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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA ILANA SUELY DOS SANTOS O LUGAR DA DANÇA: CONFIGURAÇÕES CULTURAIS DA VILA DE PONTA NEGRA NATAL 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM DANÇA

ILANA SUELY DOS SANTOS

O LUGAR DA DANÇA: CONFIGURAÇÕES CULTURAIS DA VILA DE PONTA NEGRA

NATAL2013

ILANA SUELY DOS SANTOS

Artigo apresentado à Coordenação do Curso de Licenciatura em Dança, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como exigência de avaliação da Atividade de Trabalho de Conclusão de Curso II, sob a orientação da prof(a) Dra. Teodora de Araújo Alves.

ILANA SUELY DOS SANTOS

SANTOS, Ilana Suely. O LUGAR DA DANÇA: CONFIGURAÇÕES CULTURAIS DA VILA DE PONTA NEGRA. Artigo (Trabalho de Conclusão de Curso II – Curso de Licenciatura em Dança) – Coordenação do Curso de Licenciatura em Dança (CCLD), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2013.

Aprovado em ______/______/______

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________Prof. Dr. Teodora de Araújo Alves – UFRN

Orientador

____________________________________________________________Prof. Dr. Marcilio de Souza Viera – UFRN

Examinador

________________________________________________________Prof. Dr. Karenine de Oliveira Porpino – UFRN

Examinador

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho, primeiramente a meus pais, Josefa Lima dos Santos

e José Cícero dos Santos, que me deram o dom da vida e sempre

apoiaram meus sonhos.

A meu namorado, Daniel Siqueira Maya, por todo amor e por sempre me

apoiar e acreditar nos meus sonhos e, principalmente, por estar sempre

ao meu lado.

Aos meus sobrinhos amados, Leandro Muller dos Santos e Emily Rachel

dos Santos, por tornarem meus dias mais alegres e coloridos.

A Teodora de Araújo Alves, por estar sempre presente e disposta a me

ajudar com sua sabedoria e paciência e, principalmente, por me conduzir

até esse momento tão importante para minha formação acadêmica.

AGRADECIMENTOS

A Daniel Silva Oliveira, meu amigo de curso e da vida, que tornou nossos

encontros sempre alegres e cheios de carinho.

A Alisson Roseno, que sempre foi meu parceiro e amigo de turma.

A Marineide Furtado, por sua generosidade e sabedoria.

Aos meus queridos professores, Karenine Porpino, Larissa Kelly e

Marcílio Vieira que tanto me ensinaram ao longo dessa jornada, através

de palavras de carinho, atenção e conhecimento.

A Raquel Sales, Raniele Polyane e Agnes Arícia, pela força e amizade.

As minhas eternas amigas, Carla Simony e Danila Souza, pela tão bela

amizade construída.

Ao meu grande amigo, Wagner Lopes, que a cada encontro colaborou e

me mostrou as múltiplas possibilidades que podem surgir de uma ideia.

Aos Mestres da Vila de Ponta Negra, em especial, a Dona Helena, Mestra

do Pastoril e seu Severino, Mestre do Coco de Roda.

Aos companheiros e amigos que me ajudaram dando ideias e dicas para

construção desse trabalho, ou, simplesmente, estarem ao meu lado.

RESUMO

O presente artigo aborda reflexões acerca do lugar da dança na Vila de Ponta Negra, em Natal-RN, mais precisamente das danças tradicionais - significativo patrimônio imaterial dessa comunidade. Para isso, elegemos as seguintes questões norteadoras do estudo, a saber: Que lugar da dança é este? Que dança é esta vivida nesse lugar Vila de Ponta Negra? Que aspectos do lugar vivido pelos corpos-brincantes influenciam sua dança? O que leva essa comunidade a manter viva suas danças tradicionais? A realização desse estudo se fundamenta no fato de ser uma pesquisa necessária para o campo da dança e da educação, haja vista, a relação da dança popular em Natal e no contexto vivido ainda apresentar-se como um tema pouco explorado no âmbito do ensino e da arte da dança, e por isso torna-se relevante como fonte de pesquisa para outros estudos. Para o desenvolvimento do estudo e a compreensão do fenômeno investigado, tomamos por base a fenomenologia como abordagem metodológica capaz de desvelar o tema, ou seja, mostrar aquilo que se mostra e não somente aquilo que parece ser e para isso, consideramos a percepção dos brincantes da Vila e a minha experiência vivida como bolsista do projeto de extensão Encantos da Vila e, portanto da minha vivência nesse lugar desde 2009 até o momento atual. A pesquisa revelou que o lugar da dança na Vila de Ponta Negra é um lugar efervescente; conformista e ao mesmo tempo resistente; um lugar de riqueza cultural inestimável. Mostrou que a dança vivida nesse lugar é fruto de saberes/fazeres artístico-tradicionais, que coadunam constantemente com as experiências adquiridas pelos indivíduos a partir de sua realidade tradicional e contemporânea. E por fim que esse lugar influencia e é influenciado pelos aspectos da globalização presentes em uma comunidade representativa do turístico da cidade de Natal; pelas corporeidades de pescadores, rendeiras, contadores de estórias, dos mestres ou agentes de cultura que tentam manter viva sua história e sua arte popular.

Palavras-chave: Dança; Lugar; Corpo; Memória; Tradição e Globalização.

ABSTRACT

This article discusses reflections on the place of dance in the village of Ponta Negra, Natal-RN, specifically traditional dances - Significant intangible heritage of this community. For this, we chose the following study questions, namely: What place is this dance? Dancing is lived in this place village of Ponta Negra? What aspects of place experienced by bodies-brincantes influence your dance? Wh at makes this community to keep alive their traditional dances? The present study is based on the fact that a necessary condition for the field of dance education and research, given the relationship of folk dance in Natal and in the context lived still present as a relatively unexplored topic in teaching and the art of dance, and so it becomes relevant as a research resource for further studies. To develop the study and understanding of the investigated phenomenon, we use the phenomenology as a methodological approach can reveal the theme, ie, show that which shows not only what appears to be and for that, we consider the perception of the brincantes village and my lived experience as a Fellow of the draft Charms Vila extension and thus my experiences in this place since 2009 until today. The research revealed that the place of dance in the village of Ponta Negra is a thriving place; conformist and resistant at the same time, a place of inestimable cultural wealth. Showed that dance lived in that place is the fruit of knowledge / traditional art-doings, which constantly in line with the experiences gained by individuals from their traditional and contemporary reality. And finally that place influences and is influenced by aspects of globalization present in a representative community tour of Natal, the corporeality of fishermen, lace makers, storytellers, masters or agents of culture who try to keep alive their history and his folk.

Keywords: Dance, Place, Body, Memory, Tradition and Globalisation.

“A verdadeira viagem de descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, e sim em ter novos olhos.”

Marcel Proust

SUMÁRIO

1. INICIANDO A JORNADA ......................................................................10

2. CONSTRUINDO SABERES, CONCEBENDO IDENTIDADES..............17

3. DESCOBRINDO MEUS LUGARES NA DANÇA...................................28

4. A VILA MOSTRA SEUS ESPAÇOS, SEUS ENCANTOS.....................33

5. AS TRADIÇÕES QUE DANÇAM E CANTAM.......................................36

6. FECHANDO A JORNADA.....................................................................41

7. REFERÊNCIAS......................................................................................43

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1. INICIANDO A JORNADA...

Nesta pesquisa, refletimos sobre as danças presentes na Vila de Ponta Negra,

assim como sobre suas configurações culturais, a partir do viés da arte, mais

precisamente das danças tradicionais, buscando embasamento na geografia cultural para

discorrer sobre os conceitos de lugar e dos processos transformadores da atual sociedade

contemporânea. Discutimos também outros conceitos que ajudaram a nortear o presente

estudo, isto é, os conceitos de cultura, identidade, memória e patrimônio imaterial, para

obtermos um maior entendimento e conhecimento acerca do que propõe esta pesquisa.

A atual sociedade vivencia um mundo de transmutação global, em que as

populações sofrem modificações a partir de elementos culturais e econômicos variados

e geradores de novas dinâmicas de vida em sociedade.

Com isso a sociedade contemporânea experimenta o mundo da mobilidade, da

vertigem da velocidade e da fluidez (SANTOS, 2000), no qual é exigido que o homem

moderno procure constantemente manter-se inserido e conectado a esse novo mundo,

fazendo com que o mesmo consuma uma quantidade e uma variedade muito grande de

informações, impondo consequentemente, uma fruição superficial. Associado à ideia de

imediato, tempo real, instantaneidade e comunicabilidade, esses processos resultam de

um novo posicionamento no modo de agir, viver e pensar das sociedades que se

encontram inseridas nesse contexto.

Na era da informação, são muitos os conhecimentos demandados para se

interagir na complexa rede que implica e enreda cada cidadão. Para tanto, é necessário

aprender, experimentar e criar para sobreviver. Essas práticas culturais apresentam uma

forma singular de elaboração da visão de mundo de um povo. Evidenciam estados de

corpo impregnados de memória, tradições e que traduzem uma estética própria,

resultante da reinterpretação de elementos lúdicos e ritual-religiosos do grupo (GOMES,

2007, p. 176).

Dessa forma, na nova sociedade global que influencia e é influenciada pelas

tecnologias, nos questionamos sobre qual o verdadeiro sentido da cultura e do lugar para

uma comunidade, que carrega em seu corpo sua história, memória, identidade,

tradições, suas marcas culturais, construídas a partir da interação com o mundo, com o

Outro, com sua comunidade.

