Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

125
Volume XXVI Volume XXVI · · Número 2 Número 2 · · 2021 2021

Transcript of Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

Page 1: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 2 Nuacutemero 2 middotmiddot 2021 2021

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database published by the American Theological Library Association 250 S Wacker Dr 16th Flr Chicago IL 60606 USA

e-mail atlaatlacom wwwatlacomFides Reformata tambeacutem estaacute incluiacuteda nas seguintes bases indexadoras

CLASE (wwwdgbibliounammxclasehtml) Latindex (www latindexunammx) Francis (wwwinistfrbbdphp) Ulrichrsquos International Periodicals Directory

(wwwulrichswebcomulrichsweb) e Fuente Academica da EBSCO (wwwepnetcomthisTopicphpmarketID=1amptopicID=71)

Editores GeraisDaniel Santos Juacutenior

Dario de Araujo Cardoso

Editor de resenhasFilipe Costa Fontes

RedatorAlderi Souza de Matos

EditoraccedilatildeoLibro Comunicaccedilatildeo

CapaRubens Lima

Fides reformata ndash v 1 n 1 (1996) ndash Satildeo Paulo Editora Mackenzie 1996 ndash

Semestral ISSN 1517-5863

1 Teologia 2 Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

CDD 2912

INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEDiretor-Presidente Milton Flaacutevio Moura

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERDiretor Mauro Fernando Meister

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 2 Nuacutemero 2 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com grande satisfaccedilatildeo que mantendo a tradiccedilatildeo de reunir e divulgar o conhecimento biacuteblico-teoloacutegico apresentamos mais um nuacutemero da revista Fides Reformata Nosso desejo eacute que atraveacutes do material aqui apresentado o nome do Senhor seja glorificado e sua Igreja edificada e estimulada na feacute

Nesta ediccedilatildeo trazemos um novo segmento Aleacutem das jaacute conhecidas seccedilotildees de artigos acadecircmicos e de resenhas incluiacutemos uma aacuterea de textos voltados para a vida da Igreja chamada Seccedilatildeo Pastoral Sem abrir matildeo da qualidade teoloacutegica esse segmento traraacute reflexotildees mais breves e praacuteticas com vistas a abenccediloar tambeacutem aqueles que estatildeo diretamente envolvidos com o trabalho da igreja local

Para estimular sua leitura apresento os artigos desta ediccedilatildeo No texto ldquoTesouro em vaso de barro Charles Spurgeon e a palavra encarnada escrita e proclamadardquo Alderi Souza de Matos faz uma apresentaccedilatildeo biograacutefica e mi-nisterial do pastor batista inglecircs que eacute considerado o priacutencipe dos pregadores No artigo podemos conhecer as influecircncias pessoais e teoloacutegicas que marcaram a vida de Spurgeon bem como as grandes lutas e dificuldades que enfrentou Matos tambeacutem apresenta sua praacutetica de pregaccedilatildeo e o compromisso pessoal e teoloacutegico que a fundamentava

O segundo artigo de Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo tem o tiacutetuloldquoJesus Cristo fala no meio da congregaccedilatildeo uma discussatildeo sobre as fontes textuais dos salmos usados em Hebreus e uma breve anaacutelise da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em Hebreus 212rdquo Trata-se de um interessante estudo de criacutetica textual aplicada ao uso que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento Esse importante tema tem despertado grandes discussotildees especialmente quando se observam diferenccedilas entre os textos hebraico e grego do Antigo Testamento e as aplicaccedilotildees feitas pelos escritores do Novo Testamento O autor apresenta diferentes abordagens ao problema e daacute um exemplo de aplicaccedilatildeo

No artigo ldquoO ministeacuterio do encorajamento na igreja localrdquo Valdeci da Silva Santos e Danillo A Santos caminham na composiccedilatildeo de uma teolo-gia biacuteblica do aconselhamento na qual o emprego dos termos παρακαλεω e παρακλησις oferecem a base para a definiccedilatildeo do que deve ser almejado no ministeacuterio de encorajamento muacutetuo e mais especificamente nas propostas contemporacircneas de aconselhamento biacuteblico

Heber Carlos de Campos escreve o artigo intitulado ldquoPonderaccedilotildees sobre a eternidade do reinordquo Retomando o sentido teoloacutegico do termo ldquoeternordquo mostra que este soacute pode ser aplicado proacutepria e plenamente a Deus Assim quando aplicado agravequilo que foi criado ou agrave obra de Deus deve ser entendido no sentido de ldquointerminaacutevelrdquo ou ldquoinfindaacutevelrdquo Esse eacute o caso do Reino e da realeza de Deus Assim Campos contribui para o crescimento de nossa compreensatildeo

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 2: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

This periodical is indexed in the ATLA Religion Database published by the American Theological Library Association 250 S Wacker Dr 16th Flr Chicago IL 60606 USA

e-mail atlaatlacom wwwatlacomFides Reformata tambeacutem estaacute incluiacuteda nas seguintes bases indexadoras

CLASE (wwwdgbibliounammxclasehtml) Latindex (www latindexunammx) Francis (wwwinistfrbbdphp) Ulrichrsquos International Periodicals Directory

(wwwulrichswebcomulrichsweb) e Fuente Academica da EBSCO (wwwepnetcomthisTopicphpmarketID=1amptopicID=71)

Editores GeraisDaniel Santos Juacutenior

Dario de Araujo Cardoso

Editor de resenhasFilipe Costa Fontes

RedatorAlderi Souza de Matos

EditoraccedilatildeoLibro Comunicaccedilatildeo

CapaRubens Lima

Fides reformata ndash v 1 n 1 (1996) ndash Satildeo Paulo Editora Mackenzie 1996 ndash

Semestral ISSN 1517-5863

1 Teologia 2 Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

CDD 2912

INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIEDiretor-Presidente Milton Flaacutevio Moura

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERDiretor Mauro Fernando Meister

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 2 Nuacutemero 2 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com grande satisfaccedilatildeo que mantendo a tradiccedilatildeo de reunir e divulgar o conhecimento biacuteblico-teoloacutegico apresentamos mais um nuacutemero da revista Fides Reformata Nosso desejo eacute que atraveacutes do material aqui apresentado o nome do Senhor seja glorificado e sua Igreja edificada e estimulada na feacute

Nesta ediccedilatildeo trazemos um novo segmento Aleacutem das jaacute conhecidas seccedilotildees de artigos acadecircmicos e de resenhas incluiacutemos uma aacuterea de textos voltados para a vida da Igreja chamada Seccedilatildeo Pastoral Sem abrir matildeo da qualidade teoloacutegica esse segmento traraacute reflexotildees mais breves e praacuteticas com vistas a abenccediloar tambeacutem aqueles que estatildeo diretamente envolvidos com o trabalho da igreja local

Para estimular sua leitura apresento os artigos desta ediccedilatildeo No texto ldquoTesouro em vaso de barro Charles Spurgeon e a palavra encarnada escrita e proclamadardquo Alderi Souza de Matos faz uma apresentaccedilatildeo biograacutefica e mi-nisterial do pastor batista inglecircs que eacute considerado o priacutencipe dos pregadores No artigo podemos conhecer as influecircncias pessoais e teoloacutegicas que marcaram a vida de Spurgeon bem como as grandes lutas e dificuldades que enfrentou Matos tambeacutem apresenta sua praacutetica de pregaccedilatildeo e o compromisso pessoal e teoloacutegico que a fundamentava

O segundo artigo de Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo tem o tiacutetuloldquoJesus Cristo fala no meio da congregaccedilatildeo uma discussatildeo sobre as fontes textuais dos salmos usados em Hebreus e uma breve anaacutelise da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em Hebreus 212rdquo Trata-se de um interessante estudo de criacutetica textual aplicada ao uso que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento Esse importante tema tem despertado grandes discussotildees especialmente quando se observam diferenccedilas entre os textos hebraico e grego do Antigo Testamento e as aplicaccedilotildees feitas pelos escritores do Novo Testamento O autor apresenta diferentes abordagens ao problema e daacute um exemplo de aplicaccedilatildeo

No artigo ldquoO ministeacuterio do encorajamento na igreja localrdquo Valdeci da Silva Santos e Danillo A Santos caminham na composiccedilatildeo de uma teolo-gia biacuteblica do aconselhamento na qual o emprego dos termos παρακαλεω e παρακλησις oferecem a base para a definiccedilatildeo do que deve ser almejado no ministeacuterio de encorajamento muacutetuo e mais especificamente nas propostas contemporacircneas de aconselhamento biacuteblico

Heber Carlos de Campos escreve o artigo intitulado ldquoPonderaccedilotildees sobre a eternidade do reinordquo Retomando o sentido teoloacutegico do termo ldquoeternordquo mostra que este soacute pode ser aplicado proacutepria e plenamente a Deus Assim quando aplicado agravequilo que foi criado ou agrave obra de Deus deve ser entendido no sentido de ldquointerminaacutevelrdquo ou ldquoinfindaacutevelrdquo Esse eacute o caso do Reino e da realeza de Deus Assim Campos contribui para o crescimento de nossa compreensatildeo

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 3: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

Volume XXVI Volume XXVI middotmiddot Nuacutemero 2 Nuacutemero 2 middotmiddot 2021 2021

Igreja Presbiteriana do BrasilJunta de Educaccedilatildeo Teoloacutegica

Instituto Presbiteriano Mackenzie

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com grande satisfaccedilatildeo que mantendo a tradiccedilatildeo de reunir e divulgar o conhecimento biacuteblico-teoloacutegico apresentamos mais um nuacutemero da revista Fides Reformata Nosso desejo eacute que atraveacutes do material aqui apresentado o nome do Senhor seja glorificado e sua Igreja edificada e estimulada na feacute

Nesta ediccedilatildeo trazemos um novo segmento Aleacutem das jaacute conhecidas seccedilotildees de artigos acadecircmicos e de resenhas incluiacutemos uma aacuterea de textos voltados para a vida da Igreja chamada Seccedilatildeo Pastoral Sem abrir matildeo da qualidade teoloacutegica esse segmento traraacute reflexotildees mais breves e praacuteticas com vistas a abenccediloar tambeacutem aqueles que estatildeo diretamente envolvidos com o trabalho da igreja local

Para estimular sua leitura apresento os artigos desta ediccedilatildeo No texto ldquoTesouro em vaso de barro Charles Spurgeon e a palavra encarnada escrita e proclamadardquo Alderi Souza de Matos faz uma apresentaccedilatildeo biograacutefica e mi-nisterial do pastor batista inglecircs que eacute considerado o priacutencipe dos pregadores No artigo podemos conhecer as influecircncias pessoais e teoloacutegicas que marcaram a vida de Spurgeon bem como as grandes lutas e dificuldades que enfrentou Matos tambeacutem apresenta sua praacutetica de pregaccedilatildeo e o compromisso pessoal e teoloacutegico que a fundamentava

O segundo artigo de Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo tem o tiacutetuloldquoJesus Cristo fala no meio da congregaccedilatildeo uma discussatildeo sobre as fontes textuais dos salmos usados em Hebreus e uma breve anaacutelise da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em Hebreus 212rdquo Trata-se de um interessante estudo de criacutetica textual aplicada ao uso que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento Esse importante tema tem despertado grandes discussotildees especialmente quando se observam diferenccedilas entre os textos hebraico e grego do Antigo Testamento e as aplicaccedilotildees feitas pelos escritores do Novo Testamento O autor apresenta diferentes abordagens ao problema e daacute um exemplo de aplicaccedilatildeo

No artigo ldquoO ministeacuterio do encorajamento na igreja localrdquo Valdeci da Silva Santos e Danillo A Santos caminham na composiccedilatildeo de uma teolo-gia biacuteblica do aconselhamento na qual o emprego dos termos παρακαλεω e παρακλησις oferecem a base para a definiccedilatildeo do que deve ser almejado no ministeacuterio de encorajamento muacutetuo e mais especificamente nas propostas contemporacircneas de aconselhamento biacuteblico

Heber Carlos de Campos escreve o artigo intitulado ldquoPonderaccedilotildees sobre a eternidade do reinordquo Retomando o sentido teoloacutegico do termo ldquoeternordquo mostra que este soacute pode ser aplicado proacutepria e plenamente a Deus Assim quando aplicado agravequilo que foi criado ou agrave obra de Deus deve ser entendido no sentido de ldquointerminaacutevelrdquo ou ldquoinfindaacutevelrdquo Esse eacute o caso do Reino e da realeza de Deus Assim Campos contribui para o crescimento de nossa compreensatildeo

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 4: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

CONSELHO EDITORIALAugustus Nicodemus Lopes

Davi Charles GomesHeber Carlos de Campos

Heber Carlos de Campos JuacuteniorJedeiacuteas de Almeida Duarte

Joatildeo Paulo Thomaz de AquinoMauro Fernando MeisterValdeci da Silva Santos

A revista Fides Reformata eacute uma publicaccedilatildeo semestral doCentro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juiacutezos pessoais dos autores natildeo representando necessariamente a posiccedilatildeo do Conselho Editorial Os direitos de publicaccedilatildeo

desta revista satildeo do Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

Permite-se reproduccedilatildeo desde que citada a fonte e o autor

Pede-se permutaWe request exchange On demande lrsquoeacutechange Wir erbitten Austausch

Se solicita canje Si chiede lo scambio

ENDERECcedilO PARA CORRESPONDEcircNCIARevista Fides Reformata

Rua Maria Borba 4044 ndash Vila BuarqueSatildeo Paulo ndash SP ndash 01221-040

Tel (11) 2114-8644E-mail atendimentocpajmackenziebr

ENDERECcedilO PARA PERMUTAInstituto Presbiteriano Mackenzie

Rua da Consolaccedilatildeo 896Preacutedio 2 ndash Biblioteca CentralSatildeo Paulo ndash SP ndash 01302-907

Tel (11) 2114-8302E-mail bibliopermackenziecombr

EDITORIAL

Eacute com grande satisfaccedilatildeo que mantendo a tradiccedilatildeo de reunir e divulgar o conhecimento biacuteblico-teoloacutegico apresentamos mais um nuacutemero da revista Fides Reformata Nosso desejo eacute que atraveacutes do material aqui apresentado o nome do Senhor seja glorificado e sua Igreja edificada e estimulada na feacute

Nesta ediccedilatildeo trazemos um novo segmento Aleacutem das jaacute conhecidas seccedilotildees de artigos acadecircmicos e de resenhas incluiacutemos uma aacuterea de textos voltados para a vida da Igreja chamada Seccedilatildeo Pastoral Sem abrir matildeo da qualidade teoloacutegica esse segmento traraacute reflexotildees mais breves e praacuteticas com vistas a abenccediloar tambeacutem aqueles que estatildeo diretamente envolvidos com o trabalho da igreja local

Para estimular sua leitura apresento os artigos desta ediccedilatildeo No texto ldquoTesouro em vaso de barro Charles Spurgeon e a palavra encarnada escrita e proclamadardquo Alderi Souza de Matos faz uma apresentaccedilatildeo biograacutefica e mi-nisterial do pastor batista inglecircs que eacute considerado o priacutencipe dos pregadores No artigo podemos conhecer as influecircncias pessoais e teoloacutegicas que marcaram a vida de Spurgeon bem como as grandes lutas e dificuldades que enfrentou Matos tambeacutem apresenta sua praacutetica de pregaccedilatildeo e o compromisso pessoal e teoloacutegico que a fundamentava

O segundo artigo de Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo tem o tiacutetuloldquoJesus Cristo fala no meio da congregaccedilatildeo uma discussatildeo sobre as fontes textuais dos salmos usados em Hebreus e uma breve anaacutelise da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em Hebreus 212rdquo Trata-se de um interessante estudo de criacutetica textual aplicada ao uso que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento Esse importante tema tem despertado grandes discussotildees especialmente quando se observam diferenccedilas entre os textos hebraico e grego do Antigo Testamento e as aplicaccedilotildees feitas pelos escritores do Novo Testamento O autor apresenta diferentes abordagens ao problema e daacute um exemplo de aplicaccedilatildeo

No artigo ldquoO ministeacuterio do encorajamento na igreja localrdquo Valdeci da Silva Santos e Danillo A Santos caminham na composiccedilatildeo de uma teolo-gia biacuteblica do aconselhamento na qual o emprego dos termos παρακαλεω e παρακλησις oferecem a base para a definiccedilatildeo do que deve ser almejado no ministeacuterio de encorajamento muacutetuo e mais especificamente nas propostas contemporacircneas de aconselhamento biacuteblico

Heber Carlos de Campos escreve o artigo intitulado ldquoPonderaccedilotildees sobre a eternidade do reinordquo Retomando o sentido teoloacutegico do termo ldquoeternordquo mostra que este soacute pode ser aplicado proacutepria e plenamente a Deus Assim quando aplicado agravequilo que foi criado ou agrave obra de Deus deve ser entendido no sentido de ldquointerminaacutevelrdquo ou ldquoinfindaacutevelrdquo Esse eacute o caso do Reino e da realeza de Deus Assim Campos contribui para o crescimento de nossa compreensatildeo

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 5: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

EDITORIAL

Eacute com grande satisfaccedilatildeo que mantendo a tradiccedilatildeo de reunir e divulgar o conhecimento biacuteblico-teoloacutegico apresentamos mais um nuacutemero da revista Fides Reformata Nosso desejo eacute que atraveacutes do material aqui apresentado o nome do Senhor seja glorificado e sua Igreja edificada e estimulada na feacute

Nesta ediccedilatildeo trazemos um novo segmento Aleacutem das jaacute conhecidas seccedilotildees de artigos acadecircmicos e de resenhas incluiacutemos uma aacuterea de textos voltados para a vida da Igreja chamada Seccedilatildeo Pastoral Sem abrir matildeo da qualidade teoloacutegica esse segmento traraacute reflexotildees mais breves e praacuteticas com vistas a abenccediloar tambeacutem aqueles que estatildeo diretamente envolvidos com o trabalho da igreja local

Para estimular sua leitura apresento os artigos desta ediccedilatildeo No texto ldquoTesouro em vaso de barro Charles Spurgeon e a palavra encarnada escrita e proclamadardquo Alderi Souza de Matos faz uma apresentaccedilatildeo biograacutefica e mi-nisterial do pastor batista inglecircs que eacute considerado o priacutencipe dos pregadores No artigo podemos conhecer as influecircncias pessoais e teoloacutegicas que marcaram a vida de Spurgeon bem como as grandes lutas e dificuldades que enfrentou Matos tambeacutem apresenta sua praacutetica de pregaccedilatildeo e o compromisso pessoal e teoloacutegico que a fundamentava

O segundo artigo de Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo tem o tiacutetuloldquoJesus Cristo fala no meio da congregaccedilatildeo uma discussatildeo sobre as fontes textuais dos salmos usados em Hebreus e uma breve anaacutelise da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em Hebreus 212rdquo Trata-se de um interessante estudo de criacutetica textual aplicada ao uso que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento Esse importante tema tem despertado grandes discussotildees especialmente quando se observam diferenccedilas entre os textos hebraico e grego do Antigo Testamento e as aplicaccedilotildees feitas pelos escritores do Novo Testamento O autor apresenta diferentes abordagens ao problema e daacute um exemplo de aplicaccedilatildeo

No artigo ldquoO ministeacuterio do encorajamento na igreja localrdquo Valdeci da Silva Santos e Danillo A Santos caminham na composiccedilatildeo de uma teolo-gia biacuteblica do aconselhamento na qual o emprego dos termos παρακαλεω e παρακλησις oferecem a base para a definiccedilatildeo do que deve ser almejado no ministeacuterio de encorajamento muacutetuo e mais especificamente nas propostas contemporacircneas de aconselhamento biacuteblico

Heber Carlos de Campos escreve o artigo intitulado ldquoPonderaccedilotildees sobre a eternidade do reinordquo Retomando o sentido teoloacutegico do termo ldquoeternordquo mostra que este soacute pode ser aplicado proacutepria e plenamente a Deus Assim quando aplicado agravequilo que foi criado ou agrave obra de Deus deve ser entendido no sentido de ldquointerminaacutevelrdquo ou ldquoinfindaacutevelrdquo Esse eacute o caso do Reino e da realeza de Deus Assim Campos contribui para o crescimento de nossa compreensatildeo

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 6: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

sobre o estado final dos filhos de Deus e para maior clareza no tratamento desse importante ensino

O artigo em inglecircs desta ediccedilatildeo foi escrito por Francisco Solano Portela Neto ldquoIssues faced by education in the 21st centuryrdquo Ele apresenta os princi-pais temas e tendecircncias na discussatildeo de como deve ser a educaccedilatildeo no seacuteculo 21 A consideraccedilatildeo e aplicaccedilatildeo de tais aspectos eacute um grande desafio para os educadores cristatildeos envolvidos tanto no ensino escolar quanto no eclesiaacutestico O destaque de Portela estaacute na importacircncia de atendermos aos novos desafios educacionais sem comprometer a perenidade do ensino de Cristo

Dois textos compotildeem a nova Seccedilatildeo Pastoral natildeo deixe de lecirc-los Mauro Fernando Meister apresenta uma ldquoExposiccedilatildeo do Salmo 1rdquo Ali podemos visua-lizar na praacutetica os benefiacutecios de uma pregaccedilatildeo fundamentada na hermenecircutica e na teologia biacuteblica reformada Aleacutem do aprendizado que propicia o artigo oferece um rico modelo para a praacutetica da pregaccedilatildeo expositiva

O ensaio ldquoAprendendo com a histoacuteria da igrejardquo de Frans Leonard Schalkwijk eacute um testemunho pessoal sobre como estudar e ensinar a histoacuteria geral e a histoacuteria da igreja pode enriquecer o ministeacuterio pastoral Quantas liccedilotildees podemos aprender com aquilo que Deus e os homens fizeram no passado E aleacutem de tudo podemos nos deleitar com os ricos ensinamos compartilhados pelo querido professor Rev Frans Leonard

Trecircs resenhas fecham a presente ediccedilatildeo Maacutercio Roberto Alonso faz a apresentaccedilatildeo do livro ldquoA busca da verdaderdquo de Nancy Pearcey Esse livro trata de como podemos identificar caracterizar e confrontar uma cosmovisatildeo existente em favor de uma cosmovisatildeo cristatilde Bruno Campos de Alcacircntara Santana escreve sobre o livro ldquoCante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igrejardquo (K Getty K Getty) Esse eacute um interessante material para uma fundamentaccedilatildeo teoloacutegica e praacutetica do ministeacuterio de muacutesica da igreja local Por fim Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino apresenta o livro ldquoIntermediate Greek grammar syntax for students of the New Testamentrdquo (David L Mathewson Elodie Ballantine Emig) Ele mostra as contribuiccedilotildees dessa gramaacutetica grega de niacutevel intermediaacuterio e incentiva os estudantes da liacutengua a avanccedilarem em seu aprendizado

Dr Dario de Araujo CardosoProf Assistente de Teologia Pastoral

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 7: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br

SUMAacuteRIO

ARTIGOS

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA

E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos 9

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES

TEXTUAIS DOS SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE DA CITACcedilAtildeO DO

SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo 27

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos 45

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos 63

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto 77

SECcedilAtildeO PASTORAL

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister 87

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk 99

RESENHAS

A BUSCA DA VERDADE (NANCY PEARCEY)Maacutercio Roberto Alonso 109

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

(K GETTY K GETTY)Bruno Campos de Alcacircntara Santana 115

INTERMEDIATE GREEK GRAMMAR SYNTAX FOR STUDENTS OF THE NEW TESTAMENT

(DAVID L MATHEWSON ELODIE BALLANTINE EMIG)Joatildeo Paulo Thomaz de Aquino 121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

9

TESOURO EM VASO DE BARRO CHARLES SPURGEON

E A PALAVRA ENCARNADA ESCRITA E PROCLAMADAAlderi Souza de Matos

RESUMOO pastor batista inglecircs do seacuteculo 19 Charles Haddon Spurgeon eacute considerado

o ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo Ele comeccedilou a pregar de maneira arrebatadora quando ainda adolescente e ao longo de quarenta anos de ministeacuterio proclamou o evangelho a milhotildees de ouvintes Graccedilas agrave publicaccedilatildeo de um imenso nuacutemero de seus sermotildees eacute considerado o indiviacuteduo com maior volume de obras publi-cadas em toda a histoacuteria do cristianismo Aleacutem de pregar amplamente pasto-reou uma igreja com milhares de membros fundou dezenas de organizaccedilotildees e manteve volumosa correspondecircncia Um traccedilo marcante de sua carreira foi o fato de ser um ardoroso calvinista principalmente graccedilas agrave influecircncia dos puritanos cujos escritos leu avidamente desde a infacircncia Este artigo comeccedila por esboccedilar os aspectos mais salientes da sua biografia destaca a seguir algu-mas caracteriacutesticas da sua pregaccedilatildeo e produccedilatildeo literaacuteria e conclui fazendo um apanhado de seu pensamento em torno de trecircs temas a Biacuteblia (palavra escrita) Jesus Cristo (palavra encarnada) e a pregaccedilatildeo (palavra proclamada)

PALAVRAS-CHAVECharles Spurgeon Protestantismo inglecircs Congregacionalismo Igreja

batista Calvinismo Puritanismo Pregaccedilatildeo Biacuteblia Jesus Cristo

Doutor em Teologia (ThD) Histoacuteria da Igreja Boston University School of Theology (Boston MA) Mestre em Teologia (STM) Novo Testamento Andover Newton Theological School (Newton Centre MA) professor de Teologia Histoacuterica no CPAJ historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

10

INTRODUCcedilAtildeODesde o seacuteculo 16 a Inglaterra eacute um dos paiacuteses que tecircm dado contribuiccedilotildees

mais significativas ao protestantismo mundial e em especial ao movimento evangeacutelico Os Estados Unidos herdeiros das colocircnias inglesas da Ameacuterica do Norte tambeacutem deixaram um legado extraordinaacuterio mas isso soacute ocorreu a partir do seacuteculo 18 e em resposta a notaacuteveis eventos ocorridos na paacutetria-matildee Satildeo exemplos disso o movimento puritano (seacuteculos 16 e 17) os grandes avi-vamentos (seacuteculos 18 e 19) e as missotildees mundiais (seacuteculos 19 e 20) Esses fenocircmenos foram protagonizados por indiviacuteduos de grande estatura moral espiritual e intelectual como John Owen Richard Baxter os irmatildeos Wesley John Newton George Whitefield e William Carey dentre muitos outros No seacuteculo 19 um desses gigantes foi Charles Haddon Spurgeon (1834-1892) considerado o priacutencipe dos pregadores

Numa eacutepoca de grandes oradores sacros dos dois lados do Atlacircntico como Charles Simeon Horatius Bonar Robert Murray MrsquoCheyne Henry Ward Beecher e Dwight Moody ele se destacou de maneira excepcional por sua eloquecircncia magnetismo e profundidade Isso resultou em parte de seu talento pessoal mas principalmente da grande heranccedila que recebeu de trecircs seacuteculos de feacute evangeacutelica em seu paiacutes A principal influecircncia que plasmou a personalidade pregaccedilatildeo e teologia de Spurgeon foi o puritanismo Os primeiros anglicanos a partir do proacuteprio arcebispo Thomas Cranmer eram fortes partidaacuterios de Calvino mas foi entre os puritanos que o calvinismo ou seja a feacute reformada alcanccedilou a sua expressatildeo maacutexima na Inglaterra Esse movimento surgiu de maneira claramente identificada no iniacutecio do reinado de Elizabete (anos 1560) alcanccedilou o seu aacutepice na deacutecada de 1640 eacutepoca da Assembleia de Westminster mas sofreu um grande reveacutes em 1662 quando cerca de dois mil ministros com essa persuasatildeo foram expulsos da Igreja da Inglaterra

Depois disso ainda que tenha cessado como movimento o puritanismo inglecircs deixou vigorosas contribuiccedilotildees que perduram ateacute o presente Seus par-tidaacuterios se notabilizaram pela intensidade de sua vida devocional profundo interesse pelas Escrituras zelo pastoral pregaccedilatildeo fervorosa e aliado a tudo isso um vigoroso cultivo da vida intelectual Inspirados pela Reforma Suiacuteccedila os puritanos desenvolveram e enriqueceram a teologia da primeira geraccedilatildeo de reformadores continentais produzindo uma obra literaacuteria que impactou profun-damente sucessivas geraccedilotildees Entre os seus herdeiros estava Charles Spurgeon

Natildeo soacute os sermotildees e outros escritos desse pregador constituem um acervo bibliograacutefico de vastas proporccedilotildees mas tambeacutem satildeo muito numerosos os estu-dos sobre sua vida obra e pensamento1 O presente artigo aborda inicialmente

1 Algumas obras sobre o personagem na biblioteca de teologia do Mackenzie satildeo as seguintes ANGLADA Paulo Spurgeon e o evangelismo moderno Satildeo Paulo Os Puritanos 1996 CARLILE J

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

11

a vida e a carreira singular do personagem Em seguida faz consideraccedilotildees sobre seu estilo de pregaccedilatildeo e suas publicaccedilotildees Por fim se deteacutem sobre o grande apreccedilo que ele dedicou agrave ldquoPalavrardquo em trecircs aspectos a palavra escrita (a Biacuteblia) a palavra encarnada (Cristo) e a palavra proclamada (a pregaccedilatildeo) Tudo isso ocorreu em um contexto pessoal marcado por grandes dificuldades e provaccedilotildees principalmente no acircmbito da sauacutede

1 A VIDA DE SPURGEONldquoMinha vida me parece um sonho de fadas Muitas vezes fico ao mesmo

tempo maravilhado e atordoado com suas misericoacuterdias e seu amor Oacute quatildeo bom Deus tem sido para mimrdquo Com essas palavras autobiograacuteficas tem iniacutecio um valioso documentaacuterio sobre Spurgeon filmado em 20142 Sua atitude diante de Deus e de sua proacutepria vida eacute reveladora de alguns dos traccedilos mais marcantes do seu pensamento O ldquopriacutencipe dos pregadoresrdquo nasceu em 19 de junho de 1834 na pequena Kelvedon no condado de Essex cerca de 85 quilocircmetros a nordeste de Londres Essa regiatildeo possuiacutea uma longa tradiccedilatildeo de resistecircncia protestante que remontava agraves perseguiccedilotildees de Maria a Sanguinaacuteria no seacuteculo 163 Em seu breve reinado de cinco anos (1553-1558) a rainha Maria Tudor tentara por todos os meios restaurar o catolicismo que havia sido marginalizado no reinado igualmente breve de seu irmatildeo Eduardo VI Nesse processo ela perseguiu cruelmente os protestantes condenando quase trecircs centenas deles agrave dolorosa morte na fogueira origem do epiacuteteto pelo qual ficou para sempre conhecida Suas accedilotildees intensificaram na Inglaterra um forte sentimento anti-catoacutelico que era partilhado por Spurgeon

C Charles Spurgeon the great orator Uhrichsville Barbour 1997 DALLIMORE Arnold Spurgeon a new biography Carlile Banner of Truth 1985 DRUMMOND Lewis A Spurgeon prince of preachers Grand Rapids Kregel 1992 HAYDEN Eric The unforgettable Spurgeon C H Spurgeonrsquos attitudes convictions experiences and theology as he recorded them in The Sword and the Trowel (1865-1892) Greenville Ambassador 1997 LAWSON Stephen J O foco evangeacutelico de Charles Spurgeon um perfil de homens piedosos Trad Elizabeth Charles Gomes Satildeo Joseacute dos Campos Fiel 2012 MURRAY Iain H The forgotten Spurgeon Carlile Banner of Truth 1973 MURRAY Iain H Spurgeon un principe olvidado Barcelona El Estandarte de la Verdad 1996 MURRAY Iain H Spurgeon v hyper-calvinism the battle for gospel preaching Carlile Banner of Truth 1997 RUSPANTINI Anthony J (Org) Quot-ing Spurgeon Charles Spurgeon Grand Rapids Baker 1994 SPURGEON Charles H Spurgeonrsquos expository encyclopedia sermons Grand Rapids Baker 1985 SPURGEON Charles H Spurgeon ainda fala esboccedilos de sermotildees editados e condensados por David Otis Fuller Grand Rapids Eerdmans sd SPURGEON Charles H Autobiography A revised edition originally compiled by Susannah Spurgeon and Joseph Harrald Carlile Banner of Truth 1985-1995 THIELICKE Helmut Encounter with Spur-geon Filadeacutelfia Fortress 1963

2 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Canadaacute 20143 KRUPPA Patricia Stallings ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo Christian History

Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 8

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

12

Seu pai (John) e seu avocirc (James) eram ministros independentes ou ldquonatildeo conformistasrdquo (congregacionais) Essas designaccedilotildees eram dadas a alguns grupos de herdeiros dos puritanos que estavam agrave margem da confissatildeo estabelecida a Igreja da Inglaterra detentora de todos os privileacutegios As recordaccedilotildees mais antigas de Spurgeon sobre sua infacircncia foram ouvir sermotildees aprender hinos e olhar as gravuras do grande claacutessico O Peregrino de John Bunyan que ele haveria de ler mais de 100 vezes ao longo da vida Tambeacutem foi profundamen-te impactado pelo Livro dos Maacutertires de John Foxe uma crocircnica grandemente popular das referidas perseguiccedilotildees marianas Seus heroacuteis eram e continuaram a ser ao longo dos anos os valentes protestantes e puritanos perseguidos e martirizados naquela eacutepoca

Spurgeon foi o primeiro de 17 filhos nove dos quais morreram na in-facircncia Ainda pequenino (1835) foi morar com os avoacutes e uma tia na pequena vila rural de Stambourne perto de Cambridge agrave qual voltaria muitas vezes no futuro em busca de descanso Sua tia Ann de 17 anos muito fervorosa em sua feacute evangeacutelica tornou-se a sua segunda matildee Certa vez o menino deu uma demonstraccedilatildeo precoce do seu futuro trabalho ao repreender numa taverna lo-cal um homem que estava ldquoquebrando o coraccedilatildeordquo de seu avocirc pastor Naquela eacutepoca durante a Revoluccedilatildeo Industrial estava desaparecendo a velha Inglaterra rural substituiacuteda por uma sociedade majoritariamente urbana4

Em 1841 lamentando deixar o lar do avocirc ao qual havia se afeiccediloado forte-mente o menino voltou a residir com os pais e os irmatildeos agora em Colchester Quando tinha dez anos um missionaacuterio visitante Richard Knill interessou-se por ele falou-lhe das coisas de Deus e declarou diante da famiacutelia a sua convic-ccedilatildeo de que um dia ele iria pregar o evangelho a grandes multidotildees Em 1849 aos 15 anos escreveu o seu primeiro livro O Papismo Desmascarado com 295 paacuteginas que foi premiado em um concurso de escritores

A autora Patricia Kruppa descreve a formaccedilatildeo educacional de Spurgeon como mediacuteocre segundo os padrotildees da eacutepoca5 Ele frequentou por alguns anos um educandaacuterio em Colchester e por breve tempo foi professor assistente em uma escola anglicana cujo diretor era seu tio materno Nessa eacutepoca um dos mestres o convenceu acerca da legitimidade do ldquobatismo de crentesrdquo em oposiccedilatildeo ao batismo infantil Em seguida estudou na Newmarket Academy onde foi fortemente influenciado pelo uma piedosa cozinheira calvinista Mary King Em 1850 mudou-se para Cambridge poreacutem sendo um dissi-dente (dissenter) natildeo ligado agrave igreja estatal natildeo tinha o direito de obter um diploma quer em Oxford ou em Cambridge Havia excelentes academias e faculdades dos dissenters mas ele decidiu natildeo buscar um treinamento formal

4 Ibid p 95 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

13

para o ministeacuterio apelando para Jeremias 455 ldquoE procuras tu grandezas Natildeo as procuresrdquo Embora ao contraacuterio de outros jovens Spurgeon tenha obtido apenas um conhecimento limitado dos claacutessicos foi um autodidata que valori-zava a cultura e amava os livros Com isso veio a se tornar um indiviacuteduo com apreciaacutevel bagagem intelectual e notaacutevel domiacutenio do idioma

Converteu-se a Cristo em 6 de janeiro de 1850 ao ouvir casualmente um sermatildeo em uma capela metodista primitiva forccedilado por uma tempestade de neve O pregador leigo falou sobre Isaiacuteas 4522 (ldquoOlhai para mim e sede salvos voacutes todos os limites da terra porque eu sou Deus e natildeo haacute outrordquo) olhando fixamente para o adolescente confuso e angustiando que o ouvia Ao chegar em casa a matildee Eliza vendo a mudanccedila do seu semblante exclamou ldquoAlgo maravilhoso aconteceu com vocecircrdquo Foi batizado por imersatildeo no rio Lark em Isleham Ferry e para surpresa dos pais ingressou na igreja batista em Cambridge por discordar do batismo infantil No ano seguinte aos 16 anos pregou seu primeiro sermatildeo em Taversham

Pouco depois tornou-se pastor da capela de Waterbeach a poucas milhas de Cambridge O pregador adolescente rapidamente adquiriu fama como um verdadeiro menino prodiacutegio Sua aparecircncia juvenil contrastava com a maturi-dade de seus sermotildees fortemente influenciados pelas obras dos puritanos que havia estudado desde a infacircncia Tinha uma memoacuteria excepcional e pregava extemporaneamente usando apenas um esboccedilo Sua juventude energia e dons de oratoacuteria causaram um viacutevido impacto nas igrejas em que pregou As pessoas caminhavam longas distacircncias para ouvi-lo e logo a sua fama alcanccedilou Londres

Em 1854 aos 19 anos foi convidado para pregar na histoacuterica capela de New Park Street na capital inglesa No passado essa antiga igreja havia sido pastoreada por expoentes como Benjamin Keach6 e John Gill A congregaccedilatildeo ficou impressionada e decidiu quase por unanimidade convidaacute-lo para um pe-riacuteodo de experiecircncia de seis meses embora ele temeroso de que natildeo agradasse tivesse pedido que esse periacuteodo inicial fosse de apenas trecircs meses Acabaria ficando agrave frente daquela comunidade por 38 anos Quando chegou a igreja tinha 232 membros no final do seu pastorado o nuacutemero de membros haveria de atingir 5311 Ao todo 14460 pessoas ingressaram na igreja durante o seu ministeacuterio Curiosamente assim como natildeo estudou teologia formalmente tambeacutem nunca buscou a ordenaccedilatildeo algo que aparentemente aconteceu com o proacuteprio reformador Joatildeo Calvino

Em 1855 quando estava com apenas 20 anos seus sermotildees comeccedilaram a ser publicados Realizou o primeiro culto num grande auditoacuterio londrino o Exeter Hall e comeccedilou a orientar o seu primeiro estudante para o ministeacuterio Thomas Medhurst No ano seguinte casou-se com Susannah Thompson uma

6 Sobre Benjamin Keach ver PORTE JUacuteNIOR Wilson ldquoBenjamin Keach e o pacto da graccedila a teologia de um batista reformado do seacuteculo 17rdquo Monografia de MDiv CPAJ 2011

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

14

bela jovem que era membro de sua igreja No iniacutecio ela havia se sentido muito pouco atraiacuteda por ele achando-o ruacutestico e malvestido No ano seguinte tive-ram seus uacutenicos filhos os gecircmeos Charles (mesmo nome do pai) e Thomas7

Sua vida conjugal foi exemplar e uma grande fonte de forccedila e sustento para o casal nos muitos momentos difiacuteceis pelos quais haveriam de passar O primei-ro desses momentos ocorreu no mesmo ano do casamento (1856) Spurgeon estava dirigindo um culto no vasto Surrey Gardens Music Hall quando alguns indiviacuteduos gritaram ldquofogordquo No tumulto que se seguiu sete pessoas morreram pisoteadas e muitas ficaram feridas Esse incidente quase pocircs fim ao seu mi-nisteacuterio profundamente deprimido ele ficou vaacuterias semanas sem poder pregar

No veratildeo de 1860 usando uma toga pela uacutenica vez em sua vida Spurgeon pregou no puacutelpito de Calvino em Genebra e se encontrou com grande nuacutemero de pastores reformados de liacutengua francesa Mais tarde ele faria algumas afir-maccedilotildees um tanto grandiloquentes sobre o reformador ressaltando poreacutem a importacircncia muito maior da mensagem proclamada por ele

Entre todos os nascidos de mulher natildeo surgiu um maior do que Joatildeo Calvino Nenhuma eacutepoca antes dele jamais produziu um igual e nenhuma depois dele viu um rival Na teologia ele permanece sozinho fulgurando como brilhante estrela fixa enquanto outros liacutederes e mestres soacute podem orbitar em torno dele a uma grande distacircncia A fama de Calvino eacute eterna por causa da verdade que ele proclamou e mesmo no ceacuteu ainda que percamos o nome do sistema de doutrina que ele ensinou ela seraacute aquela verdade que nos faraacute tocar nossas harpas de ouro e cantar agravequele que nos amou e nos lavou dos nossos pecados em seu proacuteprio sangue e nos fez reis e sacerdotes para Deus o seu Pai A ele seja a gloacuteria e o domiacutenio para todo o sempre8

Em 1861 ele falou a sua maior audiecircncia a portas fechadas 23654 pessoas no Palaacutecio de Cristal em Londres Nesse ano foi inaugurado livre de diacutevidas ao custo de pouco mais de 31000 libras o Tabernaacuteculo Metropolitano com capacidade para 5600 pessoas O nome foi proposital foi denominado ldquotabernaacuteculordquo para deixar claro que era apenas um santuaacuterio terreno e transitoacute-rio ao contraacuterio da habitaccedilatildeo celestial As grandes colunas gregas da fachada serviam para lembrar a liacutengua e a cultura nas quais foi produzido o Novo Tes-tamento Spurgeon dirigiu sua igreja com matildeo firme e costumava entrevistar pessoalmente cada novo membro para se certificar de que sua conversatildeo era genuiacutena A maior parte dos congregados pertencia agrave classe meacutedia baixa Seus diaacuteconos nutriam imensa admiraccedilatildeo por ele

7 De acordo com o Evangelho de Joatildeo Tomeacute (Thomas) tambeacutem era chamado Diacutedimo ou seja ldquogecircmeordquo (1116 2024 212) Spurgeon iria batizar os filhos em 1874

