Wittgenstein Contra a Doutrina Da Predestinação

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WITTGENSTEIN CONTRA A DOUTRINA DA PREDESTINAÇÃO: religião e ética como sistema de referências TÍTULO Wittgenstein against doctrine of predestination: religion and ethics like system of references Horacio Luján Martínez [a] [a] Doutor em Filosofia, professor de ética contemporânea no Mestrado em filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo, PR - Brasil, e-mail: [email protected] Resumo Nosso objetivo é, por meio de algumas observações de Wittgenstein sobre crença religiosa, salientar a ética como “sistema de referências”. Deste modo, a ética se subtrai de qualquer interpretação de caráter absoluto. Pensar a religião como “sistema de referências” nos permitirá entender o comportamento prático como algo regrado, mas não no modo da prescrição universal. Assim, a ética e a religião terão um papel fundamental no nosso comportamento prático cotidiano, no sentido de alimentar a certeza de nossos juízos práticos. Não obstante isso, Wittgenstein parece enfatizar que, junto com as doutrinas éticas e religiosas que aprendemos ao aprender uma linguagem, deve haver um espaço para a autonomia, entendida como luta ou revolta diante das doutrinas tradicionais. Palavras-chave: Ludwig Wittgenstein. Ética e Linguagem. ISSN 0104-4443 Licenciado sob uma Licença Creative Commons Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 21, n. 29, p. 313-328, jul./dez. 2009

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  • WITTGENSTEIN CONTRA A DOUTRINADA PREDESTINAO: religio e tica

    como sistema de refernciasTTULO

    Wittgenstein against doctrine ofpredestination: religion and ethics like

    system of references

    Horacio Lujn Martnez[a]

    [a] Doutor em Filosofia, professor de tica contempornea no Mestrado em filosofia da UniversidadeEstadual do Oeste do Paran (UNIOESTE), Toledo, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    Resumo

    Nosso objetivo , por meio de algumas observaes de Wittgenstein sobre crenareligiosa, salientar a tica como sistema de referncias. Deste modo, a tica sesubtrai de qualquer interpretao de carter absoluto. Pensar a religio comosistema de referncias nos permitir entender o comportamento prtico comoalgo regrado, mas no no modo da prescrio universal. Assim, a tica e areligio tero um papel fundamental no nosso comportamento prtico cotidiano,no sentido de alimentar a certeza de nossos juzos prticos. No obstante isso,Wittgenstein parece enfatizar que, junto com as doutrinas ticas e religiosas queaprendemos ao aprender uma linguagem, deve haver um espao para a autonomia,entendida como luta ou revolta diante das doutrinas tradicionais.

    Palavras-chave: Ludwig Wittgenstein. tica e Linguagem.

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

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    Abstract

    Our objective is, through some observations of Wittgensteinabout religious faith, to point out the ethics as system ofreferences. This way, the ethics is subtracted of anyinterpretation of absolute character. To think the religion assystem of references will allow to understand the practicalbehavior as something ruled, but not in the way of the universalprescription. Like this, the ethics and the religion will have afundamental paper in our daily practical behavior, in the senseof feeding the certainty of ours practical judgements. In spiteof that, Wittgenstein seems to emphasize that, with the ethicaland religious doctrines that we learned when we learned alanguage, it should have a space for the autonomy, understoodas fight or strong disagree in front of the traditional doctrines.

    Keywords: Ludwig Wittgenstein. Ethics and language.

    ABREVIAES

    CV - Cultura e valorDC - Da certezaIF - Investigaes filosficasMP - Movimientos del pensarNB - Notebooks 1914-1916TLP - Tractatus lgico-philosophicusZ - Zettel

    A soluo do problema que voc v na vida viver de tal maneiraque desaparea o problemtico. Dizer que a vida problemticasignifica que a tua vida no se ajusta forma da vida (Form desLebens). Em conseqncia, voc deve mudar sua vida e, se ajusta-se forma, desaparece o problemtico. Mas, acaso no sentimos quequem no v ali um problema est cego frente a algo importante?No gostaria, acaso, dizer que esse tal vive - precisamente cego,como uma toupeira e que se pudesse ver, veria o problema? Ou nodevo dizer que quem vive corretamente no experimenta o problema

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    como tristeza, quer dizer, como algo problemtico, seno, como umaalegria; ou melhor, como um ligeiro ter em volta a sua vida e nocomo um entorno duvidoso.