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Segundo G. H. Mead e C.H. Cooley (1975), a identidade é formada na

“interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior

que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os

mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem.

A identidade não significa necessariamente a incapacidade de relacionar-se com outras

identidades, ou abarcar toda a sociedade sob essa identidade. Mas, as relações sociais

são definidas vis-à-vis as outras, com base nos atributos culturais que especificam a

identidade. (CASTELLS, 1999, p. 57 e 58).

A cultura está intimamente ligada à ideia de identidade, de modo que podemos

pensá-la como uma rede de significações próprias do contexto vivido pelas pessoas de

diferentes lugares do mundo. Rede essa que pode ser também entendida como o espaço

onde ocorrem as relações, experiências e práticas sociais, permitindo à sociedade

estabelecer e desenvolver a capacidade de criar elementos que permitem a própria

sociedade de se reconhecer. Sob esse enfoque, Shukman apud Santaella (1996) define,

assim, os domínios da cultura:

[...] A cultura é a totalidade dos sentidos de significação. Através das quais o

ser humano ou um grupo particular, mantém a sua coesão. Seus valores de

identidade e sua interação com o mundo. Esses sistemas de significações

usualmente referidos como sendo sistemas modeladores secundários (ou a

linguagem da cultura), englobam todas as artes, as várias atividades sociais,

assim como os padrões de comportamento, más também os métodos pelos

quais a comunidade preserva sua identidade (mitos, história, sistemas de leis

e crenças). Cada trabalho particular de atividade cultural é visto como um

texto gerado por um ou mais sistemas (SHUKMAN apud SANTAELLA,

1996, p. 28).

A Vila de Ponta Negra está situada a uns quinze quilômetros do centro de

Natal, na zona Sul da cidade e a menos de um quilômetro da praia de Ponta Negra, um

dos principais cartões postais da nossa cidade. Hoje, esse pequeno núcleo é guardião de

uma riqueza cultural inestimável, com mais de 300 anos de história ainda pouco

conhecida pelos natalenses, que apesar das mudanças ocorridas ao longo do tempo,

como das suas paisagens, guardam ainda hoje viva em sua memória e de seus

antepassados, esse lugar singular da nossa cidade, que é considerado um verdadeiro

celeiro de cultura tradicional, como as danças popular – de caráter religioso ou

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profanos, tais como, os Congos de Calçolas, a Lapinha, O Boi de Reis, Bambelô,

Pastoril e Coco de Roda.

Essas práticas culturais do lugar estão presentes até hoje na memória desses

sujeitos. Com relação a lugar, Moreira (2008) diz que ele ganha em abrangência de

significado deixando de ser compreendido apenas como um espaço produzido, ao longo

de um determinado tempo, pela natureza e pelo homem, para ser visto como uma

construção única, singular, carregada de simbolismo e que agrega ideias e sentidos

produzidos por aqueles que o habitam. Aqui podemos considerar o que Hussel apud

Ales Bello (2006), compreende como ideia e sentidos, ou seja, não se trata apenas de

um produto da mente, mas sentido; aquilo que se capta, que se inclui. Podemos

acrescentar, dizendo, aquilo que é simbólico para os moradores desse lugar.

Os símbolos intermediam nossa adaptação ao meio ambiente, a interação com

os outros, a interpretação de vivências e nossa própria organização em grupos.

Entretanto, os símbolos são mais que uma intermediação conveniente. Também nos diz

o que fazer; pensar e perceber (TURNER, 1999, p. 35).

Diante do exposto, podemos observar que, para os brincantes ou agentes

culturais, a Vila de Ponta Negra é o lugar que se transforma em palco principal para os

brincantes1 realizarem suas brincadeiras2, uma vez que esse lugar para os moradores

mais antigos é sinônimo de pertencimento, identidade, vínculos afetivos, memória

coletiva, e saberes que são compartilhados pela comunidade. A vila de ponta negra é

conhecida como um lugar de resistência, pois é um dos poucos lugares da cidade onde

podemos encontrar resquícios das manifestações populares (ALVES, 2010).

A organização espacial e as relações socioculturais da Vila de Ponta Negra já

não são mais as mesmas. Essa paisagem foi sendo modificada desde a década de 1980,

com a urbanização e o crescimento turístico do bairro de Ponta Negra, local onde a Vila

está inserida.

Têm-se nessa área uma mescla, resultante das ações de diferentes grupos de

interesse. Por um lado, a chegada de pessoas com um poder aquisitivo mais alto, o que

acabou atraindo a criação de novas atividades e serviços para a localidade, gerando

1 Brincantes são os integrantes do folguedo, que brincam e participam ativamente da manifestação, com

o compromisso de manter a brincadeira e levar até o público.

2 Brincadeiras são aquelas brincadeiras antigas e que são passadas de geração para geração mantendo suas regras básicas de origem.

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consequentemente a valorização dos terrenos e o afastamento dos moradores com

menor poder aquisitivo.

Apesar de observarmos os deslocamentos dos moradores da Vila de Ponta para

residirem com suas famílias em outras localidades da cidade, também notamos outros

sujeitos chegando a se afastar do perímetro urbano da cidade, em busca da melhoria nas

condições de qualidade de vida como moradia, segurança, mas esses sujeitos não cortam

definitivamente os vínculos afetivos com o lugar, uma vez que foi nesse espaço que eles

viveram a maior parte de sua vida, um cenário carregado de histórias para contar e

recontar, de amizades, de coletividade, espaço das brincadeiras e festas, lugar de

danças, orgulho, apesar de não ser o mesmo da sua infância, devido às mudanças

ocorridas ao longo do tempo.

As tradições ficaram tatuadas nas memórias, no tempo e no espaço de cada

nativo fazem com que eles sintam orgulho de dançar, de fazer suas brincadeiras no

palco da Vila, pois só assim retomam as memórias da sua infância, através do encontro,

reunião com o Outro, no intuito de manter viva e festejar seus costumes.

O depoimento abaixo, do Mestre Severino do Coco de Roda é fundamental

para entendermos esse significado:

Já dancei em vários lugares, até mesmo fora de Natal, más o lugar que eu mais gosto de apresentar é aqui na Vila de Ponta Negra, pois aqui, é meu lugar, é onde nasci, onde me casei, tive meus filhos, é onde vivi toda minha vida. Eu tenho muitas histórias pra contar desse lugar, aqui eu chorei e ri, por isso faço de tudo quando tem uma apresentação pra dançar aqui nesse palco da igreja...

Dentre as diversas manifestações culturais existentes na vila de Ponta,

podemos encontrar, no campo da dança, o Coco de Roda de Mestre Severino, o

Bambelô – Os Maçaricos, os Congos de Calçolas, grupo de Pastoril da melhor idade,

Boi de reis – Boi Pintadinho de Ponta Negra, grupo de Lapinha. Podemos destacar,

também, outros grupos ou expressões de arte da Vila, como as rendeiras, o Grupo

Resistência da Lata, Cantadores, dentre outros.

A transmissão de conhecimento, ensino-aprendizagem das danças tradicionais

da Vila de Ponta Negra, tem suas formas baseadas na oralidade e gestualidade. Essas

formas ou processos podem se efetivar quase que indiretamente, através do ver e imitar

por parte da pessoa que quer aprender a dançar, método esse baseado na tradição.

Segundo Hall (2010, p. 87),

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Tradição é a transmissão oral ou em forma de narrativas de lendas e valores (sejam eles espirituais, religiosos, morais, éticos, etc.) de uma geração para a próxima; uma herança ou elo entre elas. É uma mescla entre lembrança, memória, costume e ideal conhecida e/ou praticada.

Isto não quer dizer que a tradicionalidade de uma cultura seja algo estático,

cristalizado no tempo e no espaço “ao contrário, significa possibilidade de uma ligação

entre o passado e o presente, entre gerações passadas e gerações presentes e futuras”

(ALVES, 2006, p.74). As tradições evoluem e se transformam de acordo com as neces-

sidade de cada sociedade, elas influenciam e são influenciadas pelos avanços advindos

da modernidade, sem perder a sua essência.

Hoje, com as tecnologias ligadas ao mundo virtual se expandem os territórios e

se rompem fronteiras, dando nova dimensão ao corpo, a corporeidade e ao mundo. “O

corpo se torna um território” (BUENO e CASTRO, 2005, p. 94), incorporando-se e

refletindo-se aquilo que lhe traz significados.

Desse modo, entendemos que esses habitantes carregam consigo registros

corporais advindos de sua historicidade, de sua cultura, de sua forma de ser e existir no

mundo (ALVES, 2010). Trata-se de corpos-sujeitos presentes num espaço sociocultural

fértil que, ao mesmo tempo, produzem registros neste corpo pescador, agricultor,

brincante, artesão. Afinal, como nos diz Alves (2006):

A presença do homem no mundo se dá através do corpo. É nele, como espaço primeiro de comunicação, que são escritas as vivências de cada um. E São corpos que existem e se comunicam, criam histórias na vida e a história da vida de cada um. Portanto, é a partir de sua existência corpórea que o ser humano percebe e é percebido, que age e interage com a realidade existencial. Entender essa condição de corpo no mundo pode nos levar a perceber que somos sujeitos encarnados e, portanto, incorporamos tudo àquilo que vivemos (ALVES, 2006, p. 52).

