Youkai

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Youkai por Roxane Norris 1

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Capítulo de degustação do segundo romance de Roxane Norris

Transcript of Youkai

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Youkaipor Roxane Norris

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Well, bless my soul You're a lonely soul

Cause you won't let go Of anything you hold

( Say – OneRepublic)

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ERA YAMATO

– Onii-sama! – Ela corria entre as cerejeiras secas pelo frio intenso. Os olhos molhados

de lágrimas que não conseguia mais conter. – Onegai, onii-sama! – berrou uma vez mais,

cansada... Chamando-o, caindo de joelhos na neve.

As pequenas mãos tentando conter as gotas salgadas que rolavam, em vão.

– Nii-sama, doutshite?

O corpo tombou para frente, deixando que a pele da menina se abrigasse no manto

branco. Os flocos de neve caíam insistentes, sem que nada além do vazio que a rodeava,

os acolhessem. O corpo tremendo entre suas mãos.

“Hanya não vá para longe... Vai nevar hoje. Não quero ter que ir procurá-la num tempo

como esse” – ele havia alertado-a, em meio ao sorriso quando aqueles lábios sujos

deixaram sua pele. Lábios que sempre a machucavam, desde que sua mãe se fora.

Lábios que deveriam protegê-la, mesmo que não fossem os paternos, era para isso que

ele desposara sua mãe, afinal... O corpo da menina reagiu a falta de calor quando foi

abandonado pelo peso do dele, encolhendo-se conforme puxava para si a yukata em

trapos. Cobrindo-se e ganhando a porta em passos rápidos. Ela não queria dar-lhe

ouvidos. Não depois do que ele fizera. Então, correu... Correu para os braços do anjo.

Seu anjo caído.

Os cabelos pretos, longos, jogados contra seu rosto ferozmente pelo vento. Os passos

que deixava na neve até chegar ao corpo frágil da menina. O olhar preocupado ao afastar

os cabelos de um tom peculiar para o oriente, caramelos; e os azuis, que a fitavam

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intensamente em sua capa branca. Branca como a neve.

– Yare... Por que você não pode ouvi-lo? – indagou ao tomá-la nos braços e se erguer.

– Ele avisou que iria nevar... – deixou próximo ao rosto que se aconchegava em seu peito.

– Eu queria ver o nii-sama... – murmurou sem abrir os olhos, deixando que seus

pequenos braços envolvessem-lhe o pescoço e partes da yukata revelassem os pontos

marcados de sua pele por lábios. Os azuis que se mortificaram por não chegarem a

tempo, por não lhe ser permitidos intervir. – Não me deixa.

– Hanya – soprou conforme a levava para casa. – Perdoe-me...

...xxx...

– Beba isso – ele exigiu ao entregar-lhe o chá. – Vai aquecê-la.

Os chocolates intensos nos azuis dele quando o obedeceu, ainda sob as cobertas que

a mantinham aquecida, preparadas por ele. A paz que seu coração machucado

experimentava naqueles braços, não importando quantas vezes seu corpo fosse ferido.

Ele era sua rendição, o único capaz de apagar os pecados que trazia marcados em sua

pele... Pecados que não eram seus, queria apenas esquecer.

– Por que eu nunca consigo impedir que ele faça isso comigo? – Os pedaços de pano

com os quais ela tentava ocultar dele, as marcas.

Era a primeira vez que ouvia algo como aquilo; algo que soava como um lamento e a

confissão de um erro seu. Não era o tipo de coisa que lhe diziam quando sabiam de sua

presença por perto... Geralmente, era a ele que perguntavam por que coisas como aquela

aconteciam, e o culpavam em seguida. Mas Hanya era sempre diferente das outras

pessoas. Ela era única.

– Eu vou crescer, e quando isso acontecer, terei minha liberdade. – Os chocolates se

abriram mais, agora esperançosos, na falta de palavras dele que se limitou a passear

azuis por seu rosto.

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– Você será uma bela mulher... quando for a hora – contrapôs simplesmente. A força

dela o surpreendia ao mesmo tempo que o assustava.