    Ludwig Wittgenstein (CV, 1937)

    Influncia direta da leitura de The varieties of religiousexperience, de William James, Wittgenstein sempre reconheceu o papel desuma importncia que a religio tem na vida do homem, na formao dasua subjetividade. Esta importncia, porm, no tanto psicolgica comono caso do pensador americano -, quanto tica. Se a sensao de admiraoante a existncia do mundo - por exemplo - pode ser explicadapsicologicamente, algo que no parece preocupar realmente a Wittgensteine sim como respondermos a ela. Responder de um modo religioso pareceuma das possibilidades vlidas para ele, embora duvide que esse tipo deatitude possa ser aplicado a si prprio. Wittgenstein compartilhava com Jamesa ideia de que a religio devia ser de certo modo antropocntrica, o quesignifica em verdade que devia ajudar obteno de uma vida melhor nestaterra. importante notar, porm, o que Cyril Barrett destaca na sua tica ycreencia religiosa en Wittgenstein e que compartilhamos: Wittgenstein seencontraria atravessado pela ambiguidade de que entender os preceitosdivinos em termos humanos seria em certo sentido um empobrecimento doreligioso; porm, se tais preceitos no so entendidos em termos humanos,como o faremos? (BARRETT, 1994, p. 291).

    Existe um perigo claro no fato de tornar humana,demasiadamente humana, a religio: o caso daqueles que apenas podemaceitar os eventos que a Bblia narra a partir de uma confirmao histrica.Wittgenstein taxativo sobre isso e afirma em Lies e conversaes sobreesttica, psicologia e crena religiosa que: O cristianismo no tem basehistrica no sentido de que a crena ordinria em fatos histricos possaservir-lhe de fundamento. (WITTGENSTEIN, 1992, p. 134). A crenareligiosa no se baseia em razes como podem basear-se outro tipo decrenas ordinrias. O fato de no ter razes o seu fundamento e aautenticidade de uma crena no Juzo Final por exemplo serdemonstrada pelo modo em que ela regula o agir de uma pessoa. No necessria a acumulao de fatos histricos, ou de provas cientficas paraalcanar a f, quem a alcana deste modo pode perd-la por uma provacontrria, a controvertida idade do Santo Sudrio, por exemplo. O critrio

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    para identificar se uma pessoa possui determinada crena religiosa apenaspode ser a posteriori: o modo em que ela vive. Uma vez mencionado isso,dizemos que para Wittgenstein o tico e o religioso so atitudes ou modosde vincular-se com o que est alm da razo. Ao contrrio do que possaparecer, esta no uma observao metafsica seno gramatical: com aquiloque est alm, refere-se Wittgenstein ao momento em que esgotados osfundamentos chegou rocha dura onde a p se entorta (IF, 1999, p. 217).As explicaes so desnecessrias, ao sumo um requisito arquitetnico, eresta simplesmente nosso modo de agir.

    A conexo tico-religiosa que queremos enfatizar no significaa insero da esfera religiosa no campo prtico por uma influncia dainterpretao religiosa do destino do homem que faa recomendvel queas aes deste, aes morais, sejam dirigidas pelo dogma religioso seno,pelo contrrio, que o agir humano o que dar sentido a algumas doutrinasreligiosas. A obscuridade intrnseca a algumas destas doutrinas apenaspode ser esclarecida pelo modo em que os crentes as vivem.

    Acreditamos que se a religio era vista como um choque devontades (a vontade alheia ou Deus e a minha prpria vontade) (NB, 1969,p. 8/7/16), posso estabelecer uma relao marcada pelo silncio, claro com essa vontade, se entro em concordncia com o mundo, ou posso discordare cair na infelicidade. Esta relao com o divino claramente tica e o ticotem a ver com a dignidade do homem,1 o qual pe na tela de julgamento umaviso de submisso do criador na direo da sua criatura. Isso precisa seresclarecido: a partir da sua relao com o religioso que poderemos entender ao menos geneticamente o que propomos aqui como tica no sentido desistema de referncias. Se os pontos de contato entre religio e tica foramsempre to fortes em Wittgenstein, mais que lamentarmos pela escassez decomentrios sobre a tica, devemos ver at onde os comentrios maisnumerosos sobre a religio e a f podem nos servir.

    Uma anotao que Wittgenstein faz em 1947 ilustra um poucomais esta relao entre o comportamento tico e a teoria religiosa: Parece-me que uma f religiosa poderia ser algo assim como o apaixonado decidir-se por um sistema de referncias (Bezugssystem). Como se alm de ser f,fosse uma forma de vida ou uma forma de julgar a vida [...] (CV, 2000a,p. 1947). Outro momento no qual fala de sistema de referncias

    1 Dignidade no sentido kantiano de quem se d a si mesmo, pelo menos por meio da dvida ourevolta contra a linguagem, os critrios da ao prtica.