Nesse sentido, através dos corpos brincantes que dançam, cantam e contam a

história do seu lugar e sua própria história, observamos a manifestação autêntica,

carregada de significados, desses corpos dançantes, os quais:

São corpos que se deixam injetar pela dança, agem sobre outros corpos gesticulam, giram, saltam, cortejam seu objeto estético, colocam em relevo sua sensibilidade, atuam sobre a sensibilidade do outro, buscam sensibilizá-lo, persuadi-lo. Pelos seus corpos compartilham ideias, transcendem essas ações em seus ritmos e apresentações” (VIANA, 2009, p.82).

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Fator, esse que está impregnado na memória histórica da dança que é uma das

mais antigas expressões artístico-cultural de comunicação utilizada pelo homem, de

forma que “provavelmente, antes de procurar expressar ou comunicar-se através da

palavra articulada, o homem criou com o próprio corpo padrões rítmicos de

movimentos, ao mesmo tempo em que desenvolvia um sentido plástico do espaço”

(MENDES, 1985, p. 6).

Assim, a dança parece preceder outras formas de expressão como a escrita e o

desenho, mas, como elas, manteve-se e ajustou-se quando novas técnicas de

comunicação foram desenvolvidas. A dança continua presente e renova-se com o

contato com recursos tecnológicos, tentando preservar suas formas ancestrais em um

esforço para manter construções estéticas folclóricas, modernas, entre outras

(SIQUEIRA, 2006, p. 74).

Segundo Medeiros (2010), é por meio da arte que nos compreendemos

enquanto sujeitos engajados no mundo, que não vivemos sozinhos, nem isolados, mas

vivemos a partir de nossa relação com tudo aquilo que está presente no mundo,

inclusive o outro.

As danças tradicionais ou folclóricas existem no Brasil desde o início da

colonização, em geral, quiçá desde os primórdios da humanidade, contribuindo

consequentemente para a formação e desenvolvimento histórico da humanidade. A

dança folclórica é uma forma de dança social que se desenvolveu como parte dos

costumes e tradições de um povo e é transmitida a partir da prática cotidiana e vivência

da cultura local, ou seja, de geração em geração. Por isso, reforçando o já dito por

Vianna (2012, p.9), enfatizamos que “dançar é um registro de vida, de força, expressão,

empenho, vontade e paixão que aprofunda cada vez mais os conhecimentos corporais”.

Dessa forma, as Manifestações ou folguedos guardam em si características do

sagrado e do profano, características da festa apresentando particularidades singulares

pela sua pureza e autenticidade, pois mesmo quando eventualmente adotam certos

modelos coreográficos estranhos ao seu meio, conseguem absorver essas influências

exteriores, mantendo sua integralidade cultural, imprimindo suas próprias características

e respeitando a realidade local.

A vila tem nos ensinado a contemplar as nuances de sua cultura artística e a

perceber a complexidade dos fios que se cruzam na tessitura de cada cena cotidiana

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vivida por pescadores, rendeiras, cantadores, mestres, brincantes, estudantes e

professores (ALVES, 2010, p. 14).

Diante do que foi pesquisado, podemos observar uma comunidade guerreira que

busca manter-se inserida mesmo no contexto de mudanças sociais e tem procurado dar

continuidade aos saberes de suas tradições através das brincadeiras, dos jogos, festejos,

sentimentos, esses marcados por um forte pertencimento e afetividade à vila, fazendo

com que as mesmas resistam ao tempo.

Desse modo, o presente trabalho propõe discutir e compreender o lugar da dança

na Vila de Ponta Negra e suas configurações culturais. Para tanto, fenomenologicamen-

te, indagamos sobre que lugar da dança é este? Que dança é esta vivida nesse lugar?

Que aspectos do lugar vivido pelos corpos-brincantes influenciam sua dança? Quais as

influências que estas danças teriam sobre as pessoas dessa comunidade? O que levaria

essa comunidade a manter viva as danças tradicionais?

Para compreendermos fenomenologicamente os sentidos dessas coisas,

realizamos consultas a material bibliográfico, entrevistas com moradores antigos da

comunidade e análise documental acerca da história da Vila de Ponta Negra, assim

como as experiências vividas pela autora no Projeto de Extensão da UFRN, o Encantos

da Vila de Ponta Negra, daí a importância desse estudo, considerando tratar-se de um

tema pouco explorado no contexto de ensino de dança, o que contribuirá de forma

significativa para o avanço de novas pesquisas na área, revelando também como um

excelente meio de integração social, produzindo comportamentos de tolerância e,

cooperação e aceitação de si e do outro.

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2. CONSTRUINDO SABERES, CONCEBENDO IDENTIDADES

Quando vim da minha terra, se é que vim da minha terra (não estou morto por lá?), a correnteza do rio me sussurrou vagamente que eu havia de quedar lá donde me despedia. (...) Quando vim de minha terra não vim, perdi-me no espaço na ilusão de ter saído. Ai de mim, nunca sai. (“a ilusão do migrante”, Carlos Drummond de Andrade).

Muito tem se discutido sobre a importância das manifestações tradicionais ou

populares na contemporaneidade, uma vez que elas se utilizam de diversas formas de

adaptação para sobreviverem no mundo capitalista e global, no qual estamos inseridos.

Com o processo de globalização, vivenciamos um mundo de competitividade, efemeri-

dade e de incertezas. Esse processo gera “a abertura de mercados, a cultura também pas-

sou a ser produto de exportação. As culturas populares redimensionam as informações à

sua maneira, fazendo com que, em vários casos, acabem por danificar ou eliminar certas

expressões populares ou produtos que faziam parte daquele ritual, celebração ou até

mesmo do seu próprio modo de vida” (VAREJÃO e LÓSSIO, 2006, p. 01).

Para Santos (2000, p. 142, 143),

O processo de globalização acaba tendo, direta ou indiretamente, influência sobre todos os aspectos da existência: a vida econômica, a vida cultural, as relações interpessoais e a própria subjetividade. Ele não se verifica de modo homogêneo, tanto em extensão quanto em profundidade, e o próprio fato de que seja criador de escassez é um dos motivos da impossibilidade da homogeneização. Os indivíduos não são igualmente atingidos por esse fenômeno, cuja difusão encontra obstáculos na diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares, Na realidade, a globalização agrava a heterogeneidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutural.

Diante desses novos padrões, a cultura popular ganha uma nova significação

que é capaz de dialogar com a cultura que é imposta a sociedade, a cultura de massa que

provoca certa homogeneização no modo de vivenciar o mundo, ou seja, de influenciar

nos valores e gostos populares. “Outra é a produção das condições necessárias à

reemergência das próprias massas, apontando para o surgimento de um novo período

histórico, a que chamamos de período demográfico ou popular" (SANTOS, 2000, p.

143).

Hoje, na era da tecnologia da informação, observamos que as manifestações e/ou

tradições populares tornam-se atrativas para o setor econômico. É, portanto, nesta at-

mosfera de utilização da cultura popular como meio de sobrevivência e não como foi

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fundamentalmente criada (sendo própria para o prazer, descontração, louvação e rituali-

zação) é que tem se confundido o sentido e tem se até modificado a temática. Diante

disso, esses grupos buscam manter-se inseridos e sobreviverem a este novo padrão vi-

venciado pela sociedade moderna, muitas vezes alterando suas tarefas cotidianas para se

adequar ao contexto da mídia e do mercado.

Somos todos interdependentes neste nosso mundo que rapidamente se globa-liza, e devido a essa interdependência nenhum de nós pode ser senhor de seu destino por si mesmo. Há tarefas que cada indivíduo enfrenta, mas com as quais não se pode lidar individualmente. O que quer que nos separe e nos leve a manter distância dos ouros, a estabelecer limites e construir barricadas, torna a administração dessas tarefas ainda mais difícil. Todos precisamos ga-nhar controle sobre as condições sob as quais enfrentamos os desafios da vida – mas para a maioria de nós esse controle só pode ser obtido coletivamente (BAUMAN, 2003, p. 133,134).

Com esse novo padrão, estabelecido nas relações sociais pela sociedade

moderna,

[...] o espaço ganha novos contornos, novas características, novas definições, produzindo, assim, uma nova realidade no cotidiano da vida social dos que nessa comunidade estão inseridos, e, também, uma nova importância, porque a eficácia das ações está estritamente relacionada com a sua localização. Os atores mais poderosos se reservam os melhores pedaços do território e deixam o resto para os outros (SANTOS, 2008, p. 79).

Nesse sentido, o espaço torna-se um elemento tão vital quanto o ar que

respiramos. O espaço é mutável, é um reflexo condicionante social, um conjunto de

símbolo e campo de lutas. Segundo Alves (1999), o espaço é produto das relações entre

homens e dos homens com a natureza, e ao mesmo tempo, é fator que interfere nas

mesmas relações que o constituíram. O espaço é, portanto, a materialização das relações

existentes entre os homens na sociedade.

O funcionamento do espaço social, baseia-se na vontade de distinção dos indivíduos e dos grupos, isto é, na vontade de possuir uma identidade social própria, que permita existir socialmente. Trata-se, antes de tudo, de ser reconhecido pelos outros, de adquirir importância, visibilidade, e, finalmente, trata-se de Ter um sentido. Essa identidade social repousa sobre o nome família, sobre a filiação a uma família (como filiação a uma linhagem), sobre a nacionalidade, a profissão, a religião, a classe social, filiações que fornecem rótulos, etiquetas para os indivíduos. Daí a necessidade de transformar uma propriedade objetiva em capital simbólico. Se, num campo dado, um agente conseguir dar aos outros uma representação convincente do capital que afirma possuir, poderá chegar a tirar proveitos reais de propriedades imaginárias (BONNEWITZ, 2003, p. 103).