8 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

15

Em 1864 pregou um controvertido sermatildeo sobre ldquoregeneraccedilatildeo batismalrdquo criticando essa doutrina aceita pela Igreja Anglicana do qual foram vendidas 350 mil coacutepias Com isso alguns amigos afastaram-se dele No ano seguinte lanccedilou a revista mensal The Sword and the Trowel (A Espada e a Colher de Pedreiro) O subtiacutetulo explicativo era ldquoRegistro do combate ao pecado e de trabalho pelo Senhorrdquo Em 1866 fundou a Associaccedilatildeo de Colportagem do Tabernaacuteculo Metropolitano voltada para a distribuiccedilatildeo de literatura cristatilde No ano seguinte o famoso evangelista americano Dwight Lyman Moody compareceu pela primeira vez a um culto no Tabernaacuteculo Foi iniciada a construccedilatildeo da ala masculina do Orfanato Stockwell (o orfanato para meninas seria fundado em 1879)9 Em 1868 seu irmatildeo James Spurgeon tornou-se seu pastor auxiliar No mesmo ano Susannah ficou invaacutelida o que natildeo a impediu de continuar apoiando o ministeacuterio do marido O casal costumava passar as feacuterias em Menton na Cocircte drsquoAzur no Mediterracircneo perto da divisa da Franccedila com a Itaacutelia

Em 1875 foi inaugurado o Fundo de Livros da Sra Spurgeon para fornecer literatura cristatilde a pastores de toda a Inglaterra A essa altura estava em plena atividade o Coleacutegio de Pastores a faculdade de formaccedilatildeo pastoral que Spurgeon havia iniciado modestamente em 1857 e que a partir de 1862 funcionou no Tabernaacuteculo Metropolitano Em 1874 transferiu-se para instala-ccedilotildees proacuteprias atraacutes do templo e quase meio seacuteculo depois em 1923 jaacute com o nome de Coleacutegio de Spurgeon iria ocupar o endereccedilo atual em Falkland Park perto de onde Spurgeon residiu (Westwood)10 Durante o seu ministeacuterio quase 900 pastores foram treinados nessa escola e quase 200 novas igrejas foram plantadas Em 1865 Spurgeon inaugurou a Conferecircncia Anual do Coleacutegio de Pastores altamente valorizada por ele

Em 1880 Spurgeon mudou-se para sua nova residecircncia no subuacuterbio de Westwood Ao completar 50 anos (1884) foi lida uma lista das 66 organizaccedilotildees que ele havia fundado e dirigido Anthony Ashley Cooper (Lord Shaftesbury) grande reformador social estava presente e disse ldquoEssa lista de associaccedilotildees instituiacutedas por sua genialidade e superintendidas pelo seu cuidado seria mais do que suficiente para ocupar as mentes e coraccedilotildees de cinquenta homens comunsrdquo11 Em 1885 foi publicado o uacuteltimo dos sete volumes de O Tesouro de Davi seu apreciado comentaacuterio dos Salmos

9 Ver SHAW Ian F ldquoCaring for childrenrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 33-35

10 NICHOLLS Michael Kenneth ldquoSpurgeonrsquos Collegerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 42

11 PIPER John ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo Inaugural Spurgeon lecture Re-formed Theological Seminary Orlando FL (Apr 10 2013) Disponiacutevel em httpswwwdesiringgodorg messagesthe-life-and-ministry-of-charles-spurgeon Acesso em 20 out 2021

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

16

Como personagem puacuteblico de fortes convicccedilotildees Spurgeon se envolveu ao longo da vida em vaacuterias controveacutersias teoloacutegicas e poliacuteticas pagando pesado preccedilo emocional e fiacutesico por algumas delas Foi amigo e admirador do Primeiro--Ministro W E Gladstone do Partido Liberal a quem chamava de ldquoCheferdquo mas rompeu com ele em 1886 na questatildeo da autonomia da Irlanda (ldquohome rulerdquo) Essa poliacutetica alarmou os protestantes irlandeses para os quais assim como para Spurgeon isso significava o domiacutenio de Roma (ldquoRome rulerdquo)12

Aleacutem de Gladstone Lord Shaftesbury e Moody Spurgeon teve outros amigos destacados como o fundador de orfanatos George Muumlller o explorador David Livingstone o missionaacuterio Hudson Taylor e o futuro pintor holandecircs Vincent Van Gogh que por algum tempo trabalhou como evangelista

Nos anos seguintes (1887-1888) Spurgeon envolveu-se no episoacutedio mais amargo de sua carreira ndash a ldquoControveacutersia do Decliacuteniordquo (Downgrade Contro-versy) ndash quando manifestou em sua revista a preocupaccedilatildeo com o avanccedilo do liberalismo na Inglaterra inclusive em sua denominaccedilatildeo e a consequente negaccedilatildeo de doutrinas fundamentais como a inspiraccedilatildeo das Escrituras e o sacrifiacutecio expiatoacuterio de Cristo13 A Uniatildeo Batista ficou dividida e Spurgeon acabou renunciando a essa organizaccedilatildeo que posteriormente aprovou um voto de censura contra ele Seu proacuteprio irmatildeo afastou-se dele Alguns acham que essa experiecircncia traumaacutetica contribuiu para abreviar a sua vida

Aleacutem das controveacutersias do enorme volume de trabalho (que incluiacutea uma meacutedia de 500 cartas a serem respondidas semanalmente) e de um forte senso de responsabilidade em relaccedilatildeo aos seus ouvintes Spurgeon sofreu seacuterios problemas de sauacutede como a doenccedila de Bright (inflamaccedilatildeo crocircnica dos rins) gota (acompanhada de fortes dores) e episoacutedios de depressatildeo incapacitante Martyn Lloyd-Jones conta que em um dos episoacutedios de depressatildeo severa indo para o interior a fim de descansar Spurgeon ouviu um pregador leigo utilizar um de seus sermotildees e se sentiu grandemente reconfortado14

Em 7 de junho de 1891 pregou sem o saber seu uacuteltimo sermatildeo no Tabernaacuteculo Metropolitano Faleceu oito meses depois em 31 de janeiro de 1892 em Menton na Franccedila No dia 12 de fevereiro foi sepultado no Cemiteacute-rio West Norwood no sul de Londres O cortejo fuacutenebre de trecircs quilocircmetros foi assistido por 100 mil pessoas Concluindo o sermatildeo junto ao tuacutemulo seu amigo e pastor Archibald Brown disse

Campeatildeo de Deus A tua longa batalha e nobre combate acabaram A espada que estava em tua matildeo caiu finalmente um ramo de palmeira tomou o lugar dela

12 BEBBINGTON David W ldquoThe political forcerdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 39

13 Ver ldquoThe Down-Grade Controversyrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 31s14 MCCASKELL ldquoThrough the eyes of Spurgeonrdquo

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

17

Natildeo mais o capacete premiraacute a tua testa pela preocupaccedilatildeo constante dos teus pensamentos vibrantes sobre combate a coroa da vitoacuteria entregue pela proacutepria matildeo do grande comandante eacute a prova evidente de tua nobre recompensa15

Em 1894 seu filho Thomas foi eleito pastor do Tabernaacuteculo Metropoli-tano Sua Autobiografia em quatro volumes foi publicada entre 1897 e 1900

2 PREGACcedilAtildeO E OBRA LITERAacuteRIASpurgeon era um orador cativante carismaacutetico e como disse um amigo

ldquodramaacutetico ateacute a ponta dos dedosrdquo16 Antes de a idade e a doenccedila o tornarem mais contido ele caminhava pela plataforma e ateacute corria de um lado para o outro Seus sermotildees eram repletos de histoacuterias sentimentais que apelavam agraves pessoas comuns Sua linguagem era viacutevida e emocionalmente carregada No iniacutecio os criacuteticos londrinos condenaram o estilo maneiras e aparecircncia do jovem pregador mas ele acabou granjeando o respeito de todos Seu filho Charles deixou um testemunho valioso sobre a sua pregaccedilatildeo

Natildeo havia ningueacutem que pudesse pregar como o meu pai Em sua variedade inesgotaacutevel sabedoria perspicaz proclamaccedilatildeo vigorosa apelo amoroso e ensino luacutecido com uma multidatildeo de outras qualidades ele deve ao menos em minha opiniatildeo ser para sempre considerado o priacutencipe dos pregadores17

Dotado de uma bela voz e de um estilo cativante ele estudava de modo diligente e lia muito utilizando siacutemiles metaacuteforas e ilustraccedilotildees dramaacuteticas Lewis A Drummond afirmou de modo muito pertinente ldquoDedicado agraves Es-crituras agrave oraccedilatildeo disciplinada e a um viver piedoso Spurgeon exemplificava o compromisso cristatildeo quando assumia o puacutelpito Isto em si conferia poder agrave sua pregaccedilatildeordquo18

Essa nobre atividade dominava a tal ponto os seus pensamentos que certa vez pregou um sermatildeo enquanto dormia A esposa anotou o esboccedilo e ele o utilizou na igreja na manhatilde seguinte Calcula-se que em todo o seu ministeacuterio proclamou a palavra a 10 milhotildees de pessoas As conversotildees foram inuacutemeras algumas das quais em circunstacircncias bastante inusitadas Certa vez testando a acuacutestica do vasto Pavilhatildeo de Agricultura ele bradou ldquoEis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundordquo Um operaacuterio que estava na cobertura ouviu essas palavras e veio a se converter

15 FERREIRA Franklin ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo In Gigantes de feacute espiritualidade e teologia na igreja cristatilde Satildeo Paulo Vida 2006 p 278

16 KRUPPA ldquoThe life and times of Charles H Spurgeonrdquo p 1117 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo18 DRUMMOND Lewis A ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo Christian History Issue 29

(Vol X No 1) 1991 p 16

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

18

Seu estilo era direto e desafiador Em 5 de dezembro de 1858 ele pregou no Surrey Gardens Music Hall sobre Lucas 1423 ldquoSai pelos caminhos e ata-lhos e obriga a todos a entrar para que fique cheia a minha casardquo (A Paraacutebola da Grande Ceia) Spurgeon disse a certa altura

E agora ao trabalho ndash diretamente ao trabalho Homens e mulheres natildeo con-vertidos natildeo reconciliados natildeo regenerados eu devo forccedilaacute-los a entrar Per-mitam-me antes de tudo abordaacute-los nos caminhos do pecado e dizer-lhes mais uma vez a minha tarefa O Rei dos ceacuteus nesta manhatilde lhes envia um gracioso convite Ele diz ldquoTatildeo certo como eu vivo diz o Senhor Deus natildeo tenho prazer na morte do perverso mas em que ele se converta do seu caminho e vivardquo [Ez 3311] ldquoVinde pois e arrazoemos diz o Senhor ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata eles se tornaratildeo brancos como a neve ainda que sejam vermelhos como o carmesim se tornaratildeo como a latilderdquo [Is 118] Permitam-me dizer-lhes o que o Rei fez por vocecircs Ele conheceu a sua culpa ele previu que vocecircs iriam se arruinar Ele sabia que a sua justiccedila exigiria o sangue de vocecircs e a fim de que essa dificuldade pudesse ser contornada sua justiccedila pudesse ser plenamente satisfeita e vocecircs ainda pudessem ser salvos Jesus Cristo morreu Ora Jesus Cristo de Nazareacute fez tudo isto a fim de que Deus pudesse perdoar o pecado de modo consistente com a sua justiccedila e a men-sagem a vocecircs nesta manhatilde eacute esta ldquoCrecirc no Senhor Jesus Cristo e seraacutes salvordquo [At 1631] Isto eacute confiem nele renunciem a suas obras e a seus caminhos e coloquem o coraccedilatildeo somente nesse homem que se entregou por pecadores Considerem a mensagem do meu Senhor que ele me ordena agora que en-tregue a vocecircs Mas vocecirc a despreza Vocecirc ainda a recusa Entatildeo eu preciso mudar de tom por um minuto Pecador em nome de Deus eu lhe ordeno que se arrependa e creia Vocecirc me pergunta de onde vem minha autoridade Eu sou um embaixador do ceacuteu Minhas credenciais algumas delas secretas e no meu proacuteprio coraccedilatildeo e outras delas abertas diante de vocecircs neste dia nos selos do meu ministeacuterio sentados e em peacute neste auditoacuterio onde Deus me tem dado muitas almas como pagamento Assim como o eterno Deus me tem dado o encargo de pregar o seu evangelho eu lhes ordeno que creiam no Senhor Jesus Cristo natildeo por minha proacutepria autoridade mas na autoridade daquele que disse ldquoIde por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criaturardquo e entatildeo anexou essa solene sanccedilatildeo ldquoQuem crer e for batizado seraacute salvo quem poreacutem natildeo crer seraacute condenadordquo [Mc 1615s]19

A pregaccedilatildeo de Spurgeon era nutrida por suas extensas leituras e profundo estudo da Biacuteblia Ele era um leitor voraz talvez fosse o indiviacuteduo mais lido de seu paiacutes Normalmente lia seis livros por semana e conseguia se lembrar do que havia lido ndash e onde estava ndash mesmo anos depois Colecionou ediccedilotildees das obras dos puritanos e sua biblioteca pessoal chegou a ter 12000 volumes entre os

19 SPURGEON Charles H ldquoCompel them to come inrdquo Christian History Issue 29 (Vol X No 1) 1991 p 19

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

19

quais mil obras publicadas antes de 1700 Mais tarde em 1906 o que restou da biblioteca (5103 volumes) foi adquirido pelo William Jewell College de Liberty Missouri por 2500 doacutelares Exatamente um seacuteculo depois em 2006 o Midwestern Baptist Seminary em Kansas City no mesmo estado a adquiriu por 400 mil doacutelares20

Ele tem a singularidade de ser o autor com maior volume de obras pu-blicadas na histoacuteria do cristianismo O conhecido teoacutelogo e pastor alematildeo Helmut Thielicke declarou ldquoVenda todos [os livros] que vocecirc tem e compre Spurgeonrdquo21 Sua principal obra eacute O Puacutelpito de New Park Street e O Puacutelpito do Tabernaacuteculo Metropolitano (1855-1917) constituiacuteda de 63 volumes de sermotildees Durante sua vida foram publicados 2500 sermotildees e posteriormente esse total chegou a 3800 Um taquiacutegrafo registrava os sermotildees no domingo ele os lia na segunda-feira e apoacutes uma revisatildeo eram publicados circulando agraves quintas-feiras

Outras obras significativas do grande pregador satildeo O Tesouro de Davi ndash comentaacuterio dos Salmos em 7 volumes considerado sua obra escrita mais im-portante A Espada e a Colher de Pedreiro (The Sword and the Trowel) ndash revista mensal publicada de 1865 a 1892 contendo escritos diversos sermotildees edito-riais resenhas e cartas Preleccedilotildees aos Meus Alunos ndash 4 volumes de preleccedilotildees aos alunos do Coleacutegio de Pastores Tudo pela Graccedila ndash livro mais famoso de Spurgeon tratando sobre a salvaccedilatildeo que veio a ser o primeiro livro publicado pela Editora Moody (Associaccedilatildeo de Colportagem do Instituto Biacuteblico Moody)

Tambeacutem se destacam as seguintes publicaccedilotildees Manhatilde apoacutes Manhatilde Noite apoacutes Noite e Talatildeo de Cheques do Banco da Feacute ndash leituras devocionais diaacuterias Oraccedilotildees de C H Spurgeon ndash coleccedilatildeo de oraccedilotildees dos cultos do Tabernaacuteculo Metropolitano publicada postumamente Conversas de Joatildeo Arador e Figuras de Joatildeo Arador (no original ldquoJohn Ploughmanrdquo isto eacute um sertanejo) ndash sabe-doria domeacutestica de um fazendeiro imaginaacuterio A Maior Luta do Mundo ndash ma-nifesto final de Spurgeon apresentado em sua uacuteltima conferecircncia de pastores em 1891 Seu uacuteltimo livro O Evangelho do Reino um comentaacuterio de Mateus ficou inacabado A volumosa Autobiografia de C H Spurgeon compilada de seu diaacuterio cartas e registros por sua esposa e seu secretaacuterio particular foi publicada nos uacuteltimos anos do seacuteculo 19 (1897-1900)

3 EcircNFASES ESPECIAISSpurgeon foi um pregador evangelista e pastor ndash natildeo um teoacutelogo no

sentido teacutecnico do termo Todavia valorizava imensamente a teologia Ele disse aos seus alunos ldquoPara serem pregadores eficientes vocecircs precisam ser

20 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo21 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 14

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

20

teoacutelogos soacutelidosrdquo Noutra ocasiatildeo afirmou ldquoAqueles que desprezam a doutrina cristatilde satildeo os piores inimigos da vida cristatilde [porque] os carvotildees da ortodoxia satildeo necessaacuterios para o fogo da piedaderdquo22 Sua teologia pode ser descrita como biacuteblica e espiritual e natildeo sistemaacutetica especulativa ou filosoacutefica

Tem sido minha firme determinaccedilatildeo desde que comecei a pregar a Palavra nunca evitar uma uacutenica doutrina que eu creia ser ensinada por Deus Se ela estiver na Palavra agradaacutevel ou desagradaacutevel sistemaacutetica ou desordenada eu creio nela23

Certa vez ao ser indagado sobre como podia conciliar a liberdade de Deus com a liberdade humana ele disse que nunca reconciliava amigos

Quanto ao conteuacutedo da sua teologia Spurgeon era um calvinista convicto como os seus estimados puritanos Em 1861 ao ser inaugurado o Tabernaacuteculo Metropolitano foi pregada uma seacuterie de sermotildees sobre os ldquocinco pontos do calvinismordquo O seu calvinismo natildeo foi herdado e sim adotado alguns meses apoacutes sua conversatildeo

Nascido como todos noacutes o somos por natureza um arminiano eu ainda cria nas velhas coisas que tinha ouvido continuamente do puacutelpito e natildeo via a graccedila de Deus Um dia sentado na casa de Deus e ouvindo um sermatildeo um pensa-mento atingiu minha mente ndash Como foi que me converti Eu orei pensei eu Entatildeo considerei Como cheguei a orar Fui induzido a orar ao ler as Escrituras Como vim a ler as Escrituras Ora ndash eu as li e o que me levou a isso E entatildeo num momento vi que Deus estava na base de tudo e que ele era o autor da feacute E entatildeo se abriu para mim toda a doutrina da qual natildeo tenho me afastado24

Na sua adolescecircncia Spurgeon leu extensamente os puritanos Mark Hopkins observa que ele encontrou nesses escritos trecircs coisas que estavam quase ausentes do evangelicalismo da eacutepoca uma teologia rigorosa uma espiritualidade calorosa e aplicabilidade Nesse uacuteltimo aspecto (relevacircncia praacutetica) duas doutrinas foram especialmente caras a ele as Escrituras e a expiaccedilatildeo substitutiva Hopkins afirma ldquoNutrido por sua profunda submissatildeo agrave Escritura Spurgeon valorizou profundamente a santidade transcendente de Deus o vasto abismo que a separava da pecaminosidade humana e a expiaccedilatildeo que transpocircs esse abismordquo25

Falando sobre sua posiccedilatildeo teoloacutegica Spurgeon ponderou

Para mim o calvinismo significa colocar o Deus eterno na base de todas as coisas Eu olho para todas as coisas a partir de sua relaccedilatildeo com a gloacuteria de Deus

22 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo23 HOPKINS ldquoWhat did Spurgeon believerdquo p 2824 Ibid p 2925 Ibid p 30

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

21

Eu vejo Deus primeiro e o homem laacute embaixo na lista Irmatildeos se vivermos em simpatia com Deus noacutes nos deleitamos em ouvi-lo dizer ldquoEu sou Deus e natildeo haacute outrordquo26

Para ele como pontua John Piper o calvinismo era simplesmente um termo limitado para o evangelho biacuteblico ldquoPuritanismo protestantismo cal-vinismo [satildeo apenas] nomes pobres que o mundo tem dado a nossa grande e gloriosa feacute ndash a doutrina de Paulo apoacutestolo o evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo27

Em outro lugar Spurgeon argumentou

A doutrina que chamamos de ldquocalvinismordquo natildeo se originou em Calvino cremos que ela fluiu do grande fundador de toda a verdade Talvez o proacuteprio Calvino a tenha derivado principalmente dos escritos de Agostinho E Agostinho obteve seus pontos de vista sem duacutevida guiado pelo Espiacuterito Santo de Deus enquanto estudava diligentemente os escritos do apoacutestolo Paulo e Paulo os recebeu do Espiacuterito e de Jesus Cristo o grande fundador da igreja cristatilde As antigas ver-dades que Calvino pregou e que Agostinho pregou satildeo as mesmas verdades que eu prego hoje em dia O evangelho de John Knox eacute o meu evangelho E esse evangelho que trovejou por toda a Escoacutecia deve trovejar tambeacutem em toda a Inglaterra28

Uma abordagem instrutiva do pensamento e accedilatildeo de Spurgeon eacute consi-deraacute-los agrave luz da grande ecircnfase dada por ele agrave ldquoPalavrardquo em trecircs dimensotildees essenciais

31 A Palavra escritaEm primeiro lugar Spurgeon atribuiacutea enorme importacircncia agrave palavra

escrita a revelaccedilatildeo verbal de Deus consubstanciada na Escritura Ele foi du-rante toda a sua vida um indiviacuteduo plenamente comprometido com o estudo apaixonado e inteligente da Escritura para si mesmo e para os outros Como os puritanos a quem admirava a Biacuteblia era um dos referenciais mais influentes de sua vida pensamento e trabalho pastoral Franklin Ferreira observa que os seus sermotildees eram biacuteblicos e os textos eram tratados dentro dos seus contextos Ele se preocupava em expor as grandes verdades da Escritura como a corrup-ccedilatildeo do ser humano a livre graccedila de Deus na eleiccedilatildeo de pecadores a expiaccedilatildeo realizada por Cristo a suficiecircncia das Escrituras e a perseveranccedila dos santos29

26 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo27 Ibid28 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 27529 Ibid p 274

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

22

Indo aleacutem John Piper pondera que Spurgeon era natildeo somente um pregador alicerccedilado na Biacuteblia mas saturado da Biacuteblia Spurgeon argumenta sobre isso numa declaraccedilatildeo muito conhecida

Oh que vocecirc e eu pudeacutessemos chegar ao proacuteprio coraccedilatildeo da Palavra de Deus e receber essa Palavra em noacutes mesmos Como eu vejo o bicho-da-seda comer a folha e consumi-la assim tambeacutem deveriacuteamos fazer com a Palavra do Senhor Natildeo rastejar sobre a sua superfiacutecie mas devoraacute-la ateacute que a tenhamos recebido em nossas partes interiores Eacute ocioso simplesmente deixar que os olhos passem de relance sobre a palavra mas eacute uma becircnccedilatildeo absorver a proacutepria alma da Biacuteblia ateacute que por fim se chegue a falar em uma linguagem biacuteblica e o seu proacuteprio estilo seja plasmado em modelos biacuteblicos e o que eacute ainda melhor o seu espiacuterito seja sazonado com as palavras do SenhorEu gostaria de mencionar John Bunyan como exemplo do que quero dizer Leia qualquer coisa dele e vocecirc veraacute que eacute quase como ler a proacutepria Biacuteblia Ele tinha estudado nossa Versatildeo Autorizada ateacute que seu ser inteiro ficou sa-turado com a Escritura e embora seus escritos sejam graciosamente repletos de poesia no entanto ele natildeo pode nos dar seu Progresso do Peregrino ndash o mais doce de todos os poemas em prosa ndash sem continuamente fazer-nos sentir e dizer ldquoQue coisa esse homem eacute uma Biacuteblia vivardquo Perfure-o em qualquer lugar e vocecirc descobriraacute que seu sangue eacute biblino [sic] a proacutepria essecircncia da Biacuteblia flui dele30

32 A Palavra encarnadaNuma dimensatildeo ainda mais fundamental a feacute e a pregaccedilatildeo de Spurgeon

eram intensamente cristocecircntricas Em seu primeiro domingo no Tabernaacuteculo Metropolitano ele argumentou

Eu gostaria de propor que o tema do ministeacuterio desta casa enquanto esta plata-forma permanecer e enquanto esta casa for frequentada por adoradores seraacute a pessoa de Jesus Cristo Eu nunca me envergonho de me declarar um calvinista eu natildeo hesito em assumir o nome de batista mas se me perguntarem qual eacute o meu credo eu respondo ldquoEacute Jesus Cristordquo31

Em outra ocasiatildeo ele afirmou

De tudo que eu gostaria de lhes dizer o resumo eacute este meus irmatildeos preguem a Cristo sempre e mais e mais Ele eacute todo o evangelho Sua pessoa seus ofiacute-cios e sua obra devem constituir o nosso grande e abrangente tema O mundo continua precisando ouvir falar de seu Salvador e do caminho para chegar a ele A justificaccedilatildeo pela feacute deve ser muito mais do que eacute o testemunho diaacuterio dos puacutelpitos protestantes E se com essa verdade mestra forem mais geralmente

30 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo31 Ibid

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

23

associadas as outras grandes doutrinas da graccedila seraacute melhor para a nossa igreja e o nosso tempo Natildeo somos chamados para proclamar filosofia e metafiacutesica mas o simples evangelho A queda do homem sua necessidade de um novo nascimento o perdatildeo por meio da expiaccedilatildeo e a salvaccedilatildeo como resultado da feacute satildeo esses os nossos machados de combate e as nossas armas de guerra32

Referindo-se agrave feacute ele declarou ldquoA feacute salvadora eacute um relacionamento imediato com Cristo aceitando recebendo repousando sobre ele somente para justificaccedilatildeo santificaccedilatildeo e vida eterna em virtude do pacto da graccedilardquo33

Um de seus livros mais belos sobre esse tema eacute O Santo e Seu Salvador no qual se deteacutem sobre o relacionamento pessoal com Cristo como o centro e principal motivador da vida cristatilde

33 A Palavra proclamadaComo consequecircncia de seu amor pela palavra escrita (a Biacuteblia) e pela pa-

lavra encarnada (Jesus Cristo) Spurgeon soacute poderia ter um enorme entusiasmo pela palavra proclamada ndash a pregaccedilatildeo ndash agrave qual se dedicou com todas as forccedilas da sua alma Escrevendo sobre a heranccedila de Spurgeon Jorge Noda destacou diversos elementos comeccedilando com este a centralidade da pregaccedilatildeo biacuteblica a importacircncia da preparaccedilatildeo no exerciacutecio do ministeacuterio (estudo e oraccedilatildeo) a seriedade no treinamento dos liacutederes o incentivo da boa leitura a espiritua-lidade aliada agrave accedilatildeo social e a importacircncia dos puritanos Esse autor tambeacutem destaca como o grande pregador foi influenciado pelos puritanos nessa aacuterea essencial do seu ministeacuterio ldquoDa mesma maneira como George Whitefield J C Ryle Martyn Lloyd-Jones e James Packer Spurgeon encontrou nos puritanos municcedilatildeo poderosa para guerrear as guerras do Senhorrdquo34

Falando em uma conferecircncia no Reformed Theological Seminary em Orlando John Piper destacou duas qualidades de Spurgeon que o tem inspirado no ministeacuterio ao longo dos anos (1) ele amava a verdade centrada em Deus exaltadora de Cristo e saturada da Escritura regozijando-se nela no puacutelpito (2) ele amou as pessoas e se esforccedilou para ganhaacute-las e edificaacute-las35 Sua procla-maccedilatildeo reunia esses grandes elementos feacute pessoal amor pela verdade regozijo na revelaccedilatildeo biacuteblica exaltaccedilatildeo do Deus trino senso de responsabilidade pelos ouvintes A gloacuteria de Deus e a salvaccedilatildeo dos homens o consumiam

32 MCCASKELL Stephen ldquoThrough the Eyes of Spurgeonrdquo Ver tambeacutem FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 274

33 DRUMMOND ldquoThe secrets of Spurgeonrsquos preachingrdquo p 1534 FERREIRA ldquoPela graccedila de Deus sou o que sourdquo p 277s35 PIPER ldquoThe life and ministry of Charles Spurgeonrdquo

AL DERI SOU Z A DE MATOS TESOU RO EM VASO DE B ARRO C H ARL ES SP U RG EON E A P AL AVRA

24

CONCLUSAtildeOEssas consideraccedilotildees nos levam de volta ao tiacutetulo deste artigo ldquoTesouro

em vaso de barrordquo Esse notaacutevel homem de Deus e grande pregador era um vaso de barro principalmente nas grandes provaccedilotildees que suportou nas con-troveacutersias em que se envolveu e nas lutas anguacutestias e dores fiacutesicas produzidas pela enfermidade Referindo-se aos males de que padecia ele disse num artigo em 1871

Eacute uma grande misericoacuterdia poder mudar de lado quando deitado numa cama Eacute uma grande misericoacuterdia ter uma hora de sono agrave noite Que misericoacuterdia eu senti em ter soacute um joelho torturado ao mesmo tempo Que becircnccedilatildeo poder colocar o peacute no chatildeo novamente ao menos por um minuto36

Poreacutem Spurgeon sempre encarava suas lutas da perspectiva do amor soberano de Deus Em seu uacuteltimo sermatildeo (07061891) proferido numa eacutepoca em que sentia fortes dores ele concluiu com as seguintes palavras referindo--se a Cristo

Ele eacute o mais magnacircnimo dos capitatildees Quando o vento sopra frio ele sempre ocupa o lado mais exposto da colina A extremidade mais pesada da cruz sempre repousa sobre os seus ombros Se ele nos manda carregar um fardo ele o carrega tambeacutem Se existe qualquer coisa graciosa generosa gentil e terna sim plena e superabundante de amor vocecircs sempre a encontram nele Nestes quarenta anos eu o tenho servido bendito seja o seu nome e natildeo tenho tido nada senatildeo amor da parte dele Eu teria prazer em continuar por outros quarenta anos no mesmo caro serviccedilo aqui embaixo se isso lhe aprouvesse Seu serviccedilo eacute vida paz alegria Oh que vocecircs entrassem nele de uma vez Deus os ajude a se alistar sob o estandarte de Jesus ainda hoje Ameacutem37

Ao mesmo tempo foi inquebrantaacutevel o seu triacuteplice compromisso com a Palavra a Palavra encarnada do Verbo de Deus objeto de sua profunda admiraccedilatildeo lealdade e amor a Palavra escrita da revelaccedilatildeo biacuteblica que ele lia estudava e entesourava no coraccedilatildeo e a Palavra proclamada do puacutelpito agrave qual se dedicou com eficiecircncia e poder por 40 anos Satildeo esses os seus grandes legados para a presente geraccedilatildeo

ABSTRACTThe nineteenth-century British Baptist minister Charles Haddon Spur-

geon is considered the ldquoprince of preachersrdquo While still a teenager he started to preach in an outstanding way and throughout forty years of ministry he

36 AMUNDSEN Darrel W ldquoThe anguish and agonies of Charles Spurgeonrdquo p 2437 Ibid p 25

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 9-25

25

proclaimed the gospel to millions of hearers Thanks to the publication of his vast number of sermons he is considered the individual with the largest volume of published works in the history of Christianity Besides preaching vastly he pastored a church of thousands of members founded scores of organizations and kept a voluminous correspondence A striking trait of his career consisted in the fact that he was an ardent Calvinist mainly due to the influence of the Puritans whose writings he read since his childhood This article starts with the main aspects of Spurgeonrsquos biography then it stresses the characteristics of his preaching and literary output and finally it summarizes his thought around three topics the Bible (the written word) Jesus Christ (the incarnated word) and preaching (the proclaimed word)

KEYWORDSCharles Spurgeon English Protestantism Congregacionalism Baptist

church Calvinism Puritanism Preaching Bible Jesus Christ

27

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 27 -4 3

JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO UMA DISCUSSAtildeO SOBRE AS FONTES TEXTUAIS DOS

SALMOS USADOS EM HEBREUS E UMA BREVE ANAacuteLISE

DA CITACcedilAtildeO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212Robeacuterio Odair Basiacutelio de Azevedo

RESUMOEste artigo tem como objetivo discutir as fontes textuais usadas pelo

autor da Epiacutestola aos Hebreus para citar os Salmos apontando as principais discussotildees acadecircmicas sobre o assunto bem como os consensos duacutevidas e tendecircncias atuais Aleacutem disso analisa um Salmo especiacutefico usado pelo autor o Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos as fontes salmoacutedicas usadas pelo autor foram ajustadas de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa

PALAVRAS-CHAVE Salmos Epiacutestola aos Hebreus Salmos em Hebreus Fontes textuais

INTRODUCcedilAtildeOA discussatildeo sobre as possiacuteveis fontes textuais usadas pelo autor da carta

aos Hebreus para citar e aludir aos livros do Antigo Testamento (AT) incluin-do os Salmos tem sido uma aacuterea de contiacutenuo debate entre eruditos biacuteblicos antigos e recentes embora a grande maioria afirme hoje que o autor fez uso de uma versatildeo grega das Escrituras do AT a Septuaginta (LXX)1 No entanto

Ministro da Igreja Presbiteriana do Brasil e pastor da Igreja Presbiteriana Betel em Feira de Santana (BA) Estaacute concluindo seu PhD em Novo Testamento pela North West University na Aacutefrica do Sul

1 Para os estudos antigos e atuais mais influentes sobre as fontes textuais em Hebreus ver DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews A Case Study in Early Jewish Bible

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

28

haacute um consenso emergente sobre a necessidade de definir melhor o termo ldquoSeptuagintardquo2 bem como um reconhecimento da natureza pluriforme das for-mas textuais da Biacuteblia Grega antiga que circularam no primeiro seacuteculo3 Aleacutem disso os estudiosos demonstram que natildeo eacute mais possiacutevel estabelecer as fontes textuais dos Salmos do Novo Testamento (NT) inclusive em Hebreus a partir do texto criacutetico grego dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen4

considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas encontradas nos estudos septuagintais e qumracircnicos Portanto haacute uma necessidade urgente de reediccedilatildeo e atualizaccedilatildeo desse texto5

Apesar da complexidade do assunto vaacuterios estudos edoacuteticos ao longo da histoacuteria tecircm buscado estabelecer as possiacuteveis fontes manuscritoloacutegicas (Vorlage ou Vorlagen)6 ou mesmo lituacutergicas e orais empregadas pelo autor aos Hebreus para usar os Salmos bem como as possiacuteveis modificaccedilotildees inten-cionais que fez nelas

O propoacutesito deste artigo eacute esboccedilar um resumo das principais discussotildees eruditas apontando as distintas abordagens sobretudo as mais recentes nas quais vaacuterios fatores satildeo levados em consideraccedilatildeo na anaacutelise das citaccedilotildees Dessa forma os seguintes passos seratildeo dados primeiro seraacute apresentado um panorama das diferentes opiniotildees acadecircmicas ao longo da histoacuteria depois um

Interpretation Tuumlbingen Mohr Siebeck 2009 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews An Investigation of its Influence with Special Consideration to the Use of Hab 23-4 in Heb 1037-38 Tuumlbingen Mohr Siebeck 2003 GUTHRIE G H ldquoHebreusrdquo In BEALE G K e CARSON D A (Ed) Comentaacuterio do Uso do Antigo Testamento no Novo Testamento Satildeo Paulo Vida Nova 2014 p 1131-1222 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo In KRAUS W e WOODEN R G (Ed) Septuagint Research Issues and Challenges in the Study of the Greek Jewish Scriptures Atlanta SBL 2006 p335-353 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament Eine Textgeschitliche Untersuchung Neukirchen-Vluyn Neukirchener 2004 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger Regensburg Verlage Friedrich Pustet Regens-burg 1968 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 2011

2 O termo ldquoSeptuagintardquo eacute usado aqui para se referir agrave versatildeo ou versotildees gregas das Escrituras Hebraicas como um todo e natildeo apenas agrave versatildeo grega mais antiga do Pentateuco O termo ldquoGrega Antigardquo (GA) agraves vezes eacute usado para distinguir as formas gregas textuais mais antigas das tradiccedilotildees tex-tuais e revisotildees subsequentes Ver GREENSPOON L J ldquoThe Use and Abuse of the Term lsquoLXXrsquo and Related Terminology in Recent Scholarshiprdquo Bulletin of the International Organization for Septuagint and Cognate Studies 20 (1987) 21-29

3 Sobre a pluriformidade textual da LXX no primeiro seacuteculo ver TOV E The Text-Critical Use of the Septuagint in Biblical Research Winona Lake In Eisenbrauns 2015 p 10-15

4 RAHLFS A Psalmi Cum Odis Goumlttingen Vandenhoeck amp Ruprecht 19795 Cf PIETERSMA A ldquoThe Present State of the Critical Text of the Greek Psalterrdquo In AEJME-

LAEUS A QUAST U (Eds) Der Septuaginta-Psalter und Seine Tochteruumlbersetzungen Goumlttingen Vandenhoeek amp Ruprecht 2000 p 12-32 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 122-131

6 As palavras alematildes ldquoVorlagerdquo e ldquoVorlagenrdquo significam ldquoprotoacutetipo(s)modelo(s)rdquo

29

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

resumo apontando as principais tendecircncias atuais por fim uma breve anaacutelise do uso do Salmo 2222 em Hebreus 212 demonstrando que em alguns casos o autor pode ter ajustado suas fontes textuais de acordo com a sua estrateacutegia argumentativa ao inveacutes de estar seguindo a sua fonte textual

1 AS FONTES TEXTUAIS DOS SALMOS EM HEBREUS BREVE RESUMO DAS DISCUSSOtildeES ACADEcircMICAS

11 Abordagens comparativas lituacutergicas e baseadas em um Livro de Testemunhos

No primeiro momento a investigaccedilatildeo criacutetica mais antiga tentou deter-minar as fontes textuais usadas pelo autor aos Hebreus comparando as suas citaccedilotildees do AT com os principais coacutedices gregos especialmente os coacutedices Alexandrino (A) e Vaticano (B) uma vez que a LXX estaacute presente em ambos7

Bleek (1828) um dos pioneiros no estudo das citaccedilotildees do AT em Hebreus defendia que o autor usou uma recensatildeo intimamente relacionada ao Coacutedice A mas sua teoria foi rejeitada pela maioria dos estudiosos8

Por outro lado Padva sustentou que o autor utilizou princiacutepios hetero-gecircneos em seu uso das Escrituras do AT como (1) corrigir a LXX seguindo o Texto Massoreacutetico (TM) (2) rejeitar o TM seguindo a LXX (3) abandonar ambas as versotildees por razotildees retoacutericas e de estilo ou (4) seguir uma leitura de um dos manuscritos da LXX menos conhecidos9

No caso dos Salmos Padva defendia que o autor dependeu inteiramente da LXX pois ldquonatildeo se ocupa com o texto hebraico nunca traduz uma passagem do texto hebraico e geralmente natildeo corrige a Septuaginta de acordo com esse textordquo10 Aleacutem disso considera tambeacutem a possibilidade de o autor ter utilizado fontes lituacutergicas como base para suas citaccedilotildees dos Salmos jaacute que das vinte e nove citaccedilotildees diferentes utilizadas pelo autor vinte e trecircs foram retiradas dos Salmos e do Pentateuco que eram os livros mais usados nas sinagogas11

Depois desse periacuteodo inicial outras propostas surgiram Singe por exem-plo defendia que o autor natildeo usou fontes proacuteprias para as suas citaccedilotildees mas tinha diante de si ldquouma catena de passagens um Livro de Testemunho que podia ser usado para persuadir os judeus de que as suas Escrituras falavam de

7 Ver GUTHRIE G ldquoHebrewsrsquo Use of the Old Testament Recent Trends in Researchrdquo Currents in Biblical Research 12 (2003) 271-294 p 275

8 Cf THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo New Testament Studies 114 (1965)303-325 p 303

9 PADVA P Les Citations de lrsquoAncien Testament dans lrsquoeacutepicirctre aux Heacutebreux Paris NL Danzig 1904 p 99

10 Ibid 99 11 Ibid 100

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

30

Jesus Cristordquo12 Recentemente Albl e Karrer retomaram parcialmente essa posiccedilatildeo e sustentaram que o autor pode ter feito uso em alguns casos de uma coleccedilatildeo de testemunhos de textos do AT como por exemplo na catena em Hebreus 15-1413

Kistemaker por outro lado argumentou que o autor retirou suas citaccedilotildees de uma versatildeo grega das Escrituras do AT na qual algumas leituras concordam com o TM em contraste com a LXX como a conhecemos hoje bem como de fontes lituacutergicas embora adaptando-as agraves suas necessidades literaacuterias14

Segundo ele algumas citaccedilotildees dos Salmos utilizadas em Hebreus eram usa-das no culto cristatildeo (Sl 27 1044 2223 (22) 957-11 406-8 1186) assim o autor as utilizou porque eram familiares aos ouvidos dos leitores cristatildeos do primeiro seacuteculo Logo a forma de alguma citaccedilatildeo pode ter recebido uma influecircncia lituacutergica

Ainda seguindo o meacutetodo comparativo Thomas defendia que o autor aos Hebreus natildeo seguiu nem o Coacutedice A nem o B completamente Em sua opiniatildeo ldquoas evidecircncias indicam que o autor usou um uacutenico texto um texto que natildeo corresponde agrave LXXa nem agrave LXXb em suas formas atuaisrdquo15 Seu ar-gumento central eacute que as citaccedilotildees em Hebreus combinam elementos de ambos os textos e onde o texto difere daquele do Coacutedice A ou B as mudanccedilas foram intencionais interpretativas ou baseadas em uma forma anterior do texto grego

Em relaccedilatildeo aos Salmos em Hebreus Thomas sustentou que em trecircs casos as citaccedilotildees estatildeo em concordacircncia literal com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a Sl 1091 LXX (1101 TM) em Hb 113 e Sl 1094 LXX (1104 TM) em Hb 56 Em outros sete casos as diferenccedilas satildeo devido a variaccedilotildees intencionais ou ainda devido a uma forma anterior do texto grego como o Sl 1034 LXX (1044 TM) em Hb 17 Sl 447-8 LXX (456-7 TM) em Hb 18-9 Sl 85-7 em Hb 26-8 Sl 947-11 LXX (957-11 TM) em Hb 37-11 Sl 397-9 LXX (406-8 ou 7-9 MT) em Hb 105-7 Aleacutem disso segundo ele a variaccedilatildeo do Sl 1176 LXX (1186 TM) em Hb 136 pode indicar uma versatildeo grega antiga mais proacutexima da versatildeo hebraica Da mesma forma as variaccedilotildees do Sl 10126-28 LXX (102 26-28 TM) em Hb 110-12 e Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 podem ter sido originadas durante a transmissatildeo da LXX para melhorar a interpretaccedilatildeo e o estilo16