– Não quero ser bela, se assim for, ele não me deixará partir. – O azul que desviou do

chocolates dela. Ele não devia ter-lhe falado do futuro, não era seu direito.

– Não se preocupe com isso agora, apenas descanse. – Fechou os azuis. – Eu tomarei

conta de você...

– Então venha... – Ela cedeu o espaço a ele no futon. – Eu não deveria poder vê-lo,

não é?

Azuis nos chocolates dela, preocupados.

– Não... – ele confessou, dissimulando suas reações ao obedecer a seu pedido.

Sentando-se sobre as cobertas, desconfortável. Por que reagia assim? Seria somente

pela forma humana que adotara perante a menina? Resignou-se em esconder suas

emoções, coisa tão efêmera para uma existência como a dele. – Mas eu quis assim, já lhe

expliquei isso. – De certa forma, sempre se perguntou por que desejara isso, mas era

algo que não estava apto a admitir. Não para ela.

– Gosto que se importe comigo... – Ela deixou sua cabeça no colo branco. – Porque

você é tudo o que eu tenho.

– Hanya – balbuciou, as emoções já não tão escondidas. O coração acelerando no

descompasso que ele não conhecia. Suor.

– Mesmo você tendo me assustado, a primeira vez que o vi... – ela continuou sem dar-

lhe atenção, os chocolates no infinito. Talvez porque ele não fosse real para ela, como

não era para muitos. Nova resignação. – Você me ensinou que há um gostar sem dor, ao

contrário daquele homem... – Ela abraçou o próprio corpo, apertando-o fortemente. Ele

afagou-lhe calmamente os cabelos caramelos, era dor demais para uma criança, sentia-a

em si próprio, como se fosse dele também aquele fardo. – Ele não me beija com carinho...

Não me toca com amor... Ele não deixa em paz, nunca! – E mais lágrimas escorreram

pelo rosto de porcelana, manchando-o, conforme enlaçava-o pela cintura em soluços.

Soluços que passavam do corpo dela ao dele, e agitavam sua alma enquanto enterrava

suas feições no tecido da túnica branca. – Onegai, nii-sama... Não me deixe. – Suas

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pequenas mãos segurando as pregas do tecido nos dedos delgados.

Ele não a deixaria.

Os azuis fitaram o fusuma ao seu lado, nos desenhos de borboleta. As borboletas que

eram livres na curta brevidade de suas vidas, como a menina entre seus dedos nunca

seria. Era por isso que a deixara vê-lo, para que aquele vazio que preenchia a alma da

menina, não a levasse antes da hora. Para que pudesse dividir com ela sua angústia, até

o momento que viria buscá-la. A verdadeira ligação dele com ela, a de um Youkai.

– Você vai ficar ao meu lado para sempre, não é?

– Vou – ele consentiu o que não deveria.

– Me conta uma história? – Os chocolates alcançaram os azuis, ansiosos. Fitando-o

como a menina de doze anos que era, não como a mulher em que os toques do homem a

transformara. Toque que ele já os vira dar sobre a pele clara, sem que nada pudesse

fazer além de observar e sentir sua parte alma protestar contra aquilo. A mesma parte sua

que o fazia protegê-la... Ainda que esse não fosse seu direito. Não como ele fazia.

– Qual?

– Fale-me de anjos...

– Por que anjos?

– Porque você é um deles.

– Hanya... – chamou-a, a menina já cerrando seus olhos. – Um dia você conhecerá o

lugar de onde venho. E nesse dia, talvez você descubra que não sou um anjo.

– Não pode me levar lá agora? – murmurou de olhos fechados, com um bocejo. – Deve

ser tão belo quanto você.

– Não. – O sorriso que ele não pode evitar diante das palavras dela, a sua criança.

– Akuma...

– Sim...

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– Não importa o que seja, para mim você sempre será um anjo... Meu anjo. – Ele se

permitiu ser acariciado pela inocência dela. A inocência que o atraía cada vez mais para

seu lado. – Você toma conta de mim e me faz feliz... – O rosto da menina no corpo da

mulher que o fascinava. – Akuma, não deixe que ele me toque de novo... Não hoje, eu

não quero... – O cansaço venceu-a.