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A relação que a comunidade tem com esse espaço, da Vila de Ponta Negra, está

alicerçada no sentimento de pertencimento e identidade cultural intensa, uma vez que,

ela se realiza nas práticas cotidianas, onde são construído significados, a partir do corpo

e da memória coletiva.

Observando a história das Vilas, e o sentido da relação de comunidade,

anteriormente citado, ressaltamos, conforme Cavalcante, Cândido e Valença (2003) que

as vilas, assim como os cortiços dos séculos XIX e XX no Brasil, são formas de

habitações coletivas que induzem um estreitamento das relações, fazendo com que um

determinado grupo de pessoas passe a conviver mais perto, dividindo o seu cotidiano.

É necessário ressaltarmos que, a Vila de Ponta Negra está localizada na Zona

Sul de Natal, sendo a porção mais antiga do bairro homônimo. Quanto ao surgimento da

Vila, não se pode ter uma precisão exata do seu surgimento, devido a fragmentação e

escassez de documentos que comprovem tal fato.

A população da Vila de Ponta Negra era constituída originalmente de

pescadores que, inicialmente, construíram suas casas de palha de coqueiro à beira-mar.

Atraídos pelo cenário paisagístico, muitos estrangeiros começaram a comprar os

terrenos dos moradores, que passaram a habitar na “rua de cima” que era o primeiro

nome da atual Rua Manoel Coringa, originando o núcleo da vila. Hoje, alguns dos

“nativos” que nasceram e se criaram na Vila, ainda continuam nessa comunidade,

mesmo com as mudanças que vêm acontecendo no seu entorno.

Vivia-se da roça e da pesca, mas esta não era a principal atividade, como muitos pensam. 'Se vivia mais da roça do que da pesca'. O roçado era de milho, feijão, batata-doce. Muita gente, para reforçar o orçamento doméstico, aproveitava a abundante mata nativa e fazia carvão para vender. 'O pobre mesmo queimava lenha em casa. O carvão a gente fazia e vendia um cento a 10 mil réis.' (REVISTA BROUHAHA, 2005).

A base da subsistência dos moradores da Vila naquela época era a pesca e

agricultura. Os homens se encarregavam de cultivar o roçado e carvão e as mulheres

trabalhavam nas duas casas de farinha e faziam também, a renda de bilro, atividade

presente até hoje na comunidade. Durante muito tempo, esse povoado manteve um

grande isolamento em relação ao centro da cidade, devido à distância e ao fato de as

pessoas terem seus meios de subsistência no próprio lugar.

O relato de Dona Helena, Mestra do Pastoril, reforça esse entendimento:

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Ainda sou da época que não tinha luz, não tinha água, não tinha telefone. Ave Maria! a casa que tinha televisão era uma festa, era milionário quem podia ter uma televisão...Vivíamos da pesca e agricultura. A agricultura aqui era muito rica, tinha muito roçados. Cada família tinha seu roçado. Plantávamos mandioca, maxixe, melancia, feijão, milho.

Segundo relato de moradores, antigamente era comum ver pescadores andando

pelas ruas com a pescaria que era dividida entre os nativos; rendeiras que subiam e

desciam morro para vender seus artefatos. Ainda a esse respeito, Carneiro & Lima

(2010, p. 89) falam que a lavagem de roupa era outra atividade, desenvolvida pelas

mulheres, que requeria longos deslocamentos a pé ou no lombo de jumentos até o rio do

Jiqui. Naquela época, o nosso cartão postal, o Morro do Careca, era conhecido como

Morro do Estrondo, porque em certos momentos, os habitantes ouviam estrondos; e

diziam que, nas manhãs seguintes aos estrondos, árvores eram encontradas caídas com

as raízes expostas.

A Vila de Ponta Negra é um dos poucos lugares da nossa cidade onde

encontramos de forma concentrada manifestações de cultura tradicional, que expressam,

de forma significativa a diversidade cultural do bairro. Para os brincantes da vila, o

conceito de lugar está associado a noção de pertencimento, carregado de simbolismo e

que agrega ideias e sentidos produzidos por aqueles que o habitam. Expressando

singularidade e globalidade, e materializando a construção de identidades individuais e

coletivas, o lugar passa a representar muito mais do que um espaço que circunda o

corpo.

[...] lugar significa muito mais que o sentido geográfico de localização. Não se

refere a objetos e atributos das localizações, mas à tipos de experiência e envolvimento

com o mundo, a necessidade de raízes e segurança” (RELPH, 1979). Ou ainda, “lugar é

um centro de significados construído pela experiência” (TUAN, 1975).

Dessa forma, o lugar seria um centro de significações insubstituível para a

fundação de nossa identidade como indivíduos e como membros de uma comunidade,

associando-se, portanto, ao conceito de lar (home place), que para Relph (1979),

ressalta, entretanto, que esta associação com o lar/lugar pode dar-se em vários níveis,

variando da ligação mais completa à total desvinculação entre sujeito e lugar.

Diante disso, podemos observar, que lugar é esse, na fala do Mestre José

Correia, conforme Alves (2010, p. 23), quando trata do seu brincar:

21

Eu brinco pra honrar o meu lugar. Cheguei cedo pra arrumar o presépio e

carreguei palha, madeira [...] (MESTRE JOSÉ CORREIA in ALVES, 2010,

p. 23).

Diante disto podemos compreender que a Vila de Ponta Negra representa um

lugar de memória individual ou coletiva, principalmente para os moradores mais

antigos.

Apesar de alguns dados mostrarem que houve nos últimos anos uma mudança

por parte de alguns moradores, principalmente dos mais antigos da vila, na busca de

uma melhor qualidade de vida. No entanto, percebemos que mesmo os que deixam essa

comunidade para residirem em outras localidades da cidade, não abandonam o

sentimento de pertencimento e identidade, pois eles mantem uma relação de afetividade

com o lugar e com as pessoas, fazendo da vila de ponta negra o principal palco para

suas brincadeiras, festejando através do canto, das danças e poesia sua história e de seus

antepassados, seu lugar, suas memórias; sendo assim, encontramos uma comunidade

guerreira, que luta para manter viva ao longo do tempo suas tradições.

Para Relph (1980), a importância de nossa relação com o lugar é,

"uma relação profunda com os lugares é tão necessária, e talvez tão inevitável, quanto uma relação próxima com as pessoas; sem tais relações, a existência humana, embora possível, fica desprovida de grande parte de seu significado"

Segundo Gomes Junior e Genúncio (2013), os lugares de memória podem ser

entendidos como os museus, os monumentos, as igrejas e demais espaços de

celebrações, as feiras e os mercados, os sítios históricos, além das manifestações, dos

saberes e das celebrações, enquanto elementos constituintes do patrimônio cultural, do

sentimento de pertencimento e de identidade de um povo e de uma nação.

Segundo Fonseca (1997, p. 02),

O lugar de memória é todo e qualquer objeto de ordem material que ocupa um espaço urbano, pode ser uma edificação, um monumento ou um fragmento dela. Que a partir da vontade dos grupos sociais de diferentes épocas tornou-se um elemento simbólico, que nos liga a um passado comum e serve como elo entre este passado e o presente, permitindo que os homens se identifiquem entre si ao criar uma sensação de pertencer a uma comunidade.

22

No conceito de memória, seja ela pessoal ou coletiva, está, deste modo,

intimamente ligado ao de lugar. Estas memórias se encontram armazenadas nas

paisagens urbanas que seriam, deste modo, verdadeiros "armazéns de memória social”.

(HAYDEN, 1997:9).

Para Chauí (2000, p. 164), a memória não é um simples lembrar ou recordar,

mas revela uma das formas fundamentais de nossa existência, que é a relação com o

tempo, e, no tempo, com aquilo que está invisível, ausente e distante, isto é, o passado.

A memória é o que confere sentido ao passado como diferente do presente (mas fazendo

ou podendo fazer parte dele) e do futuro (mas podendo permitir esperá-lo e

compreendê-lo).

Nesse sentido, podemos encontrar na Vila de Ponta Negra, sujeitos que

compartilham de uma memória coletiva, que interagem ao mesmo tempo com o passado

e com o novidades da atual sociedade contemporânea, buscando manter preservado essa

fonte de saber mesmo com as transformações no seu cotidiano, nas suas paisagens.

No que se refere ao tempo e memória da paisagem da vila, ela foi sendo

modificada nas décadas de 80, com o crescimento do turismo3 e com o desenvolvimento

urbano de Ponta Negra, o qual a vila está inserida. O conjunto Ponta Negra é o espaço

mais caro da cidade, uma vez que ela recebe investimentos estrangeiros, devido ao

estimulo para o crescimento da urbanização e o turismo. O conjunto Ponta Negra é

considerado um dos bairros mais visíveis da nossa cidade, principalmente por abrigar

uma das mais belas paisagens, com um cartão postal, que é conhecido no mundo inteiro,

o Morro do Careca. concentrar uma rede de serviços e comércios destinados tanto a

suprir as demanda internas de antigos moradores como as necessidades de visitantes e dos novos

moradores que se estabelecem no local (REVISTA TURISMO: Estudos e Práticas, 2013).