12 SYNGE F C Hebrews and the Scriptures Londres SPCK 1959 p 5413 Ver ALBL M C And Scripture Cannot Be Broken The Form and Function of the Early

Christian Testimonia Collections Leiden Brill 1999 p 201-207 KARRER M ldquoThe Epistle to the Hebrews and the Septuagintrdquo p 344

14 KISTEMAKER S The Psalm Citations in the Epistle to the Hebrews Amsterdan Wed G van Soest 1961 p 57-59

15 THOMAS K J ldquoOld Testament Citations in Hebrewsrdquo p 32516 Ibid 324-325

31

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Uma voz dissonante nesse periacuteodo foi a de Howard Segundo ele embora haja uma influecircncia de leituras septuagintais em Hebreus ldquoo texto usado pelo autor de Hebreus eacute por vezes mais proacuteximo de uma recensatildeo hebraica mais antiga que o Texto Massoreacuteticordquo17 Assim para ele ldquoeacute incorreto caracterizar as citaccedilotildees em Hebreus como sempre septuagintaisrdquo18

Em sua anaacutelise das quatorze citaccedilotildees dos Salmos Howard aponta que trecircs concordam com o texto hebraico contra a LXX (Sl 222 em Hb 212 Sl 977 em Hb 16 Sl 1104b em Hb 56)19 quatro concordam com ambos (Sl 27 em Hb 15a Sl 1101 em Hb 113 Sl 1104a em Hb 721 Sl 13515 em Hb 1030b) cinco discordam de ambos embora tenham uma influecircncia septuagintal (Sl 406-8 em Hb 105b-7 Sl 457-8 em Hb 18-10 Sl 957-11 em Hb 37b-11 Sl 10226-28 em Hb 110-12 Sl 1044 em Hb 17) e um concorda com a LXX contra o texto hebraico (Sl 85-7 em Hb 26-8)

Durante esse periacuteodo Schroumlger escreveu um volumoso trabalho sobre o uso do AT em Hebreus Para ele a LXX foi a Escritura do AT na diaacutespora heleniacutestica e seu status canocircnico entre os judeus criou as condiccedilotildees necessaacuterias para os autores do NT espalharem sua mensagem usando uma versatildeo grega em um mundo no qual a liacutengua grega era dominante20 No entanto em sua opiniatildeo a pesquisa sobre a formaccedilatildeo da LXX e sua relaccedilatildeo com Hebreus ainda estava em seu estaacutegio inicial embora insistisse que ldquoas citaccedilotildees na carta aos Hebreus podem sem duacutevida dar uma boa contribuiccedilatildeo para a soluccedilatildeo desse problemardquo21

Em relaccedilatildeo aos Salmos Schroumlger afirma que trecircs citaccedilotildees dos Salmos concordam com os Coacutedices A e B a saber Sl 27 em Hb 15a e 55 Sl 110 (109 LXX) em Hb 113 e Sl 1186 (117 LXX) em Hb 136 Em sete casos as citaccedilotildees dos Salmos concordam com o Coacutedice A contra B a saber Sl 456 [447 LXX]7 em Hb 18 Sl 102 [101 LXX]26 em Hb 110 Sl 95 [94 LXX]8 10 em Hb 38 e 310 Sl 110 [109 LXX]4 em Hb 56 e 721 e Sl 406 [39 7 LXX] em Hb 106 Em trecircs casos as citaccedilotildees associam-se ao Coacutedice B contra A a saber Sl 10225 [10126 LXX] em Hb 110 Sl 45 [44 LXX]7 em Hb 19 e Sl 84 em Hb 26 Em outros trecircs casos as citaccedilotildees dos Salmos tecircm um paralelo com manuscritos menos importantes da LXX contra A e B a saber Sl 104 [103 LXX]4 em Hb 17 Sl 406 7 [397 8 LXX] em Hb 106 e 107 Finalmente ele sustenta que em cinco casos as citaccedilotildees dos Salmos diferem de todos os manuscritos conhecidos da LXX e essas leituras provavelmente

17 HOWARD G E ldquoHebrews and the Old Testament Quotationsrdquo Novum Testamentum 102-3 (1968) 208-216 p 208

18 Ibid 21519 Howard afirma que na citaccedilatildeo do Sl 2222 o autor pode ter usado uma Vorlage hebraica com

outro verbo diferente do que temos hoje no TM 20 SCHROumlGER F Der Verfasser des Hebraumlerbriefes als Schriftausleger p 24721 Ibid 250

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

32

foram baseadas em alteraccedilotildees feitas pelo autor a saber Sl 10225 26 [10126 27 LXX] em Hb 110 e 112 Sl 2222 [2123 LXX] em Hb 212 Sl 95 [94 LXX]9 10 em Hb 39 e 31022

12 Abordagens baseadas em tipos textuais e assimilativas com ecircnfase na criacutetica literaacuteria e textual

Apoacutes esse periacuteodo de natureza mais comparativa estudiosos como Ahlborn e McCullough comeccedilaram a criticar essa tentativa de encontrar nos Coacutedices A e B a resposta para o problema das fontes textuais nas citaccedilotildees de Hebreus23 De acordo com McCullough ldquonatildeo se pode mais pensar em termos de grandes manuscritos A ou B como sendo a LXX e portanto natildeo eacute mais relevante tentar assimilar o texto por traacutes das citaccedilotildees em Hebreus com elesrdquo24

Ao inveacutes disso era necessaacuterio estudar as variaccedilotildees possiacuteveis livro a livro ao inveacutes de dedicar atenccedilatildeo a textos especiacuteficos e recensotildees do texto grego antigo

McCullough argumenta que essas abordagens ldquofalharam em levar em consideraccedilatildeo a multiplicidade de manuscritos da Septuaginta na eacutepoca da redaccedilatildeo da Epiacutestola aos Hebreusrdquo25 Assim a tarefa do exegeta eacute pesquisar os tipos de textos aos quais essas citaccedilotildees pertencem para avaliar se as diferenccedilas nas citaccedilotildees satildeo resultantes da atividade recensional da LXX ou da influecircncia do autor Segundo ele muitas leituras variantes natildeo presentes na maioria dos manuscritos da LXX supostamente introduzidas pelo autor satildeo na verdade o resultado de uma Vorlage diferente usada por ele26

No caso dos Salmos McCullough afirma que o autor usou ldquoum texto que eacute quase idecircntico ao texto original da Septuaginta mas que tem suas afinidades mais proacuteximas com os textos egiacutepciosrdquo27 Em sua opiniatildeo muitas mudanccedilas atribuiacutedas agrave matildeo do autor nas citaccedilotildees dos Salmos vecircm na verdade de suas fontes textuais embora em alguns casos pode-se atribuir alteraccedilotildees ao proacute-prio autor Assim por exemplo o uso de Ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) ao inveacutes de διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) na citaccedilatildeo do Sl 2123 LXX (2222 TM) em Hb 212 eacute fruto de uma variante translacional da versatildeo da LXX usada pelo autor Da mesma forma algumas variantes do Salmo 397-9 LXX em Hb 105-7 (omissatildeo de μου transposiccedilatildeo de ὁ θεός e omissatildeo final de ἐβουλήθην) satildeo

22 Ibid 247-25023 Cf AHLBORN E Die Septuaginta-Vorlage des Hebraerbriefs Goumlttingen Georg-August-

Universitaumlt 1966 MCCULLOUGH J C Hebrews and the Old Testament UK Queenrsquos University Belfast 1971

24 MCCULLOUGH Hebrews and the Old Testament p 4625 MCCULLOUGH J C ldquoThe Old Testament Quotations in Hebrewsrdquo New Testament Studies

263 (1980) 363-379 p 36326 Ibid p 363-36427 Ibid p 367

33

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

provavelmente devido a alteraccedilotildees feitas pelo autor O mesmo pode ser dito sobre as duas variantes encontradas no Sl 447-8 em Hb 18-9 (adiccedilatildeo de καὶ e mudanccedila da posiccedilatildeo do artigo em εὐθύτητος [ἡ] ῥαβδος) onde o autor deve ter feito alteraccedilotildees por motivos de ecircnfase Ele tambeacutem afirma que algumas variaccedilotildees envolvendo grafia formas verbais e ajustes satildeo resultado de mu-danccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor ou feitas por copistas anteriores e que possivelmente estavam disponiacuteveis em uma Vorlage septuagintal diferente daquelas que conhecemos hoje (eg Sl 947-11 LXX em Hb 37-11 10126-28 LXX em Hb 110-12 Sl 1094 LXX em Hb 721)28

Nesse periacuteodo surgiram outros estudos utilizando meacutetodos linguiacutestico--literaacuterios aplicados na anaacutelise de alguns Salmos empregados em Hebreus Jobes por exemplo propotildee que o autor fez uso deliberado de uma teacutecnica retoacuterica foneacutetica chamada paronomaacutesia ajustando sua citaccedilatildeo do Sl 407 (Sl 397 LXX) com o objetivo de enfatizar seu argumento teoloacutegico Assim o uso de σῶμα (corpo) em Hb 105 natildeo se deve a um lapso de memoacuteria do autor ou a uma leitura com variante textual no texto citado pelo autor mas ao ldquouso deliberado da teacutecnica retoacuterica de base foneacutetica chamada paronomaacutesia que foi altamente valorizada no primeiro seacuteculordquo29

13 Abordagens ecleacuteticas Essa evoluccedilatildeo gradual para abordagens criacuteticas mais amplas e ecleacuteticas

produziu resultados mais robustos sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus in-cluindo as leituras salmoacutedicas Exemplo disto satildeo os estudos realizados por Gheorghita Ruumlsen-Weinhold Karrer Steyn Docherty e Vesco Gheorghita por exemplo argumentou que a influecircncia da LXX nas citaccedilotildees em Hebreus eacute mais do que mera escolha e inserccedilatildeo uma vez que ldquofrequentemente a forma e o conteuacutedo particulares do texto grego encontram reverberaccedilatildeo no argumento da epiacutestolardquo30 Assim ldquonuances particulares do texto da Septuaginta distintas das do texto hebraico satildeo exploradas pelo autor na exposiccedilatildeo dessa citaccedilatildeordquo31

Ele conclui que as nuances teoloacutegicas da LXX influenciaram o proacuteprio argu-mento da epiacutestola32

No caso dos Salmos Gheorghita argumenta que o autor explorou as lei-turas da LXX importando-as em seu argumento para corroborar suas proacuteprias ecircnfases teoloacutegicas Exemplos disso satildeo o apelativo σύ κύριε (Oh Senhor) usado em Hb 110-12 (Sl 101 26-28 LXX) a construccedilatildeo do argumento sobre

28 Ibid p 367-37329 Idem ldquoThe Function of Paronomasia in Hebrews 105-7rdquo Trinity Journal 132 (1992)181-191

p 18230 GHEORGHITA R The Role of the Septuagint in Hebrews p 5631 Ibid32 Ibid p 226-227

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

34

o significado particular de ἀγγελους (anjos) em Hb 27 (Sl 86 LXX) a mudanccedila do foco interpretativo do Sl 95 (94 LXX) por meio da exploraccedilatildeo de um signi-ficado mais espiritual a partir da leitura septuagintal a exploraccedilatildeo cristoloacutegica da possiacutevel leitura septuagintal σῶμα (corpo) em Hb 105 (Sl 397 LXX) a exploraccedilatildeo do conceito amplificado na LXX de Deus como ajudador (βοηθός) em todas as adversidades em Hb 136 (1176 LXX)33

Outra pesquisa importante foi a de Ruumlsen-Weinhold Ele analisa as ci-taccedilotildees dos Salmos no NT livro por livro dando especial atenccedilatildeo agraves fontes septuagintais e buscando explicar a possiacutevel tradiccedilatildeo textual grega primitiva adotada por cada autor do NT Em seu estudo dedica um capiacutetulo para discutir as citaccedilotildees dos Salmos em Hebreus34 Em sua opiniatildeo a LXX foi a tradiccedilatildeo textual na qual o autor aos Hebreus no geral obteve as suas citaccedilotildees dos Sal-mos embora existam alguns desvios marcantes em relaccedilatildeo aos manuscritos atuais da LXX

No caso dos Salmos em Hebreus Ruumlsen-Weinhold utiliza uma aborda-gem holiacutestica fazendo uma anaacutelise manuscritoloacutegica comparativa de acordo com as fontes textuais conhecidas identificando as variantes textuais e outros testemunhos disponiacuteveis hoje bem como as probabilidades de o autor ter feito modificaccedilotildees de acordo com seus propoacutesitos Como ele demonstra essa abordagem tem a vantagem de analisar cada citaccedilatildeo individualmente antes de teorizar sobre as possiacuteveis fontes textuais de Hebreus como um todo35

Por exemplo ele afirma que a compilaccedilatildeo dos cinco Salmos citados na catena de Hb 15-13 remonta a uma coleccedilatildeo de testemunho que reflete uma forma de texto mais antiga dos Salmos gregos com pontos notaacuteveis de contato com a forma de texto do Alto Egito36 No caso do Sl 85-7 em Hb 26-8 ele acre-dita que o autor seguiu o texto do Salmo como hoje encontrado na LXXHauptuumlb omitindo parte da citaccedilatildeo que natildeo acrescentaria nada agrave sua proacutepria interpretaccedilatildeo e argumento37 Com respeito ao Sl 2222 (2123 LXX) em Hb 212 a diferenccedila entre o texto de Hebreus (ldquoἈπαγγελῶrdquo) e a LXX (ldquoδιηγήσομαιrdquo) sustenta que o versiacuteculo do Salmo circulou em vaacuterias formas textuais na eacutepoca dos autores do NT e que o autor aos Hebreus citou de outra versatildeo dos Salmos gregos disponiacutevel em sua eacutepoca38 Da mesma forma argumenta que o autor citou o Sl 406-8 (397-9 LXX) presente em Hb 105-9 de acordo com a forma textual

33 Ibid p 40-70 34 RUSEN-WEINHOLD U Der Septuagintapsalter im Neuen Testament p 169-20635 Ibid p 175-20636 Ibid p 18837 Ibid p 19138 Ibid p 194

35

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

do Alto Egito e os desvios da LXX apontam para esse original considerando que natildeo haacute aparente interesse editorial do autor nesse caso39

Em sua conclusatildeo Ruumlsen-Weinhold argumenta que embora seja apon-tada repetidamente uma proximidade entre as citaccedilotildees de Hebreus e o Coacutedice A essa aproximaccedilatildeo natildeo pode ser confirmada com relaccedilatildeo agraves citaccedilotildees dos Salmos Em vez disso Hebreus mostra proximidade com a famiacutelia do texto do Alto Egito cujo peso textual foi acentuado pela descoberta e testemunho do Papiro Bodmer Segundo ele ldquono geral Hebreus segue sua Vorlage grega e portanto atesta uma forma de texto mais antiga do que os Salmos gregos da LXXHaptuumlbrdquo40 Assim o autor seguiu sua Vorlage grega e sua matildeo editorial quase natildeo eacute sentida Aleacutem disso afirma que nos casos em que as variantes de Hebreus e esta forma de texto egiacutepcio natildeo correspondem ao texto (proto) Massoreacutetico eacute porque preservam um texto mais antigo natildeo recenseado Por conseguinte ldquoHebreus torna-se uma importante testemunha textual na histoacuteria textual da Septuagintardquo41

Docherty tambeacutem afirma que o autor ldquoem geral seguiu fielmente seu texto biacuteblico grego fazendo apenas pequenas alteraccedilotildees deliberadasrdquo42 No entanto segundo ela natildeo eacute mais possiacutevel afirmar que a versatildeo reconstruiacuteda no texto criacutetico de Rahlfs representa o texto dos Salmos da LXX uma vez que o reexame manuscritoloacutegico baseado nas leituras do Papiro Bodmer (PBod XXIV) 4QDeutq 11QPsa e outras variantes luciacircnicas por exemplo indicam que o autor pode estar citando fielmente a sua Vorlage textual do texto grego embora diferente em vez de estar fazendo alteraccedilotildees deliberadas43 Segundo ela haacute um crescente consenso de que o autor ldquoreproduziu fielmente suas cita-ccedilotildees escrituriacutesticas de modo que o ocircnus da prova deveria agora recair sobre aqueles que defendem uma alteraccedilatildeo deliberada de sua fonterdquo44

De acordo com Docherty o autor ldquotinha uma visatildeo muito elevada da inspiraccedilatildeo das Escrituras em sua forma grega e hebraicardquo45 Assim a forma como o autor lidou com as citaccedilotildees mesmo aplicando ldquoa teacutecnica exegeacutetica de isolar um termo biacuteblico para submetecirc-lo a forte ecircnfaserdquo demonstra que ldquoconsiderava a Escritura como verdadeira e significativa natildeo simplesmente como um todo mas tambeacutem em suas palavras individuaisrdquo46 Para ela o

39 Ibid p 20540 Ibid p 20641 Ibid p 20642 DOCHERTY S The Use of the Old Testament in Hebrews p 14043 Ibid p 14044 Idem ldquoThe Text Form of the OT citations in Hebrews Chapter 1 and the Implications for the

Study of the Septuagintrdquo New Testament Studies 552 (2009) 355-365 p 35545 Ibid The Use of the Old Testament in Hebrews p 14146 Ibid p 204

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

36

autor natildeo impocircs sua interpretaccedilatildeo cristoloacutegica aos textos que cita visto que em muitos casos havia ambiguidades textuais genuiacutenas como pronomes natildeo especificados ou falas em primeira pessoa que naturalmente pediam por explicaccedilotildees Portanto tudo isso aponta para o fato de que o autor entendia a Escritura como palavra de Deus e para ele toda a Escritura era coerente ou interligada como um todo47

Dentre os estudos recentes Steyn sem duacutevidas escreveu a mais extensa pesquisa sobre as citaccedilotildees do AT em Hebreus Segundo ele as diferenccedilas tex-tuais entre Hebreus e a forma grega do texto do AT podem ser explicadas de vaacuterias formas (1) o uso de uma Vorlage grega alternativa onde a forma das citaccedilotildees era mais proacutexima da tradiccedilatildeo textual egiacutepcia baseada em 12008346 B e outros manuscritos (2) pequenas mudanccedilas estiliacutesticas feitas pelo autor (3) mudanccedilas teoloacutegicas e semacircnticas para adequar a citaccedilatildeo ao argumento e (4) possiacuteveis conflaccedilotildees Aleacutem disso observa que algumas leituras dos Salmos em Hebreus (eg Sl 39 94 e 103 LXX) estatildeo mais proacuteximas das leituras en-contradas no PBod XXIV48

Por fim Vesco em sua pesquisa sobre o uso dos Salmos no NT afirma que o autor aos Hebreus tomou ldquopor empreacutestimo sobretudo do Salteacuterio os elementos da sua cristologia o que sugere que se dirige a um puacuteblico familia-rizado com essa coleccedilatildeo lituacutergicardquo49 Segundo ele o tamanho e a precisatildeo das citaccedilotildees apontam para o fato de o autor estar copiando de um manuscrito em alguns casos Assim o texto da LXX eacute estritamente reproduzido em muitas citaccedilotildees (Hb 15 8 9 13 26-8 37-8 56 717-21 1012 136) Em outros casos o autor fez pequenas alteraccedilotildees tais como omissotildees (Hb 56) adiccedilotildees (Hb 110-12) variantes modeladas pelo uso lituacutergico ou padratildeo no periacuteodo do NT (Hb 37-11) substituiccedilotildees de palavras (Hb 212) para adaptar o texto citado ao contexto ou para facilitar a aplicaccedilatildeo (Hb 37-11 105-7) ou para melhorar o estilo (Hb 111-12) Aleacutem disso observa que mesmo quando a LXX discorda do texto hebraico o autor reproduz a LXX (eg Hb 17 10-12 26-8 37-11 105 37) embora natildeo seja possiacutevel definir qual recensatildeo da versatildeo alexandrina ele usou Em sua conclusatildeo sustenta que o autor foi fiel ao texto grego fonte e utilizou relativa liberdade na redaccedilatildeo de suas citaccedilotildees fazendo correccedilotildees para cristianizaacute-las embora considerasse as Escrituras inspiradas50

47 Ibid p 20448 STEYN G J A Quest for the Assumed LXX Vorlage of the Explicit Quotations in Hebrews

p 39449 VESCO J L Le Psautier de Jeacutesus Les Citations des Psaumes dans le Nouveau Testament

Eacuted du Cerf 2012 p 557 50 Ibid p 558

37

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

14 Tendecircncias atuais em relaccedilatildeo agraves fontes textuais dos Salmos em Hebreus

Como pode ser observado os estudos sobre as fontes textuais de Hebreus estatildeo longe de um consenso Apesar disso Azevedo enumera alguns paracircmetros e tendecircncias principais que devem nortear as investigaccedilotildees sobre as fontes tex-tuais salmoacutedicas em Hebreus51 Primeiro natildeo haacute duacutevida de que o autor fez uso de uma composiccedilatildeo grega das Escrituras conhecida hoje como ldquoSeptuagintardquo e estaacute tatildeo resoluta e minuciosamente fundamentado nela que ateacute mesmo sua argumentaccedilatildeo teoloacutegica se baseou em leituras especiacuteficas encontradas nessa versatildeo No entanto considerando que em geral a versatildeo dos Salmos da LXX era proacutexima em traduccedilatildeo e organizaccedilatildeo ao texto hebraico como encontrado no TM embora divergindo em algumas leituras agraves vezes haacute uma aproximaccedilatildeo correspondente das citaccedilotildees com o texto hebraico52 Segundo natildeo eacute mais pos-siacutevel estabelecer essa Vorlage textual dos Salmos exclusivamente a partir do texto criacutetico dos Salmos publicado por Rahlfs na seacuterie Goumlttingen considerando as novas evidecircncias manuscritoloacutegicas Assim algumas alteraccedilotildees atribuiacutedas ao autor podem ser resultado de uma leitura septuagintal distinta e natildeo de-vido a alteraccedilotildees deliberadas feitas por ele No entanto ateacute que surjam mais evidecircncias textuais natildeo eacute possiacutevel fazer afirmaccedilotildees categoacutericas mas apenas teorizar sobre possibilidades embora exista um reconhecimento pendular hoje de que o autor reproduziu fielmente suas citaccedilotildees da sua fonte grega Nesse caso a melhor abordagem eacute aquela que analisa cada citaccedilatildeo individualmente mas sem desconsiderar a evidecircncia mais ampla das demais citaccedilotildees Terceiro o tamanho de algumas citaccedilotildees indica que o autor se baseou em coacutepias de manuscritos gregos Contudo eacute possiacutevel que em alguns casos como na ca-tena (Hb 15-14) ou em algumas citaccedilotildees menores o autor tenha recorrido agrave memoacuteria ou a tradiccedilotildees cristatildes (orais ou escritas querigmaacuteticas ou lituacutergicas) ou mesmo a uma coleccedilatildeo de testemunhos mas eacute difiacutecil dizer Quarto algumas citaccedilotildees foram adaptadas de acordo com a estrateacutegia argumentativa do autor trazendo certas nuances e ecircnfases interpretativas especiacuteficas para as citaccedilotildees Finalmente o autor citou as Escrituras incluindo os Salmos na traduccedilatildeo grega porque era a traduccedilatildeo e a linguagem comum de seus leitores (e quem sabe a dele tambeacutem) e talvez a uacutenica literatura biacuteblica agrave qual ele poderia apelar para alcanccedilar seu objetivo pastoral exortativo Ao fazer isso ele se acomodou agrave versatildeo

51 AZEVEDO R O B ldquoThe Christological-Conceptual Arrangement of the Psalms in Hebrews Building a Theology of Christrsquos Exaltation to the People of God with Expected Responsesrdquo Tese de PhD em NT North West University Potchefstroom (previsatildeo de publicaccedilatildeo em 2021) p 97-99

52 O texto dos Salmos na LXX no geral eacute uma traduccedilatildeo bastante literal do texto hebraico em-bora os tradutores da LXX tenham exercido liberdade e criatividade algumas vezes Ver AITKEN J K ldquoPsalmsrdquo In AITKEN J K (Ed) TampT Clark Companion to the Septuagint London TampT Clark 2015 p 320-334

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

38

conhecida de seu puacuteblico aquela em que eles provavelmente tinham um certo grau de competecircncia No entanto sua alta visatildeo das Escrituras de acordo com seu cuidado pastoral o levou a tratar essa traduccedilatildeo do AT como uma palavra divina bem como a fazer pequenos ajustes textuais e exploraccedilotildees teoloacutegicas possiacuteveis em algumas referecircncias para enfatizar seu argumento cristoloacutegico

2 O USO DO SALMO 2222 EM HEBREUS 212

21 O Salmo 2222 na tradiccedilatildeo judaica e cristatildeO Salmo 22 estaacute localizado no Livro I do Salteacuterio uma coleccedilatildeo que

possui uma preponderacircncia de Salmos daviacutedicos53 O tiacutetulo do Salmo tanto no TM como na LXX o atribui a Davi mas nada eacute dito do contexto especiacutefico da composiccedilatildeo Tentativas de identificar o peticionaacuterio do Salmo bem como o contexto de produccedilatildeo e usos na vida e liturgia hebraica satildeo variados mas sem unanimidade no mundo acadecircmico54 Apesar disso natildeo haacute nenhuma ra-zatildeo para se negar a autoria de Davi que compocircs o Salmo em um momento de profundo estado de anguacutestia com perspectiva de morte Contudo seu lamento se transforma em um convite ao louvor

O gecircnero do Salmo tem sido classificado de diferentes maneiras pelos estudiosos mas eacute possiacutevel afirmar que possui uma forma literaacuteria hiacutebrida com elementos de lamento (1-21) oraccedilatildeo (11 19-21) louvor e accedilotildees de graccedilas (22-31)55 No entanto a maioria dos eruditos biacuteblicos prefere dividir o Salmo em duas partes lamento (1-21) e accedilotildees de graccedilas (22-32)56 De fato observa-se no Salmo um niacutetido contraste uma vez que inicia como um lamento individual que se transforma e culmina em uma atitude de louvor e accedilotildees de graccedilas

A citaccedilatildeo usada pelo autor aos Hebreus estaacute situada exatamente nesse momento de transiccedilatildeo do Salmo (2222) onde o Salmista que lamenta muda repentinamente de tom e comeccedila a louvar a Deus identificando-se com a congregaccedilatildeo de adoradores O autor portanto explora a parte de accedilotildees de graccedilas do Salmo colocando-o na boca de Jesus embora haja evidecircncias de que conhecia a seccedilatildeo anterior57

Dentro da tradiccedilatildeo judaica o Salmo 22 eacute citado ou aludido alguma vezes Nos Manuscritos de Qumran satildeo encontradas duas fontes textuais do Salmo 22

53 Ver PRINSLOO G T M ldquoReading the Masoretic Psalter as a Book Editorial Trends and Redactional Trajectories Currents in Biblical Research 192 (2021) 145-177

54 Ver KRAUS H-J Psalms a commentary Psalms 1-49 Minneapolis MN Augsburg Pub House 1993 p 293-294

55 Cf CRAIGIE P C Psalms 1-50 Waco TX Word Books 1983 p 197 Haacute uma diferenccedila de numeraccedilatildeo na versatildeo usada por Craigie sendo lamento (1-22) oraccedilatildeo (12 20-22) louvor e accedilotildees de graccedilas (23-32) Nesta pesquisa segue-se a versatildeo ARA onde o verso 23 eacute na verdade 22

56 Ver GOLDINGAY J Psalms 1-41 Grand Rapids MI Baker Academic 2006 p 323 57 Haacute uma provaacutevel alusatildeo do Sl 2224 em Hb 57

39

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

contudo infelizmente natildeo preservam o verso 22 a saber 56HevPs 223ndash8 14ndash20 (TM 224ndash9 15ndash21) e 4QPsf 2214ndash17 (TM 15ndash18)58 Haacute tambeacutem cinco alusotildees do Salmo 22 nos ldquoHinos de Accedilotildees de Graccedilasrdquo sendo que uma delas 1QHa Coluna 206 eacute proacutexima ao texto citado pelo autor aos Hebreus59 Aleacutem disso no Talmude Babilocircnico haacute duas referecircncias do Salmo 22 (b Megillah 15b Yoma 29a) ambas atreladas agrave rainha Ester Poreacutem nesses casos as re-ferecircncias se reportam aos versos 01 e 02 (contra Guthrie)60 Portanto afora a alusatildeo em 1QHa 206 sem falar nas traduccedilotildees da LXX e Targum o verso 22 natildeo eacute encontrado em outras fontes judaicas

No NT haacute vaacuterias referecircncias ao Salmo 22 Ele tanto foi usado por Jesus em seu sofrimento (Mt 2746 Mc 1534) como foi evocado pelos autores dos Evangelhos relacionando-o agrave obra salvadora de Jesus nas narrativas da paixatildeo (Mt 2735 Mc 1524 Lc 2334 Jo 1924) Portanto tem um papel importante na cristologia do NT

De acordo com o texto criacutetico NA28 eacute possiacutevel identificar nove citaccedilotildees e treze alusotildees do Salmo 22 no NT61 No entanto esse nuacutemero eacute problemaacuteti-co pois pelo menos uma citaccedilatildeo indicada seria mais bem classificada como uma alusatildeo (1Pe 58) enquanto algumas alusotildees apontadas satildeo subjetivas e improvaacuteveis No caso especiacutefico do Sl 2222 eacute indicada a citaccedilatildeo de Hb 212 e uma alusatildeo em Jo 2017 o que nesse uacuteltimo caso eacute bastante improvaacutevel Portanto nenhum outro autor do NT cita ou alude ao Sl 2222 exceto o autor aos Hebreus

No entanto essa exclusividade natildeo deve surpreender pois como Evans argumenta ldquoo uso cristoloacutegico e profeacutetico dos Salmos se originou em Jesus e foi estendido e desenvolvido na comunidade cristatilde primitivardquo62 Assim alguns Salmos usados por Jesus ldquoforam submetidos a uma ruminaccedilatildeo exegeacutetica e teoloacute-gica posterior enquanto outros Salmos aos quais ele natildeo tinha feito referecircncia (ateacute onde se sabe) foram descobertos e explorados para maior esclarecimento deste ou daquele pontordquo63 Portanto o verso 22 do Salmo foi ruminado teolo-

58 Cf ABEGG M FLINT P ULRICH E The Dead Sea Scrolls Bible San Francisco CA Harper Collins 1999 p 519-520

59 Esta pesquisa segue a nova traduccedilatildeo de Schuller e Newson Na antiga ediccedilatildeo de Sukenik a citaccedilatildeo era identificada como 1QHa 123 Ver SCHULLER E M NEWSOM C A The Hodayot (Thanksgiving Psalms) a Study Edition of 1QHa Atlanta GA SBL 2012 p 62-63

60 A referecircncia usada por Guthrie (1QHa 13 15b) parece improvaacutevel por natildeo possuir relaccedilatildeo com o texto de Hebreus Aleacutem disso haacute duas referecircncias no Talmude do Sl 22 e natildeo apenas uma como afirma Ver GUTHRIE ldquoHebreusrdquo p 1165

61 Cf Apecircndice IV Loci citate vel allegati do texto criacutetico NA28 p 85162 EVANS C A ldquoPraise and prophecy in the Psalter and in the New Testamentrdquo In FLINT P W

MILLER P D et al (Eds) Book of Psalms Composition and Reception Leiden Boston Brill 2005 p 551-579 p 568

63 Ibid p 568-569

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

40

gicamente pelo autor assim como parte de outros Salmos que eram conhecidos na tradiccedilatildeo cristatilde mas cujas partes especiacuteficas foram exploradas somente por ele como por exemplo o Salmo 1104

22 A forma e funccedilatildeo da citaccedilatildeo do Salmo 2222 em HebreusA forma da citaccedilatildeo do Salmo 2222 na Epiacutestola aos Hebreus eacute muito

proacutexima ao texto da LXX como o conhecemos hoje o qual por outro lado eacute uma traduccedilatildeo muito proacutexima do texto hebraico conforme encontrado hoje no TM Poreacutem a citaccedilatildeo em Hebreus discorda de ambos bem como do Targum disponiacutevel do Salmo 22

Uma comparaccedilatildeo entre a citaccedilatildeo de Hebreus com o texto da LXX aponta na verdade uma uacutenica diferenccedila O autor usa o verbo ἀπαγγελῶ (ldquoproclamarrdquo) enquanto a LXX usa o verbo διηγήσομαι (ldquofalarrdquo) Aleacutem disso eacute importante observar que tanto a tradiccedilatildeo textual preservada de Hebreus como a da LXX como a conhecemos hoje nesse texto especiacutefico estatildeo testemunhalmente bem estabelecidas natildeo possuindo variantes textuais importantes Inclusive o texto reconstruiacutedo da LXX por Ralphs eacute idecircntico ao texto do PBod XXIV Portanto natildeo restam duacutevidas de que haacute uma similaridade entre a citaccedilatildeo de Hebreus e o texto da LXX com essa uacutenica diferenccedila A questatildeo eacute qual a razatildeo para essa diferenccedila

Fontes Textuais do Salmo 2222

Hebreus NA28 LXX (Goumlttingen)

Texto Massoreacutetico Targum 1QHa Coluna

206

λέγωνἈπαγγελῶ τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquodizendo eu proclamarei(Ἀπαγγελῶ) o teu nome aos meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

διηγήσομαι τὸ ὄνομά σου τοῖς ἀδελφοῖς μου ἐν μέσῳ ἐκκλησίας ὑμνήσω σε

ldquoEu falarei(διηγήσομαι) do teu nome a meus irmatildeos no meio da congregaccedilatildeo eu cantarei louvores a tirdquo

אספרה שמך לאחי קהל אהלל ך

בתוך

ldquoA meus irmatildeos declarareio teu nome eu cantarei louvores a ti no meio da congregaccedilatildeordquo

אחוי גבורת שמךלאחי במצע

כנישתאאשבחינך

ldquoEu falareido poder do teu nome para meus irmatildeos no meio da assembleia eu te louvareirdquo

[עם רוחות ע ולם כ  וישועה

אהלי [ שמכה בתוך

ואהללהיראיכה

ldquo[em paz] e becircnccedilatildeo nas tendas de gloacuteria e libertaccedilatildeo Eu louvarei o teu nome no meio daqueles que te tememrdquo

41

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

Os eruditos como vimos se dividem quanto agrave questatildeo ora atribuindo a diferenccedila a uma influecircncia lituacutergica (Kistemaker) a uma leitura variante do texto hebraico que possuiacutea um outro verbo (Howard) a uma leitura variante da LXX usada pelo autor (McCullough Ruumlsen-Weinhold) ou ainda a uma mudanccedila intencional (Schroumlger Vesco) No entanto as evidecircncias manuscrito-loacutegicas disponiacuteveis hoje com a sua enorme atestabilidade apontam para uma mudanccedila intencional Mas qual seria a razatildeo para essa mudanccedila Ela atendia agrave estrateacutegia argumentativa do autor

Como Azevedo observa os Salmos em Hebreus satildeo usados de forma singular pois no geral satildeo colocados na boca do Pai do Filho ou do Espiacuterito Santo como sujeitos das citaccedilotildees (eg Hb 15a 212 37)64 Em duas ocasiotildees em Hebreus haacute um dialoguismo entre o Pai e o Filho pelas Escrituras o Pai fala e o Filho responde (cf Hb 15-13 e 212 55-6 e 105-9) Em ambos os casos os Salmos citados (Sl 2222 em Hb 212-13 juntamente com Is 816-17 Sl 406-8 em Hb 105-9) satildeo colocados na boca de Cristo enfatizando o seu diaacutelogo com o Pai bem como a sua voz no meio da congregaccedilatildeo Para o autor Jesus estaacute falando nas citaccedilotildees primeiramente ao Pai mas tambeacutem secunda-riamente para a a respeito de ou sobre si no meio da congregaccedilatildeo

No contexto original dos Salmos 2222 e 406-8 a voz em primeira pessoa que fala no meio da congregaccedilatildeo era a de Davi (Ver Sl 409) Nos dois Salmos o termo usado para ldquocongregaccedilatildeordquo na LXX eacute ἐκκλησία (igreja) utilizado pelos cristatildeos para se referirem agraves suas assembleias Poreacutem para o autor a voz de Davi eacute na verdade a voz de Cristo na Nova Alianccedila considerando a atuali-dade das Escrituras (ldquoHojerdquo) e sua natureza divina cristoloacutegica e tipoloacutegica Assim utilizando-se de figuras como personificaccedilatildeo divina paronomaacutesia e assonacircncia o autor ajusta as citaccedilotildees do Sl 2222 (ldquoproclamarrdquo ao inveacutes de ldquofalarrdquo) e 406-8 (ldquocorpordquo ao inveacutes de ldquoouvidosrdquo) para enfatizar a proacutepria voz de Cristo bem como a sua presenccedila no meio da ldquoigrejardquo

Nesse caso o verbo ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) se ajustava melhor a sua estrateacutegia argumentativa uma vez que ldquoo tema central de Hebreus eacute a impor-tacircncia de ouvir a voz de Deus nas Escriturasrdquo sobretudo ldquono ato da pregaccedilatildeo cristatilderdquo65 Assim ainda que os verbos ἀπαγγελῶ (ldquoanunciar ou informar algo com possiacutevel foco na fonte de informaccedilatildeordquo) e διηγήσομαι (ldquofalar ou fornecer informaccedilotildees detalhadas de algordquo) tenham alguma proximidade semacircntica66 o verbo ldquoproclamarrdquo era ldquoum termo mais adequado para enfatizar a missatildeo de

64 AZEVEDO R O B ldquoO Tridimensional Aspecto dos Salmos em Hebreusrdquo Fides ReformataXXV-2 (2020) 95-111 p 103

65 LANE W L Hebrews 1-8 Dallas TX Word Books 1991 p cxxvii66 Ver Louw-Nida Lexicon Bible Works Software 10

ROBEacuteRIO ODAIR BASIacuteLIO DE AZEVEDO JESUS CRISTO FALA NO MEIO DA CONGREGACcedilAtildeO

42

Cristordquo67 de anunciar a mensagem divina no meio do seu povo Logo eacute Jesus em uacuteltima instacircncia quem ldquoproclamardquo o nome do Pai a seus irmatildeos De fato haacute uma grande ecircnfase em Hebreus de que o Pai atraveacutes de Jesus e mediante o Espiacuterito Santo continua advertindo seu povo ldquoHojerdquo e eles natildeo podem recusar ao que fala (Hb 1225) sobretudo por meio dos guias que pregam a palavra de Deus (Hb 137 17)

No entanto essa mudanccedila natildeo foi arbitraacuteria uma vez que o verbo hebraico רפס (ldquodeclarar contarrdquo) jaacute havia sido traduzido por ldquoproclamarrdquo (ἀπαγγελῶ) no Salmo LXX 774 6 (784 6 TM) o que pode ter dado tranquilidade ao autor para a mudanccedila Por outro lado o verbo hebraico ldquodeclararrdquo eacute traduzido na maioria dos Salmos da LXX pelo verbo ldquofalarrdquo (διηγέομαι) (eg Sl LXX 92 182 2123 etc) inclusive o Sl 27 que o autor cita duas vezes (15 55) o que demonstra que muito provavelmente tinha conhecimento dessa outra traduccedilatildeo Portanto isso tambeacutem indica que a sua alteraccedilatildeo foi intencional

Aleacutem disso a mudanccedila tambeacutem se ajustava aos padrotildees estiliacutesticos do autor sobretudo seu uso de aliteraccedilotildees e assonacircncias (eg Hb 21 2 10 312 926 1211) uma vez que o verbo ἀπαγγελῶ estaacute em clara assonacircncia com outras palavras na citaccedilatildeo λέγων Ἀπαγγελῶ μέσῳ ὑμνήσω Portanto todas as evidecircncias apontam para o fato de que o autor ajustou a sua fonte textual grega de acordo com a sua estrateacutegia retoacuterico-argumentativa para enfatizar a natureza divina cristoloacutegica tipoloacutegica atualizada e querigmaacutetica das Escrituras

CONCLUSAtildeOComo um haacutebil escritor cristatildeo o autor selecionou um conjunto de Salmos

que declaravam ou se podia inferir atraveacutes de relaccedilotildees tipoloacutegicas baseadas em inferecircncias loacutegicas o status glorioso da pessoa de Jesus e da obra de Jesus Para isso se utilizou no geral da versatildeo grega disponiacutevel a ele conhecida como ldquoSeptuagintardquo cuja traduccedilatildeo dos Salmos eacute bem proacutexima ao Texto Massoreacute-tico Contudo em alguns casos como na citaccedilatildeo do Salmo 2222 fez ajustes de acordo com sua estrateacutegia argumentativa para enfatizar a voz dialoacutegica e contiacutenua de Jesus no meio do seu povo ldquoHojerdquo

ABSTRACTThis article aims to discuss the textual sources used by the author to the

Hebrews to quote the Psalms pointing out the main academic discussions on the subject as well as the current consensus doubts and trends In addition

67 ATTRIDGE H W The Epistle to the Hebrews A Commentary on the Epistle to the Hebrews Philadelphia PA Fortress Press 2009 p 90

43

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 2 7 - 4 3

it analyzes a specific Psalm used by the author the Psalm 2222 in Hebrews 212 showing that in some cases the psalmodic sources used by the author have been adjusted according to his argumentative strategy

KEYWORDSPsalms Epistle to the Hebrews Psalms in Hebrews Textual sources

45

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 4 5-6 1

O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCALValdeci Santos e Danillo A Santos

RESUMOQual eacute o melhor padratildeo ministerial para a igreja local que acomode a

praacutetica do aconselhamento biacuteblico o encorajamento uns aos outros agrave sua dinacircmica existencial Como explorar recursos biblicamente orientados para a praacutexis ministerial da igreja no chamado de encorajar uns aos outros O pro-poacutesito deste artigo eacute investigar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις e dessa investigaccedilatildeo extrair algumas conclusotildees que contribuam para a teologia biacuteblica do aconselhamento Este estudo estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees desse estudo para o modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute de ser ministerialmente aplicaacutevel agrave igreja local

PALAVRAS-CHAVEAconselhamento biacuteblico Encorajamento Consolo Teologia biacuteblica

παρακαλεω e παρακλησις

Ministro presbiteriano Secretaacuterio Nacional de Apoio Pastoral da IPB e pastor da Igreja Presbite-riana do Campo Belo em Satildeo Paulo professor de teologia pastoral e sistemaacutetica no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper onde tambeacutem coordena o programa de Doutorado em Ministeacuterio (DMin) na parceria CPAJReformed Theological Seminary