– Ele não vai tocá-la, Hanya. – Deitou-se ao seu lado. O corpo de homem ao lado da

menina. – Você já sofreu demais por um dia. – Seus olhos molharam pela primeira vez em

séculos, que ele pudesse lembrar. O gosto do sal. O gosto amargo da impotência.

Um Youkai não deve ser envolver emocionalmente com mortais... Humanos não devem

ver anjos ou demônios. Entretanto, as correntes do destino se movem independentes da

vontade de ambos...

...mas por sua vontade, ele dormiu abraçado á ela.

...xxx...

– Não acha que foge as suas responsabilidades, passando tanto tempo preocupado

com aquela humana, Heilel? – a voz do chefe dos guardiões chegou ao seu ouvido,

arrastada.

– Diga-me, Miguel... – Os azuis se voltaram para os dele, indulgentes. – Por que achas

que foi delegado a ti, o cargo mais alto da milícia?

O silêncio no imenso branco que os cercava, foi toda a resposta do arcanjo.

– Não é, certamente, para que percas seu tempo comigo, meu amigo... – Pôs uma das

mãos em seu ombro e tomou a direção do ponto iluminado por Vênus. A estrela da

manhã. – Ele exige nossa presença, melhor que deixemos esse assunto para mais

tarde... – Sorriu-lhe ao passar pelo louro. Os azuis intensos sobre o moreno.

– Não a minha... – murmurou, em desapontamento, o miliciano.

– Então vos peço que olhe por todos, na minha ausência. – Os azuis que se

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encontraram, indecifráveis. – Arigatô – despediu-se cordialmente.

Miguel e ele nunca foram tão próximos, e aqueles dias em que havia se ausentado do

Renkai, tornara isso mais evidente. Principalmente, quando ele tocara no assunto de

Hanya. Gostaria de perguntar o que ocorrera a sua protegida enquanto estivera fora, mas

havia o chamado, o qual não podia ignorar; teria que deixar para outra hora, seus

afazeres como Youkai. Ainda que sua mente estivesse voltada para eles... Para ela.

Há meses não a via, a sua menina. Fitava-a do Renkai, das janelas abertas do mundo

das almas. Entretanto, jamais imaginou que Miguel o espreitasse. Jamais supôs que seus

passos fossem de conhecimento da milícia celestial. Teria baixado tanto sua guarda

assim, por uma humana? Segredou a si mesmo enquanto andava sob o chão fofo. Pés

em nuvens. Braços cruzados sobre a túnica branca, e aquela não era mais a hora de ter

esse tipo de pensamento. Livrar-se-ia deles... Todos.

– Acha que ele irá escolhê-lo, Heilel? – a voz mais urgente o abordou, assim que

ascendeu ao ponto de luz. – Afinal esteve ausente nos últimos meses, imerso em

trabalho.

– Isso o preocupa, Gabriel? – indagou sem fitá-lo, andando num passo calmo. Os

cabelos pretos ondulando sobre as costas.

– De forma alguma, meu caro. – Um sorriso medido na face do arcanjo mensageiro. –

Era tão somente, minha curiosidade aflorada...

– Sabe que ele não considera isso uma virtude...

– Não serei o escolhido para presidir o Renkai; talvez, assim, esse pequeno deslize em

minha personalidade passe despercebido. – Sorriu novamente quando Uriel deu-lhes

passagem ás portas do Meikai.

– Daqui vais sozinho... Heilel – sentenciou o arcanjo que empunhava a espada,

barrando o caminho do mensageiro.

– Vê o que digo? – disparou Gabriel. – Sirvo melhor a ele, em outros caminhos.

Com uma breve reverência, Heilel o deixou. O branco ao seu redor misturando-se a

sua roupa, a sua mente, até que não restasse nada além do puro olhar quase

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transparente de Deus.

– Chamou-me?

– Algo urgente precisa ser resolvido, Heilel. – Os cabelos brancos, a voz doce e

enigmática. Benevolência.