3 O turismo é resultado de uma prática social, pois envolve pessoas e suas respectivas culturas. O turismo

ainda é por sua vez “caracterizado pelas constantes mudanças ao longo do tempo, mudando também os

indivíduos, seus desejos e suas necessidades, o que implica também na processualidade do turismo, em

novos padrões de consumo dos espaços, roteiros e produtos turísticos, o que por sua vez determina seu

caráter de atividade econômica” (GOMES JUNIOR, 2013, p. 2).

Em Natal observamos o turismo de sol e mar, uma vez que a mesma é rica em paisagens naturais

encontradas e pela boa infraestrutura oferecidas para os turistas que aqui passam suas férias. Nesse

contexto, a maior concentração dos meios de hospedagens estão concentrados na zona sul, mais

precisamente em ponta negra, local onde a Vila está inserida.

23

A Vila de Ponta Negra que até a década de 1980 se caracterizava por seu aspecto simples e de fraca atividade comercial, com o crescimento turístico passou a concentrar uma rede de serviços e comércios destinados tanto a suprir as demanda internas de antigos moradores como as necessidades de visitantes e dos novos moradores que se estabelecem no local (REVISTA TURISMO: Estudos e Práticas, 2013).

Observamos nos habitantes da Vila a presença muito forte de uma identidade

cultural que coaduna o tempo todo com o tempo de mudança, onde o moderno pode

coabitar com o tradicional, a comunidade pode coabitar com a sociedade, de modo que

não há uma anulação de uma modalidade antiga para a substituição de uma outra e sim

uma realidade que permite que diferentes temporalidades ocupem o mesmo espaço e

estas possam ser vivenciadas concomitantemente pelos agentes sociais.

A(s) identidade (s) implica (m) uma busca de reconhecimento (Taylor, 1994) que se faz frente à alteridade, pois é no encontro ou no embate com o Outro que buscamos nossa afirmação pelo reconhecimento daquilo que nos distingue e que, por isto ao mesmo tempo, pode promover tanto o diálogo quanto o conflito com o Outro. (HAESBAERT, 1999, p. 175).

Quanto à cultura, Morin (2007) nos diz, que ela é o primeiro capital humano. A

cultura é construída pelo conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes,

normas, interditos, estratégias, crenças, ideias, valores, mitos; este conjunto perpetua-se

de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade

social. A cultura acumula o que é conservado, transmitido, aprendido e comporta vários

princípios de aquisição e programas de ação.

A Vila de Ponta Negra é uma comunidade produtora de cultura e saberes ad-

quiridos por seus antepassados, que estão presentes na memória cotidiana desses sujei-

tos, que “são verdadeiros guardiões e revolucionários de sua arte, de si mesmos e de sua

história de vida” (ALVES, 2010, p. 15).

“A arte ferve nos cantos da Vila de Ponta Negra. São muitas as diversificadas

manifestações folclóricas. Um dos poucos lugares de Natal onde se pode achar movi-

mentos” (JORNAL CORREIO DA TARDE, 2008), como o Pastoril da melhor idade, a

Lapinha, os Congos de Calçolas (um dos grupos mais antigos de dança), os Conguinhos

(grupo infantil), o Coco de roda de Mestre Severino, o Boi Pintadinho, Bambelô, além

de outras expressões culturais como, as rendeiras de bilro, o resistência da lata, grupos

de capoeira, entre outros. Percebemos então, uma comunidade que é detentora de vasta

24

sabedoria, que buscam através de suas tradições manter e também, transformar uma rea-

lidade, dialogando com o local e as influencias globais.

Do ponto de vista simbólico, podemos observar que a Vila de Ponta Negra

possui uma pluralidade cultural vasta e lugares distintos, do qual denominamos de

Patrimônio Cultural Imaterial.

Dizem respeito àquelas práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas). (INSTITUTO IPHAN).

Para a UNESCO, o Patrimônio Imaterial são as práticas, representações,

expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares

culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os

indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

O Patrimônio Cultural Imaterial é transmitido de geração a geração,

constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua

interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e

continuidade, contribuindo para promover o respeito à diversidade cultural e a

criatividade humana. É apropriado por indivíduos e grupos sociais como importantes

elementos de sua identidade. (INSTITUTO IPHAN, 2006).

Na perspectiva de uma transmissão do Patrimônio Imaterial pelas mais diversas

gerações, percebemos que e possível construir a coletividade pela identidade com os

seus pares, daí a Vila ter sua base na coletividade em que os seus moradores

constituíram um espaço em que predominam as relações pessoais, de amizade, ajuda

mútua, motivadas pelas próprias condições de existência (SILVA, 2006, p. 58).

Maffesoli (2001, p.81) entende que, "do mesmo modo que a casa da infância

permanece o paradigma de toda raiz ou de toda busca de raízes, o espaço local é aquele

que funda o estar-junto de toda comunidade". E, é no espaço da coletividade, e porque

não dizer, no espaço familiar que as coisas acontecem e se reproduz cotidianamente co-

nhecimentos, como a interação social.

25

Com relação ao já dito anteriormente, Maffesoli (2001, p.86) acrescenta, ainda,

que:

A espacialidade é o tempo em retardo, é o tempo que tentamos frear, e daí a importância da ritualização na vida cotidiana que, pela repetição, representa ou faz a mimica do imutável. A cidade ou a casa, como sedimentação das his-tórias passadas, do tempo decorrido, servem então de pólos atrativos, eles são fortalezas sólidas nessa luta permanente que é o afrontamento do destino. É ai que convém buscar o fundamento do apego afetivo ou passional que liga o indivíduo ou o grupo a qualquer que seja o território.

Dentro dos grupos familiares formadores desse pequeno reduto da Vila de

Ponta Negra, encontramos os “Correias”, essa família é muito conhecida dentro da vila,

pela participação efetiva e ativa na comunidade. Além da referida família “Correia”

outra que muito contribuiu para a formação da Vila foi a família “Prazeres” e, na mesma

linha de contribuição, encontramos também a família “Cardoso”. Com o processo de

urbanização foram surgindo outras que vieram dos interiores para trabalhar na

agricultura e pesca, outros foram casando com os nativos e vice-versa.

Assim, podemos constatar que toda a comunidade tem seus espaços e agentes

de transmissão de saberes com foco na realidade e maneiras peculiares de ensino-apren-

dizagem, dentre eles os mestres Severino do Coco de roda 4e dona Helena do Pastoril,5

Alan Merriam argumenta que:

Deveria-se observar que, embora em algumas sociedades não-letradas faltem instituições educativas formais, isso não significa que de alguma maneira elas não possuam um sistema educacional. (...) Obviamente se a cultura permane-ce, visto que a cultura é um comportamento aprendido, tem de haver aprendi-zagem. (MERRIAM, 1964, p. 146).

Quanto mais intensa forem essas atividades ou práticas, mais forte será a trans-

missão do conhecimento.

4 O coco de roda é uma dança tradicional do Nordeste, que tem sua origem na união da cultura negra com

os povos indígenas no Brasil. É uma dança de roda acompanhada de cantoria e executada em pares,

fileiras ou círculos durante festas populares do litoral e do sertão nordestino.

5 O Pastoril tem sua origem vinculada ao teatro religioso semi-popular ibérico, pois na Espanha e

Portugal, as datas católicas se transformaram em festas eclesiásticas e ao mesmo tempo em festa popular.

Segundo autores como Andrade (2002) e Mello e Pereira (1990), desde tempos muito antigos até o final

do século XVI, são representadas peças de um ato relativas ao Natal, Reis, Páscoa, numa mistura de

elementos pastorais e alegóricos, de bailados, textos e canções.

26

Portanto, observamos que essa memória popular se dá, também na coletivida-

de. É uma brincadeira em grupo, que depende do Outro, que traz consigo essa herança.

É como se, a todo instante, eles dissessem "eu me complemento com o outro". Assim,

podemos ver como o outro afeta a construção dessa memória, como eles mesmos falam:

"é bom quando está todo mundo", pois, dessa forma podem dançar e cantar (CANEL-

LA, 2009, p. 86).

Nessa perspectiva, nota-se que a sede desta memória é o corpo dos brincantes e

particularmente, dos mestres. São os mestres e só eles detêm a memória do conjunto da

sua brincadeira. Ele é quem dá forma ao desenrolar geral do folguedo. Funciona como

um encenador, ou diretor teatral, mas como um encenador em cena. Sua atuação asse-

melha-se à de um treinador de futebol que fosse ao mesmo tempo um juiz, porque atua

dentro da função, conduzindo seu desenrolar. De outra perspectiva, ele é como um capi-

tão do time, ou como um armador, que distribui a bola e orienta os companheiros dentro

do campo (BARROSO, 2004, p. 86).

Mestre José Correia, em suas palavras, nos mostra que:

Agora eu já estou sentido quando eu falecer como é que vai ser o embaixador para levar essa embaixada. A embaixada é difícil, só ela leva uns 30 minutos. Pedro (irmão do Mestre Correia) tem conversado comigo e vou treinar com ele umas 4 ou 5 danças. Eles só querem dançar o samba e o cruzado. Mas não tem jeito não, porque tá ali no trecho da brincadeira e tem que dançar (MES-TRE JOSÉ CORREIA, 2006, LIVRO: Encantos da Vila: Vivenciando Sabe-res, p. 136:7).

Trata-se de uma memória cultural de desafios, representações simbólicas que

persistem e se sustentam até hoje nas brincadeiras, sejam religiosas, sejam profanas.