Ministro presbiteriano doutor (PhD) em Hermenecircutica e Interpretaccedilatildeo Biacuteblica pelo Westminster Theological Seminary professor no Instituto Biacuteblico Eduardo Lane em Patrociacutenio MG professor visitante no CPAJ

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

46

INTRODUCcedilAtildeOAconselhamento o cuidado com a alma humana costumava ser caricatu-

rado como um processo misterioso envolvendo divatildes terminologias teacutecnicas longas sessotildees de anamneses terapeutas de jalecos detentores da habilidade de realizar leitura mental bem como aconselhados com problemas tatildeo comple-xos que intimidavam qualquer um Mas felizmente esse estereoacutetipo tem sido superado na sociedade contemporacircnea Ainda que o termo terapia continue sendo empregado para os tratamentos entre profissionais habilidosos e seus clientes o termo ldquoaconselhamentordquo passou a ser aplicado para um universo mais abrangente ao ministeacuterio de cuidar dos aflitos Nesse sentido os cristatildeos passaram a compreender melhor o imperativo biacuteblico de aconselharem uns aos outros com a Palavra de Deus (Cl 116) e o resultado tem sido o oferecimento de ajuda real e bem-sucedida a muitos bem como o desenvolvimento de um ministeacuterio que por anos esteve marginalizado na igreja cristatilde1

No entanto a literatura sobre o assunto continua revelando um perene interesse pelo desenvolvimento de padrotildees ministeriais para a igreja local que naturalmente acomodem o ministeacuterio de aconselhamento agrave sua dinacircmica existencial2 No geral a atenccedilatildeo ao engajamento dos crentes da congregaccedilatildeo local no ministeacuterio de encorajamento explora algumas estruturas ministeriais jaacute existentes (a praacutetica pastoral do aconselhamento)3 ou sugere estrateacutegias a serem desenvolvidas para ministraccedilotildees uns aos outros (o aconselhamento leigo)4 Eacute necessaacuterio poreacutem explorar alguns recursos biblicamente orientados a fim de se evitar soluccedilotildees meramente pragmaacuteticas De outra forma aquilo que

1 GOODE William W O aconselhamento biacuteblico e a igreja local In MACARTHUR JR John F MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 337

2 POWLISON David Falando a verdade em amor Aconselhamento em comunidade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 111-118 POWLISON The local church is THE place for biblical counseling CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educational Foundation 2014 p 2-4 PETERS Byron Biblical counseling in the DNA of the church CCEF NOW Filadeacutelfia Christian Counseling amp Educa-tional Foundation 2014 p 5 VALENTE FILHO Jonas Moreira Aconselhamento biacuteblico Uma tarefa da igreja local Tese de Doutorado em Ministeacuterio no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper 2009 KELLEMAN Bob CARSON Kevin (eds) Biblical Counseling and the Church Godrsquos care through Godrsquos people Grand Rapids MI Zondervan 2015

3 POWLISON David The Pastor as a Counselor The call for soul care Wheaton IL Crossway 2021 BAXTER Richard O pastor aprovado Satildeo Paulo Editora PES 1966 CLINEBELL Howard J Aconselhamento pastoral Satildeo Leopoldo Editora Sinodal 2000

4 VALENTE FILHO Aconselhamento biacuteblico KELLEMAN e CARSON Biblical counseling MACK Wayne A Desenvolvendo um relacionamento de ajuda ao aconselhado In MacARTHUR John F Jr MACK Wayne Introduccedilatildeo ao aconselhamento biacuteblico Um guia baacutesico de princiacutepios e praacuteticas de aconselhamento Satildeo Paulo Hagnos 2004 p 203-218 REJU Deepak Counseling and discipleship 9Marks eJornal (NovDez 2008) vol 5 Issue 6 p 10-12

47

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

deveria ser reconhecido como aconselhamento biacuteblico corre o risco de perder o seu fundamento escrituriacutestico

Assim uma anaacutelise do ensino neotestamentaacuterio a respeito do acon-selhamento no contexto eclesiaacutestico eacute altamente relevante no processo em prol de uma fundamentaccedilatildeo biacuteblico-teoloacutegica sobre o assunto De fato Jay Adams e outros jaacute lanccedilaram boa parte do alicerce dessa obra ao examinar a palavra νουθετεω e seu substantivo cognato νουθεσια no Novo Testamen-to5 Contudo resta ainda uma variada e ampla gama de vocaacutebulos que pode e deve ser aplicada ao aconselhamento biacuteblico da parte do Novo Testamento isto eacute palavras que incluem campos semacircnticos que descrevem conselhos (παραινεω συμβουλεύω) exortaccedilotildees (προτρεπω πειθω) instruccedilotildees (διδασκω ἐντρεφω κατηχεω καθηγητής ορθοτομεω παιδεύω παραδιδωμι συμβιβαζω σωφρονιζω ὑποτιθημαι) ordens (κελεύω διαστελλομαι τασσω ἐντελλομαι ἐπιτιμαω) exigecircncias (διαμαρτύρομαι διαβεβαιόομαι) repreensotildees (ἐλεγχω ονειδιζω) advertecircncias (διαμαρτύρομαι ἐμβριμαομαι προλεγω) intercessotildees (ἐντυγχανω) e encorajamentos (ἀναψύχω εὐψυχεω εὐθυμεω παρακαλεω παραμυθεομαι παρηγορια) aleacutem de vaacuterios outros termos que satildeo utilizados metaforicamente ou natildeo para se referir agrave conduta de vida exigida do crente (eg ἀναστρεφομαι ἐπιστρεφω μετανοεω παλιγγενεσια περιπατεω πολιτεύεσθε τρόπος etc)6

Entretanto com o fim de restringir o escopo deste artigo para um as-sunto mais limitado e manejaacutevel seraacute observada apenas a conexatildeo do termo παρακαλεω e seu substantivo cognato παρακλησις com o propoacutesito de con-tribuir preliminar e modestamente com o desenvolvimento de uma teologia biacuteblica do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Somente essa fundamentaccedilatildeo biacuteblica justificaraacute a praacutetica e orientaraacute os cristatildeos a exercerem o ministeacuterio do aconselhamento a partir da autoridade das Escrituras

Este estudo exploratoacuterio estaacute dividido em trecircs partes iniciando com uma anaacutelise geral do uso dos termos gregos em seus vaacuterios contextos fora do Novo Testamento partindo para o seu emprego nos escritos neotestamentaacuterios e concluindo com algumas sugestotildees das implicaccedilotildees deste estudo ao modus operandi contemporacircneo do aconselhamento biacuteblico no contexto da igreja local Assim embora teacutecnico em alguns momentos o objetivo deste estudo eacute ministerialmente aplicaacutevel

5 Cf ADAMS Jay E Conselheiro capaz Satildeo Joseacute dos Campos FielABCB 1977 ADAMS Jay E The Christian Counselorrsquos Manual The practice of nouthetic counseling Grand Rapids MI Zondervan 1988 POWLISON David A Competent to Counsel The history of a conservative Protestant biblical counseling movement Dissertaccedilatildeo de PhD Universidade da Pensilvacircnia 1996 LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

6 Cf LOUW Johannes NIDA Eugene Leacutexico grego-portuguecircs do Novo Testamento baseado em domiacutenios semacircnticos Barueri SBB 2013

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

48

1 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ FORA DO NOVO TESTAMENTO

Para compreender o significado de παρακαλεω no Novo Testamento bem como sua significacircncia para o aconselhamento biacuteblico eacute necessaacuterio primeiro estabelecer como a palavra era utilizada nos contextos soacutecio-histoacutericos que cercavam os escritores do Novo Testamento Esse contexto semacircntico serviraacute para situar o uso de παρακαλεω em textos neotestamentaacuterios e assim auxiliar a compreensatildeo de seu significado

11 O uso de παρακαλεω e παρακλησις na literatura pagatildeComo muitas palavras na liacutengua grega παρακαλεω eacute um verbo composto

unindo assim uma preposiccedilatildeo a um radical verbal preacute-existente No caso a preposiccedilatildeo eacute παρα que denota proximidade a algo ou a algueacutem7 e o verbo καλεω ldquochamarrdquo8 Natildeo eacute de se estranhar entatildeo que o sentido mais comum para o verbo composto eacute de chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de ou seja de ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo9 Assim vemos na literatura grega usos de παρακαλεω direcionados tanto a homens10 quanto a deuses11

ou ideias12 que expressam um chamado agrave proximidadeContudo cedo na literatura pagatilde tambeacutem se encontram dois sentidos

adicionais que se distinguem um de pedir a algueacutem para demonstrar favor comumente traduzido por ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo13 e outro de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo frequentemente traduzido por ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo14 Entretanto embora esses dois sentidos apareccedilam em contextos que

7 Cf AUBREY Rachel AUBREY Michael παρα In Greek Prepositions in the New Testament A cognitive-functional description Lexham Research Lexicons Bellingham WA Lexham Press 2020

8 Eacute necessaacuterio distinguir entre glosas que satildeo palavras que possivelmente podem traduzir a pala-vra grega em questatildeo e definiccedilotildees que explicam um sentido semacircntico da palavra da forma mais breve possiacutevel As seguintes convenccedilotildees ortograacuteficas seratildeo seguidas nesse artigo uma glosa seraacute colocada entre aspas enquanto que uma definiccedilatildeo apareceraacute em fonte itaacutelica

9 SCHMITZ Otto παρακαλεω παρακλησις In TDNT 5 Grand Rapids Eerdmans 1965 p 774-775 SILVA Moiseacutes παρακαλεω In NIDNTTE 3 Grand Rapids Zondervan 2014 p 627-628

10 Eg Κλεαρχον δὲ καὶ εἴσω παρεκάλεσε σύμβουλον (ldquoOra Clearco tambeacutem foi convidado para dentro da tenda como conselheirordquo) Xenofonte Anab 165 Todas as traduccedilotildees de fontes primaacuterias e secundaacuterias exceto quando indicado de outro modo satildeo dos autores

11 Eg ἀλλʼ ἀπὸ λι[πο] μενος μὲν οὐδεὶς ἀναγεται μὴ θύσας τοῖς θεοῖς καὶ παρακαλέσας αὐτοὺς βοηθοὺς (ldquoMas ningueacutem embarca de um porto sem antes sacrificar aos deuses ou invocar sua ajudardquo) Epicteto Diatr 32112

12 Eg ἢ οὐκ ἀεὶ τὸ ὅμοιον ὂν ὅμοιον παρακαλεῖ (ldquoOu natildeo eacute o caso de que a semelhanccedila invocaa semelhanccedilardquo) Platatildeo Resp 425c

13 Eg ειʼ δυνατόν παρακαλῶ σε εἰπεῖν τι μοι (ldquoSe possiacutevel eu te rogo que me digas algordquo) Epicteto Diatr 2242

14 Eg κἀνταῦθα παρακαλέσας τὰ πρεποντα τῷ καιρῷ τὰς δυναμεις ὡς ἐσομενης εἰς τὴν αὔριον ναυμαχιας (ldquoAli encorajou com palavras adequadas ao tempo as suas forccedilas uma vez que uma batalha naval se travaria ao amanhecerrdquo) Poliacutebio Hist 1605

49

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

os delineam como sentidos distintos dependendo do contexto pode ser difiacutecil discriminaacute-los como neste exemplo da frase de Heroacutedoto αὐτοι τε θαρσεομεν καὶ σοὶ ἕτερα τοιαῦτα παρακελευόμεθα (e noacutes mesmos estamos confiantes e a voacutes outros exortamos rogamos que de igual forma estejais confiantes)15

Portanto eacute importante notar que embora haja trecircs sentidos principais para o verbo παρακαλεω na literatura grega a saber (1) chamar (algo ou algueacutem) para estar perto de (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo) (2) pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo) e (3) encorajar al-gueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo) eacute possiacutevel que todos partilhem de um soacute significado mais abrangente16 Sugerimos que esse significado mais abrangente possa ser a ideia de verbalizar um forte desejo a ser realizado17 Assim no sentido (1) acima a atualizaccedilatildeo desse desejo eacute a proximidade no sentido (2) o favor ou aceitaccedilatildeo e no sentido (3) a fortitude emocional para se realizar uma accedilatildeo O substantivo derivado παρακλησις pode ser traduzido como um ldquoconviterdquo correspondendo ao sentido (1) acima ou a uma ldquoexortaccedilatildeordquo correspondendo ao sentido (3)18

12 O uso de παρακαλεω na literatura judaicaO uso predominante de παρακαλεω na LXX eacute para traduzir a raiz verbal

hebraica נחם Como נחם frequentemente se refere a um uso de palavras para encorajar algueacutem que estaacute triste ou enlutado19 παρακαλεω na LXX eacute utilizado agraves vezes no sentido (3) mencionado acima ou seja de encorajar20 Contudo de forma consistente com a raiz verbal hebraica que geralemente traduz o verbo eacute empregado com maior frequecircncia numa aplicaccedilatildeo mais especiacutefica de encorajar algueacutem que estaacute triste21 ou enlutado22 Eacute importante observar que esse sentido

15 Heroacutedoto Hist 1120616 Schmitz apresenta um quarto sentido que traduz como ldquoconfortarrdquo mas confessa que ldquonos

raros instantes nos quais o verbo e o substantivo significam lsquoconfortarrsquo no uso ordinaacuterio da liacutengua grega a consolaccedilatildeo ocorre principalmente no niacutevel de uma exortaccedilatildeo ou encorajamento para aqueles que se entristecemrdquo SCHMITZ παρακαλεω παρακλησις p 776

17 Silva nota tambeacutem de passagem um significado em comum entre o sentido (1) e o sentido (3) que identifica como ldquoa noccedilatildeo de um lsquopedidorsquordquo SILVA παρακαλεω p 628

18 Ibid p 62819 ldquoAccedilatildeo pela qual humanos ou deidades procuram fazer com que (outros) humanos sintam aliacute-

vio apoacutes um tempo de luto ansiedade ou temorrdquo MUumlLLER Enio R םחנ In Dicionaacuterio Semacircntico do Hebraico Biacuteblico Ed Reinier de Blois United Bible Societies 2021 Disponiacutevel em httpssemanti-cdictionaryorg Acesso em 28 nov 2021

20 Eg Dt 328 καὶ ἔντειλαι Ἰησοῖ καὶ κατίσχυσον αὐτὸν καὶ παρακάλεσον αὐτόν (ldquoe ordene a Josueacute e fortaleccedila-o e encoraje-ordquo) Sl 234 ἡ ῥάβδος σου καὶ ἡ βακτηρία σου αὐταί με παρεκάλεσαν(ldquoteu bordatildeo e teu cajado ndash eles me encorajaramrdquo)

21 Eg Joacute 713 εἶπα ὅτι παρακαλέσει με ἡ κλίνη μου (ldquoEu disse lsquominha cama me consolaraacutersquordquo)22 Eg Gn 3735 συνήχθησαν δὲ πάντες οἱ υἱοὶ αὐτοῦ καὶ αἱ θυγατέρες καὶ ἦλθον παρακαλέσαι

αὐτόν καὶ οὐκ ἤθελεν παρακαλεῖσθαι (ldquoAssim todos os seus filhos e filhas se reuniram e vieram para

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

50

natildeo se encontra na literatura pagatilde23 Assim embora a LXX utilize παρακαλεω para se referir ao sentido (1) de ldquoconvidarrdquo24 ou o sentido (2) de ldquosuplicarrdquo25

seu uso predominante se refere a contextos de consolo e conforto que embora conectado com o sentido (3) eacute derivado e muito mais especiacutefico Dessa forma podemos defini-lo como (4) buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Ainda em seu relacionamento tradutivo com o verbo םחנ existe um quin-to sentido de παρακαλεω na LXX a saber (5) mudanccedila de ideia e emoccedilatildeo quanto a accedilotildees passadas ou futuras (ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo) Assim em 1Sm 1511 Deus diz παρακέκλημαι ὅτι ἐβασίλευσα τὸν Σαουλ εἰς βασιλέα (ldquoEu me arrependo de que constitui a Saul como reirdquo cf 2 Sm 2416 Jz 218 Sl 13414) Esse sentido natildeo eacute atestado em nenhum outro lugar na literatura pagatilde judaica26 ou cristatilde

Interessa ainda notar que nem o sentido (4) nem o sentido (5) satildeo utiliza-dos nos escritos de Filo (eg Opif 157 Conf 83 110 Somn 2106 Ebr 193 Mos 183 etc) ou de Flaacutevio Josefo (eg Ant 115 24 48 98 BJ 3345 346 Vita 116 etc) que seguem o uso comum da literatura pagatilde De semelhante modo a literatura judaica extra-canocircnica usa παρακαλεω ou παρακλησις para se referir aos sentidos (1)27 (2)28 (3)29 e (4)30 acima mas nunca ao (5)

consolaacute-lo mas ele natildeo quis ser consoladordquo) 2Sm 102 καὶ ἀπέστειλεν Δαυιδ παρακαλέσαι αὐτὸν ἐν χειρὶ τῶν δούλων αὐτοῦ περὶ τοῦ πατρὸς αὐτου (ldquoe Davi enviou [uma mensagem] para consolaacute-lo por matildeo de seus servos concernente a seu pairdquo)

23 Cf SILVA παρακαλεω p 628-629 que tambeacutem identifica esse uso do verbo como um novo sentido paralelo ao uso de παραμυθεομαι na literatura pagatilde

24 Eg Ecircx 1513 παρεκάλεσας τῇ ἰσχύι σου εἰς κατάλυμα ἅγιόν σου (ldquoconvocaste[-os] pela tua forccedila agrave tua santa moradardquo)

25 Eg Dt 137 ἐὰν δὲ παρακαλέσῃ σε ὁ ἀδελφός σου λέγων βαδίσωμεν καὶ λατρεύσωμεν θεοῖς ἑτέροις (ldquomas se teu irmatildeo te suplicar dizendo lsquoVamos e adoremos a outros deusesrdquo)

26 Eacute possiacutevel que 2 Macabeus 76 seja uma exceccedilatildeo Contudo o texto cita Dt 3236 e sua traduccedilatildeo eacute incerta καθάπερ διὰ τῆς κατὰ πρόσωπον ἀντιμαρτυρούσης ᾠδῆς διεσάφησεν Μωυσῆς λέγων καὶ ἐπὶ τοῖς δούλοις αὐτοῦ παρακληθήσεται (ldquocomo Moiseacutes declarou em seu cacircntico o qual testificou contra o povo diante deles dizendo lsquoe ele teraacute compaixatildeo de seraacute confortado pelos seus servosrdquo)

27 Eg T Reu 49 καὶ μάγους παρεκάλεσεν (ldquoe ela convocou magosrdquo)28 Eg T Ab A 76 ἔκλαυσα δὲ μεγάλως καὶ παρεκάλεσα τὸν ἄνδρα ἐκεῖνον τὸν φωτοφόρον (ldquoe

chorei profundamente e supliquei agravequele homem reluzenterdquo)29 Eg T Naph 91 Καὶ πολλὰ τοιαῦτα ἐντειλάμενος αὐτοῖς παρεκάλεσεν ἵνα μετακομίσωσι τὰ

οστᾶ αὐτοῦ εἰς Χεβρών (ldquoE ordenando muitas coisas tais como essas ele os exortou que retornassem seus ossos a Hebromrdquo) 2 Mac 724 οὐ μόνον διὰ λόγων ἐποιεῖτο τὴν παράκλησιν ἀλλὰ καὶ δι᾽ ὅρκων (ele natildeo apenas fez a exortaccedilatildeo por meio de palavras mas tambeacutem por meio de juramentos)

30 Eg T Jos 174 ὡς ἔγνωσαν ὅτι ἀπέστρεψα τὸ ἀργύριον αὐτοῖς καὶ οὐκ ὠνείδισα ἀλλὰ καὶ παρεκάλεσα αὐτούς (ldquocomo souberam que devolvi sua prata e natildeo lhes reprovei mas deveras lhes conforteirdquo) Sir 3023 ἀπάτα τὴν ψυχήν σου καὶ παρακάλει τὴν καρδίαν σου καὶ λύπην μακρὰν ἀπόστησον ἀπὸ σοῦ (ldquoengane tua alma e console teu coraccedilatildeo e remova a tristeza para longe de tirdquo)

51

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em resumo podemos notar que o ato de traduccedilatildeo da Biacuteblia hebraica para o grego alterou o campo semacircntico da palavra παρακαλεω adicionando dois novos sentidos que pelo menos na comunidade judaica do periacuteodo do segun-do templo eram inteligiacuteveis A falta do uso do verbo no restante da literatura judaica dessa era para se referir a ldquoarrepender-serdquo ou ldquocompadecer-serdquo prova-velmente evidencia que a LXX apenas estendeu o sentido (3) a uma aplicaccedilatildeo de tristeza e luto criando assim o sentido (4) na comunidade judaica

2 O USO DE ΠΑΡΑΚΑΛΕΩ E ΠΑΡΑΚΛΗΣΙΣ NO NOVO TESTAMENTO

O verbo παρακαλεω ocorre 109 vezes e παρακλησις 29 vezes no Novo Testamento De acordo com Thomas ldquocom base apenas nas estatiacutesticas παρακαλεω παρακλησις estatildeo entre os mais importantes termos para fala e influecircncia no NTrdquo31 Em geral o Novo Testamento usa essas palavras da mesma forma que satildeo utilizadas no contexto helecircnico salvo que tambeacutem assimila a quarta definiccedilatildeo acima provinda da LXX embora natildeo a quinta Nesta seccedilatildeo seraacute dada ecircnfase agrave anaacutelise do verbo complementando-a com usos do substantivo quando adequado Contudo como jaacute foi dito anteriormente cada sentido da palavra estaacute sujeito a um significado invariaacutevel da mesma que foi postulado acima como verbalizar um forte desejo a ser realizado Assim embora exa-minemos παρακαλεω por seus sentidos o leitor deve estar ciente de que essas divisotildees satildeo heuriacutesticas e agraves vezes artificiais

21 Παρακαλεω como chamar (algo ou algueacutem) para estar perto (ldquoconvidarrdquo ldquoinvocarrdquo ou ldquoconvocarrdquo)

Esse sentido embora muito mais comum no mundo grego eacute pouco ates-tado nas Escrituras do Novo Testamento Em Atos 2820 Paulo diz a certos liacutederes judeus παρεκάλεσα ὑμᾶς ἰδεῖν καὶ προσλαλῆσαι (ldquoeu vos convideipara ver e para falar convoscordquo) Os uacutenicos outros exemplos incontestaacuteveis desse uso estatildeo em Atos 831 e 2814 Portanto nesse sentido de παρακαλεω existe continuidade linguiacutestica com o mundo helecircnico mas o fato de ele ser menos comum indica que o foco do Novo Testamento ao usar essa palavra eacute admoestativo e natildeo narrativo

22 Παρακαλεω como pedir a algueacutem para demonstrar favor (ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo)

Quando utilizado para significar ldquorogarrdquo ou ldquoimplorarrdquo o verbo παρακαλεω eacute muito mais comum nos evangelhos sinoacuteticos do que na literatura epistolar

31 THOMAS Johannes Παρακαλεω In Exegetical Dictionary of the New Testament 3 Grand Rapids Eerdmans 1992 p 23

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

52

Nesses textos os suplicantes satildeo em sua grande maioria pessoas que pedem a Jesus por uma cura (eg Mt 1436 Mc 140 523 732 Lc 74 cf At 1615)

O que intriga eacute a versatildeo de Marcos sobre o relato do endemoniado ge-raseno no qual o evangelista usa o verbo para traccedilar um paralelo entre trecircs participantes e seus temores Em primeiro lugar os democircnios temem o abismo (cf Lc 831) e ldquorogaram-lhe repetidamenterdquo (παρεκάλει αὐτὸν πολλὰ) que natildeo fossem enviados para fora do paiacutes mas para uma manada de porcos (Mc 510 12) Jaacute os gerasenos por temor da mudanccedila ocorrida no endemoniado (cf v 15) e certamente por temor de perder seu estilo de vida rogaram(ἤρξαντο παρακαλεῖν) a Jesus ldquoque se retirasse da terra delesrdquo (v 17) Contudo o homem previamente endemoniado por temor a Deus rogou (παρεκάλει) que seguisse a Jesus Assim quando utilizada para comunicar o sentido de pedir a algueacutem para demonstrar favor παρακαλεω revela natildeo somente um pedido mas tambeacutem o temor ou profundo desejo que acompanha tal pedido

Em Filemom 8-10 temos mais um exemplo importante para acrescentar ldquoPortanto mesmo que tenha toda confianccedila de te ordenar aquilo que conveacutem ainda assim te exorto (παρακαλῶ) ndash tal como sou Paulo o idoso mas agora tambeacutem prisoneiro de Cristo Jesus ndash em favor de meu filho o qual gerei em minhas cadeias Oneacutesimordquo Esse texto evidencia grande diferenccedila entre uma ldquosuacuteplicardquo e uma ldquoordemrdquo diferenccedila que continuaraacute a ser importante em casos nos quais παρακαλεω poderaacute ser traduzido como ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo contudo nunca como ldquoordenarrdquo Como diz Kenneth Grayston ldquoparakalein natildeo faz uma exigecircncia ou daacute uma ordem mas faz um pedido agraves vezes gentilmente e educadamente mas agraves vezes urgentemente e rigorosamente sempre com o desejo de obter auxiacutelio ou provocar uma accedilatildeo por persuasatildeo ou apelordquo32 Essa diferenciaccedilatildeo eacute essencial pois nas palavras do proacuteprio apoacutestolo Paulo a File-mom demonstra a eacutetica querigmaacutetica do Novo Testamento

Em resumo παρακαλεω e παρακλησις ocorrem com certa frequecircncia para denotar um pedido para demonstrar favor em lugares onde se esperaria uma ordem Isso demonstra que o apelo neotestamentaacuterio eacute agrave razatildeo e agraves emoccedilotildees e natildeo a uma hierarquia poliacutetica ou social

23 Παρακαλεω como encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo (ldquoexortarrdquo ou ldquoencorajarrdquo)

O sentido mais comum que o verbo παρακαλεω expressa no Novo Tes-tamento eacute o de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo Os instantes em que παρακαλεω emerge nesse sentido indicam um relacionamento didaacutetico com o proacuteprio evangelho Dessa forma as proacuteprias origens da igreja podem ser ligadas ao sermatildeo de Pedro no Pentecoste que foi a base para o seu apelo

32 GRAYSTON Kenneth A Problem of Translation The meaning of parakaleo paraklesis in the New Testament Scripture Bulletin 112 1980 27-31 p 28

53

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

final exortando (παρεκαλει) a multidatildeo a se arrepender e crer em Jesus como o Messias prometido (At 240)

A exortaccedilatildeo natildeo estaacute presente apenas na fundaccedilatildeo da igreja mas compotildee a proacutepria estrutura de relacionamentos na vida e ministeacuterio de membros da igreja Dessa maneira natildeo satildeo apenas os apoacutestolos que exortam e encorajam ao crente mas existem homens encarregados de um ministeacuterio de exortaccedilatildeo como Judas e Silas que levam a decisatildeo (em si jaacute chamada de um encoraja-mento [παρακλησις] At 1531) do conciacutelio de Jerusaleacutem a Antioquia e em seu trabalho como profetas ldquoencorajaram (παρεκαλεσαν) os irmatildeos e os fortaleceram com muitas palavrasrdquo (At 1532) O ministeacuterio de exortaccedilatildeoencorajamento tambeacutem foi parte essencial do serviccedilo de Timoacuteteo (1Tm 62 2Tm 42 cf 1Ts 32) Tiacutequico (Cl 47-8 Ef 621-22) e Tito (Tt 26 15) e Paulo presume haver um dom de encorajamento para a edificaccedilatildeo do corpo de Cristo (Rm 128)

Contudo engana-se quem crecirc que somente alguns especialistas na igre-ja deveriam exercer o ministeacuterio de encorajamento como fica claro em 1 Tessalonicenses 511 ldquoportanto exortai-vos (παρακαλεῖτε) uns aos outros e edificai-vos mutuamente como jaacute fazeisrdquo (cf 411) Paulo indica que todos os crentes deveriam se envover nesse ministeacuterio

De fato o autor de Hebreus deixa claro que o crente deve continuamente exortar os demais que confessam a feacute em Cristo como parte indissoluacutevel de sua vida deste lado da eternidade ldquomas exortai-vos reciprocamente cada dia enquanto que ainda seja chamado lsquohojersquordquo (Hb 313) No contexto desse versiacute-culo o autor cria um elo tipoloacutegico entre o povo de Deus que ainda aguardava o descanso da terra prometida no Ecircxodo atraveacutes do Salmo 95 que exorta o povo que jaacute se achava na terra prometida para ouvir a voz de Deus ldquohojerdquo (Sl 9511) e sua audiecircncia em perigo de cair em apostasia (Hb 312) De forma simples o crente ainda natildeo entrou no descanso de Deus assim como Israel natildeo havia entrado na terra prometida (Hb 41) e portanto um dos meios dados por Deus para algueacutem natildeo cair em apostasia eacute justamente a muacutetua exortaccedilatildeo cotidiana entre os irmatildeos (Hb 313)

Uma vez compreendida a importacircncia dessa exortaccedilatildeo para a praacutexis mi-nisterial da igreja eacute necessaacuterio indagar quanto ao seu conteuacutedo Como foi dito acima a exortaccedilatildeo estaacute intimamente interconectada com o ensino do evangelho como pode ser observado nas descriccedilotildees do ministeacuterio de Joatildeo Batista em Lucas 318 ldquoAssim pois com muitas outras exortaccedilotildees (παρακαλῶν) ele proclama-va o evangelho (εὐηγγελιζετο) ao povordquo e de Timoacuteteo em 1 Tessalonicenses 32 ldquoe enviamos a Timoacuteteo nosso irmatildeo e cooperador de Deus no evangelho (εὐαγγελιῳ) de Cristo para estabelecer-vos e encorajar (παρακαλεσαι) quanto agrave vossa feacuterdquo O evangelho deve ser acompanhado de um encorajamento a ser transformado por sua mensagem de forma que a palavra eacute repetida em vaacuterios contextos sapienciais Outro exemplo estaacute na triacuteade de instruccedilotildees ministeriais

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

54

que Paulo deixa a seu disciacutepulo Timoacuteteo ldquoAteacute que eu venha decirc atenccedilatildeo agrave leitura agrave exortaccedilatildeo (τῇ παρακλήσει) ao ensinordquo (1Tm 413)

A παρακλησις cristatilde proveacutem das proacuteprias Escrituras do Antigo Testamento (Rm 154 Hb 125) e como tal eacute em dois lugares do Novo Testamento uti-lizada para se referir a uma espeacutecie de homilia Lucas descreve o convite que Paulo recebeu na sinagoga de Antioquia da Pisiacutedia para falar ldquouma palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo provavelmente um termo judaico para um discurso religioso de alguma espeacutecie33 Contudo o discurso de Paulo eacute baseado tanto no Antigo Testamento (At 1317-22 33-34 40-41) quanto no evangelho (At 1323-41) de forma que ele mesmo explica o conteuacutedo de sua palavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως) como uma ldquopalavra de salvaccedilatildeordquo (At 1326) e o ldquoevangelho da promessa feita a nossos paisrdquo (At 1332) De modo semelhante o autor de Hebreus em 1322 exorta (παρακαλῶ) seus irmatildeos a receberem a epiacutestola como uma ldquopalavra de exortaccedilatildeo (λόγος παρακλήσεως)rdquo Considerando tanto a expressatildeo λόγος παρακλήσεως com seu paralelo exato em At 1315 quanto a ecircnfase evangeliacutestica de Hebreus baseada claramente na exposiccedilatildeo do Antigo Testamento podemos ver que a exortaccedilatildeo cristatilde baseava seu conteuacutedo no conteuacutedo das proacuteprias Escrituras e do evangelho

Por uacuteltimo tambeacutem eacute necessaacuterio salientar que a exortaccedilatildeo do Novo Testamento natildeo tem como seu conteuacutedo apenas o evangelho mas o mesmo eacute a fonte de toda exortaccedilatildeo neotestamentaacuteria e a razatildeo teoloacutegica pela qual ela for-mava o modus operandi da igreja primitiva Assim como Silva observa Paulo

[] natildeo daacute instruccedilatildeo moral aos seus leitores de forma direta mas os aborda ldquopor meiordquo de Deus ou Cristo ie ele pensa em sua admoestaccedilatildeo como mediada ldquopelas misericoacuterdias de Deusrdquo (Rm 121 [ARA] cf v 3) ldquopelo nosso Senhor Jesus Cristo e pelo amor do Espiacuteritordquo (1530) ldquono nome do nosso Senhor Jesus Cristordquo (1Co 110) ldquopela humildade e gentileza de Cristordquo (2Co 101)34

Desse modo ao descrever seu ministeacuterio apostoacutelico em 2 Coriacutentios Paulo explica que como embaixador de Deus ele comunica a proacutepria exortaccedilatildeo de Deus ldquocomo se Deus exortasse (παρακαλοῦντος) por nosso intermeacutedio imploramos em nome de Cristo reconciliai-vos com Deusrdquo (520) e ldquocoope-rando com Ele tambeacutem vos encorajamos (παρακαλοῦμεν) a natildeo receber a graccedila de Deus em vatildeordquo (61)

33 Observe como Fiacutelon usa παρακλησις em paralelo com παραινεσις em Cont 112 οἱ δὲ ἐπὶ θεραπείαν ἰόντες οὔτε ἐξ ἔθους οὔτε ἐκ παραινέσεως ἢ παρακλήσεώς τινων ἀλλ᾽ ὑπ᾽ ἔρωτος ἁρπασθέντες οὐρανίου hellip ἐνθουσιάζουσι μέχρις ἂν τὸ ποθούμενον ἴδωσιν (ldquoOs que se aplicam a essa cura natildeo por causa de um costume ou por causa de uma mensagem ou a exortaccedilatildeo de qualquer pessoa mas sendo arrebatados por um ardor celestehellip satildeo inspirados ateacute enxergarem o objeto desejadordquo)

34 SILVA παρακαλεω p 630

55

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

Em siacutentese quando o sentido de παρακαλεω de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho A exortaccedilatildeo seraacute de viver uma conduta que de alguma forma se baseia no ensino apostoacutelico e biacuteblico concernente ao evangelho Contudo eacute importante considerar tambeacutem que a proacutepria prepon-deracircncia de exortaccedilatildeo no Novo Testamento aponta para o fato de que haacute uma eacutetica do Reino de Deus que se desenvolve por meio desse vocabulaacuterio na qual ldquoo relacionamento de autoridade de um apoacutestolo com suas igrejas eacute expressado mais por persuasatildeo do que por ordensrdquo35 Assim se o Reino pertence a Deus natildeo aos homens a exortaccedilatildeo que acontece eacute na famiacutelia de Deus como Paulo diz em 1 Tessalonicenses 211-12 ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exortamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo

24 Παρακαλεω como buscar dar aliacutevio a quem se encontra enlutado ou aflito (ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo)

Como foi dito acima esse quarto sentido de παρακαλεω natildeo encontra paralelo na literatura grega fora da LXX e de outros escritos judaicos No entanto mesmo quando traduzido por ldquoconsolarrdquo ou ldquoconfortarrdquo παρακαλεω no Novo Testamento natildeo aparece em contextos de luto que satildeo mais comuns na LXX mas de sofrimento ansiedade e afliccedilatildeo em geral36

Uma vez que esse uso de παρακαλεω eacute derivado do Antigo Testamento devemos ler a palavra no Novo Testamento jaacute com a suspeita de que ela se re-fere a realidades que conectam os dois testamentos De fato o primeiro uso da palavra no Novo Testamento ocorre em Mateus 218 que cita Jeremias 311537

No Sermatildeo do Monte Jesus proclama uma becircnccedilatildeo sobre ldquoos que choram por-que seratildeo consolados (παρακληθήσονται)rdquo o que tambeacutem remete ao Antigo Testamento especificamente Isaiacuteas 611-2 no qual uma figura messiacircnica recebe o Espiacuterito do Senhor ldquopara consolar (παρακαλεσαι) os que choramrdquo

Na verdade vaacuterios textos de Isaiacuteas proclamam um futuro escatoloacutegico no qual o Israel de Deus seria consolado (Is 401-2 4913 5718 6613) Essa esperanccedila escatoloacutegica eacute reavivada por Simeatildeo em Lucas 225 que ldquoaguardava a

35 GRAYSTON A Problem of Translation p 2836 Uma possiacutevel exceccedilatildeo eacute o caso do jovem em Atos 2012 que havia morrido mas os crentes satildeo

ldquoconfortadosrdquo (παρακλήθησαν) natildeo a respeito de sua morte o que indicaria um contexto de luto mas justamente por causa de sua ressurreiccedilatildeo

37 Jeremias 3115 natildeo usa o verbo παρακαλεω mas eacute possiacutevel que haja uma citaccedilatildeo composta em Mt 218 com Jr 3115 e Gn 3735 no qual Jacoacute ldquose recusou a ser consoladordquo (παρακαλεσαι) Cf AKAGI Kai ldquoIs that a Joseph reference Genesis Jeremiah 31 and chain allusion in Matthew 218rdquo No prelo

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

56

consolaccedilatildeo (παρακλησιν) de Israelrdquo Portanto mesmo em Lucas 624 e 1625 quando παρακλησις e παρακαλεω satildeo usados respectivamente para falar sobre o ldquoconsolordquo do rico e o ldquoconfortarrdquo de Laacutezaro nota-se claramente um tom escatoloacutegico em que ambos os textos se referem ao destino final da alma

Por uacuteltimo eacute necessaacuterio explicar o uso de παρακαλεω e παρακλησις em 2 Coriacutentios Das 138 vezes que as duas palavras ocorrem no Novo Testamento 29 ocorrecircncias vecircm deste livro grande parte das quais se refere natildeo aos sentidos (1-3) delineados acima mas agrave noccedilatildeo de buscar dar aliacutevio a quem se encontra aflito Logo no iniacutecio da epiacutestola apoacutes a saudaccedilatildeo Paulo menciona Deus como ldquoo Deus de toda consolaccedilatildeo (παρακλήσεως)rdquo (13) Assim o apoacutestolo utilizaraacute παρακαλεω e παρακλησις dez vezes em 2 Coriacutentios 13-7 em todos os casos descrevendo a consolaccedilatildeo do crente contra suas tribulaccedilotildees (v 4) que vem por meio da uniatildeo do crente com Cristo tanto no sofrimento quanto no consolo (v 5) o que tambeacutem cria um viacutenculo entre os que estatildeo em Cristo A conexatildeo expliacutecitamente messiacircnica natildeo deixa duacutevida que

[] para Paulo a era messiacircnica jaacute havia iniciado todavia concomitante com o percurso final da antiga era e eacute esta justaposiccedilatildeo das duas eras que explica a surpreendente simultaneidade da afliccedilatildeo e do conforto dos quais ele fala na presente passagem A consolaccedilatildeo final dos filhos de Deus aguarda o dia da revelaccedilatildeo de Jesus Cristo em gloacuteria Poreacutem por causa da inauguraccedilatildeo da era messiacircnica por Cristo em sua primeira vinda o crente experimenta no tempo presente o conforto de Deus como um antegosto daquela uacuteltima consolaccedilatildeo38

Arraigado assim nas verdades escrituriacutesticas messiacircnicas e escatoloacutegicas do consolo que vem da parte de Deus Paulo pode tambeacutem terminar sua epiacutestola recomendando que todos os irmatildeos da igreja se consolem (2Co 1311) Afinal no tempo presente o consolo eacute parte essencial de todos os que se encontram em Cristo

Portanto quando παρακαλεω e παρακλησις satildeo utilizados para se referir a ldquoconsolordquo no Novo Testamento o consolo ao qual se referem natildeo eacute geneacuterico Na verdade elas se referem a uma realidade que estaacute intimamente conectada com as Escrituras e a esperanccedila de Israel a vinda do Messias e a consequente transformaccedilatildeo da criaccedilatildeo por Deus

3 IMPLICACcedilOtildeES PARA O ACONSELHAMENTO BIacuteBLICO NA IGREJA LOCAL

Embora resumida a reflexatildeo sobre o uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento estabelece princiacutepios importantes para o ministeacuterio de encorajamento na igreja local O objetivo de toda reflexatildeo teoloacutegica deve

38 KRUSE Colin G 2 Corinthians An introduction and commentary TNTC 8 Downers Grove IL Intervarsity Press 1987 p 61

57

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

sempre ser o de contribuir com a praacutexis da igreja de Deus pois ldquoquando en-xergamos de modo diferente interpretamos de maneira diferente Temos uma reaccedilatildeo diferente temos uma intenccedilatildeo diferente agimos de modo diferenterdquo39

No caso do aconselhamento todo meacutetodo modelo e ateacute instituiccedilotildees se en-contram alicerccedilados nos conceitos estruturais de seus proponentes Portanto esses conceitos necessitam ser oriundos dos ensinamentos biacuteblicos ao inveacutes de apenas usar as Escrituras como referecircncia ocasional

No presente artigo ressaltamos cinco implicaccedilotildees diretas do nosso estudo sobre o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις Outros toacutepicos poderiam ser observados e desenvolvidos mas esses parecem ser suficientes para o momento

Em primeiro lugar as observaccedilotildees exegeacuteticas deixam claro que Deus eacute mostrado como a fonte do verdadeiro conforto e a expressatildeo uacuteltima desse con-solo eacute a salvaccedilatildeo de seu povo Em seu amor Deus tem proporcionado conforto eterno e boa esperanccedila por meio da graccedila Afinal de contas ele eacute o

[] o Pai de misericoacuterdias e Deus de toda consolaccedilatildeo Eacute ele que nos conforta em toda a nossa tribulaccedilatildeo para podermos consolar os que estiverem em qual-quer anguacutestia com a consolaccedilatildeo com que noacutes mesmos somos contemplados por Deus (2Co 13-4)

A implicaccedilatildeo para o aconselhamento biacuteblico eacute que natildeo haacute possibilidade de consolo real se Deus natildeo for considerado no processo