– Se eu puder ser de alguma ajuda... – Ajoelhou-se, vendo seus medos afastados de

si.

– És o único que pode me ajudar – respondeu calmo.

– Então, rogo que ponha sobre mim, a responsabilidade que lhe atormenta, meu

senhor.

– Tão nobre e tão belo, és tu, Heilel. – Os olhos pousados no oitavo arcanjo, o que

sempre lhe fora mais fiel. Seu escolhido. – Não penso que outro, mesmo sendo

parcimonioso, atenda ao meu pedido como tu farás.

– Sinto-me honrado que pense assim. – Os azuis baixos ao chão.

– Se o que dizes é a verdade em seu coração, então não baixe seus olhos perante

mim. Deixe-me ver a essência que tanto admiro neles. – Azuis nos benevolentes. – Assim

é melhor... – Um suspiro cansado suprimido por um sorriso sincero. – Dar-te-ei o cargo

mais alto do Renkai, Heilel.

Os azuis alargados sobre ele.

– Surpreso? – Um sorriso ainda maior nos lábios de luz. – Não pensei que tivesse esse

tipo de reação... O que o faz recear?

– Lidar com Miguel – rebateu sem hesitar.

– Ah, sim... – Deus se pôs de pé e andou, tornando-se tudo a sua volta. – Miguel tende

a ser humano demais. Eu o entendo. Releve...

– Relevar?

– Exato.

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– Mas ele ficará sob minhas ordens... – retrucou sério. – Será difícil para ele.

– Preocupa-te em ser o escolhido para essa função, deixa que com Miguel, eu

resolverei as coisas...

– Não queres ponderar mais um pouco?

– Julgas minha decisão imprópria? – As palavras ecoaram ao seu entorno.

– Não cabe a mim julgá-lo, senhor – resignou-se.

– Tens muito trabalho pela frente, Enma Dai Oh.

Com um assentimento e uma nova reverência, Heilel deixou o Meikai. Com os

pensamentos presos à Hanya, ele tocou o branco do mundo que agora regia.

– Não lhe disse? – Gabriel o abraçou. – Não havia dúvidas que ele esperava apenas

seu retorno para nomeá-lo.

– Eu não me importaria, se outro fosse escolhido – ponderou preso à figura de Miguel.

Os azuis que o fitavam intensos.

– Isso é blasfemar – rebateu o louro.

– Se assim lhe parece, devo crer que concorda com a escolha dele... – deixou no ar,

certo de que no coração do arcanjo, a verdade era outra.

– Sim, deves – assentiu de pronto sob o olhar de Gabriel.

– E quem ousaria discordar, Heilel? – emendou o mensageiro. – Você sempre foi o

mais justo de todos nós, era só uma questão de tempo e oportunidade.

Os azuis que fugiram para longe do rosto do novo Enma Dai Oh.

– Terás que passar suas responsabilidades como Youkai a outro anjo – ponderou

secamente o miliciano.

– Isso não será problema, não é mesmo, Heilel? – devolveu Gabriel. – Quem tomou

conta das coisas em sua ausência?

Azuis cruzaram com os dele. Um sorriso do mensageiro.

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– Não há necessidade que busque outro anjo, então, Miguel continuará a fazê-lo...

– Não é tu quem decides isso! – protestou o louro.

– Basta os dois! – interviu firme o oitavo. – Deus decidirá, não eu ou vós.

Apressou os passos, queria vê-la ao menos uma última vez... Explicar-lhe que falharia

em sua promessa. A promessa do anjo dela.

Os arcanjos que pararam, vendo-o se afastar. Os olhos do louro seguindo-o

preocupados.

– O que há com ele? – indagou o mensageiro.

– Você não o entende, não é Gabriel? – Sorriu-lhe o miliciano.

– Entendo que ele chegou aonde qualquer um de nós gostaria de estar...

Um novo sorriso nos lábios do louro.

– Você não entende Heilel... Não sabe o que é vagar entre o nosso mundo e o dos

humanos.