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    (Bezugssystem) nas Investigaes filosficas onde, imaginando a situaona qual um explorador chega a um pas desconhecido com uma lnguacompletamente estranha sua, interpreta tal lngua utilizando o modo deagir humano comum (die gemeinsame menschliche Handlungsweise) comosistema de referncia (IF, 1999, p. 206).

    Poderamos dizer que quando a vida fala uma linguagemestranha, quando no se ajusta forma de vida (lembrar fragmento naepgrafe) torna-se problemtica para ns. A religio entendida como ummeio que nos ajuda a movimentar-nos atravs desse problema: consolando,animando e recriminando-nos pelas nossas aes ou omisses. Osmomentos que a religio outorga podem ser agradveis (sensao de estarprotegido ou salvo graas ao poder divino) ou desagradveis (sentir-seculpado por no cumprir com o que Deus espera de ns). Curiosamente,ou no tanto, Wittgenstein (1995) fala dessas duas sensaes quando d asua Conferncia sobre a tica no seu retorno Cambridge em 1929.2

    E este o misticismo de Wittgenstein: um recurso real noqual real significa no metodolgico, muito menos, retrico pelo qual asperguntas e as questes que o homem pode se fazer ficam restritas.3 Apalavra Deus nas anotaes de Wittgenstein no significa tanto um criadorresponsvel de suas criaturas, quanto a denominao de uma regioonde as perguntas e sobretudo a pergunta sobre a finalidade da vida so impossveis. Deus , portanto, mais um limite antropolgico (diz maisa respeito da natureza do homem) que um agente suprassensvel.

    2 A Conferncia sobre a tica se erige sobre a diviso da obra wittgensteiniana entre umaprimeira e uma segunda filosofia. Esta afirmao no se fundamenta apenas no fato cronologicamente claro - de ser o seu primeiro texto a partir do seu retorno Cambridge.Tambm o faz no fato de manter junto com a distino tractariana do dizer e mostrar e aconsequente impossibilidade de expressar enunciados ticos, a utilizao metodolgica deuma diversidade de exemplos para chegar no essncia do conceito, mas ao que estesexemplos tm em comum. Acreditamos que a reside um ponto importante de inflexo dopensamento wittgensteiniano em relao ao mundo dos valores: na poca do Tractatus, oobjetivo de seu autor era o de subtrair o absoluto (tico, religioso, esttico) das mos dosfilsofos, e era isto no que consistia o seu to clebre ataque metafsica. Na Confernciasobre a tica parece se preocupar no apenas desta tarefa seno tambm de uma formapositiva por entender que estas proposies ou discursos formam parte da vida em sociedade.

    3 No Tractatus, o inefvel no um recurso tardio, post factum. Tampouco Deus, o Altssimo,um complemento irrelevante ou gratuito, como se fora uma herana filosfica mal digerida ouaquele preo elevado que, tendo-a superado, ainda deveramos pagar metafsica [...](SALLES, 2006, p. 105).

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    Se o segundo Wittgenstein no recomenda o silncio sobrealguns assuntos porque prefere demonstrar o vazio sobre o qual giramcertas perguntas e suas respostas , sua falta de solo, o torro natal, deHeimat (IF, 1999, p. 116). Na antropologia do Tractatus destacava-se umsujeito metafsico do qual no se podia falar, embora fazia o seu mundo, edesde que era um sujeito solipsista, o mundo. O assim chamado segundoWittgenstein desiste do aparelho de subjetividade schopenhaueriana,porm no da sem-razo que o dirige. Entretanto, a preferncia deWittgenstein pela frase de Goethe: Im Anfang war die Tat (DC, 2000b,p. 402) coloca a no-racionalidade na base e origem do mundo segundo oautor das Investigaes, o mundo dos jogos de linguagem. Este mundo jno vem de um esquema lgico a priori, mas de um movimento, de umaao, e isto o que caracterizar o pensamento maduro do filsofo vienense:a insero do prtico, dos usos e dos costumes na relao com o mundo. Sea certeza infundada est na base de nossos jogos de linguagem j no preciso um sujeito transcendental que possa intuir os limites do mundo, jque estes sero imanentes ao agir do sujeito desses jogos de linguagem.

    O tico e o religioso parecem se aproximar at a quase completaidentificao na obra de juventude, assimilar-se aos fatos do mundo queeram a vida, era assimilar-se a Deus. A pergunta pelo sentido da vida erauma dolorosa questo a resolver pelo esquecimento de tal pergunta, pelosilncio. Um Wittgenstein mais maduro parece reclamar do religioso umamaior autonomia para o homem, uma autonomia sem imperativos.