O ensinamento biacuteblico eacute que o ser humano natildeo apenas foi ldquocriado agraverdquo mas continua ldquosendordquo a imagem de Deus e por isso toda a sua existecircncia ocorre coram Deo Excluir Deus sua perspectiva obra Palavra e povo do processo de aconselhamento eacute investir tempo em algo menos do que satisfatoacuterio e ateacute idoacutelatra Como corretamente afirma Powlison ldquoquando incluiacutemos Deus no cenaacuterio muda nosso jeito de pensar no problema diagnoacutestico estrateacutegia soluccedilatildeo ajuda cura mudanccedila entendimento e conselheirordquo40 Assim para que qualquer ministeacuterio de encorajamento seja considerado biacuteblico ele precisa ser teocecircntrico extraindo sua praacutetica da revelaccedilatildeo que Deus faz de si mesmo nas Escrituras Nenhum sistema terapecircutico conseguiraacute compreender o maior problema do ser humano se natildeo compreender a apresentaccedilatildeo biacuteblica de que a

39 POWLISON David Uma nova visatildeo O aconselhamento e a condiccedilatildeo humana atraveacutes das lentes das Escrituras Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2010 p 5 Nesse livro Powlison corretamente afirma que ldquoum modelo compreensivo tem quatro componentes Uma estrutura conceitual que defina normas problemas e soluccedilotildees Uma metodologia que envolva conversaccedilatildeo habilidosa e intencional para reme-diar os males em questatildeo Uma estrutura social que distribua cura e cuidado a pessoas necessitadas de ajuda Uma apologeacutetica que sujeite todos os demais sistemas agrave criacutetica e defenda nosso modelo contra os adversaacuteriosrdquo p 6-10

40 POWLISON Uma nova visatildeo p 5

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

58

humanidade estaacute em inimizade com o Deus Santo a uacutenica fonte de verdadeiro consolo Sem essa concepccedilatildeo qualquer sistema terapecircutico seraacute meramente paliativo

Em segundo lugar o conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento na igreja local consiste na apresentaccedilatildeo das verdades do evangelho da obra gloriosa realizada por Cristo Jesus Como foi dito anteriormente quando o sentido de encorajar algueacutem a algum pensamento ou accedilatildeo de παρακαλεω vem agrave tona no Novo Testamento esse encorajamento estaacute intimamente ligado ao evangelho Portanto mais importante do que teacutecnicas e habilidades nesse processo satildeo o conhecimento e a fidelidade aos ensinamentos do evangelho O ministeacuterio de exortaccedilatildeo e encorajamento exercido pelos apoacutestolos e liacutederes congregacionais no Novo Testamento ocorreu principalmente por meio do ensino e da pregaccedilatildeo Nessas ocasiotildees o conteuacutedo do encorajamento ou exortaccedilatildeo apresentados eram as gloriosas verdades do evangelho de Cristo

Nesse sentido um exemplo claro eacute a carta aos Filipenses Dentre muitos assuntos encontrados na carta um toacutepico dominante eacute o apelo em prol da reso-luccedilatildeo de conflitos existentes entre duas irmatildes da igreja local Com rogos Paulo exorta Evoacutedia e Siacutentique que ldquopensem concordemente no Senhorrdquo (Fp 42) Entretanto o leitor deve observar que no iniacutecio da carta o apoacutestolo utilizou a gloriosa doutrina da encarnaccedilatildeo de Cristo (cap 2) especialmente o fato de o Senhor ter se esvaziado de sua gloacuteria natildeo julgar com usurpaccedilatildeo o fato de ser Deus e assumir a forma de servo (v 5-7) como fundamento para apelar aos irmatildeos a cultivarem o ldquomesmo sentimento que houve tambeacutem em Cristo Jesusrdquo (v 5) Assim a verdade do evangelho foi corretamente aplicada ao processo de resoluccedilatildeo de conflitos

O conteuacutedo do ministeacuterio de encorajamento da igreja local natildeo consiste em um discurso moralista e nem comportamentalista Tambeacutem a exortaccedilatildeo a esse respeito natildeo se fundamenta na experiecircncia pessoal de algueacutem mas na obra de Cristo conforme proclamada e ensinada pelos apoacutestolos do Senhor Quer seja por pregaccedilatildeo puacuteblica ou instruccedilatildeo particular o conselheiro biacuteblico deve atentar para o fato de que o conteuacutedo de seu ministeacuterio eacute o evangelho de Cristo

Uma terceira implicaccedilatildeo do uso de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento eacute que o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme e plurifacetado Ou seja natildeo haacute apenas uma maneira de proceder mas a sabedoria convida a utilizar diferentes abordagens a esse respeito desde que elas estejam emba-sadas nas Escrituras

Eacute instrutivo observar como Jay Adams explorou e utilizou corretamente o destaque da palavra νουθετεω e de seu substantivo cognato νουθεσια Muita coisa relevante foi produzida pelos esforccedilos daquele irmatildeo e de vaacuterios de seus seguidores como fruto da atenccedilatildeo dada ao uso desse termo pelos apoacutestolos To-davia inuacutemeros leitores de Adams cultivaram o entendimento de que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico consiste unicamente no processo de confrontaccedilatildeo

59

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

do aconselhado bem como na determinaccedilatildeo do ldquodespir-serdquo e ldquorevestir-serdquo encontrados na Biacuteblia41 O estudo de παρακαλεω e παρακλησις especialmente nos ensinos epistolares indica que a praacutetica do aconselhamento biacuteblico tambeacutem deve contemplar a ldquoconsolaccedilatildeordquo ldquoexortaccedilatildeordquo ldquoencorajamentordquo e ldquoajudardquo ou seja um verdadeiro processo de chamar algueacutem para perto de si e iniciar uma jornada em prol da maturidade espiritual em Cristo Natildeo haacute uma palavra uacutenica para definir e representar tudo o que estaacute envolvido nesse ministeacuterio Eacute necessaacuterio considerar que biblicamente falando encorajamento eacute a norma para o relacionamento cristatildeo e confrontaccedilatildeo deveria ser algo raro e anormal

A variedade da terminologia empregada nas Escrituras testifica sobre a multiplicidade de abordagens a serem desenvolvidas nesse processo Como afirma Powlison ldquoa Biacuteblia modela como a verdade eacute empregada e esse uso envolve uma flexibilidade e adaptabilidade que poderatildeo parecer chocantes perigosas e desconhecidas Mas as alternativas [contemporacircneas] a essa praacutetica pastoral criativa e perceptiva poderiam ter parecido chocantes perigosas e desconhecidas ao apoacutestolo Paulordquo42 O estudo sobre παρακαλεω e παρακλησις ensina que Deus fala aos seus de diferentes maneiras e por isso o ministeacuterio de encorajamento eacute multiforme

Em quarto lugar o presente estudo indica que o ministeacuterio de encoraja-mento na igreja local natildeo conta apenas com ldquopessoas especialistasrdquo na aacuterea mas eacute um serviccedilo a ser exercido por todos os crentes O Maravilhoso Conse-lheiro e o Pai de toda consolaccedilatildeo usam cada um de seus filhos para confortar ldquouns aos outrosrdquo O Novo Testamento ensina que a exortaccedilatildeo muacutetua em uma congregaccedilatildeo eacute essencial para corrigir problemas de incredulidade conflitos anguacutestias tentaccedilotildees e ateacute apostasias Esse eacute um meio divinamente indicado de encorajar os cristatildeos a perseverarem na feacute O Espiacuterito Santo opera ordi-nariamente por meio daqueles que se dedicam ao amor fraternal a ponto de exortarem ldquouns aos outrosrdquo

Esse ministeacuterio sendo algo possibilitado pelo advento de Cristo eacute esca-toloacutegico Isto eacute ele natildeo era possiacutevel antes que o Cristo viesse e transformasse seu povo Com base nisso cada crente eacute reconstruiacutedo agrave imagem de Cristo em um veiacuteculo da graccedila encorajadora e escatoloacutegica que eacute parte da nova re-alidade eclesiaacutestica Em outras palavras no modelo cristocecircntrico de ajuda muacutetua (o ministeacuterio de encorajamento biacuteblico) natildeo ldquoexiste algo como uma pessoa desnecessaacuteriardquo43 Mas tambeacutem natildeo existe algo como uma pessoa sem

41 Cf LAMBERT Heath Aconselhamento biacuteblico depois de Jay Adams Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

42 POWLISON Uma nova visatildeo p 31 43 WELCH Ed Lado a lado Relacionamentos com sabedoria e amor Satildeo Paulo Cultura Cristatilde

2017 p 10

VALDECI SANTOS E DANILLO A SANTOS O MINISTEacuteRIO DO ENCORAJAMENTO NA IGREJA LOCAL

60

necessidades Por isso Deus redimiu para si um povo e colocou seus filhos ldquolado a ladordquo para que eles se ajudem mutuamente

Em uacuteltimo lugar o emprego neotestamentaacuterio de παρακαλεω e παρακλησις indica que o ministeacuterio de encorajamento praticado na igreja local deve pre-servar a caracteriacutestica de aconselhamento familiar Nesse sentido eacute instrutivo observar o paradigma adotado por Paulo no relacionamento de aconselhamento com os membros de congregaccedilotildees locais Em 1 Tessalonicenses 211-12 ele afirma ldquoda mesma forma sabeis que como um pai a seus filhos noacutes exor-tamos (παρακαλοῦντες) a cada um de voacutes e consolamos e testificamos para que andaacutesseis de modo digno de Deus o qual vos chamou para seu proacuteprio reino e gloacuteriardquo Ou seja Paulo se refere a um relacionamento familiar com seus aconselhados aos quais ele tratou paternalmente (natildeo com paternalismo)

O ensino apostoacutelico sobre o ministeacuterio de encorajamento na igreja local objetiva fazer com que os cristatildeos se relacionem como irmatildeos e irmatildes ou seja uma famiacutelia Powlison observa que

Essa concepccedilatildeo de ministeacuterio permeia toda a carta de 1 Tessalonicenses Cer-tamente o pai eacute ldquonosso Deus e Pairdquo (13-4) Ele escolheu e amou cada filho de sua famiacutelia Mas agrave medida que seus filhos crescem eles comeccedilam a assumir responsabilidades sobre outros irmatildeos e irmatildes Paulo Silvano e Timoacuteteo satildeo irmatildeos mais velhos e mais saacutebios mas eles agem como uma matildee e como um pai para seus irmatildeos e irmatildes (27-12) Esse eacute um paradigma memoraacutevel no qual podemos estruturar nossa praacutetica de aconselhamento44

Nesse contexto familiar eacute necessaacuterio oferecer exortaccedilatildeo e consolo agravequeles que sofrem seja pelo luto pelos pecados pelas frustraccedilotildees pelas lutas espirituais e assim por diante Cada irmatildeo e irmatilde deve estar atento e disposto a levar o consolo de Cristo aos demais membros da famiacutelia

Inuacutemeras outras implicaccedilotildees poderiam ser extraiacutedas da reflexatildeo sobre o uso e ensinamento epistolar de παρακαλεω e παρακλησις no Novo Testamento Contudo esses cinco princiacutepios satildeo baacutesicos e necessaacuterios para a praacutetica mi-nisterial de encorajamento no corpo de Cristo

CONCLUSAtildeOO objetivo deste estudo foi explorar o emprego de alguns termos gregos

utilizados para descrever o ministeacuterio de consolo e conforto no Novo Testa-mento Atendendo aos princiacutepios de brevidade e objetividade a atenccedilatildeo recaiu apenas sobre dois termos comumente usados na literatura epistolar neotesta-mentaacuteria Ainda assim esse exerciacutecio revelou riqueza incomum sobre o assunto bem como alguns princiacutepios a serem aplicados ao ministeacuterio de encorajamento

44 POWLISON David Familial counseling The paradigm for counselor-counseling relationship in 1Thessalonians 5 The Journal of Biblical Counseling (Winter 2007) p 2

61

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 4 5 - 6 1

muacutetuo na igreja local A expectativa dos autores eacute que ele tenha sido natildeo apenas instrutivo mas tambeacutem incentivador a outros no sentido de se esforccedilarem por oferecer recursos para uma teologia biacuteblica de aconselhamento

ABSTRACTWhat is the best pattern of ministry for the local church that is able to adapt

the practice of biblical counseling that is the encouraging of one another to its existential dynamics How does one explore resources that are biblically oriented for the ministerial practice of the church in the call to encourage one another The purpose of this article is to investigate the New Testament use of παρακαλεω and παρακλησις and through this investigation to extract some conclusions that contribute to the biblical theology of biblical counseling This study is divided in three parts beginning with a general analysis of the Greek terms in their several contexts outside the New Testament followed by their usage in the New Testament writings and concluding with some suggestions concerning the implications of this study for the current modus operandi of biblical counseling in the context of the local church Though a technical study at certain points the purpose of this study is to be applicable to the ministry of the local church

KEYWORDSBiblical counseling Encouragement Comfort Biblical theology

παρακαλεω and παρακλησις

63

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 6 3 -7 6

PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINOHeber Carlos de Campos

RESUMONo estudo da teologia as palavras devem ser utilizadas com muito cuidado

e criteacuterio O seu sentido teacutecnico nem sempre corresponde ao sentido comum Tal eacute o caso dos termos ldquoeternordquo e ldquoeternidaderdquo No sentido estrito de uma realidade que sempre existiu e sempre existiraacute somente Deus eacute eterno soacute ele eacute dotado de eternidade Esse eacute um de seus atributos incomunicaacuteveis exclusivos dele natildeo compartilhados com mais nada e mais ningueacutem Este artigo argumenta que nesse sentido nem mesmo o reino de Deus eacute eterno A ideia de reino soacute faz sentido em relaccedilatildeo agrave criaccedilatildeo ao mundo criado Antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino e portanto Deus natildeo era rei porque natildeo havia nada sobre o que reinar Eacute dessa maneira que devem ser entendidos os textos biacuteblicos que falam em eternidade em relaccedilatildeo ao reino de Deus O autor tambeacutem argumenta que todavia algo que natildeo existiu para sempre no passado poderaacute ter uma existecircncia interminaacutevel no futuro Assim a criaccedilatildeo o reino e a redenccedilatildeo satildeo infindaacuteveis mas natildeo eternos

PALAVRAS-CHAVEEterno Eternidade Atributos comunicaacuteveis e incomunicaacuteveis Deus como

Rei Reino de Deus Infindaacutevel

Este artigo natildeo tem vieacutes acadecircmico mas eacute apenas uma tentativa de esclarecer alguns pontos sobre a eternidade divina que via de regra natildeo satildeo tratados nas teologias sistemaacuteticas claacutessicas1

Doutor em Teologia Sistemaacutetica (ThD 1992) pelo Concordia Theological Seminary Saint Louis EUA mestre em Teologia Contemporacircnea (ThM 1987) pelo Seminaacuterio Presbiteriano JMC Satildeo Paulo bacharel em Teologia (1973) pelo Seminaacuterio Presbiteriano de Campinas Professor de Teologia Sistemaacutetica no CPAJ Autor de muitos livros nessa aacuterea

1 O tema deste artigo eacute tratado mais amplamente no livro do autor O Reino de Deus no Mundo da Editora Monergismo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

64

Pouco se fala obre a eternidade Praticamente ningueacutem a define ou es-tabelece paracircmetros em relaccedilatildeo agraves coisas existentes Por essa razatildeo a minha tentativa seraacute a de clarear as coisas que podem ser clareadas sobre a eternidade ainda que seja uma tarefa muito difiacutecil Veja alguns aspectos

1 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO Deus possui muitos atributos ou qualidades essenciais que fazem com que

ele seja o que eacute Alguns desses atributos satildeo chamados de ldquocomunicaacuteveisrdquo ou seja Deus fez com que suas criaturas humanas tivessem em medida muitiacutessimo menor os atributos da bondade do amor da misericoacuterdia da paciecircncia etc

Entretanto haacute outros atributos que pertencem soacute a Deus exclusivamente agrave divindade triuacutena Para nomear apenas alguns dizemos que esses atributos satildeo conhecidos como a independecircncia a infinidade e a imutabilidade que juntados com a eternidade formam o conjunto de qualidades pertencentes somente ao Ser Divino

Haacute duas ocasiotildees em que a palavra eterno pode ser apresentada como legiacutetima

11 Quem eacute eternoA primeira eacute o proacuteprio Deus Deus eacute o uacutenico ser eterno e a eternidade eacute

parte da sua essecircncia Triunitariamente Deus eacute eterno Natildeo haacute uma das pes-soas mais antiga que as outras Embora haja precedecircncia do Pai sobre o Filho e sobre o Espiacuterito Santo na chamada Trindade Funcional as trecircs pessoas satildeo essencialmente eternas na chamada Trindade Ontoloacutegica

Por que devo considerar Deus como um ser eterno

- Deus eacute eterno porque ele nunca veio agrave existecircncia- Deus eacute eterno porque ele eacute incriado- Deus eacute eterno porque ele eacute independente- Deus eacute eterno porque ele eacute criador

O fato de Deus ser criador do ceacuteu e da terra eacute uma verdade que exige a eternidade em Deus porque a criaccedilatildeo eacute a primeira coisa que existe fora dele proacuteprio O Salmista diz que ldquoantes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo de eternidade a eternidade tu eacutes Deusrdquo (Sl 902)

Isso significa entatildeo que

- Tudo o que veio agrave existecircncia natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criado natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute dependente natildeo eacute eterno- Tudo o que eacute criatura natildeo eacute eterno

65

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

12 O que mais eacute eternoA segunda coisa que estaacute relacionada com a eternidade de Deus tem a

ver com seus decretos Neste segundo caso a palavra ldquoeternordquo se aplica aos decretos divinos porque eles foram elaborados antes da fundaccedilatildeo do mundo Toda a histoacuteria humana foi designada antes de haver tempo e de haver espaccedilo Deus determinou todas as coisas de antematildeo

Todavia devemos entender que a eternidade dos decretos natildeo eacute exata-mente a mesma coisa que a eternidade do Ser Divino Deus decretou todas as coisas antes da fundaccedilatildeo do mundo mas ele poderia natildeo tecirc-las decretado Deus poderia continuar sendo o eterno sem ter necessidade de decretar a existecircncia do universo O Ser Divino nunca veio agrave existecircncia mas natildeo podemos dizer a mesma coisa da elaboraccedilatildeo dos decretos Deus resolveu decretar a criaccedilatildeo do territoacuterio do seu reino e nele realizar a histoacuteria previamente anunciada Portanto a existecircncia da histoacuteria eacute produto do decreto divino

Diferentemente dos seus decretos o Ser Divino nunca foi planejado e nunca veio agrave existecircncia Ao contraacuterio foi ele quem planejou tudo e a tudo trouxe agrave existecircncia Portanto a palavra ldquoeternordquo cabe com mais exatidatildeo no Yehowah triuacuteno

2 A ETERNIDADE Eacute UM ATRIBUTO DIVINO INCOMUNICAacuteVELOs atributos incomunicaacuteveis satildeo aqueles que distinguem Deus como

Deus sendo iacutempar naquilo que ele eacute e faz Esses atributos satildeo marca distintiva do Altiacutessimo que o tornam absolutamente inigualaacutevel Eles satildeo exclusivos de Deus e natildeo haacute nenhuma correspondecircncia deles nos seres humanos Natildeo haacute traccedilos quaisquer deles nas suas criaturas Natildeo haacute nenhuma analogia em nosso ser com aquilo que eacute proacuteprio e exclusivo da divindade

Se a eternidade eacute um atributo divino incomunicaacutevel ela natildeo pode ser manifesta Quando falamos dos atributos comunicaacuteveis eacute mais faacutecil entender por exemplo que Deus eacute amor Ele natildeo decreta ser amor mas ele eacute amor Todavia ele decretou manifestar o seu amor aos seres criados que vieram a existir na histoacuteria Entretanto os atributos incomunicaacuteveis (que eacute o caso da eternidade) natildeo podem ser manifestos na histoacuteria Deus natildeo pode manifestar sua eternidade porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra Somente as opera ad extra podem ser manifestas fora do ser divino Apenas podemos saber que a eternidade eacute uma propriedade exclusivamente sua Nada do que foi criado pode possuir eternidade

3 A ETERNIDADE PRECISA SER DEVIDAMENTE ENTENDIDAA eternidade eacute um atributo incomunicaacutevel sobre o qual conhecemos muito

pouco porque ela escapa totalmente agraves ponderaccedilotildees da nossa mente Ela faz um contraste absoluto com tudo o que podemos ver tocar sentir e imaginar

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

66

O seu significado foge dos grandes fatores da temporalidade e da fisicalidade que estatildeo relacionados agrave criaccedilatildeo da qual fazemos parte

As palavras hebraica olam e grega aionios traduzidas na Escritura como eterno exceto quando satildeo uma referecircncia agrave natureza essencial do Ser Divino precisam ser interpretadas de um modo apropriado para que evitemos con-ceitos errocircneos sobre a mateacuteria e para que natildeo equalizemos as coisas criadas a Deus Tudo o que diz respeito agraves accedilotildees divinas neste mundo tem a ver com alguma coisa que natildeo eacute eterna porque elas satildeo feitas no tempo e no espaccedilo

Qual eacute o significado de ldquoeternordquo Natildeo podemos conectar essa palavra a qualquer noccedilatildeo temporal Por isso posso dizer que ldquoeternordquo natildeo eacute algo que possui duraccedilatildeo sem fim ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa infindaacutevel ldquoeternordquo natildeo eacute alguma coisa interminaacutevel Todas essas palavras implicam em noccedilatildeo temporal continuada Diferentemente do que eacute temporal eterno eacute aquilo que faz contraste com o que eacute temporal

Isto posto entatildeo vamos aos pontos fundamentais deste artigo

4 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO A SUA REALEZAQuando tratamos da mateacuteria de Deus como Rei temos que ter o devido

cuidado para natildeo sermos inconsistentes teologicamente Temos que afirmar com todas as letras que Deus eacute eterno mas natildeo a sua realeza Entretanto en-contramos nas traduccedilotildees da Escritura a afirmaccedilatildeo de que Deus eacute rei eterno

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Como devemos entender essa afirmaccedilatildeo sobre a eternidade da realeza divina A expressatildeo grega traduzida como ldquoRei eternordquo eacute βασιλεῖ τῶν αἰώνἰων (Basilei ton aionion) Para verificar se a eternidade eacute uma qualidade essencial da realeza divina entatildeo algumas perguntas cruciais tecircm que ser feitas

41 A realeza eacute um atributo essencial divinoOutra maneira de fazer a pergunta eacute a seguinte ldquoEacute a realeza um atributo

essencial em Deusrdquo Natildeo se esqueccedila de que algo essencial eacute aquilo que natildeo poderia faltar a uma pessoa ou a uma coisa Entatildeo se aionion eacute um atributo essencial da realeza vocecirc deve afirmar que a sua realeza eacute eterna Para alguns estudiosos a realeza divina eacute uma realidade que lhe eacute essencial

Entretanto eu tenho que dizer que natildeo haacute nenhuma indicaccedilatildeo na Escri-tura sobre a realeza como sendo essencial em Deus Ele poderia perfeitamente continuar sendo o que sempre foi sem se tornar Rei No entanto ele decidiu se tornar Rei e para isso ele teve que decretar a existecircncia do territoacuterio do seu reino que eacute o universo e tambeacutem decretou a existecircncia dos suacuteditos dele A existecircncia do seu reino e dos seus suacuteditos eacute resultado do decreto divino

67

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

A necessidade da realeza divina estaacute vinculada natildeo agrave sua essecircncia mas ao decreto divino de criar um reino e tudo o que esteja relacionado a ele

Entretanto se vocecirc afirmar que a realeza divina eacute essencial nele entatildeo vocecirc poderaacute afirmar a eternidade da realeza divina Essa eacute uma deduccedilatildeo loacutegica Entatildeo quando afirmamos a eternidade do Rei temos que fazer outras perguntas de quem e de que ele eacute Rei

42 Se sua realeza eacute eterna sobre quem ele reinava na eternidade

Com certeza na eternidade ele natildeo tinha sobre quem reinar porque somente ele existia Se natildeo houvesse ocorrido a criaccedilatildeo do mundo ele natildeo poderia reinar sobre si mesmo jaacute que antes da fundaccedilatildeo do mundo ningueacutem existia exceto o Deus triuno Certamente ele natildeo poderia reinar sobre o Filho e o Espiacuterito que tambeacutem possuem a mesma natureza divina tendo a propriedade da eternidade Aleacutem disso natildeo havia nenhum territoacuterio em seu reino

Para que ele se tornasse rei ele teria que possuir um reino e tambeacutem teria que criar um territoacuterio de seu reino Entatildeo Deus decidiu fazer-se a si mesmo Rei criando o territoacuterio do seu reino que eacute o universo e todas as criaturas ani-madas ou natildeo pessoais ou natildeo Natildeo existe um rei nem um reino sem territoacuterio Se Deus houvesse decidido natildeo criar o mundo ele natildeo teria sobre o que nem sobre quem reinar

Mais uma pergunta se Deus natildeo houvesse criado o mundo ele ainda seria Rei A sua realeza se depreende dos seus atributos essenciais Deus eacute um rei soberano porque ele eacute poderoso porque ele eacute saacutebio porque ele eacute justo etc

5 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU REINOA durabilidade do reino de Deus deve ser vista em contraste com a efe-

meridade dos reinos humanos Haacute vaacuterias expressotildees na Escritura que apontam para a antiguidade do reino divino natildeo para a sua eternidade

51 O texto afirma que Deus eacute eterno

Sl 932b ndash ldquotu eacutes desde a eternidaderdquo

Essa parte do verso afirma a eternidade de Deus mas natildeo a eternidade do trono Essa distinccedilatildeo eacute necessaacuteria porque o trono passou a existir com o tempo que eacute parte da criaccedilatildeo Deus natildeo tem comeccedilo de existecircncia e nem teraacute fim porque ele existe antes do tempo e do espaccedilo existirem Deus natildeo possui temporalidade A temporalidade eacute parte essencial das coisas criadas Tudo o que existe no universo quer a enorme massa fiacutesica os seres humanos assim como os seres celestiais tudo veio a existir com o tempo Berkhof citando o Dr Orr diz

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

68

Estritamente falando o tempo tem relaccedilatildeo com o mundo dos objetos que existem em sucessatildeo Deus enche o tempo estaacute em cada parte dele mas a sua eternidade sem duacutevida natildeo eacute esse existir no tempo A eternidade eacute antes que isso o que faz contraste com o tempo2

Ateacute o tempo eacute parte da criaccedilatildeo divina Somente Deus natildeo veio a existir pois eacute um ser incriado Ele eacute eterno se por ldquoeternordquo noacutes entendemos aquilo que faz contraste com o que eacute temporal Nunca houve um ldquotempordquo em que Deus natildeo tenha existido Ele existe desde antes de todas as eras Por isso se diz que Deus eacute um ser incriado possuindo autoexistecircncia sem depender de nada e de ningueacutem sendo infinito e imutaacutevel

52 O texto afirma que Deus reina desde a antiguidade

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Houve um tempo em que a realeza do trono comeccedilou a existir Esse eacute o tempo da criaccedilatildeo que jaacute aconteceu em tempos muito antigos que o texto cha-ma ldquodesde a antiguidaderdquo Ainda que os homens insistam em afirmar a idade ldquoeternardquo do universo nenhum deles pode precisar a sua idade A uacutenica coisa que podemos saber eacute que o governo de Deus existe ldquodesde a antiguidaderdquo Natildeo existe documento algum da origem do universo exceto a afirmaccedilatildeo da Escritura que diz que o universo foi criado ldquono princiacutepiordquo ou seja quando nada existia Deus trouxe todas as coisas agrave existecircncia pela Palavra do seu poder

Sendo eterno Deus resolveu trazer agrave existecircncia todo o territoacuterio daquilo que ele chama de ldquomeu reinordquo Aquele que existe desde a eternidade resolveu criar no tempo e no espaccedilo os limites fiacutesicos do seu reino Por isso seu reino existe desde a antiguidade

O trono de Deus foi estabelecido na criaccedilatildeo do universo Se o seu reino fosse eterno o seu trono natildeo precisaria ser estabelecido Deus criou os ceacuteus e ali ele pocircs o seu trono porque a Escritura diz que o Senhor estabeleceu nos ceacuteus o seu trono Portanto o trono de Deus passou a existir ldquodesde a antiguidaderdquo

6 DEUS Eacute ETERNO MAS NAtildeO O SEU TRONOEmbora a Escritura ensine que Deus eacute eterno ela natildeo afirma que o seu

trono seja eterno O que dissemos anteriormente sobre a eternidade de Deus natildeo podemos dizer sobre a eternidade do trono Eacute questatildeo de consistecircncia loacutegica e teoloacutegica

2 BERKHOF Louis Teologia Sistemaacutetica p 70

69

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Sl 932a ndash ldquoDesde a antiguidade estaacute firme o teu tronordquo

Eu posso falar com propriedade da eternidade de Deus pois esse eacute um atributo essencial de Deus mas natildeo posso falar da eternidade do seu trono Por quecirc Haacute alguns esclarecimentos que devem ser feitos

Vamos trabalhar um pouco com textos que aparentemente parecem afirmar a eternidade do seu reino e portanto a eternidade do trono

61 O Pai natildeo possui um trono eterno

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus soacute pode ser entendido como sendo alguma coisa que acontece no universo ou seja numa esfera onde haacute o tempo e o espaccedilo duas categorias que satildeo baacutesicas para o funcionamento de um reino Natildeo existe reino de Deus fora dos limites fiacutesicos do universo e antes da existecircncia temporal dele Natildeo faz sentido pensar num reino onde natildeo haja territoacuterio

Observe duas expressotildees ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo e ldquoo teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo Essas duas partes fazem parte de um paralelismo hebraico ou seja o costume de usar duas expressotildees diferentes para expressar a mesma ideia

a) O reino de Deus Pai existe desde todos os seacuteculos

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute de todos os seacuteculosrdquo

Este verso do Salmo 145 tambeacutem trata da infindaacutevel duraccedilatildeo do reinado de Deus Ele fala duas coisas que natildeo podem ser esquecidas o texto fala do reino de Deus no passado e o reino de Deus do presente que vai ateacute um futuro interminaacutevel Em outras palavras o reino vem desde muito longe e o reino vai ateacute muito longe sem qualquer possibilidade de fim

Esta expressatildeo tem a ver com os muitos seacuteculos que jaacute passaram desde que existe mundo Natildeo daacute para pensar em ldquoseacuteculosrdquo numa esfera eterna Os seacuteculos soacute existem dentro da esfera temporal O reino de Deus tem a ver com o domiacutenio de Deus nessa esfera Natildeo haacute domiacutenio fora das coisas existentes

b) O reino de Deus Pai existe por todas as geraccedilotildees

Sl 14513b ndash ldquoe o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

O reino de Deus natildeo eacute eterno mas eacute temporal em sua realeza Todavia o reino dele sendo temporal natildeo eacute temporaacuterio Um reino temporal eacute aquele que

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

70

eacute nascido no (ou com o) tempo enquanto um reino temporaacuterio eacute um reino que tem duraccedilatildeo finita limitada Os reinos ou dinastias dos governos humanos satildeo temporaacuterios Chega o tempo em que as dinastias vecircm a um fim mas natildeo eacute assim com o reino de Deus Ele nunca termina tem duraccedilatildeo interminaacutevel Esse eacute o sentido do Salmo 14513

Entretanto haacute algumas versotildees da Biacuteblia que falam da eternidade do trono de Deus mas a ideia real eacute a respeito da perenidade dele desde que veio agrave existecircncia Esses textos devem ser corretamente entendidos a fim de que natildeo venhamos a afirmar que o trono seja tatildeo eterno como Deus Somente Deus eacute etero

Lm 519 ndash ldquoTu Senhor reinas eternamente o teu trono subsiste de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso eacute similar ao analisado anteriormente Ele usa duas expressotildees diferentes para ensinar a mesma ideia A ldquoeternidade do tronordquo no verso em estudo deve ser equalizada agrave sua ldquosubsistecircncia de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Este verso possui um paralelismo hebraico O verso estaacute afirmando que o trono do Senhor dura por geraccedilotildees sem conta ou seja nunca deixando de existir A no-ccedilatildeo de eternidade do trono portanto deve ser descartada porque a eternidade pertence ao Ser Divino somente

O paralelismo hebraico tambeacutem aparece no texto de Daniel 43

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais quatildeo poderosas as suas maravilhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo

Este verso aponta para dois paralelismos hebraicos o primeiro paralelis-mo tem a ver com ldquosinaisrdquo e ldquomaravilhasrdquo Duas palavras repetindo a mesma ideia O paralelismo eacute visto nas expressotildees ldquoreino sempiternordquo e ldquodomiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo Ambas as expressotildees apontam para a durabilidade infindaacutevel do reino natildeo para a eternidade dele

Ex 1518 ndash ldquoO Senhor reinaraacute por todo o semprerdquo

O texto natildeo estaacute dizendo que o Senhor reina desde a eternidade ou desde quando o universo ainda natildeo existia mas estaacute dizendo que o reinado do Senhor natildeo vai terminar nunca duraraacute ldquopor todo o semprerdquo

Sl 97 ndash ldquoMas o Senhor permanece no seu trono eternamente trono que erigiu para julgarrdquo

O salmista estaacute contrastando neste verso o passamento dos reinos huma-nos com a duraccedilatildeo infindaacutevel do trono de Deus Nesse sentido o seu reinado

71

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

natildeo termina nunca Os mais importantes e poderosos reis do mundo duraram muito pouco no seu trono mas o Senhor permanece para sempre nessa funccedilatildeo de realeza

1Tm 117 ndash ldquoAssim ao Rei eterno imortal invisiacutevel Deus uacutenico honra e gloacuteria pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo

Perceba que Paulo estaacute exaltando Deus o qual em comparaccedilatildeo aos seres humanos estaacute acima de todos eles Diferentemente dos seres humanos que satildeo seres fiacutesicos tendo forma sendo mensuraacuteveis e portanto visiacuteveis Deus eacute um ser que os nossos olhos natildeo podem enxergar natildeo podem medir nem podem ver ou tocar Por isso o texto diz que ele eacute invisiacutevel

Diferentemente dos seres humanos que natildeo podem existir nesta presente esfera para sempre sendo portanto mortais Deus eacute imortal porque ele eacute um ser simples que natildeo pode se separar Ele natildeo eacute composto de partes como os seres humanos que quando morrem se separam de si mesmos indo o corpo para a terra e a alma para Deus Deus eacute o uacutenico ser imortal porque a imorta-lidade eacute atributo eminentemente divino Mesmo Jesus Cristo o Filho de Deus encarnado morreu exatamente porque ele era homem Quando ele morreu seu corpo foi para a sepultura e a sua alma foi para Deus Entretanto podemos falar de Deus como um ser simples sem composiccedilatildeo que eacute incapaz de morrer Daiacute Paulo falou dele como sendo imortal

Diferentemente dos seres humanos que satildeo visiacuteveis mortais Deus eacute Rei eterno Eacute aqui que vemos a importacircncia da compreensatildeo do termo ldquoeternordquo Quando a Escritura diz que Deus eacute rei eterno ela estaacute dizendo que o reinado de Deus nunca cessa Os reis deste mundo reinam apenas por alguns anos uns mais e outros menos mas o reinado de Deus dura para sempre natildeo termina nunca Esse eacute o sentido da eternidade do Rei Deus eacute eterno mas o seu trono natildeo eacute eterno Eacute preferiacutevel dizer que ele eacute rei que reina em seu trono infindavelmente

62 O Filho natildeo possui um trono eterno O Filho possui eternidade pois ele eacute Deus Ele existe antes que as coisas

criadas existissem Ele fez todas as coisas que existem porque nada do que existe existe sem ele Ele eacute a Sabedoria mostrada em Proveacuterbios 822-23 foi ldquoestabelecida desde a eternidade desde o princiacutepio antes do comeccedilo da terrardquo

Entretanto a sua encarnaccedilatildeo eacute assumida no tempo A encarnaccedilatildeo veio a existir quando Deus enviou seu Filho na plenitude dos tempos fazendo-o ser concebido e nascido de mulher (Gl 44) Portanto quando o Filho se encarnou morreu e ressuscitou ele passou a assumir a administraccedilatildeo do reino espiritual sobre o seu povo e o reino fiacutesico do reino de Deus no periacuteodo que chamamos de ldquoreinado messiacircnicordquo que vai desde a primeira ateacute a sua segunda vinda

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

72

Dn 714 ndash ldquoFoi-lhe dado domiacutenio e gloacuteria e o reino para que os povos naccedilotildees e homens de todas as liacutenguas o servissem o seu domiacutenio eacute domiacutenio eterno que natildeo passaraacute e o seu reino jamais seraacute destruiacutedordquo

Observe algumas coisas muito importantes neste verso (1) O reino pertence ao Filho do Homem (v 13) a partir da sua encarnaccedilatildeo

O Pai sempre administrou o seu reino Entretanto na ldquoplenitude dos temposrdquo ele enviou o seu Filho nascido de mulher para assumir a administraccedilatildeo do reino ateacute que ele completasse a sua obra redentora

2) O reino foi recebido de algueacutem Se o Filho recebeu esse reino ele natildeo pode ter sido rei desde toda a eternidade porque houve um tempo em que o Filho natildeo tinha a administraccedilatildeo do reino Ele passou a exercer a funccedilatildeo de rei depois que se encarnou e foi vitorioso sobre a sua morte Ele disse depois da sua ressurreiccedilatildeo ldquoTodo poder me eacute dado no ceacuteu e na terrardquo

(3) O Rei seria adorado por gente de todas as liacutenguas povos e naccedilotildees Seria um reino que abrangeria a totalidade das naccedilotildees Jesus Cristo o Verbo encarnado foi e sempre seraacute adorado por gente de todos os povos essa eacute a gloacuteria do seu reino

(4) O seu reino eacute de ldquodomiacutenio eternordquo O significado de ldquodomiacutenio eter-nordquo eacute que se comparado aos reinos dos homens ele ldquonatildeo passaraacuterdquo e ldquojamais seraacute destruiacutedordquo Em outras palavras o texto estaacute falando de um reino que natildeo terminaraacute nunca O Filho do Homem dominaraacute em seu reinado messiacircnico e depois que devolver o reino ao Deus e Pai ele continuaraacute reinando sobre o universo e sobre os homens porque ele continuaraacute a ser Deus e como tal vai reinar eternamente estando ao lado do trono Por isso o seu reino nunca seraacute destruiacutedo

Sl 456 ndash ldquoO teu trono oacute Deus eacute para todo o sempre cetro de equidade eacute o cetro do seu reinordquo

Este eacute um salmo messiacircnico sendo citado no Novo Testamento (Hb 18-9) O salmista dedica esse salmo ao Rei que natildeo tem nada a ver com seu filho Salomatildeo (Sl 451) mas com o Filho encarnado a quem ele chama de ldquoDeusrdquo (Sl 456) Portanto o texto estaacute tratando do reinado messiacircnico do Filho encarna-do que eacute um reino que dura para sempre um reino infindaacutevel e cheio de retidatildeo

2Pe 111 ndash ldquoPois desta maneira eacute que vos seraacute amplamente suprida a entrada no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristordquo

O significado de ldquoreino eternordquo com referecircncia ao reino de Cristo deve ser entendido como sendo um reinado interminaacutevel um reinado que nunca teraacute fim (infindaacutevel) Uma vez que algueacutem entra nesse reino ali permaneceraacute para sempre

73

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Primordialmente o reino infindaacutevel tem a ver com o governo espiritual de Cristo do qual o cristatildeo nunca se apartaraacute secundariamente o reino infin-daacutevel de Cristo tem a ver com o seu domiacutenio sobre todas as coisas pois para sempre ele seraacute Senhor e Salvador de pessoas e do habitat delas

O Filho encarnado natildeo possui um trono eterno mas um domiacutenio que duraraacute perenemente um reinado que natildeo teraacute fim durando para todo o sempre A despeito de eu crer na eternidade de Deus o Pai e de Deus o Filho eu natildeo penso que o trono deles seja eterno porque ldquoeterno eacute algo que existe desde antes da fundaccedilatildeo do mundordquo mas o trono do Filho teve um iniacutecio e eacute duraacutevel interminavelmente

Aleacutem disso o trono de Deus natildeo eacute eterno porque o universo natildeo eacute eterno o trono de Deus natildeo eacute eterno porque ele precisa ter o que governar e sobre quem governar Antes da fundaccedilatildeo do mundo (ou seja antes da criaccedilatildeo) Deus natildeo possuiacutea trono porque ele natildeo tinha sobre quem reinar e sobre o que reinar Ele natildeo poderia reinar sobre as duas outras pessoas da Trindade porque elas possuem a mesma natureza dele

7 DEUS Eacute ETERNO MAS O SEU REINO Eacute INFINDAacuteVELEssas duas palavras natildeo significam a mesma coisa O eterno eacute aquilo que

nunca veio agrave existecircncia que natildeo foi criado que eacute independente Essa eacute uma qualidade exclusiva de Deus O termo ldquoinfindaacutevelrdquo significa que uma coisa que veio agrave existecircncia (que eacute o caso do reino e do trono) nunca mais deixa de existir Desde que Deus trouxe o seu reino agrave existecircncia e nele colocou seu trono no tempo e na histoacuteria esse reino vai permanecer infindavelmente

Sl 14513 ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

A despeito da queda o reino sobre todos os elementos da natureza e dos homens sejam eles remidos ou natildeo eacute infindaacutevel O reino da redenccedilatildeo mostra a determinaccedilatildeo de Deus em restaurar o aspecto fiacutesico do reino que foi origi-nalmente criado mas que recebeu maldiccedilatildeo do proacuteprio Criador A despeito de suas proacuteprias maldiccedilotildees ele continuou reinando A Escritura nunca abre matildeo dessa verdade para sempre e sempre ldquodo Senhor eacute a terra e a sua plenitude e tudo o que nela haacuterdquo (Sl 241) Portanto eacute com razatildeo que a Escritura diz que ldquocomo rei (o Senhor) presidiraacute para semprerdquo (Sl 2910) ou que ldquoo Senhor eacute rei eterno da sua terra somem-se as naccedilotildeesrdquo (Sl 1016) Deus seraacute sempre o Rei da criaccedilatildeo Quando a redenccedilatildeo se completar ela se completaraacute na recria-ccedilatildeo das coisas que seratildeo feitas todas novas Ela diz respeito agrave restauraccedilatildeo de tudo o que foi estragado e perdido da primeira criaccedilatildeo mas somente que com caracteriacutesticas eternas

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

74

71 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque vem desde a fundaccedilatildeo do mundo