“Um mestre não ensina a outro mestre sobre direito autoral; não existem dicas para

cobrança de cachê; o reconhecimento não é sinônimo de subir em um palco artístico.

Aqui cabe perguntar, e por que deveria ser? A cultura local não costuma impor uma

preocupação de natureza comercial, muito pelo contrário, a cultura de coco, congos,

pastoril entre outras é lúdica em suas formulações mais vigorosas e essenciais.”

(TRAVASSOS e CARVALHO, 2006, p. 01).

A Vila de Ponta Negra abriga uma comunidade que persiste ao longo do tempo,

apesar das mudanças ocorridas nas suas paisagens, em função da urbanização e do

turismo. Percebemos que nessa comunidade os sujeitos dialogam constantemente com

27

as influências globais e suas novas configurações, porém, assim como discute Hall

(2000) nos aspectos que envolvem a cultura “é mais provável que ela vá produzir,

simultaneamente, novas identificações ‘globais’ e novas identificações ‘locais’.

28

3. DESCORTINANDO MEUS LUGARES DA/NA DANÇA

Aqui relato um pouco das minhas experiências vividas no Projeto Encantos da

Vila de Ponta Negra e de como surgiu o interesse pelas manifestações populares,

principalmente as da nossa cidade Natal-RN e mais precisamente as da Vila de Ponta

Negra.Desde menina na escola, quando tinha as clássicas festinhas comemorativas,

como as do folclore e São João, sempre estava eu a transitar nessas danças, pois não era

apenas o simples encanto pelos figurinos multicoloridos, más a história que elas

carregavam e transmitiam para o meu mundo.Então, sempre que havia festas comemorativas na escola eu buscava participar,

apesar da timidez naquela época, que tinha que ser deixada de lado, pois a vontade de

participar, dançar era bem maior.Ainda na infância, lembro que minha família era muito festeira. Era comum

minha prima passar um final de semana na minha casa, e me ensinar a dançar, forró,

samba etc. Nessa época, era tradição aproveitar o período junino na casa da minha avó

em Cidade da Esperança, já que lá o São João era bem mais animado, tinha fogueira em

todas as casas, crianças e adultos, ficavam nas calçadas brincando, conversando,

contando estórias, rindo e soltando fogos para comemorar essa data. E assim, essa

memória foi me acompanhando ao longo do tempo.Na adolescência, a presença mais forte da dança se dava através das quadrilhas

juninas. Logo, era a data mais aguardada do ano. Tudo me encantava, a atmosfera criada

na minha mente, as coreografias, a música, os figurinos, o espaço que aconteciam essa

manifestação e agora eu deixava de ser espectadora, para finalmente fazer parte desse

universo, da dança tradicional.Outra experiência bem marcante foi no período de Estágio Remunerado pela

Secretária de Educação, quando fiz minha primeira Graduação – Licenciatura em

Geografia. Nesse período, além de lecionar geografia, dava aula de Cultura do Rio

Grande do Norte para alunos do Ensino Médio. Lembro-me que era a melhor parte era

quando me debruçava sobre as pesquisas da nossa cultura, para poder chegar na sala de

aula e mostrar tudo para os alunos. Fiquei conhecida na escola pelos demais

professores, como a professora das viagens, pois gostava também de levar os alunos

para campo, para apreciarem e vivenciarem a cultura da nossa cidade. Então, era

comum eu levar os alunos para conhecer o corredor cultural de Natal, ao Museu Câmara

Cascudo, ao teatro Alberto Maranhão para apreciar uma peça de teatro e espetáculo de

dança. Foi a partir dessa experiência, que percebi a necessidade de me envolver com a

29

cultura da minha cidade, de vivenciar cada vez mais, pois eu não estava feliz em

simplesmente ser uma geógrafa. Nesse mesmo período, terminando o curso de

geografia, fiquei sabendo do vestibular para Dança; fiz e passei.No curso de Dança, apesar da vivência com diversas modalidades, as

tradicionais, sempre foram as que mais instigaram e me impulsionaram a querer

desenvolver uma pesquisa.Em 2009, ainda no segundo período do Curso de Licenciatura em Dança, me

tornei bolsista do Projeto de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

Encantos da Vila de Ponta Negra, coordenado pela Professora e Doutora Teodora

Alves, que me deu a oportunidade de fazer parte desse projeto tão lindo. A partir daí

comecei a frequentar a Vila e conhecer um pouco mais desse lugar e de sua história.O projeto Encantos da Vila surgiu devido a necessidade da comunidade de

manter viva a sua identidade, diante da influência e dos possíveis diálogos com outras

culturas, bem como da necessidade de impulsionar e reafirmar as manifestações

presentes na comunidade. De caráter artístico-cultural, o Projeto Encantos da Vila vem sendo

desenvolvido na Vila de Ponta Negra desde Julho de 2004, em uma efetiva parceria

entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a referida comunidade. Assim,

objetivando contribuir com a sistematização, divulgação e reafirmação da arte e cultura

da Vila de Ponta Negra em Natal/ RN, o projeto evidencia a produção dos artistas dessa

comunidade e oportuniza que as manifestações artísticas sejam realizadas no espaço em

que as mesmas são produzidas como uma forma de incentivar o aprendizado de novos

artistas e divulgar, para outros moradores, suas práticas culturais. (ALVES, 2010, p.

13).

As ações desse Projeto são desenvolvidas na sede do Conselho Comunitário, na

UFRN, nas escolas públicas do bairro e nas praças da comunidade.

Em muitos eventos já realizados pelo Projeto, a exemplo dos Autos natalinos

da Vila, a comunidade participa encenando aspectos que traduzem momentos

significativos da sua história recente, numa narrativa lúdica e reflexiva. Nessa

perspectiva, o projeto desenvolvem algumas ações bem definidas como, o Cortejo

Cultural da vila e Apresentação das Manifestações Culturais Populares da comunidade

da vila (dos sete grupos tradicionais da vila) e das Escolas Josefa Botelho, Jerônimo de

Albuquerque e São José, evento realizado na Semana do Folclore, mês de agosto que

conta também com a participação dos sete grupos tradicionais da vila É um evento

maior, que conta com os grupos participantes do Projeto e de outras instituições, que

30

percorrem as principais ruas e vielas, mostrando o que a Vila tem, divulgando essas

brincadeiras, incentivando-as e ao mesmo tempo se reafirmando perante a comunidade.

Outra ação importante é o Auto da Vila, anualmente realizado e que em um ano

específico foi intitulado Auto Lá! Nas palavras de Rodrigo Severo, bolsista do projeto,

O Auto Lá se trata do espetáculo de final de ano da Vila de Ponta Negra – ação cultural idealizada pelo Encantos da vila e os grupos artísticos tradicionais (Congos de Calçola, Bambelô, Pastoril, Coco-de-Roda, Boi de Reis entre outros), jovens artistas da vila, estudantes, professores da UFRN e de escolas locais, associação de moradores, Projeto extensionista UFRN – Brincarte, Grupo Resistência da Lata.

Os autos são manifestações espetaculares que têm a sua origem na Idade

Média, a partir da evolução das cerimônias dramáticas realizadas dentro da Igreja que se

projetam para o espaço público, com o uso de cenários alegóricos, com o intuito de

dramatizar passagens bíblicas. No caso da vila, realizamos um auto natalino, no qual

seria contada a tradicional história do nascimento de Jesus, embora contada com

elementos da vila, valorizando assim a cultura local. Como os autos medievais,

utilizamos toda a extensão da praça em frente à Igreja para mostrar momentos e espaços

diversos da narrativa (ARAÚJO, 2010, p. 116).O Auto da vila é uma apresentação que ocorre no mês de Dezembro, próximo a

data de comemoração do Natal. “Essa ação é de suma importância, já que parte das

manifestações desenvolvidas na vila é uma deferência ao Nascimento do menino Jesus”

(CANELLA, 2010, P. 113). Hoje, essa encenação é bastante aguardada pelos

moradores, uma vez que ela já faz parte do calendário comemorativo da comunidade.No que se refere ao Projeto Encantos da vila e a convivência com a

comunidade, a coordenadora Teodora Alves ressalta,

O fato é que, acabamos aprendendo e ampliando nossos aprendizados a cada encontro, a cada ação e em cada canto que o Encantos da Vila nos leva, seja da Universidade à comunidade ou da comunidade à Universidade, primando sempre por uma postura ética, dialógica, reflexiva e poética”.

A Vila tem nos ensinado a contemplar as nuances de sua cultura artística e a

perceber a complexidade dos fios que se cruzam na tessitura de cada cena cotidiana

vivida por pescadores, rendeiras, cantadores, mestres, brincantes, estudantes e

professores (ALVES, 2010, p. 14).

31

No contexto do Projeto, sempre foi e é uma alegria ir a Vila de Ponta Negra.