    O exemplo mais claro disto o rechao doutrina dapredestinao, segundo a qual algumas almas vo para o cu e outras no,conforme a vontade do criador. Algumas almas que recebiam a graa deDeus eram premiadas e as que no recebiam tal graa eram punidas.Wittgenstein diz a este respeito:

    Suponhamos que se tenha ensinado a algum: h um ser que se voc fazisto ou aquilo, ou se voc vive assim ou assado te levar a um lugarde tormentos eternos depois da tua morte; a maioria das pessoas terminamneste lugar, uns poucos vo a um lugar de felicidade eterna. Esse ser temselecionado de antemo os que tm que ir ao lugar bom e, colocado que,apenas as pessoas que tm levado um certo tipo de vida vo ao lugar detormentos; tambm tem arranjado de antemo que os outros vivam assim.Qual seria o efeito dessa doutrina? Bem, no menciona o castigo, senouma espcie de necessidade natural. E se voc apresenta as coisas dessemodo a algum, este s poderia reagir com desespero ou incredulidadeante essa doutrina (CV, 2000b, p. 1949).

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    Esse sistema de prmios e castigos das aes morais foiexplicitamente rechaado no Tractatus (TLP, 1994, p. 6.422), embora elefalasse que se houvesse algum prmio ou castigo no agir prtico este deveriaser intrnseco a tal agir, uma espcie de sensao agradvel para uma boaao ou desagradvel no caso contrrio. Wittgenstein tenta, na poca doTractatus, substituir o bem e o mal pela felicidade ou a infelicidadedo agente (TLP, 1994, p. 6.422).

    Neste caso, a anotao parece reclamar que no se pode fazernada com um tipo tal de doutrina. Se dissemos que a religio um sistemade referncias, o porque em determinadas circunstncias pode nos ajudarnuma deciso, num problema prtico.

    Quando se fala do carter prtico da segunda filosofiawittgensteiniana porque encontramos nela seguimento de regras,conhecimento e uso de tcnicas, contextos nos quais e a partir dos quais sepraticam diferentes jogos de linguagem: se fazem perguntas, se responde,se nega, se brinca, se tomam decises. Quando se afirma que seguimos umaregra cegamente e se aponta ao modo comum e geral do agir humano, noest se realizando uma nova fundao neste caso behaviourista significando que em lugar da razo devemos colocar o instintivo, biolgicoou simplesmente animal na essncia do que fazemos. Em todo caso, estcombatendo-se a imagem comum da palavra regra, qual a de uma prescrioque seguimos racionalmente, conscientemente. Se bem que, claro queexistem regras explcitas as quais adotamos em algum momento de nossoagir; o que Wittgenstein est apontando so as regras implcitas em nossoser em sociedade, as tcnicas que usamos cotidianamente.

    A doutrina da predestinao tal qual a entende o filsofovienense ataca pela base a ideia de um sujeito que age no tecido de relaeshumanas com independncia de entidades transcendentes. A ideia de umsujeito determinado essencialmente, a priori, no seu agir, a ideia de umanecessidade nos atos parece produzir um forte rechao em Wittgenstein:

    Uma lei moral natural no me interessa; ou no mais que qualquer outralei natural e no mais que aquela pela qual uma pessoa transgride a leimoral. Se a lei moral natural eu me sinto inclinado a defender otransgressor (MP, 2000c, 22/01/31).

    Acreditamos que Wittgenstein partidrio de uma contingnciaregrada. Haveria uma total ausncia de telos nos atos de um homem e deuma sociedade: tudo poderia ser de outra maneira, j que o seguimento de

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    uma regra no torna necessrio um acontecimento, seno possvel. O cartercultural das regras, a sua formao a partir de formas de vida destaca oseu aspecto convencional, nenhuma regra necessria em sentido absoluto:dada outra cultura seriam outras as regras, os acontecimentos e a nossaimagem deles. De qualquer maneira, o que Wittgenstein parece combater novamente a ideia de que nossos atos vo receber um julgamento divino,um julgamento heternomo. A realizao de um ato segundo as suasconsequncias ticas, um prmio ou um castigo, a transformao do religiosonuma tica prescritiva o que condena o filsofo:

    Como julgue Deus a um homem algo que nem podemos imaginar. Serealmente toma em conta a fora da tentao e a fragilidade da natureza,a quem pode condenar? De outro modo, o resultante dessas duas foras simplesmente o fim ao que o homem estava predestinado. Nesse casofoi criado de maneira tal que a inter-relao de foras o faria vencer ousucumbir. E essa no em absoluto uma idia religiosa, seno algo maisparecido a uma hiptese cientfica. Assim, se queres permanecer dentroda esfera religiosa tens que lutar (CV, 2000a, p. 1950).

    Wittgenstein quer subtrair o elemento religioso tanto do ataqueracionalista, do ataque argumentativo que acaba (des)qualificando-o deirracional,4 quanto da tentativa de justificar racionalmente tal elemento. Oque significaria lutar nestas circunstncias? Wittgenstein assinala em outrolugar que h diversos graus de f, e que no grau em que ele estava noprecisava da doutrina da predestinao.