Sl 14513a ndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo

Desde que os seacuteculos comeccedilaram a existir o reino de Deus passou a acontecer Jaacute vimos em consideraccedilotildees anteriores que antes da criaccedilatildeo natildeo havia reino porque natildeo havia territoacuterio e nem sobre quem reinar No entanto desde que ele estabeleceu o seu reino ou o territoacuterio do seu domiacutenio o seu reino se torna infindaacutevel Esse reino existe desde que a histoacuteria comeccedilou Por isso o salmista diz que ldquoo teu reino eacute o de todos os seacuteculosrdquo Isso significa que o seu reino dominaraacute para sempre e sempre O rei Nabucodonozor na hu-milhaccedilatildeo da sua realeza reconheceu o reinado duradouro de Deus (Dn 434) Diferentemente dos reinos passageiros deste mundo o domiacutenio de Deus nunca cessaraacute Nesse reino divino natildeo haveraacute dinastias que se sucedem mas somente Yehowah reinaraacute interminavelmente sem que haja sucessores porque o seu reino dura por todos os seacuteculos

72 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque subsiste por todas as geraccedilotildees

Sl 14513bndash ldquoO teu reino eacute o de todos os seacuteculos e o teu domiacutenio subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo

As dinastias deste mundo duram apenas algumas geraccedilotildees Entatildeo as dinastias mudam as revoluccedilotildees acontecem e reis satildeo depostos Apoacutes algum tempo vem a notiacutecia de que o rei estaacute morto A sua descendecircncia assume e os seus suacuteditos exclamam ldquoLonga vida ao reirdquo mas eles tambeacutem logo morrem O reino deles dura mais do que eles proacuteprios Mesmo assim jaacute vimos muitos reinos poderosos que desapareceram Decirc uma olhada para o passado e veja onde estatildeo os reinos outrora considerados inabalaacuteveis Veja o impeacuterio babilocircnico Hoje ele desapareceu do mapa porque Deus disse que a Babilocircnia jamais se reergueria Olhe para o grande impeacuterio grego A Greacutecia reinou soberana por algum tempo mas hoje ela natildeo daacute conta sequer de resolver a sua situaccedilatildeo financeira Olhe para o impeacuterio romano No quinto seacuteculo ele caiu de podre e desapareceu como um reino Pense um pouco nos reinos mais recentes o grande impeacuterio britacircnico que governou boa parte do mundo por meio de suas conquistas Entretanto hoje possui uma realeza que natildeo passa de uma figura decorativa Olhe para os Estados Unidos que tecircm dominado o mundo apoacutes a 2ordf Guerra Mundial Hoje entretanto o seu domiacutenio jaacute eacute fortemente ameaccedilado pela China Natildeo adianta sonhar com reinos permanentes Todos os reinos hu-manos tecircm uma tendecircncia de enfraquecer chegando ao seu fim

75

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 6 3 - 7 6

Todavia natildeo eacute assim com o reino do Senhor O reino dura por todas as geraccedilotildees dura interminavelmente porque o Rei dura para sempre aleacutem de ele ser eterno Natildeo haacute substituiccedilatildeo de rei porque ele eacute imortal e por isso o seu reino eacute infindaacutevel

Cada geraccedilatildeo deve olhar para traacutes e olhar para a frente quando reflete sobre o reino de Deus O reino de Deus dura para sempre enquanto houver geraccedilotildees Pessoalmente creio que as geraccedilotildees natildeo vatildeo terminar nunca porque ainda falta muito para que seja cumprido o mandato cultural de ldquoencher a ter-rardquo ensinado no livro de Gecircnesis Essa expressatildeo do salmista eacute uma maneira diferente de dizer que o reino de Deus natildeo tem fim

73 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino ldquosempiternordquo

Dn 43 ndash ldquoQuatildeo grandes satildeo os seus sinais e quatildeo poderosas as suas maravi-lhas O seu reino eacute reino sempiterno e o seu domiacutenio de geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo (cf Dn 434)

Uma coisa sempiterna eacute aquela que eacute contiacutenua perene interminaacutevel muito antiga Dizer que um reino eacute ldquosempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que ele ldquonunca seraacute destruiacutedordquo que ele ldquonunca passaraacute a ser de outro povordquo que ldquodestruiraacute todos os outros reinosrdquo e que ldquosubsistiraacute para semprerdquo (cf Dn 244)

Davi tem um fraseado parecido com o de Daniel A expressatildeo ldquoreino sempiternordquo eacute a mesma coisa que dizer que o reino de Deus ldquoeacute de todos os seacuteculosrdquo um reino ldquoque subsiste por todas as geraccedilotildeesrdquo (Sl 14513)

Certa feita Deus disse ao rei Nabucodonozor da Babilocircnia a seguinte frase ldquojaacute passou de ti o reinordquo (Dn 431) Essa eacute uma frase que ningueacutem pode pronunciar a respeito do Rei dos reis O seu reino eacute sempiterno indestrutiacutevel Jamais passaraacute

Ainda que o reino de Deus seja sempiterno ele possui um comeccedilo Por essa razatildeo eacute preferiacutevel falar da durabilidade interminaacutevel dele do que de sua eternidade A eternidade pertence a Deus somente mas natildeo ao reino

74 O reino de Deus eacute infindaacutevel porque eacute um reino que sobrepassa as geraccedilotildees

Sl 14610 ndash ldquoO Senhor reina para sempre o teu Deus oacute Siatildeo reina de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo Aleluiardquo

Essa frase em grifo eacute outra maneira de o salmista dizer a mesma coisa que Daniel disse o reino de Deus procede e continua por todas as geraccedilotildees Vem geraccedilatildeo vai geraccedilatildeo Deus eacute o mesmo em sua majestade O tempo natildeo

HEBER CARLOS DE CAMPOS PONDERACcedilOtildeES SOBRE A ETERNIDADE DO REINO

76

desgasta a sua majestade e nada abala o seu reino interminaacutevel que domina sobre todas as coisas

Em outras palavras o reino de Deus eacute imparaacutevel natildeo haacute quem lhe possa fazer frente para que ele cesse de existir Natildeo haacute como colocar um fim no reino de Deus Entenda que o termo ldquosempiternordquo deve ser equivalente a um domiacutenio ldquode geraccedilatildeo em geraccedilatildeordquo ou ldquopor todas as geraccedilotildeesrdquo

APLICACcedilOtildeESSe vocecirc usa a palavra ldquoeternordquo relacionada diretamente ao Rei ao reino

e ao trono entatildeo procure pensar numa outra palavra que faccedila jus ao ensino geral das Escrituras Ao inveacutes de falar da eternidade do reino ou do seu trono fale do Deus que em sua realeza reina desde a fundaccedilatildeo do mundo de um reino que uma vez vindo agrave existecircncia nunca mais deixaraacute de existir Fale de um reino interminaacutevel e de um trono que duraraacute para sempre

Se vocecirc quer usar a palavra ldquoeternordquo para o reino e para o trono entatildeo vocecirc deve pensar que um atributo incomunicaacutevel natildeo pode ser manifesto na criaccedilatildeo Deus eacute essencialmente eterno mas ele natildeo pode manifestar nenhum atributo incomunicaacutevel na criaccedilatildeo porque a eternidade natildeo eacute uma opera ad extra ou seja alguma coisa que termina na criaccedilatildeo

Se vocecirc insiste em usar a palavra ldquoeternordquo por uma questatildeo de consis-tecircncia teoloacutegica reserve-a exclusivamente para a descriccedilatildeo do Ser Divino Somente ele eacute eterno Nada mais Assim nesse ensino vocecirc faraacute justiccedila ao ensino geral das Escrituras sobre a mateacuteria

ABSTRACTIn the realm of theology words must be employed very carefully Their

technical meaning not always corresponds to the popular meaning Such is the case with the words ldquoeternalrdquo and ldquoeternityrdquo In the strict sense of a reality that has always existed and will exist forever only God is eternal only God has the attribute of eternity This is one of his incommunicable attributes those that are exclusive to him not shared with anybody else This article argues that in this sense not even the kingdom of God is eternal The idea of kingdom only makes sense in relation to creation to the created order Before creation there was no kingdom therefore God was not a king since there was nothing to reign over This is how the Bible verses that ascribe eternity to the kingdom of God should be understood The author also argues that notwithstanding something that did not exist forever in the past can have an everlasting existence in the future Thus creation the kingdom and redemption are unending not eternal

KEYWORDSEternal Eternity Communicable and incommunicable attributes God

as king Kingom of God Unending

77

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

ISSUES FACED BY EDUCATION IN THE 21ST CENTURYFrancisco Solano Portela Neto

ABSTRACTThis article contains apprehension and research by the author of 21st

century issues and trends in the field of education After an introduction which attempts to discern the major emphases of 21st century education namely the preeminence and customization of learning (over teaching) the article deals with four areas (1) technology utilization (2) student needs uniqueness and abilities (3) educator roles now and in the future and (4) the connection between teaching and learning The article ends by presenting some practical considerations that can be implemented in the 21st century teaching-learning process and with a reminder that the changes needed are in content method-ology and approach and not in the eternal principles that sustain society and hold together the very field of education

KEYWORDSDigital immigrants Digital natives Educational digital technology

Makerspaces Role of teachers Student needs Teaching vs learning 21st

century learning

INTRODUCTIONIf there is a prevalent axis that characterizes education in the 21st century

it is the emphasis on the preeminence of learning (over teaching) and that this learning should be customized to the individual needs of the students

BA in Applied Mathematics (Magna Cum Laude) Shelton College (Cape May NJ) Master of Divinity (MDiv) Biblical Theological Seminary (Hatfield PA) Litterarum Humanarum Doctor(LHD) Gordon College (Boston MA) Professor-coordinator of Christian Education at Andrew Jumper Presbyterian Graduate Center and professor of Systematic Theology at Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo Presbyterian Seminary in Satildeo Paulo

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

78

Christensen Horn and Johnson1 based on this focus of student-centric educa-tion issue a call for widespread and productive use of technology with which customized learned is made possible The contrast is made with 20th century (or older) education which according to the authors resembles an industrial production line where students grouped uniformly by age brackets receive batch education2 independently of their cognitive levels or whether they are adequately following what is being taught3 Wimberley4 reinforces the need for individualized teachinglearning and describes the two crucial factors that will result in this customized approach ldquomotivation + engagement = personal-ized (individualized) learningrdquo This article explores four areas of 21st century education that represent changes of paradigms and claims for innovation namely technology awareness of student needs the role of educators and new perspectives on binomial learning vs teaching

1 TECHNOLOGY UTILIZATION IN 21ST CENTURY EDUCATIONMany educators have understood that the utilization of technology in

the sphere of education in this 21st century is something that is not optional nor merely important but actually a mandatory path that needs to be followed (Starr 2016 May 10 Armstrong 2014) It is obvious that otherwise the edu-cational field cannot keep abreast of all the other fields that not only utilize but also widen and deepen their tasks by the use of technology This situation is reinforced by the continuous decline in prices and the increasing abundance of educational software

Winberley5 warns that the installation of equipment and even adequate software in schools is no guarantee that there will be improvement or even changes in the way teaching is performed He affirms that all this investment can be used ldquonot as a platform for innovation but to sustain and maintain conventional teachingrdquo Therefore there is some perception that needs to be developed and some foundational-work that needs to be done for an effective use of technology such as (1) Awareness that the target is not to facilitate teaching but to improve learning and (2) Inclusion of students in the choice both of equipment as well as of software while surveying them in order to

1 CHRISTENSEN M HORN B JOHNSON W Disrupting class How disruptive innovation will change the way the world learns New York McGraw Hill 2011

2 Ibid p 2423 Ibid p 21-424 WIMBERLEY A (nd c) The equation of motivation [video webcast] Retrieved from https

downloadlibertyeducourses7tt0lmp4 5 WIMBERLEY A (nd a) Right equipment wrong decisions [video webcast] Retrieved from

httpsdownloadlibertyeducourses4p78ump4

79

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

discern how they learn and what media will be more effective to accomplish the target of improved learning Kennedy Judd Churchward and Gray6 have found that students that have been born in this age of digital connectivity or to use Marc Prenskyrsquos7 terminology that are digital natives have a very low tolerance for discursive teaching while preferring information that is fast and channeled through multiple means

Christensen et al8 call attention to the fact that in the 21st century in-formation technology should not be used merely to perpetuate a traditional classroom and that if this is what will be done there will be no usefulness Even online learning in the 21st century should be rethought and should take better advantage of technology advancements to allow for improved personal-ized learning Online education is being hailed as the greatest change in the teaching-learning process and many believe that in this century many con-ventional educational practices will be replaced by this new form of learning (Myers 2011 November 13) However much current online learning is not really customized but is batch-administered In this respect it is not much different than the distance learning that has been practiced for decades through regular mail Students continue to be fitted into a mold and there is still much that has to change in this area This should occur for instance in the teacher-student relationship and in the working individually at onersquos own pace taking advantage of current interconnectivity and the universality of digital technology that can much enhance the online learning experience

In the classroom setting the challenge for a proper use of technology in a student-centric 21st Century education will be to find creative ways of using studentsrsquo own devices ndash BYOD or bring your own device9 and to do away with the traditional computer labs The challenge for educators upon implementing these programs is how to keep the studentsrsquo personal devices productively engaged in the learning process and not dispersed in mere en-tertainment or even inadequate sites10 In response to this need a number of controlling programs have been designed and made available in order to keep

6 KENNEDY G JUDD T CHURCHWARD A GRAY K First year studentsrsquo experiences with technology Are they really digital natives Australasian Journal of Educational Technology 24(1) 108-122 2008 p 109 Retrieved from httpsajetorgauindexphpAJETarticleview1233458

7 PRENSKY M Digital natives digital immigrants [Part 1] On the Horizon 95 (2001) 1-6 doi10110810748120110424816

8 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 80-849 ADHIKARI J MATHRANI A SCOGINGS C Bring your own devices classroom Explor-

ing the issue of digital divide in the teaching and learning contexts Interactive Technology and Smart Education 134 (2006) 323-343

10 OrsquoBANNON B THOMAS K Teacher perceptions of using mobile phones in the classroom Age matters Computers amp Education 74 (2014) 15-25 doi101016jcompedu201401006

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

80

students focused while controlling dispersion and the choice of these increases exponentially every year11

2 STUDENT NEEDS UNIQUENESS AND ABILITIESThe renowned French educator Edgar Morin (1921-) writes about this

new perception of the importance of the uniqueness of each student He says ldquo there is something more than the mere difference between one individual to another and that is the fact that every individual is a subject on his ownrdquo12

Christensen et al writing about technological adaptation needed to cater to individual studentsrsquo needs uniqueness and abilities say ldquoThe next generation of teachers needs to learn how to build these tools [student-centric tools] for different types of learners and operate in these new environmentsrdquo13 That many educators are starting to appreciate this individuality of students is a welcomed change especially because it harmonizes with a Christian worldview

21st century pedagogy is recognizing the difference and dignity inherentto each human being Previously for many decades educational theorists had often harbored a collectivist framework reflecting Marxist tenets where society overrides the rights and the essence of individual needs This individuality is at the core of Christian thought even though we should prefer the term unique-ness (expressing singular conditions of each person) to individuality (which may carry the connotation of absence of altruism and promotion of egotism)

God has created us unique with singular characteristics The relation-ship that the Creator maintains with his creatures is essentially an individual relationship There is a corporate sense such as denoted by the expression ldquoGodrsquos peoplerdquo and by the biblical teaching that individual prerogatives or singular traits can never be dissociated from onersquos collective responsibilities But the understanding that each student is a unique person before the Creator should lead educators and especially Christian educators as well as Christian schools to strive to provide personalized attention to the individual progress of each student This awareness should also generate compassion in the Christian educator and in the school structure for the ones that are left behind leading to the assumption of greater responsibilities to prepare them for a competitive world in which there will be plenty of incomprehension and where the defense of the weak is seldom present

11 HESS K 10 BYOD mobile device management suites you need to know ZD Net June 11 (2012) Retrieved from httpwwwzdnetcomarticle10-byod-mobile-device-management-suites-you-need-to-know

12 MORIN E Introduccedilatildeo ao Pensamento Complexo (Introduction to Complex Thought) Lisbon Portugal Instituto Piaget 1991 p 78 (My translation)

13 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 247

81

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

The recognition of the singularity of each student has generated some teaching-learning models for the 21st century that take this perception into ac-count for instance the competency-based approach ldquothat builds on individual-ized learning tailored to the uniqueness of each studentrdquo14 Also the progress of technology has enabled customization of teaching and there are many detailed manuals and books that provide important guidelines for the necessary steps to accomplish this adequately such as the one written by Boni Hamilton15

3 EDUCATOR ROLES NOW AND IN THE FUTUREIt has been said that our current framework of education is teacher-based

therefore the role of the teacher is central in the process while the 21st century is characterized by a ldquostudent-paced culturerdquo16 In this digital culture on ac-count of technological changes and rising perception of student singularities the role of the teacher needs to shift in order to promote effective learning Nevertheless it does not follow that the figure of the teacher is less important now and in the future than it had been in the past only the tasks will change but they imply guidance and overseeing of the educational process In a video-cast Wimberley17 reinforces the thought that even in student-centric education we will need teachers to be central in the process

The shift of the role of the teacher will mostly occur in two areas First there will be a change from current lecturers to agents of customization pro-viding ways of catering to studentsrsquo singularities Second from non-critically consuming and passing on educational materials to managers of what can be called the taxonomy of learning which would be sifting through the ever increasing amount of educational data available in order to classify the learn-ing steps and prioritize to the students that which has to be learned In all of these teachers even though many will be migrants to digital technology18

will have to learn how to use and apply it and will continue to play a very important role

14 SULLIVAN S C DOWNEY J A Shifting educational paradigms From traditional to competency-based education for diverse learners American Secondary Education 433 (2015) 4-19 p 6

15 HAMILTON B Integrating technology in the classroom Tools to meet the needs of every student Eugene OR ISTE International Society for Technology in Education 2015 ISBN 978-1-56484-490-3 [e-book]

16 MYERS C Clayton Christensen Why online education is ready for disruption now Insider November 13 (2011) Retrieved from httpsthenextwebcominsider20111113clayton-christensen-why-online-education-is-ready-for-disruption-nowtnw_EGMZcHKx

17 WIMBERLEY A (nd b) Student-centric learning [video webcast] Retrieved from httpsdownloadlibertyedu coursesw6fetmp4

18 PRENSKY Digital natives digital immigrants

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

82

4 CONNECTION BETWEEN LEARNING AND TEACHINGThe connection between learning and teaching transpires even in the bibli-

cal terms used to express them The Old Testament uses the same word ndash lamad-to express teaching and learning19 Teaching is the word used in the ac (למד)tive voice learning is the same word used in the passive voice (to be taught) and this expresses the intrinsically interwoven nature of the two concepts In the New Testament the philological situation is not different Paul uses the same word 16 times this time in Greek (διδασκω) that is translated both as to teach as well to learn or being instructed again in accordance to when the active or passive voice is used20

When the teaching-learning process is adequately performed teachers are supposed to be constantly learning and learners will inevitably teach But there is no question that learning is the objective of teaching and this precedence is evidenced by the fact that learning can progress even without a teacher and also because teaching is evaluated based on the effectiveness of learning ndash that is if students fare well teachers have done their job well

Christensen et al defending the use of customizing software wrote that ldquoThere is mounting evidence that studentsrsquo learning is maximized when content is delivered lsquojust aboversquo their current capabilitiesrdquo21 The teacher is the manager of this calibrating the process in such a way that the learner using Vygotskyrsquos terminology22 will leap from the actual developmental level to the level of potential development

CONCLUSIONEducational practices in the 21st century are being changed or disrupted

in many ways according to the usage of the term by Christensen et al23 Dis-ruption is often coupled with innovation and disrupted innovation attempts to apply to the educational field incremental and sustainable shifts that have been applied in the business world especially due to the advancement of digital technology This contrasts with gradual improvements that come short of cater-ing to studentsrsquo needs and individual ways of learning24 These changes involve all stakeholders of the educational spectrum and Christensen et al issue a

19 KAPELRUD A Lamad In BOTTERWECK G RINGGREEN H FABRY H (Eds) Theo-logical Dictionary of the Old Testament Vol 8 (pp 4-10) Grand Rapids MI Eerdmans 1997

20 ABBOT-SMITH G A manual Greek lexicon of the New Testament Edinburgh Scotland TampT Clark 1977 p 113-114

21 CHRISTENSEN et al Disrupting class p 17522 VYGOTSKY L Mind in society Development of higher psychological processes Cambridge

MA Harvard University Press 1978 p 8623 CHRISTENSEN et al Disrupting class24 Ibid p 11

83

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 7 7 -8 4

call to the private sector to fund research that will help to substantiate educa-tors to ldquolearn how different people learnrdquo and students how to ldquobest educate themselves and each otherrdquo25 They further affirm that ldquoteachersrsquo colleges need to realize that teachers need different kinds of skillsrdquo26 and graduate schools must move ldquobeyond doing descriptive research that seeks average tendenciesrdquo and go deeper into studying anomalies that may actually point out the way that the teaching-learning process should go in this 21st century27

On the practical side many changes can be implemented besides mas-sive investment in digital technology which can substantially raise the learn-ing experience and practices in 21st century schools As has been previously mentioned BYOD programs28 can be implemented with very little investment from the schoolrsquos side Drastically increasing out-of-classroom activities will promote student engagement their role as protagonists self-learning and individual progress Dismantling current computer labs will allow schools to transform these rooms into makerspaces29 shops that are outfitted from simple tools to cutting edge 3D printers that provide a hands-on approach group projects and creativity skills that are much needed in the job market of the 21st century The author of this article visited Illinois Institute of Technology (May 17 2017) where they have a makerspace on a higher educational level There a transdisciplinary class is mandatory to all fields and law students develop their group projects together with engineering and education majors and so on It is a truly innovative and intercultural approach

In the 21st century perhaps more attention can be given to cutting-edge educational methodologies such as the whole-brain approach which attempts to maintain the student busy repeating and interacting the whole time but which also engages each student in teaching their classmates Initially devised for elementary education this incipient movement which has a growing as-sociation of schools and educators that adopted the methodology (wwwwhol-ebrainteachingcom) has brought collaborative learning to young children while at the same time progressing all the way to undergrad college classes30

With all these forward leaps needed in the educational field one must be aware that changes are necessary in some of the content in the approach and methodology but there is no room for the disruption of God-given eternal

25 Ibid p 24526 Ibid p 24727 Ibid28 ADHIKARI MATHRANI SCOGINGS Bring your own devices classroom29 ROSLUND S RODGERS E Makerspaces Ann Arbor MI Cherry Lake Publishing 201430 HUGHES M HUGHES P HODGKINSON I R In pursuit of a ldquowhole-brainrdquo approach

to undergraduate teaching Implications of the Herrmann brain dominance model Studies in Higher Education 12 (2016) 1-17 doi 1010800307507920161152463

FRANC ISC O SOL ANO P ORTEL A NETO ISSU ES FAC ED B Y EDU C ATION IN TH E 21ST C ENTU RY

84

principles and values that hold society together It is significant that even secular educators are recognizing this Mishra and Mehta in an article state that ldquoThe challenges that face us in the 21st centuryhellip cannot be done merely through a vacuous ungrounded form of creativity and collaboration (though clearly these skills will be essential)rdquo31 Their point is that there can be an over-emphasis on technology but the knowledge thus acquired will be meaningless unless grounded in the humanities As Christians we realize that the most important thing in the educational process is the preservation of Godrsquos eternal principles by responsible educators for the well-being of their students and for the good of humankind These should learn how to appreciate their students and know how to direct their thoughts and lives towards their Creator whom they should honor with their newly acquired skills and abilities

RESUMOEste artigo apresenta o entendimento e a pesquisa realizada pelo autor

sobre questotildees e tendecircncias que tecircm caracterizado o campo da educaccedilatildeo neste seacuteculo Apoacutes uma introduccedilatildeo na qual procura discernir as ecircnfases majoritaacuterias na educaccedilatildeo do seacuteculo 21 mais especificamente a precedecircncia e a customizaccedilatildeo do aprendizado (acima do ensino) o artigo trata de quatro aacutereas (1) A utilizaccedilatildeo da tecnologia (2) As necessidades dos alunos suas singularidades e habilidades (3) Os papeacuteis do educador agora e no futuro e (4) A conexatildeo entre o ensino e a aprendizagem O artigo conclui apresentando algumas consideraccedilotildees praacuteticas que podem ser implementadas no processo de ensino-aprendizagem do seacuteculo 21 com um alerta de que mudanccedilas podem ser necessaacuterias no conteuacutedo me-todologia e na abordagem mas natildeo nos princiacutepios eternos que sustentam uma sociedade e que conservam coeso o proacuteprio campo da educaccedilatildeo32

PALAVRAS-CHAVEImigrantes digitais Nativos digitais Tecnologia educacional digital

Makerspaces Papel dos professores Necessidades dos alunos Ensino x aprendizagem Aprendizagem no seacuteculo 21

31 MISHRA P MEHTA R What we educators get wrong about 21st-century learning Results of a survey Journal of Digital Learning in Teacher Education 331 (2017) 6-19 doi1010802153297420161242392

32 Este artigo eacute uma adaptaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo de um paper natildeo publicado apresentado agrave Liberty University (Lynchburg Virginia) como parte dos estudos de doutorado que o autor realizava naquela instituiccedilatildeo

Com os dois textos a seguir estamos dando iniacutecio a uma nova seccedilatildeo em Fides Reformata de teor pastoral A ecircnfase principal recairaacute na publicaccedilatildeo de sermotildees exposiccedilotildees biacuteblicas e auxiacutelios homileacuteticos diversos que possam ajudar pastores e pregadores nessa tarefa cotidiana que certamente consome boa parte se natildeo a maior da lide pastoral A intenccedilatildeo dos textos nesse formato eacute trazer informaccedilatildeo relevante e segura ainda que natildeo se trate de trabalhos com teor acadecircmico no modelo dos tradicionais artigos que temos publicado ao longo de 26 anos da revista As notas de rodapeacute apontam para fontes e detalhes a respeito da interpretaccedilatildeo que em geral natildeo fazem parte do corpo do sermatildeo

87

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 8 7 -97

EXPOSICcedilAtildeO DO SALMO 1Mauro Fernando Meister

O TEXTO1 Bem-aventurado eacute aquele

que natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

2 Pelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhor e na sua lei medita de dia e de noite

3 Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute1

INTRODUCcedilAtildeOO livro de Salmos era o hinaacuterio de Israel do povo de Deus no Antigo

Testamento Constitui-se de cacircnticos usados em certas partes das diferentes

Doutor em Literatura Semiacutetica (DLitt) pela Universidade de Stellenbosch Aacutefrica do Sul mestre em Teologia Exegeacutetica pelo Covenant Theological Seminary Jackson Mississippi diretor do CPAJ e professor de Antigo Testamento pastor da Igreja Presbiteriana Barra Funda Satildeo Paulo (SP)

1 Nova Almeida Atualizada Ediccedilatildeo Revista e Atualizadareg 3a ediccedilatildeo Barueri SP Sociedade Biacuteblica do Brasil 2017 Sl 11ndash6

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

88

liturgias que havia tanto no Tabernaacuteculo como depois no Templo de Jerusaleacutem Natildeo haacute evidecircncias de que todos eles tenham sido usados em situaccedilotildees lituacutergicas e sua composiccedilatildeo eacute fruto da inspiraccedilatildeo de indiviacuteduos e de posterior coletacircnea por um ou mais editores Sabe-se poreacutem que aleacutem de serem cacircnticos com caraacuteter lituacutergico eram tambeacutem cantados pela Igreja de Jesus no Antigo Testa-mento em peregrinaccedilotildees e na vida domeacutestica incluindo o ensino das crianccedilas

Certamente o Salmo 1 assim como a primeira pergunta do Catecismo eacute aquele que todos aprendiam primeiro e guardavam por toda a vida Esse salmo eacute o portal do Salteacuterio e ainda que natildeo saibamos a maneira precisa como o livro tomou seu formato canocircnico final e atual eacute possiacutevel perceber que este primeiro capiacutetulo serve como guia e orientaccedilatildeo para aquilo que viraacute a seguir e seraacute ensinado nos demais Salmos2 O verso 2 ldquoPelo contraacuterio o seu prazer estaacute na lei do Senhorrdquo nos daacute o tom para a sua interpretaccedilatildeo o prazer na lei (toraacute) do Senhor que deve ser motivo de meditaccedilatildeo e deleite contiacutenuos (ldquoe na sua lei medita de dia e de noiterdquo) e tambeacutem a perspectiva sobre a qual devemos ler o Livro dos Salmos3 Logo os Salmos devem ser sempre lidos agrave luz da toraacute de Deus e sua teologia percebida a partir da verdade revelada nos primeiros livros da Biacuteblia o Pentateuco4 Eacute importante entender este conceito porque a poesia eacute tambeacutem teologia E que fique entatildeo claro que tudo o que cantamos no culto ao Senhor deve ser boa teologia Devemos sempre cantar a verdade da Palavra de Deus seja com os salmos hinos e cacircnticos espirituais como afirmado por Paulo em Colossenses 316

Devemos tambeacutem perceber que todos os salmos satildeo hinos5 e tecircm um formato poeacutetico poreacutem a formataccedilatildeo da sua poesia eacute bem diferente do que conhecemos em nossa liacutengua pois natildeo possuem rimas e nem a mesma estrutura de estrofes como em nossas poesias e canccedilotildees A liacutengua hebraica na qual fo-ram escritos os salmos produz poesia basicamente por meio de paralelismos repeticcedilatildeo ou contraposiccedilatildeo de palavras ideias ou conceitos sequenciados em um mesmo verso vaacuterios versos ou mesmo em um texto maior numa seacuterie de

2 Para uma excelente introduccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo do Livro dos Salmos ver FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 Para este ponto especiacutefico mostrando o Salmo 1 como o portal do livro assim como a sua organizaccedilatildeo completa ver ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

3 ldquoNatildeo cesse de falar deste Livro da Lei pelo contraacuterio medite nele dia e noite para que vocecirc tenha o cuidado de fazer segundo tudo o que nele estaacute escrito entatildeo vocecirc prosperaraacute e seraacute bem-sucedidordquo (Js 17s)

4 Observe que muitos dos conceitos expostos no Livro de Salmos satildeo fruto da leitura e interpre-taccedilatildeo de passagens do Pentateuco Assim alguns textos satildeo citados diretamente ou sua interpretaccedilatildeo eacute dali extraiacuteda A soberania e reinado de Deus por exemplo satildeo fruto da interpretaccedilatildeo do relato da Criaccedilatildeo (Sl 477 Deus eacute o Rei de toda a terra)

5 Podem ser propriamente hinos de adoraccedilatildeo lamentos canccedilotildees de gratidatildeo confianccedila sabedoria e exaltaccedilatildeo da realeza e grandeza de Deus

89

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

teacutecnicas literaacuterias que devem ser compreendidas pelo leitor do texto6 Veremos algumas dessas ideias ao longo da exposiccedilatildeo

1 O TEMASe no foco do texto temos a toraacute a instruccedilatildeo de Deus a forma pela qual

o Salmo explora o tema eacute a comparaccedilatildeo de dois caminhos o caminho do justo que busca a instruccedilatildeo de Deus e o caminho do iacutempio que se desvia dessa ins-truccedilatildeo Esse tipo de tema binaacuterio foi muito abordado pelo Senhor Jesus no Novo Testamento dois caminhos duas portas duas casas etc certamente porque era muito comum aos seus ouvintes entendecirc-los e por terem em mente as imagens do Salmo 1

Entrem pela porta estreita Porque larga eacute a porta e espaccediloso eacute o caminho que conduz para a perdiccedilatildeo e satildeo muitos os que entram por ela Estreita eacute a porta e apertado eacute o caminho que conduz para a vida e satildeo poucos os que o encontram (Mt 713s)

Associada aos dois caminhos existe a figura do ldquobem-aventuradordquo algo muito frequente em todo o Livro dos Salmos7 e amplamente explorado na introduccedilatildeo do Sermatildeo do Monte (Mateus 5) Ao ler o Sermatildeo do Monte como um todo e particularmente as Bem-aventuranccedilas eacute possiacutevel concluir que o Senhor Jesus tenha escolhido propositalmente vaacuterios dos temas tratados de maneira ampla nos Salmos e que eram mais populares e conhecidos entre seus ouvintes galileus Era uma excelente estrateacutegia homileacutetica tratar de temas que eram comuns aos ouvintes e aplicar a verdade da toraacute a suas vidas

2 O CAMINHO DO JUSTOO caminho do justo eacute tratado nos trecircs primeiros versos do texto e fica evi-

dente que o justo eacute um bem-aventurado expressatildeo que jaacute natildeo usamos em nossa linguagem do dia a dia O que seria um bem-aventurado Algumas de nossas traduccedilotildees procurando nos dar uma compreensatildeo mais faacutecil do texto traduziram a expressatildeo hebraica como ldquofelizrdquo Entretanto a forma como usamos a palavra em portuguecircs natildeo faz justiccedila ao seu sentindo mais profundo No hebraico bem-aventurado tem vaacuterias nuances O significado mais preciso eacute aquele que

6 Eacute importante que o leitor dos Salmos vaacute se familiarizando com essas teacutecnicas para seu cresci-mento na leitura do texto e percepccedilatildeo de sua grande beleza Eacute claro que a leitura do texto traduzido causa uma grande perda ao leitor Entretanto Biacuteblias bem formatadas podem ajudar os crentes a perceber com maior clareza parte das teacutecnicas da poesia hebraica que foram empregadas pelos autores

7 A expressatildeo hebraica aparece 26 vezes no Livro dos Salmos a maioria das vezes em declaraccedilotildees introdutoacuterias referindo-se a pessoas ou mesmo a naccedilotildees (3312) Um estudo raacutepido de cada uma das passagens e sua referecircncia pode enriquecer muito a compreensatildeo do pregador a respeito do conceitoSalmo 11 212 321 322 3312 349 405 412 655 845 846 8413 8916 9412 1063 1121 1191 1192 1275 1281 1282 1378 1379 14415 1465

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

90

recebe o shalom de Deus a paz que como diz o apoacutestolo Paulo ldquoexcede toda a compreensatildeo humanardquo Eacute a mesma paz prometida pelo Senhor Jesus quando disse aos seus disciacutepulos ldquoDeixo com vocecircs a paz a minha paz lhes dou natildeo lhes dou a paz como o mundo a daacute Que o coraccedilatildeo de vocecircs natildeo fique angus-tiado nem com medordquo (Jo 1427)

O bem-aventurado eacute aquele que natildeo eacute inimigo de Deus aquele que sabe que deve fazer a vontade de Deus aquele que mesmo no meio das circunstacircncias mais terriacuteveis tem a face e o sorriso de Deus sobre sua vida aquele sobre quem o Senhor levanta o rosto e mostra a sua misericoacuterdia A vida do bem-aventurado natildeo eacute livre de problemas de embates e dificuldades mas ele tem a plena cons-ciecircncia de que a instruccedilatildeo de Deus estaacute bem agrave sua frente O bem-aventurado eacute aquele que mesmo nos momentos mais difiacuteceis continua inabalaacutevel pois sabe que sua vida estaacute nas matildeos de Deus Ele vive perto de Deus8

21 Como vive o bem-aventurado Primeiro ele passa por um caminho de negaccedilatildeo porque vive em um mundo

antagocircnico agrave vontade de Deus Logo no primeiro verso vemos o paralelismo progressivo desenvolvido em trecircs estaacutegios de negaccedilatildeo

natildeo anda no conselho dos iacutempios natildeo se deteacutem no caminho dos pecadores nem se assenta na roda dos escarnecedores

Observe o progresso visiacutevel nos verbos andar deter-se e assentar-se O bem-aventurado natildeo encontra paz em nenhum desses estaacutegios do pecado Ele natildeo tem como fonte de inspiraccedilatildeo e instruccedilatildeo a impiedade o pecado e o escarnecimento O bem-aventurado natildeo vacila no seu caminho como algueacutem que passa olha para e diz ldquoAqui eacute o meu lugarrdquo Observe tambeacutem nestas linhas a percepccedilatildeo do pecado o pecado natildeo eacute uma accedilatildeo simples em geral o pecado eacute um processo Como diz Tiago lendo sobre o primeiro pecado em Gecircnesis 3 ele eacute concebido gerado e dado agrave luz

Ao contraacuterio cada um eacute tentado pela sua proacutepria cobiccedila quando esta o atrai e seduz Entatildeo a cobiccedila depois de haver concebido daacute agrave luz o pecado e o pecado uma vez consumado gera a morte (Tg 114s)

Cabe aqui um importante lembrete a noacutes que vivemos vidas religiosas e acostumados agraves coisas de Deus a roda dos escarnecedores nem sempre eacute composta por aqueles que desconhecem a Deus Muitas vezes satildeo formadas por aqueles que se dizem cristatildeos mas se ajuntam para escarnecer e pecar

8 Para um bom comentaacuterio conciso do Livro dos Salmos cf HARMAN Allan Salmos Comen-taacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011 p 77

91

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Normalmente natildeo acontece como um ato mas como dito anteriormente como um processo que comeccedila com uma pequena caluacutenia e pode tornar-se um ciacuterculo de maledicecircncia sobre irmatildeos liacutederes famiacutelias e assim por diante Precisamos ser cuidadosos para natildeo formar o nosso proacuteprio ciacuterculo de pecado

Se o texto comeccedila mostrando que o bem-aventurado tem que passar por negaccedilotildees em segundo lugar o seu caminho tem como fundamento uma contiacute-nua submissatildeo agrave palavra de Deus (v 2) O bem-aventurado aprende a amar e meditar na lei de Deus e fazer dela parte do seu estilo de vida O conceito de meditar na lei ldquode dia e de noiterdquo eacute referenciado vaacuterias vezes nas Escrituras comeccedilando por Deuteronocircmio 66-9

Estas palavras que hoje lhe ordeno estaratildeo no seu coraccedilatildeo Vocecirc as inculcaraacute a seus filhos e delas falaraacute quando estiver sentado em sua casa andando pelo caminho ao deitar-se e ao levantar-se Tambeacutem deve amarraacute-las como sinal na sua matildeo e elas lhe seratildeo por frontal entre os olhos E vocecirc as escreveraacute nos umbrais de sua casa e nas suas portas

Observe que Moiseacutes cobre as dimensotildees do tempo espaccedilo e convivecircncia com a toraacute de Deus ou seja essa lei preenche a vida do bem-aventurado em todos os seus aspectos (coraccedilatildeo famiacutelia caminho deitar e despertar as matildeos os olhos o lar e a comunidade) Natildeo haacute aacuterea de sua existecircncia que natildeo seja tocada pela instruccedilatildeo de Deus e assim ele medita na sua aplicaccedilatildeo plena e completa

Em resumo o meditar significa tomar aquilo que se aprende na Palavra de Deus e aplicar na totalidade da vida A palavra eacute ruminada e entatildeo aplicada O prazer na lei do Senhor natildeo eacute apenas o prazer em ler a Escritura mas meditar nela de dia e de noite aplicando-a a todas as coisas O bem-aventurado nunca se cansa da instruccedilatildeo de Deus

O salmista ainda usa uma terceira figura a respeito de como vive o bem--aventurado ele sabe depender de Deus

Ele eacute como aacutervore plantada junto a uma corrente de aacuteguas que no devido tempo daacute o seu fruto e cuja folhagem natildeo murcha e tudo o que ele faz seraacute bem-sucedido

A aacutervore plantada junto a correntes de aacuteguas foi ali colocada porque quem a plantou sabe que ela depende de suprimento Ao contraacuterio de outras plantas que dependem das estaccedilotildees e das chuvas esta aacutervore tem uma fonte de suprimento que eacute inesgotaacutevel9

9 ldquoPorque ele eacute como a aacutervore plantada junto agraves aacuteguas que estende as suas raiacutezes para o ribeiro e natildeo receia quando vem o calor porque as suas folhas permanecem verdes e no ano da seca natildeo se perturba nem deixa de dar frutordquo (Jr 177s)

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

92

O bem-aventurado eacute semelhante a esta aacutervore junto a uma corrente de aacuteguas no devido tempo daacute o seu fruto Por causa da fonte o bem-aventurado cumpre o seu papel assim como a aacutervore no tempo certo as folhas o viccedilo as flores e finalmente os frutos Estas aacutervores satildeo bem previsiacuteveis e vocecirc pode contar com elas e seus resultados Em suma o bem-aventurado natildeo eacute autocircnomo ele eacute dependente e vocecirc pode depender de sua dependecircncia O bem-aventurado natildeo depende da fonte do pecado para a sua instruccedilatildeo a sua fonte externa de dependecircncia eacute a toraacute do Senhor Entatildeo o caminho do bem-aventurado natildeo eacute o de ser feliz agraves proacuteprias custas mas sim daquele que diz sou bem-aventurado por causa da Palavra de Deus e por causa da becircnccedilatildeo de Deus Esse eacute o signifi-cado da expressatildeo ldquoe tudo o que ele fizer seraacute bem-sucedidordquo O sucesso estaacute em cumprir o papel estabelecido por Deus dependendo exclusivamente dele para alcanccedilar o fim

Essa eacute a descriccedilatildeo do primeiro caminho apontado no Salmo e depois citado por Jesus no Sermatildeo do Monte

3 O CAMINHO DO IacuteMPIOEm completo contraste com o caminho do justo estaacute o caminho do iacutempio

4 Os iacutempios natildeo satildeo assim satildeo poreacutem como a palha que o vento dispersa

5 Por isso os iacutempios natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo nem os pecadores na congregaccedilatildeo dos justos

6 Pois o Senhor conhece o caminho dos justos mas o caminho dos iacutempios pereceraacute

Os versos 4 e 5 descrevem o curto caminho dos iacutempios com a simples expressatildeo ldquoos iacutempios natildeo satildeo assimrdquo Se o texto parasse nesse ponto jaacute teriacuteamos suficiente evidecircncia a respeito desse caminho Bastaria inverter as sentenccedilas andar em seus proacuteprios conselhos viver de seus proacuteprios caminhos de pecado e ajuntar-se em escarnecimento Na verdade a expressatildeo que inicia o bloco de texto apresenta um paralelismo antiteacutetico com o verso 3 o primeiro eacute aacutervore viccedilosa e frutiacutefera o segundo eacute como palha seca levada pelo vento sem funccedilatildeo e sem objetivo Isto aponta para a verdade de que a palha natildeo tem peso ao contraacuterio do fruto