– Estás em recaída de novo, Miguel? – Fitou-o preocupado, o quarto arcanjo. – Não

deves se envolver com os mortais, sabe disso.

– Volte para seus afazeres, Gabriel... – Suspirou o primeiro arcanjo.

– Vais ficar bem?

– Superarei meu trauma, como sempre – confortou-o.

Os passos que eclodiram atrás de si, afastando o mensageiro. Os dele que foram na

direção do oitavo. Os azuis voltados á Terra, que ele encontrou dentro das roupas

mortais.

– Vais vê-la? – era um murmúrio entre os dois.

– Não posso abandonar todos que confiaram em mim – respondeu simplesmente.

– Sabe que a maioria não se importa quando vais aparecer ou não... Até preferem não

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ver-te – recriminou o louro. – Mas ela...

– O que tem ela? – indagou calmamente o Enma enquanto amarrava a yukata.

– Você a trata diferente...

– Achas?

– Sabes que faz isso – afirmou em azuis cintilantes. – Assim como sabes que não é

permitido tal comportamento. – Silêncio no qual Heilel deteve-se no rosto do louro, que

ainda sublinhou: – A hora dela está chegando cada vez mais rápido... E você a julgará... O

que fará nesse momento Heilel? Será seu anjo da guarda ou chefe do Renkai?

– O que aconteceu á ela na minha ausência? – Os azuis escuros interviram nos claros

dele, cintilantes.

– Nada...

– Mentes, Miguel – rebateu o oitavo.

– Nada há que possas fazer agora... Minutos aqui são como anos para os humanos,

esqueceu-se? Foi uma longa ausência sua, Heilel – prosseguiu no que dizia.

– Por que dizes isso? – Deu dois passos até o miliciano.

– Chegaste tarde, se é com o destino dela que se preocupa... Deixe que eu me

encarregue desse fardo, já que a abandonou para se dedicar ao seu novo posto.

– Não digas bobagens... – As palavras interrompidas nos azuis que tremeram. – Ela me

chamou enquanto... – O louro impassível a sua frente. – Diga o que ela queria! – O

arcanjo suspenso do branco por sua túnica envolta nos dedos do Enma. – O que disse á

ela?

Os azuis correndo os dele, aflitos.

– O que há contigo?

– O que disse á ela? – era quase um rosnado.

– A verdade.

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– Qual delas? A sua? – Largou-o no branco, irritado.

– Ela sabe que a abandonou, Heilel... – Sorriu. – Ela agora compreende que um Youkai

não pode ter qualquer tipo de envolvimento com sua protegida.

– Seu idiota! – Voltou a erguê-lo pela túnica até seus olhos. – Cada ser humano tem a

hora certa para seu julgamento...

– Mesmo? – ironizou. – Devia ter pensado nisso quando preteriu suas tarefas para ser

o Enma.

– Cale-se – ordenou, o punho fechado na direção do rosto de Miguel.

A milícia que os cercou rapidamente, com suas asas abertas em proteção ao seu

chefe. Os azuis que o fitaram entre elas, brilhantes.

– Os minutos se esvaem pelas veias dela... Heilel. O que vai fazer?

...xxx...

Um Youkai não é bom ou mal por sua natureza, apenas vaga entre o mundo mortal e o

Renkai, cuidando de almas humanas. Confortá-las, acompanhá-las... até que chegue sua

hora. Mas ela, Hanya estava indo cedo demais – pensou ao abrir as asas e alçar vôo. –

Por quê?

Os azuis que vasculharam cada pedaço de escuridão do mundo humano. Heilel, o anjo

que carrega a luz, o filho da manhã... O mais belo e fiel de todos os arcanjos de Deus.

Akuma. O cheiro que ele detectou ao entrar no quarto dela, forte... Sem respiração. A

presença que ele deixou que ela sentisse, a sua... conforme espantava as sombras e a

via entre os lençóis rubros. Molhados dela.