    A religio crist apenas para o homem que precisa uma ajuda infinita,somente, ou seja, para o homem que experimenta tormentos infinitos.[...] A f crist tal e como a concebo o refgio do homem em seultimo tormento (CV, 2000a, p. 1946).

    Um homem em circunstncias normais deveria poder saberescolher o que aceita e o que no, do credo cristo. Ora, numa situao deextrema dor ou numa deciso extrema talvez pensar que o seu destino estavamarcado, resulte um alvio para ele. Nessa situao j no h luta, o homemse entrega fatalidade do momento; Wittgenstein reivindicava para si mesmo

    4 Wittgenstein sempre fala da religio como no-racional, j que o termo irracional tem algode pejorativo (WITTGENSTEIN, 1992, p. 134).

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    a oportunidade de escolher (segundo o seu grau de f) o que aceitava e oque no, do seu credo. Lutar dentro da esfera do religioso significaria, ento,no aceitar sem mais qualquer doutrina ou forma de devoo. Lutar conquistar essa convico que no pode nunca ser objetiva.

    A doutrina da predestinao porm no afirma que o homemesteja predeterminado no seu agir. A liberdade de escolha o que marcaessencialmente a criatura enquanto tal. E ainda seja que estivesse predestinadaao mal, ela no o saberia mais que enfrentando a tentao, portanto, o ditoconfronto deve ser realizado de todos os modos.5 Talvez seja a ideia deJuzo Final a que mais irrite a Wittgenstein.6 Para ele, talvez Deus noestivesse morto, mas sim aposentado da sua potestade. Se os valores estoinevitavelmente fora do mundo (TLP, 1994, p. 641) ou caem no campo doque pode ser acreditado, mas no conhecido ou sabido (DC, 2000b,p. 111), a imagem de um Deus Padre, condenando ou premiando os atoshumanos, no traz esses valores ao mundo seno sob a forma do dever.Tal ideia influiria negativamente sobre o poder de deciso humana, que oque Wittgenstein parece defender como marca de individualidade. Issoaparece maravilhosamente resumido na sua frase: No posso ajoelhar-mepara rezar, meus joelhos esto rgidos por assim dizer temo a dissoluo,(a minha dissoluo) se o fao (CV, 2000a, p. 1946) Tambm numaanotao anterior dir algo similar: Se ajoelhar significa ser um escravo(Em isto poderia consistir a religio.) (MP, 03/03/37).

    Ao jovem Wittgenstein, a falta de valores suainexpressabilidade leva-o a procurar uma total assimilao aos fatos domundo, uma apatia que o liberasse da decepo e do sofrimento. O sujeitometafsico do Tractatus, sujeito portador da tica e solipsista, torna-se umponto sem extenso. Se levarmos esta figura ao extremo, o sujeito tico doTractatus sujeito em dissoluo: sua nica funo apreender e seidentificar com os limites do mundo, a consecuo do silncio. J para oWittgenstein das Investigaes, essa mesma inexpressabilidade tornaimpossvel qualquer teoria tica nica. Essa impossibilidade no gera apatiaseno que libera a seu arbtrio a deciso do protagonista de um determinado

    5 Tentamos abordar a relao problemtica entre livre-arbtrio, graa e predestinao em nossoartigo Livre arbtrio e vontade na obra O livre-arbtrio de Santo Agostinho Horacio LujnMartnez, Revista Varia Scientia, agosto 2002 (p. 59-66).

    6 Preferiria escutar: Se no fazes isso desaproveitars a vida, que: Se no fazes isso serscastigado. O primeiro significa propriamente: Se no fazes isso tua vida mera aparncia,no tem verdade e profundidade (MP, 2000c, 18/02/37).

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    problema. Isto no seria decisionismo no sentido em que a autoridade deuma primeira pessoa, um sujeito forte, legitima-se a deciso tica tomadanuma circunstncia dada. A necessidade da deciso surge a partir da totalfalta de critrios absolutos para determinar o que est bem e o que est mal.

    Na continuao ilustraremos melhor isso, j que falamos atagora de decises no que concerne crena religiosa, mas nodemonstramos se acontece o mesmo no campo estritamente tico.