A figura da palha seca que precisa ser separada eacute bem comum em textos do Antigo Testamento Figura semelhante estaacute impliacutecita na paraacutebola contada por Jesus sobre o inimigo que veio e semeou joio no meio do trigo que precisa ser separado Ou o final do discurso de Joatildeo Batista ao dizer que Jesus ldquotem a paacute em suas matildeos limparaacute a sua eira e recolheraacute o seu trigo no celeiro poreacutem queimaraacute a palha num fogo que nunca se apagardquo (Mt 312) Pode ser difiacutecil separar o joio do trigo o joio natildeo tem semente eacute uma palha ao se joeirar a colheita o joio se dispersa com o vento

93

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

Os iacutempios satildeo assim como o joio podem ter a aparecircncia do trigo mas natildeo tecircm a sua consistecircncia O perigo para o bem-aventurado muitas vezes eacute ser levado pela aparecircncia e deixar-se confundir entre o joio e o trigo Ele olha para o mundo agrave sua volta achando que a vida do iacutempio eacute melhor Como aprendemos no Salmo 73 a inveja da prosperidade do iacutempio tomou a mente do salmista Asafe e encheu o seu coraccedilatildeo de amargura Essa situaccedilatildeo soacute mudou quando ele entendeu o juiacutezo de Deus sobre os iacutempios quando se lembrou de que a bem-aventuranccedila dele eacute a presenccedila do Senhor e natildeo as circunstacircncias da vida

O verso 5 aponta bem a situaccedilatildeo final do iacutempio receberaacute juiacutezo ou seja natildeo seraacute bem-sucedido O iacutempio natildeo tem futuro diante de Deus e nem daque-les que a ele pertencem O caminho dos iacutempios eacute o caminho da morte natildeo prevaleceratildeo no juiacutezo e natildeo teratildeo lugar na congregaccedilatildeo dos justos nunca seratildeo bem-aventurados nunca teratildeo o shalom de Deus

4 QUEM Eacute O JUSTO DO SALMO 1A leitura mais simples do texto e eu diria ingecircnua seria pensar que o

justo do Salmo 1 eacute um verdadeiro crente que anda retamente aos olhos do Senhor que natildeo quebra a lei e nunca se desvia da toraacute de Deus Em um segundo estaacutegio mais ingenuamente ainda talvez pudeacutessemos pensar ldquoEu pelo menos tento andar no caminho do justo afinal natildeo adoro outros deuses natildeo tomo o nome de Deus em vatildeo nunca traiacute o meu cocircnjuge natildeo matei ningueacutem procuro sempre falar a verdaderdquo e por aiacute vai Ora a maacute notiacutecia que tenho a dar eacute que nem vocecirc nem eu somos o justo do Salmo 1

Primeiro a nossa leitura deve ser feita dentro do contexto do Livro dos Salmos como um todo Assim o mesmo adorador que canta o Salmo 1 deve cantar o Salmo 14 por exemplo

2 Do ceacuteu o Senhor olha para os filhos dos homens para ver se haacute quem tenha entendimento se haacute quem busque a Deus

3 Todos se desviaram e juntamente se corromperam natildeo haacute quem faccedila o bem natildeo haacute nem um sequer (Sl 142s)

Algueacutem pode argumentar que estes dois versos se referem ldquoaos insensatosrdquo (Sl 141) poreacutem o argumento do apoacutestolo Paulo em Romanos 3 para mostrar que toda a humanidade carece da gloacuteria de Deus sejam judeus sejam gregos eacute baseado exatamente na citaccedilatildeo desse texto ldquoQue se conclui Temos noacutes (ju-deus) alguma vantagem Natildeo de forma nenhuma Pois jaacute temos demonstrado que todos tanto judeus como gregos estatildeo debaixo do pecadordquo (Rm 39)10

10 Em Romanos 3 aleacutem de citar o Salmo 14 Paulo nos daacute uma sequecircncia de citaccedilotildees dos Salmos apontando para a mesma situaccedilatildeo de pecado da humanidade Sl 531-3 59 107 597-8 361

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

94

O proacuteprio Senhor Jesus alerta para este perigo de algueacutem pensar ser justo aos olhos de Deus como faziam os fariseus

9 Jesus tambeacutem contou esta paraacutebola para alguns que confiavam em si mesmos por se considerarem justos e desprezavam os outros 10 Dois homens foram ao templo para orar um era fariseu e o outro era publicano 11 O fariseu ficou em peacute e orava de si para si mesmo desta forma ldquoOacute Deus graccedilas te dou por-que natildeo sou como os demais homens roubadores injustos e aduacutelteros nem ainda como este publicano 12 Jejuo duas vezes por semana e dou o diacutezimo de tudo o que ganhordquo 13 O publicano estando em peacute longe nem mesmo ousava levantar os olhos para o ceacuteu mas batia no peito dizendo ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo 14 Digo a vocecircs que este desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado (Lc 189ndash14)

Nesta paraacutebola de um lado estaacute o fariseu conhecedor da Palavra de Deus cantor do Salmo 1 e amante da Lei do Senhor O farisaiacutesmo que virou sinocircnimo de hipocrisia nasceu de boas intenccedilotildees de homens que temiam quebrar a toraacute e que comeccedilaram a desenvolver outras leis que supostamente ajudariam a permanecer no caminho do justo O que natildeo entendiam eacute que eacute impossiacutevel ao homem fazer estas coisas sem receber a graccedila de Deus O farisaiacutesmo desenvol-veu-se como a religiatildeo do legalismo na qual os homens comeccedilam a se achar justos aos seus proacuteprios olhos em comparaccedilatildeo com outros aparentemente menos justos O fariseu orgulha-se da sua religiosidade e procura mostraacute-la publicamente para ser admirado pelos homens Percebem aqui o risco que corremos como religiosos que somos

Do outro lado da paraacutebola estaacute o publicano um judeu desprezado pelo povo que trabalhava para os romanos que cobrava impostos secularizado traidor da proacutepria naccedilatildeo Os dois vatildeo ao templo para orar O fariseu orava de si para si mesmo chegando ateacute mesmo a acusar o publicano em sua oraccedilatildeo O publicano orava humilhado reconhecendo seu pecado diante de Deus O fariseu era cheio de justiccedila proacutepria O publicano vem diante de Deus sem ne-nhuma justiccedila para apresentar ldquoOacute Deus tem pena de mim que sou pecadorrdquo

A conclusatildeo dessa paraacutebola nos traz a chave para entender o Salmo 1 Digo a vocecircs que este [o publicano] desceu justificado para a sua casa e natildeo aquele [o fariseu] Porque todo o que se exalta seraacute humilhado mas o que se humilha seraacute exaltado Quem pensa de si mesmo ser o justo certamente natildeo eacute

O fato eacute que o Reino de Deus eacute para aqueles que se humilham diante dele Aqueles de olhar altivo e justiccedila proacutepria natildeo herdam o reino dos ceacuteus A oraccedilatildeo do publicano diz ldquotem pena de mimrdquo ou seja tem misericoacuterdia ou como na traduccedilatildeo Almeida Revista e Atualizada ldquosecirc propiacuteciordquo a mesma raiz de ldquopropiciaccedilatildeordquo ou seja aquele que recebe um sacrifiacutecio substitutivo algo conhecido muito claramente por todos os judeus que conheciam toda a toraacute

95

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

e o significado extenso dos sacrifiacutecios descritos no Livro de Leviacutetico Daiacute a conclusatildeo do Senhor ldquoeste desceu justificadordquo

Eis aqui a importacircncia da teologia da justificaccedilatildeo pela feacute Ningueacutem pode ser justo sem reconhecer seu estado de pecado e miseacuteria diante de Deus Exatamente por isto a primeira bem-aventuranccedila no Sermatildeo do Monte eacute ldquoBem-aventurados os pobres em espiacuterito porque deles eacute o reino dos ceacuteus (Mt 53) Eacute impossiacutevel para algueacutem que se acha justo ser recebido nesse reino Somente aquele que se encontra quebrado e humilhado na presenccedila de Deus confessando a sua proacutepria injusticcedila entra no reino pelos meacuteritos do uacutenico que eacute verdadeiramente justo Jesus Cristo

Segundo o Salmo 321-2 o bem-aventurado eacute aquele que confessa seu pecado eacute perdoado e natildeo mente para si mesmo dizendo-se justo

1 Bem-aventurado aquele cuja transgressatildeo eacute perdoada cujo pecado eacute coberto

2 Bem-aventurado eacute aquele a quem o Senhor natildeo atribui iniquidade e em cujo espiacuterito natildeo haacute engano

E concluindo Paulo argumenta em Romanos 3 que haacute somente um justo e justificador

22 Eacute a justiccedila de Deus mediante a feacute em Jesus Cristo para todos e sobre todos os que creem Porque natildeo haacute distinccedilatildeo 23 pois todos pecaram e carecem da gloacuteria de Deus 24 sendo justificados gratuitamente por sua graccedila mediante a redenccedilatildeo que haacute em Cristo Jesus 25 a quem Deus apresentou como propiciaccedilatildeo no seu sangue mediante a feacute Deus fez isso para manifestar a sua justiccedila por ter ele na sua toleracircncia deixado impunes os pecados anteriormente come-tidos 26 tendo em vista a manifestaccedilatildeo da sua justiccedila no tempo presente a fim de que o proacuteprio Deus seja justo e o justificador daquele que tem feacute em Jesus (Rm 322ndash26)

Estes versos satildeo o grande alerta o homem eacute justificado por Cristo apenas pois todos estatildeo em pecado e carecem da graccedila e gloacuteria de Deus Assim quando se lecirc o Salmo 1 sobre o bem-aventurado a primeira liccedilatildeo a ser aprendida eacute que o homem natildeo eacute naturalmente bem-aventurado natildeo eacute a vida religiosa ou qual-quer outra accedilatildeo humana que o faz justo diante Deus mas eacute a graccedila de Cristo

APLICACcedilAtildeOQuando natildeo entendemos a verdade completa da justificaccedilatildeo corremos

seacuterios riscos por um lado agir como Asafe (Salmo 73) e acharmos que somos miseraacuteveis em comparaccedilatildeo com a prosperidade dos iacutempios e desejaacute-la Isso eacute deter-se no conselho dos iacutempios

Do outro lado o perigo eacute nos tornarmos como o fariseu cheios de auto-justiccedila e achando-nos naturalmente justos por conta de nossa religiosidade

MAURO FERNANDO MEISTER EX P OSICcedilAtildeO DO SALMO 1

96

O homem tem total necessidade de Cristo para a justificaccedilatildeo dos seus pecados Depende da obra de Cristo Depende do ato do Redentor

Querem ver o impacto do Salmo 1 quando mal compreendido Quais foram as principais acusaccedilotildees dos fariseus e dos escribas contra Jesus

1) Andava com um grupo de pecadores (que natildeo seguiam a religiosidade dos fariseus)

2) Detinha-se no caminho para ouvir os clamores de miseraacuteveis 3) Assentava-se agrave mesa com eles

A peccedila de acusaccedilatildeo dos fariseus contra Jesus era baseada no primeiro versiacuteculo do Salmo 1 Ele natildeo se encaixava no molde religioso mais rigoroso da eacutepoca E foi exatamente nessas ocasiotildees que ele andando com esse povo mostrou-lhes o uacutenico caminho a verdade e a vida o caminho da cruz Jesus parou para ouvi-los mas nunca se deixou realmente deter por eles Jesus se assentou para comer com eles mas nunca se contaminou com as suas iguarias e conversas

Aiacute estaacute a diferenccedila Muitas vezes o cristatildeo ateacute se assenta em uma roda de cristatildeos mas eacute bem pior que a roda dos pecadores pois esse momento eacute usado para escarnecer da igreja de Cristo do povo de Deus destruir conceitos de autoridade etc No fim soacute haacute dois caminhos o caminho de Cristo e o caminho sem Cristo Assim o justo do Salmo 1 eacute Jesus Cristo Ler o Salmo 1 sem a justiccedila de Cristo eacute um perigo

Concluindo a leitura do Salmo 1 bem como a leitura de toda a Escritura precisa ser feita na perspectiva da obra redentiva de Cristo e da justificaccedilatildeo que ele veio realizar

E vocecirc eacute justo Sim em Cristo somos justificados para a justiccedila Nosso status nos garante a justiccedila para que possamos viver como justos diante do Senhor

logo jaacute natildeo sou eu quem vive mas Cristo vive em mim E esse viver que agora tenho na carne vivo pela feacute no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim (Gl 220)

RECURSOS BIBLIOGRAacuteFICOS BAacuteSICOS EM PORTUGUEcircS

BOSMA Carl J Os Salmos porta de entrada para as naccedilotildees Satildeo Paulo Focirc-lego 2018

CALVINO Joatildeo Salmos Orgs Franklin Ferreira Tiago J Santos Filho e Francisco Wellington Ferreira Seacuterie Comentaacuterios Biacuteblicos 4 vols Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2009ndash2012

FUTATO Mark Interpretaccedilatildeo dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

97

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 8 7 - 9 7

GODFREY W Robert Aprendendo a amar os Salmos Rio de Janeiro 2021

HARMAN Allan Salmos Comentaacuterios do Antigo Testamento Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2011

KIDNER Derek Salmos Seacuterie Cultura Biacuteblica Satildeo Paulo Vida Nova 1980

ROBERTSON Palmer A estrutura e teologia dos Salmos Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2019

SELDERHUIS H J GEORGE Timothy F MANETSCH Scott M Salmos 1-72 Comentaacuterio Biacuteblico da Reforma Satildeo Paulo Editora Cultura Cristatilde 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como adoraccedilatildeo cristatilde Satildeo Paulo Shedd 2015

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como lamento cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2018

WALTKE Bruce HOUSTON James Os Salmos como louvor cristatildeo Satildeo Paulo Shedd 2020

99

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 99-107

APRENDENDO COM A HISTOacuteRIA DA IGREJAFrans Leonard Schalkwijk

Tenho tido o privileacutegio de ensinar histoacuteria eclesiaacutestica durante cinquenta anos e apresento algumas anotaccedilotildees que talvez nos possam ajudar a aprender algo com essa parte especiacutefica da histoacuteria geral Em primeiro lugar creio que o que se destaca na histoacuteria da igreja eacute a graccedila de Deus

(a) A graccedila de Deus sempre trabalha apesar da infidelidade humana em toda a histoacuteria da salvaccedilatildeo da qual a igreja de Cristo faz parte

(b) O poder de Deus transforma uma pessoa (depois uma famiacutelia e um povo) que comeccedila a obedecer a Palavra de Deus (exemplos Josias Cloacutevis Paton)

(c) A histoacuteria de uma igreja regional comeccedila como um capiacutetulo da histoacuteria das missotildees e no final tambeacutem engloba a sua influecircncia na cultura geral daquele povo (Ap 2124)

(d) A influecircncia da Biacuteblia eacute profunda na evangelizaccedilatildeo e na transformaccedilatildeo dos povos

(e) Deus usa as coisas fracas para grandes alvos (Calvino Patriacutecio madre Teresa)

(f) Na obra de Deus feita por homens sempre haacute altos e baixos (Wil-berforce)

(g) Se natildeo suportar poderia pedir sua transferecircncia hoje (1Rs 194)

Doutor em Histoacuteria Universidade Mackenzie (1983) mestre em Teologia (ThM) Calvin Theological Seminary Grand Rapids MI (1977) bacharel em Teologia Universidade Livre de Amsterdatilde e Theological College Kampen (1954) Moravian Theological Seminary BethlehemPA (1951) Missio-naacuterio no Brasil (1959-1995) professor e reitor do Seminaacuterio Presbiteriano do Norte em Recife (1972 1976-1986) ex-professor visitante do CPAJ Pastor emeacuterito das Igrejas Reformadas da Holanda da Igreja Evangeacutelica Reformada no Brasil e da Igreja Presbiteriana do Brasil Autor de Igreja e Estado no Brasil Holandecircs e Meditaccedilotildees de um Peregrino Reside em Itajubaacute MG

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

100

(h) Ningueacutem pode se vangloriar porque a obra sempre eacute feita em con-junto com outros e pela graccedila de Deus de quem eacute a gloacuteria (Hudson Taylor)

(i) Sirvamos sem numerolatria nem numerofobia2

(j) O estrago pode comeccedilar com um liacuteder ou sua esposa (Salomatildeo 1Rs 113 Jeoratildeo 2Rs 818)

(k) Muitas vezes o problema comeccedila na preparaccedilatildeo de liacutederes na ldquoescola dos profetasrdquo ou seja com professores de seminaacuterios (Princeton)

(l) A renovaccedilatildeo espiritual comeccedila com uma pessoa obediente (Lutero) especialmente presbiacuteteros fieacuteis ajudam no retorno para a Palavra de Deus (Calvino)

(m) Etc etc

Tambeacutem na histoacuteria geral apesar de muitos problemas vendo a becircnccedilatildeo que o cristianismo tem sido para o mundo somente podemos dizer graccedilas a Deus Assim o confessaram grandes cientistas como Kepler e Pascal artistas como Michelangelo e Rembrandt muacutesicos como Haumlndel e Bach O historiador Latourette disse com razatildeo

Mais do que qualquer outra religiatildeo o Cristianismo tem levado ao progresso intelectual humano dando a liacutenguas uma forma escrita criando literatura promo-vendo a educaccedilatildeo desde escolas primaacuterias ateacute instituiccedilotildees de niacutevel universitaacuterio estimulando a mente e o espiacuterito humano a novas exploraccedilotildees no desconhecido Tem sido o maior fator no combate em escala mundial a antigos inimigos da humanidade como guerra fome e exploraccedilatildeohellip Mais do que qualquer outra religiatildeo tem promovido a dignidade da personalidade humana pelo alto valor que atribuiu a cada alma individual3

Apesar de tudo a nossa civilizaccedilatildeo ocidental foi profundamente influenciada por princiacutepios cristatildeos4 Natildeo eacute que o cristianismo tenha descoberto essa dig-nidade ela eacute uma heranccedila do judaiacutesmo reconhecendo que eacute o proacuteprio Deus que valoriza cada alma individual (Gn 126 Mt 2535ss)

E eacute uma heranccedila escrita No seu centro estaacute a Biacuteblia Por isso ouvir e ler a Palavra de Deus na liacutengua materna eacute uma necessidade primordial (Atos 2) e

2 O grande estatiacutestico David B Barrett calculou que desde 1900 a populaccedilatildeo mundial cresceu 36 vezes (World Christian Encyclopedia 1982) O aumento dos cristatildeos foi diferente Na Europa o nuacutemero se multiplicou somente por 14 na Ameacuterica do Norte por 34 na Oceania por 5 na Aacutesia por 15 e na Aacutefrica por 35 Mas o mundo eacute maior e por enquanto somente um quarto da sua populaccedilatildeo eacute cristatilde (Mt 93738 1Co 36)

3 LATOURETTE Kenneth Scott (1884-1968) Advance Through the Storm 1939-19454 Cf HOLLAND Tom Dominion The Making of the Western Mind 2019 ldquoTime itself has been

Christianizedrdquo (p xxiv) AD = Anno Domini

101

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

o impacto da traduccedilatildeo da Biacuteblia eacute muito maior do que se pensa A influecircncia da traduccedilatildeo do Antigo Testamento para a liacutengua grega foi grande no mundo helenista Assim tambeacutem o impacto da Vulgata Latina foi enorme na Idade Meacutedia E a traduccedilatildeo de Lutero a holandesa dos Estados a King James Versione a de Joatildeo Ferreira de Almeida influenciaram profundamente a cultura e a liacutengua dos povos Eacute interessante observar como a traduccedilatildeo queacutechua ajudou no renascimento cultural desse povo andino subjugado O trabalho dos Tradutores Wycliffe eacute de suma importacircncia Oswald Smith disse com razatildeo ldquoPor que algueacutem deveria ouvir o evangelho duas vezes enquanto outros natildeo ouviram nem uma sequerrdquo

O descrever da histoacuteria desse ldquocristianismordquo requer precauccedilotildees espe-ciacuteficas Na historiografia em geral e especialmente na histoacuteria da igreja de Cristo deve-se evitar vaacuterios problemas Ateacute simplesmente o uso de certas pa-lavras pois haacute termos com sobrecarga histoacuterica negativa tanto no falar como no ouvir baacuterbaro vacircndalo cigano colonialismo judeu5 luterano misticismo etc Eacute preciso bom senso e amor para drenar um pouco o veneno acumulado historicamente Como difere a nossa interpretaccedilatildeo da histoacuteria assim tambeacutem o nosso pensar para o futuro (exemplo a atitude para com Israel6)

Por isso tambeacutem eacute necessaacuterio evitar certos extremos Por exemplo em geral natildeo somente a histoacuteria da expansatildeo da igreja mas tambeacutem da sua organizaccedilatildeo natildeo somente da vida da igreja mas tambeacutem do seu culto natildeo somente da doutrina mas tambeacutem do seu contexto poliacutetico e religioso Ou por exemplo de um periacuteodo especiacutefico da historiografia como o da igreja evan-geacutelica do Nordeste no seacuteculo 17 A descriccedilatildeo natildeo deve ser confessionalista procurando ocultar os erros dos correligionaacuterios nem relativista como se a ausecircncia de qualquer norma garantisse a felicidade verdadeira Tambeacutem natildeo deve ser espiritualista como se as oraccedilotildees e as pregaccedilotildees fossem as uacutenicas coisas importantes nem materialista como se as situaccedilotildees econocircmicas fossem os uacutenicos condicionantes da religiatildeo Tambeacutem natildeo opressionista como se por esse acircngulo se captasse toda a verdade nem exemplarista como se tudo naqueles dias fosse digno de ser imitado

5 Grande contribuiccedilatildeo israelita agrave sociedade Exemplos jeans ndash americano Levi Strauss psico-logia ndash austriacuteaco Sigmund Freud Facebook ndash Mark Zuckerberg bomba atocircmica ndash alematildeo refugiado Oppenheimer (ldquonatildeo userdquo) filmes ndash Spielberg Asterix amp Obelix Superman Sound of Music irrigaccedilatildeo por gotejamento etc Haacute cerca de 15 milhotildees de judeus menos de 025 da populaccedilatildeo mundial mas desde a introduccedilatildeo do Precircmio Nobel (1901) cada quarto precircmio foi entregue a um judeu

6 Exemplos Teologia Palestina de Libertaccedilatildeo ndash Jesus era palestino natildeo judeu Ismael em Gecircnesis 22 natildeo Isaque Poreacutem se os liacutederes palestinos reconhecessem que Deus enviou a becircnccedilatildeo por meio de Jacoacute o povo participaria dela em todos os sentidos O Movimento BDS (boycot disinvestment sanctions = boicote desinvestimento sanccedilotildees) eacute uma das maneiras modernas de amaldiccediloar Israel (Nm 2323) O Hamas tentando destruir a ldquopaz econocircmicardquo da Margem Ocidental

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

102

Sempre o melhor eacute seguir o velho adaacutegio Veritas et perspicuitas verdade e clareza sobretudo a verdade Poreacutem como poderia o historiador realmente desligar-se de sua bagagem existencial e de suas pressuposiccedilotildees Soacute haacute um que pode escrever de maneira absolutamente objetiva a histoacuteria humana aquele que pode sondar todos os tempos e lugares e que sonda ateacute o mais iacutentimo dos nossos coraccedilotildees (Salmo 139)

Sendo a igreja composta de filhos e filhas de Adatildeo e Eva na correnteza do tempo podemos observar oscilaccedilotildees ou seja ondas na sua histoacuteria ateacute redemoinhos cataratas e bifurcaccedilotildees Lembrando-nos das controveacutersias da igreja antiga notamos que tambeacutem durante aquele tempo a pouca distacircncia da fonte existiu a tendecircncia de se desviar da revela-ccedilatildeo de Deus Natildeo eacute uma tendecircncia nova mas vem da primeira tentaccedilatildeo diaboacutelica Por um lado o pai da mentira e dos mentirosos subtraiu da Palavra do Senhor por outro lado ele acrescentou algo a ela (Jo 844 Gn 345) Desde a queda essa tendecircncia existe no homem e existiraacute ateacute a consumaccedilatildeo dos seacuteculos Nossa tendecircncia eacute (e de fato o fazemos) desviar para a esquerda ou a direita tirando da Palavra de Deus ou adicionando a ela em todas as aacutereas da vida ndash no pensar no falar e no fazer na doutrina e na eacutetica ndash muitas vezes de modo disfarccedilado mas sempre presente latente ou patente Natildeo eacute difiacutecil desviar o difiacutecil eacute andar direito (Is 3021)

Essa tendecircncia para se desviar tambeacutem se apresenta nas aacutereas especiacuteficas da teologia ou seja o nosso pensar sobre Deus e sua revelaccedilatildeo na doutrina ou eacutetica (credenda et agenda) Temos a certeza de que pode aparecer apareceu e apareceraacute em todos os capiacutetulos (loci) da teologia um dia na teontologia outro dia na pneumatologia na eclesiologia ou na escatologia Por isso temos de vigiar e orar (Mt 2641) para que sejamos fieacuteis agrave Palavra fiel e tenhamos sabedoria para detectar possiacuteveis ou melhor provaacuteveis desvios Como bons timoneiros sob o grande capitatildeo precisamos notar as correntezas e ventos dou-trinais e eacuteticos (Ef 41415) Porque ortodoxia e ortopraxia devem andar juntas

O motivo principal da Reforma Protestante foi corrigir os desvios da Igreja Romana Por isso a igreja da Reforma era de fato uma Igreja Catoacutelica Apostoacutelica Reformada como Joatildeo Ferreira de Almeida insistia (seguindo o puritano inglecircs Perkins) Mas por si mesma ela natildeo tem a garantia de per-manecer uma igreja fiel agrave Palavra de Deus Vemos isto claramente durante a eacutepoca do racionalismo e ateacute os dias de hoje De fato os catoacutelicos romanos acrescentaram agrave Palavra de Deus mas os protestantes (e muitos catoacutelicos libe-rais) tecircm subtraiacutedo da revelaccedilatildeo de Deus (Jo 1035b Ap 221819) Entretanto o Senhor sempre preservaraacute um remanescente para que as portas do inferno natildeo prevaleccedilam contra a sua noiva (Mt 1618)

O treinamento de obreiros eacute crucial nesse ponto No seacuteculo 18 na eacutepoca do Grande Avivamento da Ameacuterica do Norte havia uma certa contradiccedilatildeo

103

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

entre estudos teoloacutegicos e piedade como acontece frequentemente na his-toacuteria da igreja Por isso o jovem pastor presbiteriano Gilbert Tennent teve razatildeo em parte com seu veemente sermatildeo sobre ldquoO perigo de um ministeacuterio natildeo-convertidordquo (1740) Por causa disso seu pai tinha organizado uma escola o ldquoLog Collegerdquo em Neshaminy perto de Filadeacutelfia Houve uma grande influ-ecircncia desse tipo de escolas naquele seacuteculo ateacute sobre o Segundo Avivamento em geral E os presbiterianos exigiam um treinamento soacutelido Poreacutem se natildeo tivessem ocorrido os movimentos metodista e batista com seus pregadores leigos o que teria acontecido com as multidotildees perguntou com muita razatildeo o conhecido professor batista de homileacutetica John Broadus7

Por outro lado como reaccedilatildeo contra o isolamento dos ldquoseminaacuteriosrdquo os batistas William Harper e John D Rockefeller fundaram uma faculdade te-oloacutegica ligada agrave Universidade de Chicago a University of Chicago Divinity School Poreacutem em breve ela apresentou tendecircncias fortemente modernistas como ocorreu nos anos 1920 com Harvard Yale Princeton e Nova York (Union Seminary) O Seminaacuterio Union tinha sido fundado por presbiterianos avivados(da New School) mais interessados na experiecircncia do que na doutrina Infeliz-mente esses seminaacuterios maiores (mainline divinity schools) jaacute haviam abando-nado o seu compromisso com as Escrituras como a infaliacutevel Palavra de Deus escrita Recentemente o professor John Bolt do Calvin Seminary (reformado ortodoxo) em Grand Rapids alertou sua proacutepria instituiccedilatildeo dizendo ldquoNatildeo haacute garantias de que as escolas ateacute mesmo aquelas nascidas da paixatildeo da piedade evangeacutelica continuaratildeo a ser mordomos fieacuteis do Evangelhordquo8 Seria por causa de cooperaccedilatildeo com outras denominaccedilotildees Pode ser mas natildeo precisa ser assim

De fato agraves vezes a cooperaccedilatildeo eacute uma questatildeo praacutetica difiacutecil Seraacute que podemos cooperar com outros que natildeo tecircm a mesmiacutessima posiccedilatildeo teoloacutegica que a nossa Nesse ponto o exemplo do grande evangelista calvinista George Whitefield talvez possa ajudar Embora calvinista convicto em suas campa-nhas evangeliacutesticas ele sempre procurava a cooperaccedilatildeo com outras igrejas Na Escoacutecia os presbiterianos estavam divididos entre ldquomoderadosrdquo e Marrowmen liderados pelos irmatildeos Erskine influenciados pelo valioso livro puritano The Marrow of Theology (ldquoA medula da teologiardquo 1645) Quando Whitefield chegou agrave Escoacutecia esses Marrowmen ortodoxos o queriam somente para eles Mas Whitefield decidiu que serviria num sentido mais amplo ateacute em coope-raccedilatildeo com evangeacutelicos da igreja estatal (Church of Scotland presbiteriana mas infelizmente deiacutesta) Entatildeo os irmatildeos Erskine se opuseram a Whitefield

7 John A Broadus autor do famoso Sobre a preparaccedilatildeo e entrega de sermotildees (Custom 1ordf ed 1870)

8 BOLT John Stewards of the Word Grand Rapids Calvin Seminary 1998 p 103 ldquoFaithful stewards of the Gospelrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

104

Entretanto no ano seguinte eclodiu o famoso reavivamento na cidade de Cam-buslang (1742) perto de Glasgow

Certamente o melhor eacute cooperar na medida do possiacutevel Entretanto qualquer que seja a sua opiniatildeo particular de obreiro sobre o assunto conveacutem lembrar que Deus o colocou numa igreja sob a responsabilidade do conselho e vocecirc como obreiro individual deve seguir a linha adotada por sua igreja senatildeo vocecirc rompe o laccedilo primordial de cooperaccedilatildeo Se vocecirc natildeo concordar pode tentar mudar essa posiccedilatildeo oficial mas sempre no caminho fraterno in-dicado pela constituiccedilatildeo da sua igreja E se conscientemente vocecirc ainda natildeo pode concordar diante do tribunal de Deus tem o direito de comunicar isso de modo respeitoso e fraterno e procurar filiar-se a outro grupo sempre a um que seja mais conforme com a Palavra de Deus

Mas natildeo se engane porque todos noacutes temos as nossas pressuposiccedilotildees os motivos mais iacutentimos do nosso coraccedilatildeo Blaise Pascal jaacute disse que o coraccedilatildeo tem razotildees que a proacutepria razatildeo desconhece Geralmente pressuposiccedilotildees satildeo coisas do coraccedilatildeo (Mc 721 Pv 423) Um exemplo extremo foi o professor hegeliano David F Strauss que foi demitido da Universidade de Tuumlbingen e teve impedida a sua nomeaccedilatildeo em Zurique Em seguida ele publicou seu livro Vida de Jesus (1835) em que enfatizou o desenvolvimento do dogma da igreja declarando a encarnaccedilatildeo de Cristo como um mito cristatildeo Poreacutem o raciociacutenio de Strauss partiu de pressuposiccedilotildees materialistas e ateiacutestas que parecem um redemoinho tentador fascinante mas mortal natildeo soacute ontem mas tambeacutem hoje quando apresentadas por Dawkins o sumo-sacerdote da religiatildeo ateiacutesta fundamentalista9

O racionalista coloca a ratio no trono da sua vida repetindo com Des-cartes Cogito ergo sum (ldquoPenso logo existordquo) mas o disciacutepulo de Cristo reconhece outra razatildeo balbuciando Cogitor ergo sum (ldquoSou conhecido logo existordquo) Sim ldquoagora conheccedilo em parte mas entatildeo conhecerei como tambeacutem sou conhecidordquo (1Co 1312 Gunning) Oremos para que nossa pressuposiccedilatildeo mais iacutentima seja sempre de querer levar cativo todo o nosso pensamento agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) e que quando necessaacuterio possamos dizer humildemente Non liquet (ldquoNatildeo estaacute clarordquo) pois por enquanto restaratildeo per-guntas sem respostas10 Confesso que de mim mesmo sou mais um liberal mas eacute basicamente esse versiacuteculo que o Senhor sempre tem usado como reacutedea gentil para me segurar no caminho da sua Palavra Esse foi o meu ldquoversiacuteculo Obadiasrdquo na trilha acadecircmica Muito obrigado Senhor11

9 DAWKINS Richard The God delusion (2006) MCGRATH Alister The Dawkins delusion IVP 2007

10 SCHALKWIJK F L Meditaccedilotildees de um peregrino Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2014 p 116 11 Cf BOTELHO Marcos Campos ldquoTeologia reformada e pressupostos filosoacuteficos juntos contra

a ceticismo hermenecircutico poacutes-modernordquo Fides Reformata XV-2 (2010) p 85ss

105

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

Na histoacuteria haacute ondas no pensar mas tambeacutem no fazer na doutrina e na eacutetica Pois o mau comportamento procede do mau pensar e basicamente do mau coraccedilatildeo Ondas de perversatildeo correm como tsunamis pelo mar dos povos e ai daqueles que satildeo arrastados por elas Mas haacute tambeacutem ondas de santificaccedilatildeo De fato o ascetismo eacute um tipo de santificaccedilatildeo nem sempre muito biacuteblico mas assim mesmo uma reaccedilatildeo contra muita confusatildeo e perversidade carnal Durante a Idade Meacutedia uma onda de ascetismo alcanccedilou os conventos depois o clero e finalmente o povo em geral (seacutecs 10-13) Infelizmente foi longe demais e a introduccedilatildeo do celibato obrigatoacuterio ainda eacute um assunto difiacutecil na Igreja Romana e uma exigecircncia acrescentada agrave Palavra de Deus (1Tm 43) Sem duacutevida haacute uma vocaccedilatildeo para a vida de solteiro em vista do reino de Deus (Mt 1912) mas obreiros espirituais estatildeo expostos continuamente a contatos tentadores e por isso a vida matrimonial eacute o melhor remeacutedio

Claro haacute um grande espaccedilo para as adiafora coisas natildeo prescritas nem proibidas mas certos limites devem ser observados E ali qualquer desvio da Palavra de Deus (ateacute com as melhores intenccedilotildees) pode prejudicar a igreja Quantas laacutegrimas foram vertidas por causa dessa tradiccedilatildeo do celibato obrigatoacute-rio desse ldquosaber melhor do que Deusrdquo que excede o mandamento de santidade (Mt 156) Ondas de homossexualismo e abuso de crianccedilas por ldquocuras drsquoalmasrdquo acompanham esse ascetismo imposto como provam os casos judiciais contra sacerdotes romanos nos Estados Unidos

Graccedilas a Deus a Reforma restaurou tambeacutem nesse ponto o padratildeo biacuteblico para os filhos de Deus (1Co 95) Deus natildeo colocou um convento no Paraiacuteso e sim um casal Por outro lado o casamento natildeo eacute uma garantia de santidade para os obreiros Como a obra do Senhor tem sofrido por causa disto e o Nome Santo de Deus tem sido blasfemado (2Sm 1214) E reconhecendo que podia ter acontecido com qualquer um de noacutes como eacute necessaacuterio orar constante-mente ldquoNatildeo sejam envergonhados por minha causa os que esperam em Ti oacute Senhorrdquo (Sl 696)

Ao mesmo tempo em que cresceu o ascetismo aumentou o misticismo A palavra ldquomiacutesticordquo vem do grego myō (μυω) fechar os olhos Os judeus oravam de olhos abertos e matildeos levantadas para o ceacuteu mas com a influecircncia neoplatocircnica na igreja cristatilde natildeo seria difiacutecil a oraccedilatildeo se tornar mais introspec-tiva A alma humana natildeo era considerada uma faiacutesca divina dentro do homem

Natildeo devemos pensar que essas ideias satildeo histoacuterias do passado Um co-nhecido me disse que tinha orado como os judeus mas agora orava com as matildeos no coraccedilatildeo concentrando-se em si mesmo Ele tinha se tornado adepto da antroposofia um tipo de espiritismo glorificado um membro antigo da famiacutelia que hoje em dia eacute chamada ironicamente Nova Era Por sua natureza caiacuteda o homem eacute pagatildeo Pela mordida da serpente ele pensa agora que eacute ou pelo menos quer ser deus Como um poeta holandecircs expressou ldquoEu sou um deus no mais iacutentimo do meu serrdquo

F RANS LEONARD SCHALK W IJ K APRENDENDO COM A HISTOacute RIA DA IG REJ A

106

Por outro lado temos de reconhecer que haacute algo que talvez pudesse ser denominado um ldquomisticismo biacuteblicordquo (mas detesto a palavra por causa da sobrecarga hereacutetica histoacuterica) Eacute o andar com Deus como Davi canta e como Enoque e Noeacute experimentaram (Sl 2512 Gn 524 69) Ateacute devia ser o alvo de cada crente (1Jo 17 3Jo 4) Tambeacutem nesse ponto precisamos de um equiliacutebrio sadio Quanto mais procuramos ser ortodoxos fieacuteis tanto mais carecemos de uma vida iacutentima com Deus E as nossas igrejas precisam desse equiliacutebrio para que natildeo se congelem numa ortodoxia fria nem se queimem num misticismo abrasador

Tentar manter o equiliacutebrio cabe especialmente agrave lideranccedila das igrejas Ela precisa de muita sabedoria radical ou moderada Na Alemanha na eacutepoca do avivamento pietista havia ao norte de Frankfurt um pequeno condado de nome Wetterau Foram permitidas ali congregaccedilotildees separatistas (parcialmente estimuladas pela ideia de ecclesiola de Spener) Elas sofreram a influecircncia de refugiados huguenotes perseguidos e apocaliacutepticos Ateacute mesmo Zinzendorf foi alertado e uma congregaccedilatildeo moraviana teve de ser dissolvida Um dos liacutederes radicais era um certo Arnold que em sua histoacuteria da igreja defendeu a tese de que atraveacutes dos seacuteculos os hereacuteticos tinham sido os verdadeiros crentes Natildeo eacute de estranhar que Arnold tenha causado muita maacutegoa e confusatildeo

Ao mesmo tempo mais para o sul em Wuumlrttemberg (Stuttgart) o pie-tismo era mais moderado e natildeo enfatizava a luta espiritual (Busskampf ) A lideranccedila da igreja luterana regional tambeacutem era moderada aceitando vaacuterios desejos dos pietistas como as reuniotildees nas casas (ecclesiola) evitando excessos e separatismo De fato cada eacutepoca carece de liacutederes que oram por sabedoria para pastorear a grei (Ec 85b) Por outro lado um dos centros do pietismo Halle se tornou racionalista inclusive pela pouca atenccedilatildeo que tinha sido dada agrave teologia sistemaacutetica e agrave filosofia sujeitando os pensamentos agrave obediecircncia de Cristo (2Co 105) Vigiai

De fato precisamos aprender a vigiar mas sempre de acordo com aquela expressatildeo tatildeo conhecida na igreja primitiva na paz de Deus (Fp 47) Como um velho colega faccedilo um apelo aos professores para que considerem que tipo de ensino sai do puacutelpito edifica ou prejudica a igreja de Cristo Sejamos fieacuteis agrave Palavra do Deus fiel E aos que nomeiam professores peccedilo por amor de Deus que reconheccedilam sua responsabilidade de longo alcance Na Europa igrejas morreram porque curadores (nomeados pela igreja) queriam ser ldquoprogressistasrdquo instalando professores que acharam 1Coriacutentios 46 ultrapassado Todos noacutes como disciacutepulos do Mestre jaacute entramos na histoacuteria da igreja cada um no seu tempo e no seu lugar Todos somos chamados para ser uma becircnccedilatildeo hic et nunc (pois quem natildeo quer servir aqui e agora natildeo serviraacute nunca) incluindo na vigilacircncia Mas devemos vigiar na paz do Senhor para natildeo ver fantasmas em todo canto tornando-nos agitados

107

F IDES REF ORMATA X X V I Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 9 9 - 1 0 7

e aacutesperos caccediladores de heresias Porque muitas vezes esses desvios satildeo quase imperceptiacuteveis no iniacutecio e nem sempre causados conscientemente agraves vezes ateacute por ingenuidade Aleacutem disto podem ser simplesmente como pequenas os-cilaccedilotildees ao redor do eixo firme mantido em seu trajeto terrestre pelo polo norte celestial da nossa existecircncia Deus mesmo (Pv 17) Poreacutem por ingecircnua que seja a oscilaccedilatildeo toda atenccedilatildeo eacute pouca pois o diabo natildeo dorme e as sentinelas tecircm serviccedilo 24 horas por dia ateacute a chegada ao porto celestial Contudo natildeo estatildeo de plantatildeo sozinhas pois haacute muitos voluntaacuterios (Sl 1103) que querem servir fielmente ao Senhor dos senhores e muito mais importante eacute Deus mesmo que tem guardado guarda e guardaraacute a sua casa (Mt 1618) Por isso as sentinelas precisam aprender a dormir em paz (no seu proacuteprio lugar mas sendo levadas pelo rio do tempo) sabendo que estatildeo sendo guardadas pelo Senhor (Sl 48)

Itajubaacute Dia da Reforma 2021 AD

109

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

RESENHAMaacutercio Roberto Alonso

PEARCEY Nancy A busca da verdade Satildeo Paulo Cultura Cristatilde 2018

Criada em famiacutelia luterana (p 20) Nancy Randolph Pearcey como muitos outros jovens abandonou sua formaccedilatildeo religiosa na eacutepoca do Ensino Meacutedio por natildeo encontrar respostas satisfatoacuterias a vaacuterios de seus questionamentos Em contato com a apologeacutetica de Francis Schaeffer no ministeacuterio LrsquoAbri anos mais tarde (p 182) quando ainda era estudante de filosofia na Alemanha Nancy retornou ao cristianismo com grande vigor Tornou-se Mestre em Estudos Biacuteblicos pelo Covenant Theological Seminary e poacutes-graduada em Histoacuteria da Filosofia pelo Institute of Christian Studies de Toronto Eacute autora e coautora de diversos livros sobre apologeacutetica e cosmovisatildeo destacando-se Verdade Absoluta (CPAD) E Agora Como Viveremos (CPAD) O Cristatildeo na Cultura de Hoje (CPAD) A Alma da Ciecircncia (ECC) e A Busca da Verdade (ECC) Ao lado de nomes como Charles Colson James Sire Albert Wolters e alguns outros Nancy Pearcey estaacute entre os mais influentes autores da atualidade na temaacutetica de defesa da feacute cristatilde