Participei desse Projeto durante dois anos e a cada ida a reunião com os mestres e

moradores da Vila, sempre aprendia algo novo, levando comigo um pouco de saberes

adquiridos a partir do contato com os mestres dos grupos de danças, era um mix de

curiosidade, admiração e encantamento por essa comunidade que tanto tem a nos

ensinar, que tanto tem a dizer, que luta para preservar sua cultura, suas tradições.Lembro-me que, muitas foram as vezes que sentada no banco em frente a

famosa igreja da Vila de São João Batista, que ouvi histórias de lutas, de amor, de

família, causos engraçados, outros inventados, contadas pelos sábios mestres, que

sempre demonstraram tanto amor por aquele pequeno, porém, um espaço singular

dentro Participar desse projeto contribuiu muito para minha formação acadêmica, pois foi

através dele, que descobri um universo tão valioso na vila de ponta negra, um espaço

multicultural, de mestres detentores de conhecimentos históricos inestimáveis, com uma

comunidade que possui um grande potencial artístico e criativo, que buscam manter-se

inseridos diante das mudanças e necessidades advindas da contemporaneidade. O

Encantos da vila me proporcionou caminhar no universo da cultura popular, percebendo

o quanto é valioso manter viva a tradição de um povo, de uma comunidade que canta e

dança sua própria história.Durante os dois anos em que fui bolsista extensionista do Projeto Encantos da vila

de ponta negra, aprendi a admirar essa comunidade, principalmente os mestres, que com

sua generosidade e força tanto me ensinaram, seja nas conversas sentada em frente à

igreja, nas reuniões de toda segunda-feira, quando eles podiam expor suas ideias,

anseios, seus causos e saberes. Hoje, mantenho uma relação de afetividade e

profissionalismo com esses sujeitos, contribuindo e dando suporte, juntamente com

projetos promovidos pela UFRN, coordenado pela professora e Doutora Teodora Alves,

auxiliando os mesmos a se auto afirmarem como comunidade produtora de cultura

popular da nossa cidade, assim, como a valorização e reconhecimento desse lugar dança

tão rico em cultura tradicional. Com essa pesquisa, verifico várias possibilidades de articulação com o processo

de ensino-aprendizagem, trazendo para a dinamização das aulas de dança, enfoques para

o conhecimento das danças tradicionais, assim como, os saberes advindos dos mestres-

brincantes, os quais podem contribuir significativamente com a sua experiência para um

diálogo no entorno da escola, através de um projeto para estudos aprofundados no

assunto.

32

Ressalto que o convívio com essas danças da Vila de Ponta Negra, já fazem parte

do meu olhar como pesquisadora, quando da aplicabilidade das manifestações

tradicionais no meu fazer pedagógico em sala de aula.

33

4. A VILA MOSTRA SEUS ESPAÇOS E SEUS ENCANTOS

A vila que maravilha.A vila é bela.Quando abri a janela.Que paraíso...(Itamar Xavier de Avelino-Morador da vila)

A Vila de Ponta Negra possui um cenário paisagístico natural valioso, que en-

canta a todos que passam por ali e contemplam o famoso morro do careca, principal car-

tão da cidade, que está localizado nesse reduto de grande diversidade cultural, de cores,

ritmo pulsante, artes e fazeres da cultura tradicional.

Caminhando pela comunidade, percebemos “que todas as ruas são estreitas,

sinuosas e muito movimentadas, praticamente não existem calçadas, os locais como

esquinas, praças, arredores da igreja católica, mercearias e mercadinhos, estão sempre

cheias de pessoas conversando, jovens, adultos e idosos, crianças correndo, brincando;

traços que somado a outros caracterizam uma comunidade” (SILVA, 2006, p. 58).

E, essa comunidade, a Vila de Ponta Negra é detentora de uma cultura “que é

fruto de toda uma construção histórica e social, ou seja, ao falarmos de patrimônio,

também estamos falando da herança, dos traços, dos monumentos, dos ritos, dos

objetos, que têm o poder de representar simbolicamente a identidade e a memória de um

povo, de uma nação.” (GOMES JÚNIOR e GENÚNCIO, 2013, p. 01).

Compreendemos que o lugar onde essa comunidade e os grupos estão

inseridos, permite um diálogo constante de saberes artísticos, advindos a partir da

interação com o outro e com sua historicidade, que ocorrem nas práticas no cotidiano

desses sujeitos, agentes de cultura.

A vida simples propiciou um ambiente ideal para o desenvolvimento dos folguedos na comunidade: "não tinha outro divertimento. Quando aparecia uma atração era um cantador de viola, ou um embolador de coco". Enquanto os homens participavam nos Congos, Bambelô e Bois-de-reis, as mulheres brincavam lapinha e pastoris (REVISTA BROUHAHA, 2005).

Podemos destacar alguns dos espaços onde acontecem as práticas culturais

como, a casa das rendeiras. Esse lugar está localizado na parte central da Vila, no qual

se respira afetividades e estórias, onde o simbólico e o imaginário se misturam às mãos

habilidosas das artesã de bilro, que tecem suas tradições, adquiridas ainda na infância.

A Vila é uma área bastante representativa para a comunidade, uma vez que é um dos

34

poucos lugares na comunidade onde se tem a oportunidade de se aprender a renda de

bilro, fazendo parte da sua cultura. Além disso, a casa das rendeiras abriga ainda, as

reuniões, encontros dos grupos da Vila, dos projetos vinculados a UFRN, outras

Instituições e entidades, que desenvolvem algumas ações no decorrer do ano. Lembro

das muitas reuniões do Projeto Encantos da Vila, onde os vários olhares, as diversas

falas, os causos, as cantorias, as ideias e os sentidos emergiam em prol das ações

propostas pelos mestres, brincantes, equipe do projeto Encantos da Vila de Ponta Negra

e demais colaboradores. Hoje, a casa das rendeiras comporta um outro espaço, a tapiocaria da Vó, dona

Maria, umas das rendeiras mais antigas da comunidade. De acordo com o JORNAL

TRIBUNA DO NORTE (22 de Novembro de 2013), “aberta em março, a casa tem uma

longa relação com a área. De 1988 a 1997, foi o restaurante Rango de Mãe. Depois,

serviu de casa e oficina para as tradicionais rendeiras de bilro, voltando ao comércio só

em 2013. Agora, é um espaço cultural onde se pode degustar iguarias regionais,

marítimas”, além de poder apreciar as mulheres da comunidade fazendo suas rendas de

bilro, enquanto se degusta um prático típico da nossa cidade.A fundação da Igreja da Vila, São João Batista se confunde com o próprio

surgimento da comunidade e da nossa cidade. Quanto a sua fundação o Jornal Tribuna

do Norte diz,

A capela foi construída em 1823. Sua localização era estratégica, permitia uma boa visibilidade do mar. A capela tinha dois pavimentos. No porão, eram armazenados materiais bélicos que poderiam ser usados em caso de batalhas. (TRIBUNA DO NORTE, 29 de Agosto de 1999).

Sobre a importância da Igreja para a comunidade Dona Helena, moradora a

setenta e um anos e Mestra do Pastoril, relata que:

Naquela época a paroquia não tinha um padre. Durante a semana a Igreja ficava fechada. A igreja só abria durante o período de festa, quando íamos pegar o padre de outros lugares, quando queríamos rezar um terço. Quando morria alguém corríamos para casa de Dedeca para abrir e tocar o sino. Na frente da igreja todas as crianças se reuniam para brincar, dançar e ensaiar.

A comunidade vivia entorno dos acontecimentos promovidos pela igreja, onde

todos trabalhavam juntos em prol das comemorações e festejos que aconteciam em

determinada época do ano. Ainda, segundo Dona Helena, um dos santos mais festejados

era São Sebastião, o protetor dos pescadores,

Na época que dava muito peixe, no mês de Janeiro, fazíamos nove noites de novenas. Se fazia até corrida, por trás da rua da floresta, de um canto ao

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outro. Nessa festa tínhamos também a noite dos jovens, que saiam de casa em casa, pedindo ajuda e todo mundo ajudava. Tinha a noite dos casados, das moças e dos rapazes. Era uma briga entre as moças e os rapazes, porque cada um queria arrecadar mais doações e mais fogos. Quem fizesse a noite mais bonita, era quem ganhava.

Localizada praticamente no centro da Vila, a igreja de São João Batista, está

cercada de casas, mercadinhos e barzinhos. Hoje, em algumas épocas do ano, a igreja é

palco e cenário para os festejos e acontecimentos que ocorrem na Vila, como o Auto da

Vila, o cortejo cultural, as festas juninas, entre outros. Hoje, a comunidade conta também com um salão paroquial, construída ao lado

do conselho comunitário, que abriga alguns eventos, reuniões, oficinas e cursos, que

proporcionam aos moradores vivências com outros saberes.Encontramos outros espaços culturais, importantes pelo valor histórico e

simbólico, que representam para essa comunidade como, o campo do botafogo, o

conselho comunitário, as escolas Josefa Botelho, São José e Jeronimo de Albuquerque.

Alguns desses espaços servem também de suporte para a comunidade e demais grupos

para realizarem ações, reuniões e oficinas, lugares de encontros, partilhas de

aprendizados e de memória coletiva.Diante do que foi apresentado, percebemos que esses espaços, são lugares de

memória, uma vez que eles dizem respeito a historicidade, ao lazer comunitário, local

de práticas das manifestações da cultura tradicional, da religiosidade, resultantes das

práticas cotidianas da comunidade. Através desses lugares ou espaços culturais que

alguns moradores da Vila, ou colaboradores institucionais tem procurado desenvolver

ações que reverberem no turismo de base comunitária, ou seja, um turismo que

considere o contexto local comunitário e dialogue com este de modo ético, prazeroso e

dialógico, a exemplo do Projeto Encantos da Vila (ALVES, 2010), do Projeto a Vila

Mostra sua Cara (CARNEIRO e LIMA, 2010) e do Projeto da Tapiocaria, citado

anteriormente. Talvez, estes estímulos sejam capazes de valorizar o desejo interno de

cada indivíduo, dando a oportunidade de viverem em uma sociedade mais igualitária.