– Hanya... – Os azuis alarmados sobre a menina, o corpo da mulher de belos cabelos

caramelos que jazia no futon de sangue. Minutos dele que se tornaram anos longe dela. –

Hanya... -- a urgência nos lábios que se moviam enquanto os dedos afastavam os

cabelos úmidos de seu rosto. – O que fez?

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Os olhos fechados do corpo que ele colou ao seu, manchando sua túnica celestial de

rubro. Os riscos escarlates coagulados nos pulsos que ele não poderia mais conter, que

fazia seus olhos molharem na dor que ainda não conhecia. A dor de perder uma vida.

– Akuma... – um sopro ao seu ouvido. Os azuis que voltaram aos chocolates ao seu

lado. O esboço translúcido da menina de dezessete anos em seus braços. A alma de

Hanya. – Então é assim que você realmente é?

Os dedos da alma dela que tocaram seu corpo celeste.

– Você é ainda mais belo... – Ela sorriu para ele. Ele não sabia o que lhe dizer. – Eu

estou feliz que tenha vindo me buscar. Aquele outro anjo me disse coisas terríveis, mas

me mostrou como trazer você para mim... Estou tão feliz em te ver de novo.

– Hanya... – Abraçou-a, saindo de seu desespero. – Esqueça isso, eu estou aqui e

você vai ficar bem.

– Agora eu posso conhecer o seu mundo, não é? – Os chocolates dela nos azuis do

oitavo. – Foi por isso que tomou conta de mim, não foi? Porque você me amava...

Amor? Como ela podia entender isso? Como ele poderia dizer que se sentia assim?

Apertou-a contra si, deixando o corpo mortal dela para trás. A menina sem vida.

– Heilel-sama, é nosso o dever de conduzi-la ao Renkai – o chefe da malícia sugeriu

em azuis, colocando-se a sua frente.

Os azuis que pousaram sobre eles, irritados

– Você é o culpado pelo que aconteceu, Miguel.

– Em dez dias, descobriremos o veredicto que essa alma sofrerá, Enma-sama...

– Enma? – a voz dela soou entre seus braços, soltando-se deles surpresa. – Então era

verdade?

– Hanya... – ele tentou impedi-la.

– Você realmente me abandonou... – Os chocolates o fitaram decepcionados. – Você

mentiu para mim...

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– Não, Hanya. – A mão dele esticada na direção dela, cujo corpo se aproximava do

abraço do primeiro arcanjo. – Espere...

O rosto que ela deixou sobre a túnica de Miguel, sem voltar a fitar os azuis. As asas

que a acolheram, dissipando anjos e alma no ar.

– Ela aguardará o julgamento sob minha custódia, Heilel...

Foi tudo que restou ao seu redor, além do vazio que havia em seu peito.

...xxx...

– O que torna sua expressão tão fechada hoje? – indagou o quarto arcanjo.

– Preciso de uma audiência com ele, Gabriel – disse-lhe sem volteios.

– Não se consegue isso de uma hora para outra – retrucou o mensageiro. – Além do

que, soube que hoje será um dia cheio para os dez do júri...

– Alegre-se com isso, outra hora – interveio irritado, Heilel.

– O que está deixando-o assim? – Eram os azuis do arcanjo de cabelos anelados

castanhos que perscrutavam os seus.

– Sabes o que Miguel fez em minha ausência?

– Não muito... – ponderou o quarto. – Creio ter tomado conta de seus afazeres como

Youkai... Ao menos, foi isso que ele ventilou.

– Preciso falar com Deus...

– O que lhe atormenta, Heilel? Conte-me – exigiu o arcanjo.

– Lembra-se do pedido que lhe fiz antes de me ausentar? – Encontrou os doces azuis

sobre si, atentos. – A mensagem que lhe pedi para ser entregue no mundo dos humanos?

– Sim... – afirmou preocupado, vendo os riscos na expressão do oitavo aumentarem.

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– A moça a quem deste a mensagem... – Os azuis dele o encaravam aflitos. – Como

ela estava quando a encontrou?

– Normal...

– Normal? – exasperou-se Heilel. – Como assim normal, Gabriel?