Na seccedilatildeo introdutoacuteria do livro Pearcey explica sua proposta Partindo de uma anaacutelise exegeticamente acurada e apologeticamente perspicaz de Romanos 11ndash216 ela pretende extrair da passagem cinco princiacutepios estrateacutegicos que fornecem um ldquoplano de jogordquo baacutesico para atribuir sentido a qualquer visatildeo de mundo (cosmovisatildeo) disponiacutevel (p 34) Os princiacutepios satildeo brevemente descri-tos antes de serem analisados em detalhe na proacutexima seccedilatildeo Ao final do livro ela promete elaborar uma defesa positiva e convincente para o cristianismo

Mestre em Antigo Testamento (MDiv CPAJ) Mestrando em Lideranccedila Educacional Cristatilde (MA CPAJGordon College) professor de Teologia Pastoral no Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo professor de Teologia Exegeacutetica no Seminaacuterio Presbiteriano Brasil Central Capelatildeo do Instituto Presbiteriano de Educaccedilatildeo ndash IPE (Goiacircnia)

A B U SC A DA VERDADE

110

Na seccedilatildeo seguinte como prometeu Pearcey se dedica ao detalhamento dos cinco princiacutepios anteriormente enunciados a partir do texto de Romanos Satildeo os seguintes

1) Identifique o iacutedolo ldquoSe vocecirc rejeitar o Deus da Biacuteblia iraacute deificar algo dentro da ordem criadardquo (p 34) conforme se pode deduzir de Romanos 121 25 ldquotendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusadorando e servindo a criatura em lugar do Criadorrdquo No capiacutetulo ldquoCrepuacutesculo dos deusesrdquo Pearcey identifica ldquopoderes ou elementos imanentes do cosmosrdquo (p 47) que tecircm sido elevados agrave condiccedilatildeo de iacutedolos em diversas cosmovisotildees rivais agrave cristatilde As principais anaacutelises que ela faz se concentram sobre os iacutedolos do todo do cosmos (para o budismo) da mateacuteria (para o materialismo cientiacute-fico) dos sentidos (para o empirismo) do intelecto (para o racionalismo) e da imaginaccedilatildeo criativa (para o romantismo)

2) Identifique o reducionismo do iacutedolo ldquoIacutedolos sempre conduzem a uma visatildeo inferior da vida humana Quando uma visatildeo de mundo substitui o Criador por algo na criaccedilatildeo tambeacutem substitui uma visatildeo superior dos seres humanos feitos agrave imagem de Deus por uma visatildeo inferior dos seres humanos feitos agrave imagem de algo na criaccedilatildeordquo (p 74) conforme ela infere a partir de Romanos 123 ldquomudaram a gloacuteria do Deus incorruptiacutevel em semelhanccedila da imagem de homem corruptiacutevel bem como de aves quadruacutepedes e reacutepteisrdquo No capiacutetulo ldquoComo Nietzsche vencerdquo Pearcey analisa o reducionismo do materialismo (que considera o homem como ldquonada aleacutem de um bloco de neurocircniosrdquo) do poacutes-modernismo (que reduz a verdade a uma construccedilatildeo social) do panteiacutesmo (que reduz o Criador pessoal agrave criaccedilatildeo impessoal) e do Islatilde (que reduz Deus ao rejeitar a divindade de Cristo e a Trindade)

3) Teste o iacutedolo ele contradiz o que sabemos sobre o mundo ldquoSe deter-minada visatildeo de mundo contradiz o que sabemos sobre o mundo atraveacutes da revelaccedilatildeo geral ela fracassardquo (p 37) de acordo com o que podemos inferir de Romanos 119 21 ldquoo que de Deus se pode conhecer eacute manifesto entre eles porque Deus lhes manifestou por meio das coisas que foram criadas tendo conhecimento de Deus natildeo o glorificaram como Deusrdquo No capiacutetulo ldquoAtos seculares de feacuterdquo Pearcey trata de diversas cosmovisotildees que natildeo satildeo aprovadas no teste de conformidade agrave revelaccedilatildeo geral O determinismo natildeo sobrevive quando confrontado com nossa consciecircncia de que fazemos escolhas livres O materialismo natildeo explica como eacute que noacutes seres pessoais poderiacuteamos ter surgido da mateacuteria impessoal O ateiacutesmo natildeo fornece base adequada para con-siderarmos os seres humanos responsaacuteveis por suas accedilotildees O poacutes-modernismo pode ter alguma sobrevida quando seletivamente aplicado agrave religiatildeo e agrave eacutetica mas natildeo sobrevive se aplicado agrave ciecircncia engenharia e tecnologia

4) Teste o iacutedolo ele contradiz a si mesmo ldquoVisotildees de mundo centradas em iacutedolos entram em colapso internamenterdquo Elas satildeo autorrefutaacuteveis conforme

111

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

se deduz de Romanos 121 ldquose tornaram nulos em seus proacuteprios raciociacutenios obscurecendo-se-lhes o coraccedilatildeo insensatordquo No capiacutetulo ldquoPor que cosmovisotildees cometem suiciacutediordquo Pearcey traz diversos exemplos de cosmovisotildees idoacutelatras que se autorrefutam Ela mostra que a complexidade e o planejamento eviden-te das coisas vivas natildeo podem ser explicados pelo acaso e pela necessidade como propotildee o darwinismo Que se a religiatildeo eacute mesmo ldquoo oacutepio do povordquo (um instrumento de alienaccedilatildeo e dominaccedilatildeo) como propotildee Marx poderiacuteamos dizer o mesmo de suas teorias econocircmicas ndash elas soacute pretenderiam racionalizar seus proacuteprios interesses econocircmicos Se como Nietzsche afirma a moralidade eacute inventada pelos fracos e a religiatildeo eacute uma ldquomentira santardquo por que deveriacuteamos noacutes prestar atenccedilatildeo ao que ele tem a dizer Natildeo teria ele interesses escusos semelhantes Em ldquoDesacreditando os desacreditadoresrdquo (p 140) Pearcey ainda combate o materialismo se o pensamento produzido pelo seu ceacuterebro eacute semelhante ao suor secretado por suas glacircndulas seu pensamento eacute apenas um fato bioloacutegico que por isso mesmo natildeo poderia ser verdadeiro ou falso Ela tambeacutem mostra a contradiccedilatildeo inerente do poacutes-modernismo quando afir-ma que natildeo existe uma verdade universalmente vaacutelida o poacutes-modernista estaacute implicitamente admitindo que sua proacutepria afirmaccedilatildeo eacute universalmente vaacutelida e verdadeira

5) Substitua o iacutedolo faccedila uma defesa do Cristianismo ldquoO Cristianismo deteacutem maior poder explicativo do que qualquer outra cosmovisatildeo ou religiatildeo Ele se encaixa melhor nos dados da revelaccedilatildeo geral e isso leva a uma visatildeo mais humana e libertadora da pessoa humanardquo (p 40) Esse eacute um dos motivos pelos quais devemos nos unir ao apoacutestolo Paulo quando afirma ldquonatildeo me envergonho do evangelhordquo (Rm 116) No capiacutetulo ldquoAteus oportunistasrdquo Pearcey elabora a prometida defesa positiva e convincente do cristianismo demonstrando que a feacute cristatilde eacute a cosmovisatildeo que melhor pode explicar nosso senso moral intriacutenseco os nobres ideais dos direitos humanos a possibilidade da empreitada cientiacutefica nossa consciecircncia e nossa liberdade entre outras questotildees O tiacutetulo do capiacutetulo denuncia que cosmovisotildees rivais precisam muitas vezes emprestar e de modo oportunista se beneficiar de elementos do cristianismo para se equilibrarem mas que nossos rivais resistem de modo incoerente a abraccedilar o cristianismo em seu todo por conta de suas reivindicaccedilotildees inegociaacuteveis Depois de expor algumas contradiccedilotildees e perguntas sem resposta do ateiacutesmo evolucionista (por exemplo ldquocomo um processo irracional cria seres racionaisrdquo) a autora finalmente insiste que eacute nosso dever conhecer as cosmovisotildees rivais a fim de estarmos preparados para uma confrontaccedilatildeo amorosa e consistente bem como para prepararmos adequadamente as proacuteximas geraccedilotildees de modo a defenderem a superioridade da cosmovisatildeo cristatilde neste mundo confuso ldquoOs cristatildeos satildeo chamados a amar as pessoas o suficiente para ouvir suas perguntas e cumprir o trabalho duro de encontrar respostasrdquo (p 186)

A B U SC A DA VERDADE

112

No capiacutetulo de conclusatildeo intitulado ldquoComo o pensamento criacutetico salva a feacuterdquo Pearcey demonstra que a Escritura incentiva o pensamento criacutetico e encoraja os crentes a usarem a mente para examinar alegaccedilotildees de verdade ldquoOs cristatildeos devem tornar-se pensadores independentes com as ferramentas para pensar criticamente sobre diversos pontos de vista ndash pesando as provas e julgando a validade dos argumentosrdquo (p 189) Jovens igrejados mas natildeo pre-parados estatildeo abandonando a feacute quando ingressam na universidade Eacute preciso preparaacute-los para detectar o secularismo oculto muitas vezes nos filmes na cultura popular na pintura nas artes em geral e ateacute mesmo na teologia A neo--ortodoxia o liberalismo a teologia da libertaccedilatildeo ou a teologia do processo todas sucumbiram todas ldquoredefiniram a teologia cristatilde claacutessica no formato de uma filosofia baseada em iacutedolosrdquo (p 199) Para fazer frente a esse desafio natildeo basta criticar os iacutedolos eacute preciso oferecer alternativas que datildeo vida eliminando a divisatildeo entre sagrado e secular e rejeitando a ideia de que o cristianismo eacute apenas uma mensagem de salvaccedilatildeo que toca somente a parte ldquoespiritualrdquo da existecircncia Como embaixadores de Cristo (2 Co 520) enviados a um mundo com cosmovisotildees anticristatildes precisamos ser capazes de identificar os erros dos rivais e apontar a sublimidade da visatildeo de mundo oferecida pelo cristianismo

Uma das maiores virtudes do livro eacute que Pearcey utiliza exemplos e ci-taccedilotildees de fontes primaacuterias das cosmovisotildees que lhe satildeo opostas sinalizando sua honestidade acadecircmica e enfrentamento sincero dos problemas reais Aleacutem disso o livro eacute positivo por fundamentar sua metodologia na Escritura ndash a autora parte da revelaccedilatildeo divina para analisar a realidade Ainda o esboccedilo do livro eacute muito simples e claro podendo ser facilmente memorizado e utilizado por cristatildeos leigos Os princiacutepios satildeo loacutegicos e estatildeo claramente contidos no texto como propotildee a tese central do livro

Obras assim satildeo extremamente necessaacuterias nestes tempos de verdadeira guerra pela defesa da verdade Muitos cristatildeos tecircm agido como consumidores aacutevidos e acriacuteticos de conteuacutedo cultural anticristatildeo e precisam ser alertados para discernir melhor aquilo que tecircm recebido sem anaacutelise mais apurada O livro eacute um proveitoso recurso para preparaacute-los nesse sentido e tambeacutem pode ser de grande ajuda aos jovens que se deparam com os embates apologeacuteticos tatildeo caracteriacutesticos da vida universitaacuteria Pearcey ajudaraacute o leitor a articular adequa-damente sua cosmovisatildeo cristatilde e a refutar os equiacutevocos das cosmovisotildees rivais

Embora saiba que natildeo se pode exigir isso de uma autora estrangeira destaco que natildeo haacute na obra exemplos relacionados agrave cultura brasileira ndash o que poderia ser muito enriquecedor para os nossos leitores Mas como parece oacuteb-vio estes satildeo pontos muito pequenos quando comparados aos muitos aspectos positivos da obra Trata-se de um trabalho de profundidade acadecircmica mas que ainda assim eacute totalmente acessiacutevel para o leigo interessado Os princiacutepios de anaacutelise apresentados satildeo profundos mas suficientemente simples para que possam ser aplicados pelo crente comum a qualquer sistema cosmovisional e

113

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 109-113

a fartura de exemplos deixa claro como esse caminho pode ser trilhado Eacute um livro que merece ser lido com calma e debatido especialmente com jovens universitaacuterios O guia de estudos ao final fornece uacuteteis recursos adicionais Recomendo com entusiasmo

115

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 115-119

RESENHABruno Campos de Alcacircntara Santana

GETTY K GETTY K Cante como o louvor transforma sua vida famiacutelia e sua igreja Satildeo Joseacute dos Campos SP Fiel 2018

A igreja cristatilde apresenta uma infinidade de liturgias diferentes Dentre os motivos apontados para essa variedade encontramos tanto a tradiccedilatildeo cristatilde de cada denominaccedilatildeo como a forma com que essas comunidades interpretam as Escrituras Diante de tanta diversidade surge uma grande preocupaccedilatildeo com o lugar do canto no culto e consequentemente na vida da igreja Essa eacute a preocupaccedilatildeo de Keith e Kristyn Getty desenvolvida na obra Cante Como o Louvor Transforma Sua Vida Famiacutelia e Sua Igreja A experiecircncia do casal com o canto congregacional tem como foco o ensino da doutrina cristatilde por meio de composiccedilotildees tradicionais claacutessicas folcloacutericas e contemporacircneas que satildeo cantadas em todo o mundo1 Autores de ldquoIn Christ Alonerdquo eles satildeo referecircncias mundiais no que se refere aos hinos modernos Satildeo criadores da conferecircncia Sing A Getty Music Worship em Nashville2 encontro que deu origem ao livro em questatildeo Por sua contribuiccedilatildeo agrave muacutesica e agrave redaccedilatildeo de hinos modernos Keith Getty foi homenageado como ldquoOficial da Ordem do Impeacuterio Britacircnicordquo (OBE) por Sua Majestade a Rainha Elizabeth II3

Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio MTC ndash Latino-Americano ndash MG (WEC Internacional) Seminaacuterio Presbiteriano Rev Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo (Satildeo Paulo) e Universidade Presbiteriana Mackenzie Licenciado em Educaccedilatildeo Fiacutesica pela UEFS ndash BA Mestrando em Teologia (MDiv) com aacuterea de concentraccedilatildeo em Estudos Histoacuterico-Teoloacutegicos no Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew Jumper

1 About us gettymusic Disponiacutevel em httpswwwgettymusiccomabout-us Acesso em 24 fev 2021

2 Ibid3 Ibid

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

116

Segundo os autores a intenccedilatildeo que norteia a obra eacute a necessidade ldquode cantarmos juntos como igreja de modo a impactar toda a nossa vidardquo O li-vro eacute apresentado em sete capiacutetulos que podem ser divididos em trecircs grandes blocos O primeiro aponta para a necessidade do canto ldquoCriados para cantarrdquo ldquoOrdenados a cantarrdquo ldquoCompelidos a cantarrdquo O segundo eacute uma exortaccedilatildeo ao canto ldquoCante Com o coraccedilatildeo e a menterdquo ldquoCante Com a sua famiacuteliardquo ldquoCante Com a igreja localrdquo Por uacuteltimo vem uma evidecircncia a respeito do testemunho gerado ao cantar ldquoO testemunho radical quando as congregaccedilotildees cantamrdquo O livro conta ainda com diversos anexos que se prestam a auxiliar vaacuterios grupos de liacutederes e muacutesicos das igrejas

A primeira parte da obra se dispotildee a demonstrar que somos criados or-denados e compelidos a cantar pelas Escrituras Em primeiro lugar os autores afirmam que fomos criados para cantar Ressaltam que a capacidade fiacutesica para cantar foi maravilhosamente estabelecida por Deus que a capacidade intelectual para produzir e perceber a beleza do canto eacute uma daacutediva de Deus e que fomos formados para cantar Todos podem cantar e Deus deseja que todos cantem Mesmo diante das dificuldades de aprendizado a boa praacutetica musical eacute apontada como um caminho necessaacuterio para todos

Um dos argumentos utilizado pelos Getty eacute que cantamos porque fomos feitos agrave imagem de Deus com capacidade natildeo soacute de criar canccedilotildees sobre Deus como tambeacutem dirigidas a ele Essa habilidade nos proporciona desfrutar do amor e da beleza desenvolvidas pela arte Mas eacute feita a ressalva de que natildeo adoramos a arte criada pelo canto adoramos ao Senhor Essa deve ser a moti-vaccedilatildeo para o canto Cantar por amor a quem nos criou formou e nos capacita a cantar

Segundo a obra tambeacutem recebemos a ordem de cantar O uso dos salmos nos apresenta onde devemos desenvolver o canto congregacional Por isso o canto na assembleia dos santos eacute valorizado O conteuacutedo eacute apontado por Co-lossenses 316 onde entendemos que a palavra de Deus deve habitar em noacutes ricamente e ser comunicada por meio do canto de salmos hinos e cacircnticos espirituais O canto deve ser desenvolvido com gratidatildeo mesmo em momentos de grande expectativa a exemplo de Jesus (Mt 2630)

Fomos compelidos a cantar pelo evangelho afirmam os autores O Cristo que ressuscitou eacute quem nos impulsiona a essa tarefa Uma grande contribuiccedilatildeo da obra estaacute no apontamento da verdade biacuteblica de que louvamos aquilo que amamos Utilizando-se das palavras do escritor C S Lewis os autores afirmam que o louvor natildeo soacute expressa o prazer mas completa esse prazer declarado nos cacircnticos A partir daiacute eles demonstram que as Escrituras evidenciam uma grande variedade de tipos de cacircnticos cacircnticos de salvaccedilatildeo (Ecircxodo 15) cacircnticos de batalha (Juiacutezes 4 e 5) cacircnticos de Davi cacircnticos dos profetas cacircnticos que sustentam os prisioneiros Paulo e Silas (At 1625) cacircnticos em louvor a Deus

117

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

pela purificaccedilatildeo ldquoAo refletirmos sobre o evangelho natildeo podemos deixar de cantarrdquo

A segunda parte compreende uma entusiasmada convocaccedilatildeo para o canto A primeira convocaccedilatildeo eacute para que se cante com o coraccedilatildeo e a mente O canto eacute apresentado como alimento para a alma Eacute uma forma de levar as verdades biacuteblicas do culto para o cotidiano graccedilas ao caraacuteter memoraacutevel da muacutesica Serve para a construccedilatildeo de uma identidade biacuteblica atraveacutes do alimento espiri-tual Mais uma vez os salmos satildeo destacados em seu valor para a composiccedilatildeo de muacutesicas para o culto jaacute que eles satildeo ldquohinos dirigidos a Deus sobre Deus cantados em comunidade com o povo de Deusrdquo

A multiplicidade de temas dos salmos eacute louvada pela obra em questatildeo por ser um alimento rico e variado Eles tanto nos apresentam uma vasta visatildeo de quem Deus eacute como nos mostram como lidar com a vida real A conclusatildeo dos autores quanto a essa caracteriacutestica variada eacute a de que natildeo precisamos de uma fuga musical em nosso cotidiano antes precisamos contemplar o Salvador de nossa vida ndash nosso refuacutegio auxiacutelio e conforto

A primeira convocaccedilatildeo se completa evidenciando que cantar nos lembra o que Deus fez por noacutes e manteacutem nossa mente na eternidade Por isso eacute ne-cessaacuterio desenvolver apetite para a boa profunda e rica comida para a alma jaacute que ldquovocecirc eacute aquilo que vocecirc cantardquo

A segunda convocaccedilatildeo eacute para se cantar com a famiacutelia Uma palavra eacute primeiramente direcionada para o canto com as crianccedilas jaacute que o canto ajuda a treinar os filhos na linguagem do cristatildeo Dessa forma as crianccedilas devem ser estimuladas ao canto cantando aquilo de que gostam O segundo grupo atendi-do eacute o dos filhos adolescentes Para eles deve se demonstrar que eacute importante cantar tornar o canto mais atraente e agradaacutevel tocar e cantar em casa e natildeo ter medo dos filhos Os cacircnticos satildeo apontados como uma excelente ligaccedilatildeo do lar com a igreja Essa convocaccedilatildeo se encerra com dez ideias para se desenvolver o canto nos lares tais como usar as oportunidades pensar em muacutesicas com as quais se deseja que os filhos envelheccedilam explicar as muacutesicas estar alerta a todas as muacutesicas agraves quais seus filhos estatildeo expostos e cultivar uma opiniatildeo elevada sobre todo tipo de arte

A uacuteltima convocaccedilatildeo aponta para o canto com a igreja local Os autores afirmam que o canto congregacional eacute a mais perfeita expressatildeo de concor-dacircncia Apresentam tambeacutem alguns problemas enfrentados na contempora-neidade Abordam o elevado valor da muacutesica nos cultos e o menosprezo ao canto comunitaacuterio Cantar juntos deve ser devidamente valorizado porque nele nos lembrados de que natildeo estamos soacutes e que natildeo somos o centro do universo Dessa forma eacute necessaacuterio regular o foco do louvor com menos referecircncias temporais e culturais e mais adoraccedilatildeo atemporal Como estrateacutegia para lidar com essas questotildees e para favorecer o contato com os membros mais novos da igreja que satildeo chamados no livro de ldquomileniaisrdquo os autores demonstram

CANTE COMO O LOUVOR TRANSFORMA SUA VIDA FAMIacuteLIA E SUA IGREJA

118

preocupaccedilotildees com a criatividade a comunicaccedilatildeo e a comunidade Essas preo-cupaccedilotildees devem ter prioridade em detrimento das apresentaccedilotildees em forma de espetaacuteculo para o uso da muacutesica no culto Uma uacuteltima reflexatildeo eacute apresentada nessa convocaccedilatildeo o fato de que os cacircnticos criados para o culto em nossa igreja hoje seratildeo o legado cristatildeo para a proacutexima geraccedilatildeo Dessa forma o apelo final da obra mostra que igrejas saudaacuteveis cantam e que a igreja deve cantar como demonstraccedilatildeo de forccedila e poder

A uacuteltima parte do livro reforccedila o apelo entusiasta da parte anterior e forne-ce uma finalidade especial ao fato de sermos criados ordenados e compelidos a cantar Quando as congregaccedilotildees cantam elas fornecem ao mundo um teste-munho radical O autor afirma que a igreja em si mesma jaacute daacute testemunho mas que eacute acrescido em valor quando ela canta Esse eacute o motivo pelo qual Lutero e os reformadores inspiraram e capacitaram as suas congregaccedilotildees a cantarem em conjunto em sua proacutepria liacutengua pelo qual os avivalistas se utilizavam de cacircnticos congregacionais em suas campanhas evangeliacutesticas Por isso o evan-gelho deve ser cantado com qualidade e profundidade sendo uma prerrogativa da igreja fugir de letras vagas e distantes do evangelho de Cristo

Diante do desafio proposto pelos autores e da abrangecircncia do assunto os leitores mais experientes podem sentir falta de um uso mais profundo das Escrituras na abordagem desenvolvida no livro Em muitos casos o argu-mento mesmo sendo profundamente biacuteblico eacute defendido com a utilizaccedilatildeo de muacutesicas da tradiccedilatildeo cristatilde ou de relatos de experiecircncia pessoal dando um tom mais comercial e subjetivo agrave obra Essa caracteriacutestica deve ser esperada pelos leitores a partir da afirmaccedilatildeo dos Getty de que desejavam ldquoser praacuteti-cos ndash natildeo prescritivosrdquo na apresentaccedilatildeo do tema Outra questatildeo notaacutevel eacute a postura entusiasta com a qual o canto eacute ldquolouvadordquo nas paacuteginas da obra Por exemplo a expressatildeo ldquoeacute a mais perfeita expressatildeo de concordacircnciardquo utilizada para descrever o canto no culto natildeo leva em consideraccedilatildeo a individualidade dos participantes Acaba tratando esse momento de posturas tatildeo plurais que eacute o culto com certa ingenuidade

O livro demonstra uma linguagem direta e mesmo natildeo sendo exaustivo na apresentaccedilatildeo de textos-prova demonstra firme preocupaccedilatildeo com os prin-ciacutepios biacuteblicos expostos Sua preocupaccedilatildeo pastoral quanto agrave praacutetica do canto congregacional e agraves demais aacutereas do culto eacute latente e muito consistente Seu clamor por um canto congregacional e biacuteblico aleacutem de fornecer bom referencial para a praacutetica da muacutesica no culto alcanccedila o cotidiano e os lares da igreja As questotildees de discussatildeo ao final de cada capiacutetulo favorecem sua utilizaccedilatildeo em estudos com toda a igreja

Pensando nos objetivos declarados na introduccedilatildeo da obra os autores apontam satisfatoriamente o porquecirc cantamos e demonstram alegria e privi-leacutegio na expressatildeo do canto Abordaram o impacto do canto na vida da igreja e no cotidiano propondo praacuteticas uacuteteis ao crescimento e qualidade musical na

119

FIDES REFORMATA X X VI Nordm 2 ( 2 0 2 1 ) 1 1 5 - 1 1 9

igreja e na famiacutelia Mesmo com um tom ufanista conseguem desenvolver a compreensatildeo de que o testemunho da igreja por meio do canto promove a feacute fora das paredes do templo

O texto pode auxiliar os grupos de muacutesica das igrejas locais a pensar em suas praacuteticas as igrejas a compreenderem a necessidade do canto congregacio-nal e sua utilizaccedilatildeo na educaccedilatildeo religiosa nos lares e os pastores que procuram paracircmetros simples para a regulaccedilatildeo do canto no culto O bom trabalho dos Getty promove e expotildee a grande importacircncia do canto na vida da igreja

121

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

RESENHAJoatildeo Paulo Thomaz de Aquino

MATHEWSON David L EMIG Elodie Ballantine Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament Euseacutebio CE Peregrino em produccedilatildeo

David L Mathewson eacute professor de Novo Testamento do Denver Semi-nary fez seu PhD na Universidade de Aberdeen e eacute autor de alguns livros na aacuterea de grego avanccedilado Apocalipse e diversos artigos acadecircmicos A coautora Elodie Ballantine Emig eacute mestre em Novo Testamento e instrutora de grego tambeacutem no Denver Seminary A Gramaacutetica Grega Intermediaacuteria foi publicada originalmente em 2016 em inglecircs pela editora Baker

Manuais de gramaacutetica tecircm pressupostos Esses pressupostos satildeo ainda mais importantes e evidentes em gramaacuteticas intermediaacuterias Em sua Gramaacutetica Grega Uma Sintaxe Exegeacutetica do Novo Testamento escrita originalmente em 1996 Daniel B Wallace por exemplo explicita que natildeo tem interesse em usar a anaacutelise do discurso (AD) Ele apresenta quatro motivos para isso (1) O fato de a AD ainda estar em seus estaacutegios iniciais (2) o meacutetodo da AD eacute muito diferente do meacutetodo de investigaccedilatildeo sintaacutetica (3) o fato de que o campo da AD eacute apenas perifeacuterico agrave sintaxe e (4) a AD eacute importante demais para ser tratada parcialmente (p xvii) Assim Wallace opta por deixar a AD de fora e usar uma abordagem estruturalista (p xviii)

Matthewson e Emig tecircm pressupostos diferentes Eles apresentam como justificativas para a escrita de sua gramaacutetica (1) a necessidade de levar em consideraccedilatildeo a ampla disponibilidade de softwares avanccedilados de exegese

Doutor em Novo Testamento pela Trinity Evangelical Divinity School (2020) doutor em Mi-nisteacuterio pelo Reformed Theological SeminaryCPAJ (2015) mestre em Novo Testamento pelo Calvin Theological Seminary (2009) e mestre em Antigo Testamento pelo CPAJ (2007) professor de Novo Testamento no CPAJ e no Seminaacuterio Joseacute Manoel da Conceiccedilatildeo pastor da Igreja Presbiteriana JMC em Jandira (SP) editor dos websites issoegregocombr e yvagacombr

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

122

(2) o desenvolvimento da linguiacutestica contemporacircnea (3) profundos avanccedilos recentes em aacutereas especiacuteficas do grego e (4) a necessidade de uma gramaacutetica intermediaacuteria que fizesse justiccedila aos desenvolvimentos da teoria do aspecto verbal Assim em contraste com o estruturalismo de Wallace Mathewson e Emig utilizam em sua gramaacutetica uma abordagem linguiacutestica de anaacutelise do discurso Dois resultados praacuteticos dessa abordagem satildeo por exemplo o fato de usarem porccedilotildees maiores de textos biacuteblicos em seus exemplos e o fato de tratarem o grego do Novo Testamento como uma liacutengua como qualquer outra

Outra comparaccedilatildeo que se pode fazer com a gramaacutetica de Wallace eacute que enquanto aquela eacute maximalista em sua abordagem a gramaacutetica aqui resenha-da eacute minimalista optando por apresentar um menor nuacutemero de variaccedilotildees especificidades gramaticais e nomes para elas Tambeacutem de modo diferente de gramaacuteticas mais antigas que usavam uma abordagem diacrocircnica levando em consideraccedilatildeo como a gramaacutetica grega progrediu ao longo do tempo Mathewson e Emig usam uma abordagem sincrocircnica analisando somente os usos da liacutengua na eacutepoca do Novo Testamento

O livro Intermediate Greek Grammar Syntax for Students of the New Testament estaacute organizado em 13 capiacutetulos um apecircndice e iacutendices Os capiacutetulos satildeo 1 Casos 2 Pronomes 3 Adjetivos e Adveacuterbios 4 O Artigo 5 Preposi-ccedilotildees 6 O Sistema Verbal Grego 7 O Verbo Voz Pessoa e Nuacutemero 8 Modo 9 Infinitivos 10 Particiacutepios 11 Claacuteusulas Claacuteusulas Condicionais e Claacuteusula Relativas 12 Claacuteusulas Dependentes e Conjunccedilotildees 13 Consideraccedilotildees sobre Discurso Assim podemos dizer que o livro eacute organizado em sistema nominal ou sistema de casos como os autores denominam (caps 1-5) sistema verbal (caps 6-10) e sistema clausal (caps 11-13)

Um livro similar lanccedilado no mesmo ano em inglecircs eacute o de Andreas J Koumlstenberger Benjamin L Merkle e Robert L Plummer Going Deeper with New Testament Greek An Intermediate Study of the Grammar and Syntax of the New Testament (Nashville Broadman amp Holman 2016) Este livro tem algumas das mesmas ecircnfases mas inclui uma grande quantidade de exerciacutecios eacute bem maior e tem um tom menos criacutetico

Analisando aspectos mais especiacuteficos da obra de Mathewson e Emig selecionaremos algumas citaccedilotildees que representam a distintividade da aborda-gem Ao apresentar o sistema de casos eles dizem

Eacute uacutetil distinguir como Porter faz entre (a) o significado contribuiacutedo pela semacircntica do proacuteprio caso (b) o significado contribuiacutedo por outras caracteriacutesticas sintaacuteticas e (c) o significado contribuiacutedo pelo contexto mais amplo Assim o inteacuterprete deve considerar todos esses trecircs para chegar ao significado de uma construccedilatildeo de caso especiacutefica o caso (por ex um genitivo) outras caracteriacutesticas sintaacuteticas (por ex o genitivo segue um substantivo que comunica semantica-mente um processo verbal) e o contexto mais amplo (por ex essa construccedilatildeo ocorre em um contexto especiacutefico em uma das cartas de Paulo) (p 2)

123

FIDES REFORMATA XXVI Nordm 2 (2021) 121-124

Essa citaccedilatildeo eacute bastante representativa pois nela os autores estatildeo apresen-tando a diferenccedila entre a sua abordagem minimalista da abordagem maximalista de Wallace Aliaacutes o tom da obra eacute bastante combativo e o principal ldquooponenterdquo eacute Wallace A partir de uma abordagem linguisticamente mais informada os autores buscam a distinccedilatildeo entre o significado do caso propriamente dito e o significado que vem do contexto imediato e amplo E o significado do con-texto eacute tratado como natildeo sendo parte do significado da forma propriamente dita Esse eacute um princiacutepio presente em todo o livro ainda que nem sempre os autores consigam aplicaacute-lo totalmente

Quanto agrave opccedilatildeo por apresentar uma gramaacutetica minimalista e isso espe-cialmente em comparaccedilatildeo com Wallace a seguinte tabela deixa bastante claro que Mathewson e Emig tiveram ecircxito

Quantidade de usos por caso Wallace Mathewson e Emig

Nominativo 13 5

Vocativo 5 1

Genitivo 33 8

Dativo 27 8

Acusativo 13 5

Dessa forma enquanto Mathewson e Emig gastam 35 paacuteginas para tratar de todos os casos da liacutengua grega Wallace gasta 205 Diga-se no entanto em prol de Wallace (cuja traduccedilatildeo brasileira infelizmente eacute bastante ruim) que ele apresenta muito mais exemplos e seu objetivo foi ser exaustivo

A maior contribuiccedilatildeo da gramaacutetica de Mathewson e Emig eacute apresentar com muita clareza o estado de arte da discussatildeo sobre o sistema verbal gre-go Os curiosos da aacuterea sabem que as teorias de aspecto verbal causaram um abalo siacutesmico e mudanccedila quacircntica no estudo da liacutengua grega Os especialistas tambeacutem sabem que existem abordagens substancialmente diferentes do que exatamente as formas verbais gregas transmitem de significado mesmo quando vistas a partir de um ponto de vista puramente aspectual Assim os autores do livro conseguiram resumir o que haacute de concordacircncia entre Stanley Porter Buist Fanning Constantine Campbell Kenneth McKay Steven Runge e Rodney Decker (alguns dos principais participantes das discussotildees avanccediladas sobre aspecto) e fazer uma apresentaccedilatildeo clara concisa e muito uacutetil do sistema verbal grego a partir da teoria do aspecto verbal

Uma uacuteltima citaccedilatildeo delongada seraacute suficiente para demonstrar mais uma destacada caracteriacutestica dessa gramaacutetica

Anaacutelise do discurso eacute nada menos do que o reconhecimento de que textos satildeo o registro de um ato de comunicaccedilatildeo em um dado contexto O discurso se ldquorefere

INTERMEDIATE G REEK G RAMMAR SY NTAX FOR STU DENTS OF TH E NEW TESTAMENT

124

a textos (combinaccedilotildees cheias de significado de unidades de linguagem) que servem vaacuterios propoacutesitos comunicativos e realizam vaacuterios atos em contextos situacionais sociais e culturaisrdquo (Georgakopoulou e Goutsos Discourse Analysis An Introduction 2004 p 27) Um dos princiacutepios mais importantes da anaacutelise do discurso eacute que a linguagem deveria ser examinada aleacutem do niacutevel de sentenccedila ou claacuteusula somente Tradicionalmente a maior parte das anaacutelises gramaticais do Novo Testamento tem acontecido no niacutevel das palavras expres-satildeo e sentenccedila mas a anaacutelise do discurso vai aleacutem disso para observar porccedilotildees maiores de texto estendendo-se ateacute o todo do Novo Testamento Palavras for-mam expressotildees e expressotildees formam claacuteusulas Claacuteusulas formam paraacutegrafos e paraacutegrafos compotildeem discursos inteiros Isso exige que nossa anaacutelise se mova aleacutem do niacutevel de sentenccedila para unidades maiores A gramaacutetica desempenha um papel importante em indicar como o discurso eacute estruturado como ele tem coerecircncia como a informaccedilatildeo eacute apresentada e o papel que os vaacuterios atores ou participantes desempenham no texto Uma abordagem discursiva agrave gramaacutetica suplementa abordagens mais tradicionais em vez de substituiacute-las Ela simples-mente pergunta que tarefa do discurso eacute desempenhada pelas vaacuterias construccedilotildees gramaticais (p 271)

Aleacutem de fazer uma apresentaccedilatildeo informada pela linguiacutestica contempo-racircnea e por estudos atuais das construccedilotildees gregas a gramaacutetica aqui resenhada tambeacutem dedica os seus trecircs uacuteltimos capiacutetulos para analisar o texto grego no niacutevel das claacuteusulas (cap 11 e 12) e no niacutevel mais amplo do discurso como um todo (cap 13) Essa caracteriacutestica natildeo aparece apenas nesses capiacutetulos mas eacute percebida ao longo do livro e encontra o seu grand finale no uacuteltimo capiacutetulo

Esta eacute uma obra importantiacutessima atualizada em diversas discussotildees lin-guiacutesticas semacircnticas e sintaacuteticas manejaacutevel por sua abordagem minimalista utiliacutessima por tratar da maneira de compreender o Novo Testamento no estado mais puro a que se tem acesso edificante pois leva o estudante constantemente ao texto biacuteblico e democraacutetica porque faz tudo isso de maneira acessiacutevel ao leitor com conhecimento baacutesico da liacutengua grega A Editora Peregrino mais uma vez merece congratulaccedilotildees por se aventurar a publicar uma obra tatildeo especia-lizada e uacutetil Certamente a recomendo para professores estudantes teoacutelogos e pastores interessados em manter o seu uso da liacutengua grega em dia a fim de produzir interpretaccedilotildees estudos e sermotildees mais precisos para a gloacuteria de Deus

excelecircncia e Piedade a Serviccedilo do reino de deuS

CENTRO PRESBITERIANO DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO ANDREW JUMPERVenha estudar conosco

Cursos modulares corpo docente poacutes-graduado convecircnio com instituiccedilotildees internacionais bi-blioteca teoloacutegica com mais de 40000 volumes acervo bibliograacutefico atualizado e informatizado

Educaccedilatildeo agrave distacircncia (Ead)Cursos anuais totalmente online que visam agrave instruccedilatildeo e ao aperfeiccediloamento biacuteblico-teoloacutegico de pastores e crentes que possuam graduaccedilatildeo em qualquer aacuterea Satildeo eles Estudos em Teologia Sistemaacutetica Estudos em Teologia Biacuteblica Estudos em Teologia Aplicada e Estudos em Missotildees

REvitalizaccedilatildeo E Multiplicaccedilatildeo dE igREjas (RMi)O RMI objetiva capacitar pastores e liacutederes na conduccedilatildeo do processo de restauraccedilatildeo do mi-nisteacuterio pastoral da oraccedilatildeo e da expansatildeo da igreja por meio de missotildees usando ferramentas biacuteblico-teoloacutegicas e de outras aacutereas das ciecircncias

EspEcializaccedilatildeo EM Educaccedilatildeo cRistatilde (EEc)O programa de especializaccedilatildeo em Educaccedilatildeo Cristatilde eacute destinado a pais pastores professores e demais interessados em educaccedilatildeo eclesiaacutestica ou escolar Seu principal objetivo eacute promover uma reflexatildeo a respeito da dimensatildeo pedagoacutegica a partir dos pressupostos cristatildeos e oferecer ferramentas para o exerciacutecio intencional e planejado da atividade educacional a partir desses pressupostos

Ma lEadERship in chRistian Education (MaE)Este programa eacute um mestrado semipresencial biliacutengue (portuguecircsinglecircs) ministrado em par-ceria com o Gordon College (Boston EUA) Eacute dirigido agrave educaccedilatildeo escolar cristatilde com ecircnfase em lideranccedila compreendendo a gestatildeo escolar e suas bases conceituais Uacutetil para a lideranccedila e gestatildeo de Departamentos de Educaccedilatildeo Cristatilde em igrejas bem como para seminaacuterios institutos biacuteblicos e outras instituiccedilotildees teoloacutegicas

MEstRado EM divindadE (Magister Divinitatis ndash Mdiv)Trata-se do mestrado eclesiaacutestico do CPAJ Eacute anaacutelogo aos jaacute tradicionais mestrados profissio-nalizantes diferindo entretanto do Master of Divinity norte-americano apenas no fato de que natildeo constitui e nem pretende oferecer a formaccedilatildeo baacutesica para o ministeacuterio pastoral Oferece uma visatildeo geral das grandes aacutereas do conhecimento teoloacutegico Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

MEstRado EM tEologia (sacrae theologiae Magister ndash stM)Esse mestrado acadecircmico difere do Magister Divinitatis por sua ecircnfase na pesquisa e sua har-monizaccedilatildeo com os mestrados acadecircmicos em teologia oferecidos em universidades e escolas de teologia internacionais Eacute oferecido para aqueles que possuem o MDiv ou graduaccedilatildeo em Teologia e mestrado em qualquer aacuterea Natildeo eacute submetido agrave avaliaccedilatildeo e natildeo possui credenciamento da CAPES

doutoRado EM MinisteacuteRio (dMin)Curso oferecido em parceria com o Reformed Theological Seminary (RTS) de Jackson Mis-sissippi O programa possui o reconhecimento da JETIPB e da Association of Theological Schools (ATS) nos Estados Unidos O corpo docente inclui acadecircmicos brasileiros americanos e de outras nacionalidades com soacutelida formaccedilatildeo em suas respectivas aacutereas

Centro Presbiteriano de Poacutes-Graduaccedilatildeo Andrew JumperRua Maria Borba 4044 ndash Vila Buarque ndash Satildeo Paulo ndash SP ndash Brasil ndash CEP 01221-040

Telefone +55 (11) 2114-86448759 ndash atendimentocpajmackenziebrcpajmackenziebr ndash httpswwwfacebookcomcppaj

Page 8: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 9: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 10: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 11: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 12: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 13: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 14: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 15: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 16: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 17: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 18: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 19: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 20: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 21: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 22: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 23: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 24: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 25: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 26: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 27: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 28: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 29: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 30: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 31: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 32: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 33: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 34: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 35: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 36: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 37: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 38: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 39: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 40: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 41: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 42: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 43: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 44: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 45: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 46: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 47: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 48: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 49: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 50: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 51: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 52: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 53: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 54: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 55: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 56: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 57: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 58: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 59: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 60: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 61: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 62: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 63: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 64: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 65: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 66: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 67: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 68: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 69: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 70: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 71: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 72: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 73: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 74: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 75: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 76: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 77: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 78: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 79: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 80: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 81: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 82: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 83: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 84: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 85: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 86: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 87: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 88: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 89: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 90: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 91: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 92: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 93: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 94: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 95: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 96: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 97: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 98: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 99: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 100: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 101: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 102: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 103: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 104: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 105: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 106: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 107: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 108: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 109: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 110: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 111: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 112: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 113: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 114: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 115: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br
Page 116: Volume XXVI Número 2 2021 - cpaj.mackenzie.br