    No artigo La concepcin wittgensteiniana de la tica, de RushRhees, ele transcreve conversas mantidas com Wittgenstein7. Nessa ocasio,Wittgenstein considera trs exemplos: o assassinato de Julio Csar em mosde Bruto (era algo nobre como queria Plutarco ou uma m ao como afirmouDante?); a questo de se um homem tem direito a se deixar matar pelaverdade e o terceiro exemplo o dilema que enfrenta um homem que devedecidir entre deixar a sua esposa ou abandonar sua pesquisa sobre o cncer.Os dois primeiros no so sequer problemas ticos para Wittgenstein, e noo so porque no podemos saber o que passa pela cabea dos agentes de talao nesse momento. Isto no quer dizer que Wittgenstein reivindica ocontedo psicolgico como critrio legitimador de uma ao moral. O quepe em evidncia o que acabamos de mencionar como a total falta decritrios absolutos para a escolha tica: o sujeito quem tem que escolhernum determinado momento. A respeito do terceiro exemplo, segundo umatica crist, a soluo est perfeitamente clara: deve continuar com a suamulher acontea o que acontea. Ento algum poderia perguntar se otratamento dado pela tica crist o certo ou no. Talvez uma tica deinspirao nietzschiana desse uma resposta absolutamente contrria crist,a ideia que aparece num primeiro momento que se deveria poder decidirqual das duas ticas a mais correta, ao que Wittgenstein responde:

    Mas no sabemos como seria tal deciso, como se determinaria, queclasse de critrios usar-se-ia, e assim sucessivamente. comparvel aafirmar que deve de ser possvel decidir qual o mais correto entre doismodelos de preciso. Nem sequer sabemos o que pretende quem formuloutal pergunta (WITTGENSTEIN, 1990, p. 59).

    Retomou esta questo da tica correta mais tarde. O feznuma ocasio (1945) quando estava discutindo as relaes entre tica,psicologia e sociologia.

    7 Publicadas na Conferncia sobre a tica na verso em espanhol (WITTGENSTEIN, 1990).

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    As pessoas tiveram a noo de uma teoria tica, a idia de encontrar averdadeira natureza da bondade ou do dever. Plato quis fazer isto dirigir a pesquisa em direo busca da verdadeira natureza da bondade para conseguir objetividade e evitar relatividade. Pensou que arelatividade devia evitar-se de qualquer forma, devido a que destruiria oimperativo em moralidade (WITTGENSTEIN, 1990, p. 59).

    Wittgenstein est assinalando que se afirmamos que a tica crist a correta, na realidade estamos fazendo um juzo de valor, adotamos essatica como correta. No o mesmo que afirmar que entre vrias teoriasfsicas uma a mais correta, j que os modos de contrast-las so diferentes.

    O que Wittgenstein parece nos dizer que qualquer ao ticapremeditada que realizemos ser simplesmente o fruto da escolha entreticas possveis. Porm, esta escolha no est orientada por um bemabsoluto. Como esclarecido na Conferncia sobre a tica, se existisseum estado de coisas descritveis como um bem absoluto, este no poderiadeixar de ser procurado, nos sentiramos em falta se no o fizssemos.Mas no existe nenhum estado de coisas com tal poder restritivo.

    Esta carncia de tal referente metafsico pode segundo alguns nos deixar s portas do niilismo. Como manter uma escolha semtranscendncia e a sua vez conviver com as escolhas dos outros? A faltade um valor absoluto monoltico faz pensar a muitos na absoluta faltade valores. A posio relativista ou situacionista de Wittgenstein parecerianos abandonar aos braos de um paradoxo, o qual seria o de precisar umaeducao tica para depois nos comportar segundo nossa eleio.

    Uma questo importante, que pode arrastar-se numa primeiraaproximao ao paradoxo, a caracterizao da moral como algo quedeve ser seguido incondicionalmente. Quando percebemos que isto impossvel, provvel cair no ceticismo ou niilismo individualista: dada aimpossibilidade do seguimento absoluto das regras de qualquer doutrinatica, tal doutrina impossvel, portanto entrego-me defesa dos prpriosinteresses (uma espcie de egosmo pr-contratualista como essncia dohomem). interessante ver como a projeo de eventos futuros realizadaquando se fala de relativismo moral sempre apocalptica.8

    8 Assim afirma Robert L. Arrington no seu artigo A defense of ethical relativism: Asobjees ao relativismo so, na maioria das vezes, basicamente predies sobre o que aconteceriase o relativismo fosse aceito. (ARRINGTON, 1983, p. 236).

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    Mas Wittgenstein sugere um exerccio de ponderao quandodiz que a doutrina da predestinao no um ensinamento tico, maiscomo um mistrio incompreensvel que deve ser dado a conhecer depoisde uma educao tica (CV, 2000a). A doutrina da predestinao com orespectivo Juzo Final que a consagra, nos determina a certo tipo decomportamento em funo do medo reprovao divina. Se o cristianismoafirma que fomos feitos a imagem e semelhana de Deus, o contedo danossa vida deve ser medido segundo um molde divino, isso nos condena santidade, hipocrisia ou ao cinismo. Por isso, Wittgenstein considerava na sua interpretao que o cristianismo s podia ser adotado emsituaes extremas, dor extrema ou um enorme desespero.

