordenar todo o material, e adaptar os t-tulos de forma a fazer da obra um todo consistente. Na primeira parteforam reunidos os textos que se referem mais diretamente organi-zao do Estado, e na segunda, ao poltica e social do governo. Opesquisador especializado que tiver interesse em examinar o material
completo em suas diversas verses poder consult-lo pessoalmenteno arquivo do CPDOC.
No haveria como aprofundar nesta curta apresentao a anlisede to rico material. No existe uma coerncia ideolgica e program-tica absoluta entre todos os textos. Primeiro, porque eles foram escri-tos por pessoas e setores governamentais distintos, e no chegarama ser totalmente padronizados. Segundo, porque existe uma diferenade estilo e nfase importante entre os textos mais antigos, escritosdurante o perodo de apogeu da verso mais radical e totalitria do
Estado Novo, e os redigidos no clima poltico correspondente ao ali-nhamento brasileiro contra as potncias do Eixo.
Do captulo introdutrio s existe um manuscrito datilografado.Seu estilo do louvor ao Chefe, do culto personalidade do lder, umestilo que cairia rapidamente em desuso quando o Brasil nalmentetomou partido ao lado dos aliados na Segunda Grande Guerra. Ele provavelmente anterior a todas as demais partes da obra, e quase cer-tamente no estaria includo em sua verso nal.
O primeiro captulo, sobre a racionalizao do governo, foi es-
crito no interior do prprio Departamento Administrativo do Servio
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Pblico DASP, dirigido desde sua formao por Lus Simes Lopes.O DASP, agncia de grande poder e assessoramento direto ao presi-dente, foi responsvel por trazer ao Brasil os princpios e ideais de
uma administrao cientca e racional, que escapasse das injunesdos interesses particularistas e poltico-partidrios. Foi o DASP quemintroduziu o sistema de concursos pblicos para os cargos federais,diminuindo assim, em certa medida, a grande presso por empregosque todos os governantes brasileiros sempre sofreram por parte deseus constituintes. O DASP foi tambm o responsvel pela idia, athoje bastante difundida, de que existe uma incompatibilidade radicalentre a racionalidade da administrao e a irracionalidade da pol-tica. A outra idia tambm difundida a partir da foi a da superiorida-de da padronizao sobre a diversidade no manejo da coisa pblica.
Finalmente, o DASP foi em boa parte o executor do ideal da integraoadministrativa entre os diversos nveis do governo federal, estadual emunicipal. O captulo do DASP ainda inclui uma parte referente aouso ocial da propaganda no governo Vargas, realizada principalmen-te atravs do Departamento de Imprensa e Propaganda DIP, rgoautnomo e diretamente subordinado Presidncia da Repblica.
O captulo sobre ordem e segurana originrio do Ministrio daJustia e Negcios Interiores. Suas duas primeiras partes consistemem uma anlise bastante aprofundada da evoluo do sistema jurdi-
co brasileiro at o Estado Novo, tanto do ponto de vista de sua baselegal quando no que se refere organizao administrativa do sistemajudicirio. Na parte do processo civil, ele acentua o fortalecimento dospoderes do juiz e a criao de procedimentos mais rpidos e ecientesde justia, como aspectos mais importantes da reforma do Cdigo feitapelo governo Vargas. Na rea do direito penal material, acentuado oecletismo que combina a responsabilidade moral e penal e as medidasde segurana. Na rea do processo penal. a nfase na primazia dointeresse social sobre o dos indivduos, sem sacrifcio, porm, da defe-sa dos acusados. Em relao aos servios judicirios, a nota principal
a extino da justia federal, com transferncia de suas funes paraos Estados, permanecendo o governo central somente com as reasde competncia originrias do Supremo Tribunal Federal, da JustiaMilitar, da Justia do Trabalho e do Tribunal de Segurana Nacional,cujas funes so descritas em detalhe. A parte referida defesa dasinstituies Nacionais abandona a linguagem jurdica anterior, e ado-ta a terminologia prpria dos rgos de segurana poltica e social.Ela contm uma breve histria do comunismo no Brasil, apresenta-da como uma conspirao feita por agitadores estrangeiros e mausbrasileiros que culminou com a Lei de Segurana Nacional de 1935
e a Intentona do mesmo ano. Sob o item outras atividades defensi-
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vas h uma referncia extino dos partidos polticos e revoltaintegralista de 1937, que visava a implantar entre ns uma odiosaditadura fascista. A legislao sobre estrangeiros, nalmente, d n-
fase ao problema da formao de quistos de nacionalidade estrangeiraem territrio brasileiro, procurando corrigir o erro fundamental dopassado, quando no se cogitou de evitar a formao de ncleos co-loniais com predominncias raciais estrangeiras muito acentuadas.