– Não sei, me parecia bem dentro de sua expectativa de vida... – ele ponderou, fitando

o rosto do amigo. – Assim Miguel me explicou... Fez-me entender sua preocupação com

ela.

– Miguel estava lá?

– Sim... estava – assentiu. – Foi ele, na realidade, que entregou sua mensagem á

moça. Era o encarregado dela e estava ali. Achei mais fácil agir através dele... – O rosto

do oitavo que se tornou indecifrável. – Ora, Heilel, diga de uma vez o que está

acontecendo!

– Você chegou a ouvi-lo dizer minha mensagem?

– Não... mas ele a deu, tenho certeza.

– Eu também... – bufou irritado. – Consiga um encontro com ele, Gabriel... Diga-lhe que

lhe imploro por isso.

– Ás portas de um julgamento de suicidas? – contrapôs o arcanjo, calando-se em

seguida ao ver as duas águas marinhas brilharem em aviso para que não prosseguisse

em sua linha de raciocínio. – Não me diga que...

– Apenas me consiga a entrevista...

– O que quer pedir a ele? – preocupou-se o quarto.

– Melhor que não saiba de nada...

– Não é sobre a menina...

– Apenas consiga-me a entrevista...

– Heilel pense no que vai fazer.

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Ele assentiu, se calando, vendo Gabriel sumir da sua frente em passos apressados.

...xxx...

– Isso que me pede está fora de questão, Heilel – a voz grave se seguiu a dele, baixa.

– Mas não peço por mim, meu senhor. – Os azuis no lago profundo que os encarava.

– Ela é uma suicida, não há como impedir seu julgamento – proferiu brandamente. –

Uma alma que rompeu regras, que renegou o direito que lhe dei.

– Foi por sua própria vontade que salvou aqueles humanos... que deu a eles o livre

arbítrio. – Heilel estreitou os azuis na luz. – Como, agora, julgas impróprio que o usem

para decidir seu caminho? Ensinou isso a eles com sua benevolência.

– Sim, dei por eles, minha vida, para que vivessem as suas... Mas não interrompê-las

como bem lhes aprouver – retrucou sério. Sua voz eclodindo de cada ponto ao redor do

oitavo. – Se assim for, para que valeu meu sacrifício?

– Para salvar sua criação; bons ou ruins são seus filhos...

Os azuis fixos na imensidão ao seu entorno.

– Por que faz isso por uma humana. Heilel? – Era tão profundo quanto o que sentia.

Poderia ele, um arcanjo, chamar aquilo de dor? Desconcentrou-se no desespero de

Hanya enquanto o ouvia.

– Por que fez aquilo por todos eles? – rebatou fora de si.

Deus lhe sorria? Ele não saberia dizer.

– Eu sempre os amei... – proferiu, enfim. – Mas não posso concordar com sua escolha.

– Não pode me impedir de fazê-la, senhor – retrucou baixo, desviando o olhar da luz.

– Posso lamentar.

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– Sim... – pronunciou já se voltando para o caminho que o trouxera ali. – E um dia me

perdoar.

– Talvez... – aquiesceu ao calor das palavras de seu mais fiel discípulo. – Sabe que há

um preço a se pagar por sua desobediência às regras.

– Não me importo – respondeu, logo após ter interrompido sua marcha, recomeçando-a

uma vez mais.

– Tomarás o lugar da alma dela...

– Se for a forma de salvá-la, aceito a punição – rebateu já á entrada do Mekai.

As asas pretas abanaram um forte cheiro acre sobre seu rosto, fazendo-o recuar por

instantes, e azuis se prenderam aos pretos.

– O que o faz me trazer aqui? – a voz era intensa e grossa, tornando a luz trêmula e

difusa.

O rosto moreno, belo como uma pintura, num corpo de homem coberto de uma grossa

túnica vermelha.

– Preciso que cuides de uma alma para mim...

Os pretos que se tornaram brilhantes em desdém.

– Uma alma, você diz... – E tornou pretos ao oitavo. – E como seria ela? Sabe que não

aceito qualquer um em meus domínios.

O silêncio da palavra de Deus, o sorriso nos lábios do Diabo.