    O que a deciso, que salientamos como opo, erige no a firmeza ou autenticidade da primeira pessoa, seno a falta de critriospara distinguir qual tica a correta.

    Mas, ser que Wittgenstein compartilhava a afirmao deNietzsche, de que no h fenmenos morais, mas a interpretao moraldos fenmenos?9 Acreditamos que no, os fenmenos morais existem os exemplos citados anteriormente o demonstram , o que no haveria uma resposta moral a esses fenmenos, quer dizer, uma nica resposta:uma doutrina que resolva claramente tais problemas. H problemas morais,embora no uma moral. O moral e o religioso partilham a mesma falta decritrios para determinar a sua eficincia, a consecuo de um efeitopor meio do seguimento de uma norma ou crena.

    Wittgenstein, porm, rechaa a teorizao da moral, j que aconsidera impossvel: sua evidente falta de critrios para determinar o beme o mal no uma carncia a ser solucionada posteriormente por umaesperada evoluo do esprito humano seno que constitui o ser mesmoda tica. O tico e o religioso apenas podem ser sistemas de referncias(Bezugssystemen) e no um conjunto de prescries a serem obedecidas. Oparadoxo j citado, de precisar de uma doutrina moral para determinar nosegui-la, se dissolve com a distino feita na Conferncia sobre a ticaentre juzo de valor relativo e juzo de valor absoluto. Enquanto posso jogarmal ao tnis e no querer jogar melhor ao que meu companheiro de jogono teria nada que reprovar , no posso me comportar de uma formaescandalosamente corrupta sem ser admoestado, sem que algum reclameque deveria querer me comportar de outro modo. Ou seja, no existe para

    9 Ver O ocaso dos idolos, tpico Os melhoradores da Humanidade pargrafo 1.

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    Wittgenstein um bem absoluto com poder coercitivo, isto , que uma vezconhecido no possa deixar de ser realizado. O segundo Wittgensteinpareceria se aproximar a um relativismo tico, sem que por isso se vinculeestritamente com essa corrente. O que tal relativismo significaria que noexiste uma moral, seno que a moral mais um jogo de linguagem, umsistema de referncias com o qual agimos, falamos, acusamos ouadmiramos os atos prprios e alheios.10 Como todo jogo que no sejaespetculo envolve somente seus participantes. Para dar maior preciso aesta afirmao, nos apoiamos no artigo de Darlei DallAgnol Jogos moraisde linguagem. Neste texto, DallAgnol salienta como todo jogo moral delinguagem possui seus prprios padres de correo e objetividade. Nemtodo jogo moral de linguagem precisa ter carter prescritivo universal(DALLAGNOL, 2006, p. 68).11

    Para Wittgenstein, no haveria nenhuma necessidade ou mritoem universalizar um conceito tico, tal conceito s pode nascer a posteriori(a partir de formas de vida) e, portanto, j universal (ou melhor, j regional, no pertence humanidade seno a um grupo determinado).Desse modo, embora seja uma questo que no poderemos aprofundar aqui,no vemos porque quereramos nem como poderamos implementar umatica universal. Se todos tivssemos quisto ou ambicionado o mesmo, essatica j teria sido alcanada apesar de qualquer suposta diviso da naturezahumana e no haveria conflitos morais. O carter incompleto de qualquertica o ser discutvel, o ser relativo, o no resolver um conflito de ummodo absoluto o seu centro mesmo. O ser tico no consiste em fazer obom seno em assumir a prpria deciso num juzo de valor, enfrentar oconflito como o ncleo mesmo da vida. Por isso, no campo da ticawittgensteinianamente entendida, devemos distinguir o ato de seguir umaregra segundo o sistema de referncia cristo ou nietzschiano, p.e., e a decisoindividual. Num conflito tico no sigo a regra cegamente, mas realizo uma

    1 0 Assim opina tambm Cyril Barrett: Wittgenstein defendeu uma forma moderada e razovelde relativismo tico: a saber, que quando existem conflitos morais no h nenhum critrio ouprincpio superior, prevalente e absoluto, nesse sentido, que decida, de uma vez por todas,entre as concepes enfrentadas. (BARRETT, 1994, p. 305). Podemos acrescentar que esterelativismo moderado e razovel que Barrett outorga a Wittgenstein no mais do que aconstatao da diversidade de opinies no campo do pensamento prtico.

    1 1 DallAgnol (2006) parece enfatizar o carter externalista dos jogos morais de linguagem,posio que compartilhamos, embora nosso texto focalize o carter individual (que no significainterno) da deciso.