O captulo sobre as nanas pblicas assinala a transformao doOramento de um instrumento do controle poltico do Parlamento so-bre o Executivo em um elemento central do plano nanceiro e de ins-trumento da prpria administrao. Com isto os poderes legislativossobre o Oramento so reduzidos, enquanto a autoridade do Executi-
vo aumentada. Esta transferncia de funes aparece como ligada ampliao das funes do Estado moderno, que um Estado nitida-mente intervencionista e disciplinador, e como tal destina grandes so-mas previdncia, amparo, assistncia, educao, etc., e ao fomentoda economia em seus diversos aspectos. Esta ampliao, por sua vez,estaria ligada passagem do Brasil do estgio de um pais agrcolapara o de um pais industrializado. A economia do pais caracteriza-da como no tendo atingido ainda a fase propriamente capitalista eque se apia na extrao e exportao de matrias-primas e produtosagrcolas, apresentando ainda uma indstria incipiente. nanciada
por capitais estrangeiros. Ao mesmo tempo, no entanto, j estariamlanadas as bases para a industrializao e para a independncia eco-nmica do pas, com o m da importao de capitais. Trata-se de umaconcepo desenvolvimentista bastante pioneira para a poca, princi-palmente se observamos que a parte sobre a economia, elaborada soba orientao do Ministrio da Agricultura, ainda insistia na tese davocao agrcola brasileira. O sistema tributrio analisado de formahistrica, e a partir desta viso. Na rea da despesa h uma anliseda evoluo da divida pblica brasileira desde a independncia, tantointerna quanto externa, e sobre o que o governo Vargas vinha fazendo
a este respeito. Um dos aspectos bsicos da nova poltica teria sido asubordinao da gesto nanceira dos Estados e Municpios Unio,responsvel por incontveis benefcios ao pas.
O Recenseamento de 1940 geralmente considerado um dos maisbem-sucedidos na histria do pas, e o captulo sobre a informaoestatstica e geogrca trata de mostrar o histrico da evoluo destetipo de atividade. Tendo somente sua disposio os resultados doCenso de 1920, e sem dispor de informaes conveis obtidas poroutros meios, esta era uma lacuna fortemente sentida por um gover-
no que pretendia, como o do Estado Novo, a racionalidade e a inter-
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ferncia em todos os setores da vida nacional. O governo institudoem 1930 encontrou a nao, a bem dizer, ignorando quase tudo de simesma. Os dados, que poderiam caracterizar qualquer aspecto da
vida nacional, ou no existiam, ou eram de difcil compreenso, oueram de difcil pesquisa ou se achavam fragmentria e lacunosamenteelaborados, ou eram antiquados ou se contradiziam quando no sedistanciavam visivelmente da realidade Diante deste quadro, todo oesforo foi feito com o objetivo de criar um plano orgnico, sistemticoe completo,que proporcionasse as informaes necessrias ao esfor-o racionalizador do governo federal. A criao de rgos nacionaisde estatstica, dentre os quais o IBGE, o caminho encontrado. Maisainda, a legislao do Estado Novo criou o Conselho Nacional de Esta-tstica. como rgo consultivo de alto nvel, responsvel pela orienta-
o da estatstica nacional e interpretao de seus resultados e opi-nando sobre questes de poltica de amparo famlia, recomposiodo quadro das unidades polticas nacionais, e muitas outras. O setorde estatstica se transformou, assim, em importante ponto de reu-nio de talentos no governo Vargas. O recenseamento culmina todoeste esforo, e no deixa de ser signicativo que seu primeiro volumeseja a obra monumental de Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira.A geograa, entendida menos como disciplina acadmica do que comoum servio pblico de importncia, tambm analisada em sua evo-luo histrica, at sua vinculao ao IBGE, de forma anloga ao dosservios de estatstica.