– Uma vez mais, abre mão de seu mais fiel seguidor... – Os olhos escuros voltando á

bondade que a luz emanava. – Seria por causas parecidas?

As asas haviam sumido e o homem, descalço, analisava Heilel pacientemente.

– Onde está Miguel? – indagou em azuis fixos no arcanjo ao seu lado. – Não o vejo há

tempos...

Era um escárnio, em definitivo. Silêncio do oitavo e o sopro cansado de Deus.

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– Vou aceitá-lo. – O ar quente de seus lábios envolvendo tudo, luz e anjo. Passos que

foram na direção de Deus. – Diga-me, por que fraquejas mais uma vez?

– Não está no seu direito, me julgar – rebateu a voz calma.

Um suspiro do demônio.

– Sempre será essa, a sua resposta. – Deu de ombros enquanto se virava para o

Enma. – Quando posso levá-lo? Meu tempo é escasso.

– Em breve...

– Aquela alma...

– Desfeito.

Pretos que correram pelo arcanjo.

– Entendo. – Circundando-o. – Quer abrir mão mesmo dele? – As palavras contra seu

pescoço. – Parece-me tão puro...

– Não posso salvá-lo de si mesmo.

– E o entrega para mim... – Novo sorriso. – Tentador. Voltarei, em breve para buscá-

lo... Seja rápido nos preparativos.

A túnica vermelha esvoaçou no ar, diante da luz, em asas pretas abertas.

– Era esse, o destino de Hanya?

– Não, esse é o seu.

Não havia mais paz em seu coração quando deixou o Mekai. A luz branca, que sempre

o seguia, se apagava paulatinamente conforme andava pelo Renkai... Atravessava o

manto branco... Olhava calmamente cada rosto dos Youkai parados lateralmente a si. A

visão do juri de Hanya.

Ela entre os dedos de Miguel, aguardando a sentença que não viria.

Os azuis que perdiam o brilho nas palavras de cada Youkai, na culpa que destinavam á

ela. A culpa que ele abonou com sua decisão, para surpresa do juri e felicidade de Miguel.

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A sentença final que saiu de seus lábios já sem cor, dando á Hanya sua salvação:

– Como Enma, considero sua alma inocente.

Suas vestes se tornando púrpuras conforme os chocolates se erguiam para ele. As

asas brancas tingindo-se de pretas... Tão negras quanto a noite. A luz branca que saía

dele e a envolvia... Que guiaria ela.

O cheiro forte e ácido do pecado que cometia, entregando-o ao diabo.

– Heilel... – a voz dele em seu ouvido. – Arrepende-se do que fez?

– Você traiu seu senhor, o que pode dizer em seu favor? – Era Miguel, que agora lhe

exigia respostas.

– Eu não traí ninguém... – Sua voz era arrastada e demorava a sair de sua boca. Tão

lentos eram seus movimentos. – Não me arrependo do que fiz. – Onde estava Hanya?

Não a via. – O que fizeram com aquela alma?

– Está segura – observou a primeira voz, agora num sibilo contra sua nuca. Um sibilo

que só ele podia ouvir e o confortava. Por que havia conforto para ele, ali?

– Como chefe da milícia, é meu dever bani-lo... – sentenciou o terceiro. – Não deve

permanecer em solo sagrado, se não buscas a absolvição de seus erros.

– Não posso me redimir do que considero ser justo. – Encarou-o num último lampejo

divino dos seus azuis. – Você, melhor do que eu, deveria reconhecer a justiça... Miguel.

– Parece-me que arrumou mais um inimigo, Miguel – a voz quente o envolveu, assim

como ar começava a queimar seus pulmões. – Considere, em seus pensamentos, que

nem mesmo os anjos escapam de um julgamento... Um dia, você terá o seu. Até breve.

O corpo do oitavo envolvido por asas pretas, corrompido pelo ar quente e ocre do

inferno. O inferno ao qual um anjo o remetera... Os chocolates em sua mente e ele cerrou

azuis. Quando voltasse a abri-los, veria o mundo com olhos de um demônio.

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