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    ponderao tendo a cultura a que perteno como pano de fundo. Uma cultura entendida como o conjunto orgnico das formas de vida d as premissas(algumas delas tradicionais, por que no?) que os indivduos podem seguir.A responsabilidade da escolha tica une minha autonomia12 com o pertencera uma cultura determinada. Tal responsabilidade parte da cultura e no necessria de um modo heternomo, quer dizer, dissolvemos o paradoxoantes apresentado, afirmando que no que precisamos duma educaotica tradicional (com os seus deveres, proibies e culpas concomitantes)para extrair dela o sentido de responsabilidade antes de alter-la. O fato que temos educaes ticas tradicionais acreditamos que ningum viveriacom uma escala de valores lida no jornal do ltimo domingo e, portanto,mexemos, criamos com ela: Quero dizer: uma educao absolutamentediferente nossa tambm poderia ser o fundamento de conceitoscompletamente diferentes. (Z, 1985, p. 387). A responsabilidade no odever encoberto, seno uma regra tcita da nossa cultura e que possodeterminar seguir e se d sob a forma assumo esta escolha.

    A tradio dar o material para diferentes decises emdiferentes jogos de linguagem, um deles, o jogo de linguagem damoral. O problema uma vez que colocamos a tica como mais umjogo de linguagem se no terminamos identificando o bem e o malcom o que est aprovado por uma sociedade determinada.13

    O que podemos dizer aqui que Wittgenstein no est sugerindoum tal exerccio de ponderao dissidente como uma tica a seguir. Defato, as apreciaes sobre a tica que realiza na sua maturidade surgemcomo resposta pergunta: que tica correta? precisamente para rechaartal pergunta. A ideia wittgensteiniana foi sempre a de um individualismotico, que consistiria neste caso em no seguir mecanicamente uma doutrinasem antes passar pela reviso pessoal do tipo: como ela muda a minha vida?

    1 2 Utilizamos conscientemente o termo autonomia no sentido kantiano de se dar a prpria lei(critrio neste caso) moral. S que esta autonomia depender do faktum da linguagem comoforma pblica e compartilhada de razo.

    1 3 Javier Sdaba, no captulo tica analtica da Historia de la tica afirma que o jogo delinguagem tico o jogo bsico, porque o suposto de toda comunicao. Embora nodesenvolva isso, o imaginamos perto da opinio de Hilary Putnam, de que as formas devida e os jogos de linguagem precisam de certa empatia e tolerncia para funcionarem.Essas caractersticas colocariam a tica na base do funcionamento de toda a linguagem(PUTNAM, 1999, p. 73-75). Por enquanto, deixamos essas opinies como interrogaes.(SDABA, 2008, p. 172).

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    O carter conflitivo da vida parece o centro inevitvel do que o filsofovienense compreende por tica, embora para tal conflito no existamremdios universais. Como j foi mencionado, no temos aqui solipsismo:a deciso se realiza a partir do pertencer a uma cultura. De qualquer maneira,no existe legitimao do meu agir pela coincidncia (universalizao) como que esta cultura erige como valores. Como vimos, no caso da doutrina dapredestinao, nada me impede criticar uma teoria e decidir no optar porela (e nesse caso estaria jogando um outro jogo e com outros participantes,um jogo diferente dos que acreditam e precisam tal teoria como guia).

    A ttulo de concluso, podemos dizer que o primeiroWittgenstein era um subjetivista tico: os fatos adquiriam o seu carter apartir da nossa viso sobre eles.

    J na obra de maturidade, o filsofo acha que um fato podeser conflitivo e pode ter uma determinada soluo a partir do sistema dereferncias de uma moral, religio ou cultura especficas. Isto nos deixacom a ideia de que Wittgenstein era um relativista. Mas seria isso to claroassim? Se a linguagem est constituda por prticas cotidianas e estveis, difcil determinar se estas prticas formam regras e critrios de matizrealista, relativista ou de alguma instncia intermediria.

    Para resumir, afirmamos que a vida como problema e tarefa foisempre o centro do pensamento tico wittgensteiniano. De uma soluo pordissoluo marcada por uma busca incondicional da apatia convivnciacom tal problema derivada de um trabalho sobre si mesmo, vemos o percursoda sua considerao prtica. Diga-lhes que tive uma vida maravilhosa!,foram as ltimas palavras de Wittgenstein, segundo consta na memria deNorman Malcolm (MALCOLM, 1966, p. 100). Palavras que, mais do quedescrever um fato, exibem a convico pela qual o filsofo teve que lutar.

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    Recebido: 15/12/2008Received: 12/15/2008

    Aprovado: 16/03/2009Approved: 03/16/2009

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