O captulo sobre as foras armadas, escrito no interior de cadauma delas, contm um quadro bastante abrangente e detalhado da or-ganizao, capacidade e atividade do Exrcito, Marinha e Aeronutica.O captulo sobre o Exrcito comea com uma pequena discusso sobreas causas da debilidade histrica das foras armadas brasileiras, queno seriam nem a falta de recursos nem a participao dos militaresna poltica, mas a inexistncia de uma direo rme e consciente, quetraasse rumos denitivos, no apenas para estas instituies. porm
para o prprio pas, cuja grandeza e soberania delas decorre. O textosobre o Exrcito d grande nfase ao ensino militar, construo derodovias, organizao e disposio dos dispositivos militares, s ati-vidades de apoio de vrios tipos, etc. Merece destaque ainda a partereferente indstria blica, inclusive em cooperao com a indstriaKrupp, alem, at 1940. A parte sobre a Marinha tem estrutura se-melhante, chamando a ateno o desenvolvimento de uma incipienteaviao naval. Existe ainda um apndice sobre a participao da Mari-nha na Segunda Grande Guerra, escrito posteriormente. A parte sobrea Aeronutica no se limita aviao militar, mas inclui toda uma
parte a aeronutica civil.
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Chama a ateno. no captulo referido poltica exterior, que abrea segunda parte, a grande nfase dada s atividades da diplomaciabrasileira no mbito panamericano e a ausncia de referncias pre-
sena desta diplomacia em seu ambiente preferido, que foi sempre oeuropeu. Isto pode ser melhor entendido quando pensamos que, de to-das as reas da atuao do governo, a de relaes exteriores talvez te-nha sido a que mais foi afetada pela sbita passagem de uma posiode neutralidade, ou mesmo de simpatia do Brasil em relao ao Eixo, de aliana poltica e militar com os Estados Unidos. Pareceu sem d-vida ao responsvel pela redao que, examinando somente a presen-a brasileira no contexto panamericano, seria possvel encontrar umacerta continuidade na poltica externa brasileira atravs do tempo.Mesmo nesta linha, no entanto, possvel ver a transformao de uma
postura neutralista de comprometimento com os aliados, no nal doperodo analisado (trata-se de um texto escrito presumivelmente em1942). Ao contrrio de outras reas do governo, as relaes exterioresj tinham uma estrutura administrativa bastante desenvolvida antesde 1930, e a reforma organizacional mais importante feita pelo gover-no Vargas foi a unicao dos corpos diplomtico e consular.
O capitulo sobre poltica do trabalho descreve um dos aspectosmais salientes do regime Vargas, que foi a tentativa de organizaoda sociedade brasileira em moldes corporativos. O princpio liberal
da liberdade de ao e negociao entre empregados e empregadoresno aceito, j que ele supunha uma igualdade de condies entre asclasses que na realidade no existia: O direito do trabalhador era ummito. Diante disto, caberia ao Estado assumir a responsabilidade.atravs da criao de uma Secretaria de Estado que tivesse a respon-sabilidade de estudar e executar medidas de proteo aos trabalha-dores e harmonizar seus interesses com os empregadores, a m dedisciplinar as foras produtoras em benefcio da prosperidade geral danao. O captulo descreve em detalhe a legislao
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