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5. AS TRADIÇÕES QUE DANÇAM E CANTAM

A Vila de Ponta Negra é um lugar carregado de pluralidade cultural que

misturam-se as práticas cotidianas. O bairro é um dos poucos lugares onde podemos

encontrar as manifestações de culturas tradicionais, como grupos artísticos de danças: os

Congos de Calçolas, o Coco de roda do Mestre Severino, o Boi de Reis ou Boi

Pintadinho, a Lapinha, o Pastoril, o Bambelô e de outras expressões artísticas como, as

rendeiras de bilro, a capoeira, o taekwondo, as quadrilhas, grupos de hip hop, dentre

outros.A Vila de Ponta Negra sempre foi um lugar com muitas festividades, onde toda a

população dedicava parte do seu tempo nos preparativos. Segundo relato de moradores

antigos, eram festas animadas, que traziam gente de outras localidades, como Pium. As

principais festas eram quatro: a de São Sebastião, a de São João Batista, padroeiro do

povoado; a de São José e a do Coração de Jesus. Festejavam também o Natal, a festa de

Santos Reis e a semana Santa.

Em muitas ocasiões, o Morro do Careca era palco das festividades, transformando-se em testemunha da história cultural da vila. Durante as comemorações do Ano Novo e no Dia de Reis, homens, mulheres e crianças subiam a duna e no alto cantavam e dançavam o Coco de Roda (CARNEIRO e LIMA, 2010, p. 91).

Nas festas religiosas, as pastoras do Pastoril se apresentavam e com sua dança

atraiam pessoas para o baile. Jogavam fitas aos cavalheiros que eram convidados a

dançar e depois contribuíam com dinheiro para pagar as despesas da festa. Grupos de

outros locais vinham se apresentar e tocar forró. Algumas festas aconteciam no Centro

Social, atualmente Conselho Comunitário (CARNEIRO e LIMA, 2010, p. 91 e 92).Segundo dona Helena, havia também a festa das lavadeiras. A lavagem de

roupa era outra atividade, desenvolvida pelas mulheres, que requeriam longos

deslocamentos a pé ou no lombo de jumentos até o rio Jiqui. Elas saiam em grupos e

quase sempre acompanhadas de algum filho, que ajudava a carregar as trouxas de roupa.

Naquela época não existia água na comunidade, então um grupo de mulheres e homens

que serviam de guardião das lavadeiras, saiam bem cedinho em direção ao rio Jiqui para

lavarem as roupas que eram sujas durante a semana. Chegando lá, todos tomavam

banho e alguns eram encarregados de fazer o almoço e as mulheres de lavarem as

roupas, que secavam ao vento e a brancura que ficava as roupas, ofuscavam os olhos no

sol. Depois de um dia inteiro de lavagem, banhos no rio, almoço, dança, canto e roupa

limpa, chegava a hora de fazer a viagem de volta. Esse ritual aconteceu durante alguns

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anos, uma vez que não havia água encanada e o único poço que existia tinha sido

interditado pelas autoridades locais. As danças tradicionais são práticas que acontecem no cotidiano de uma

comunidade, como a forma de pensar, de agir, de sentir e vivenciar de um povo.

Desse modo, o corpo desses brincantes quando dançam, encontram-se efetivamente pulsantes, crível, com uma presença viva, que nos faz fixar o olhar em sua presença no espaço de representação. (SANTOS, 2010, p. 128).

E, nesse espaço de representação, vamos encontrar uma cultura em que as

brincadeiras, também, conhecidas como festas, folias ou folguedos. Nelas os brincantes

são os integrantes que participam e brincam ativamente das manifestações, com o

compromisso de manter a brincadeira e levar até ao público.

Os folguedos acontecem em geral nas ruas, nas praças, em ocasiões de festa,

sendo que alguns invadem as casas, num trânsito entre os espaços doméstico e público.

Eles instauram uma atmosfera de rito, em que o “elemento simbólico” ganha vida em

cena, seja no canto, na dança, nas cores, nas fardas, nos versos, na comunhão, no

oferecimento de alimentos típicos. Eles acolhem, integram, permitem que todos, sem

distinção, brinquem, que todos façam parte daquele momento de espetáculo, brincantes

novos, brincantes velhos, mestres e aprendizes.

Apesar do caráter indispensável de brincadeira, de festa e de jogo, está por trás

dos folguedos uma imensa carga cultural e, na maioria das vezes, religiosa. Existe uma

dualidade entre o ser e o representar, entre o brincar e o viver, que proporciona

interação íntima entre os participantes, a ponto de atingir um grau ritualístico intenso. O

brincante cresce envolvido na brincadeira, aprende os primeiros passos na infância,

aprende sem “ninguém ensinar”, porque aprende junto ao coletivo, observando,

imitando e participando. Por isso a carga de identidade é bastante vigorosa em cada

participante do folguedo – dançar faz parte da história de cada um e da vida da

comunidade.

Existem entre a festa e o jogo, naturalmente, as mais estreitas relações. Ambos implicam uma eliminação da vida quotidiana...Em resumo, a festa e o jogo têm em comuns suas características principais. O modo mais íntimo de união de ambos parece poder encontrar-se na dança. (HUIZINGA, 1999, p. 25).

O jogo das cenas permite que os brincantes interpretem suas poéticas em

grupo. Uma forma dialogal que integra seus intérpretes, na qual se realiza um conjunto

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de ações corporais com danças, cânticos, textos, gestos, utilizando seus figurinos,

adereços e instrumentos musicais, dados que reforçam uma forte função social do fazer,

poética que unifica e cria uma via de interpretação pautada na sociabilidade, pois a

presença desses elementos se dá e se faz em grupo. (CANELLA, 2010, p. 109).

Assim, podemos concluir que essas manifestações tem um caráter popular, cuja

a principal característica é a presença de música, dança e representação teatral. A maior

parte dessas manifestações ou folguedos possui origem religiosa e raízes culturais dos

povos que formaram nossa cultura (africanos, portugueses, indígenas).

Ainda, podemos ressaltar que as manifestações populares apresentam uma

forma espontâneo-criativa de sair da rotina do cotidiano e viver o contexto da partilha,

do encontro, através do ritual e da festa. É um lugar de memória coletiva onde a

subjetividade de cada um se instala e se constrói. Os saberes, compartilhados pela

comunidade, são reinterpretados e atualizados conforme o que acontece no momento

(GOMES, 2007, p.179).

Essas formas de manifestação cultural são geralmente transmitidas oralmente,

legitimando os acontecimentos, por meio da memória dos brincantes, reproduzidos na

prática do cotidiano. Desse modo, nas relações cotidianas, a educação se dá de forma

própria e significativa. São saberes que se constroem a partir de linguagens culturais. As

pessoas compartilham conhecimentos vivenciando o seu dia-a-dia. (ALVES, 2006, p.

107).

Daí, as danças tradicionais da Vila tem um caráter de brincadeira, de

valorização e preservação de uma cultura adquirida através da herança tecida na geração

e nos corpos dos brincantes, que contam sua própria história, pois é através das danças

que esses sujeitos criam também compreendem e se inter-relacionam no mundo.

Ao dançar, os sujeitos criam sentidos, acrescentam elementos à cultura, criam novos cenários para a arte e, nesse ato, educam-se, haja vista que podem se deslocar de sua própria experiência e experimentar outras formas de mover-se, de atuar, de viver. (MEDEIROS, 2010, p. 105).

Sendo assim, é através da dança que esses sujeitos criam também relação no

mundo. As danças na vila são definidas a partir das relações que são tecidas nesse

espaço, através de ações cotidianas, esses corpos-brincantes, dos pescadores, das donas

de casa, rendeiras, entre outros, são trazidos para a cena, seus saberes, sua corporeidade,

gestos, tornando as brincadeiras uma extensão das práticas do dia a dia, ou seja,

refletindo e refletindo-se nesse espaço, no mundo.

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Segundo BARRETO (2004), a dança tem diversos sentidos e significados

podendo ser praticada como forma de expressão artística, expressão humana, expressão

de sentimentos e expressão da sociedade, como forma de aquisição de conhecimentos,

de práticas de lazer, de prazer, como libertação da imaginação, desenvolvimento da

criatividade, de desenvolvimento da comunicação e como veículo de socialização.

As danças tradicionais possuem uma riqueza de movimentos que se reestrutura

a cada instante, pois os brincantes transformam o corpo, multiplicando-o,

diversificando-o, tornando-o vários corpos (pescador, escravo, rendeiras, dona de casa,

agricultor, etc.).

Nessas danças o corpo é o condutor das marcas significantes de sua tradição e

simultaneamente se faz corpo contemporâneo, mantendo um diálogo constante com a

sua ancestralidade.Considerando os corpos dos brincantes da Vila de Ponta Negra, são corpos que

cantam, dançam, que ouvem, se comunicam, manifestam sua presença na esfera da vida

social, que podem ser constatadas a partir do contato com público; corpos que olham se,

são olhados, ou seja, “corpos que contam histórias dançando” (ALVES, 2006, p. 115).

Esta situação demostra o quanto é rica e diversificada a comunicação nas relações

humanas dessa comunidade, uma vez que a mesma confunde-se com a própria vida

servindo, princípio para a sobrevivência individual e coletiva e posteriormente, às trocas

sociais, canal por onde se transforma a realidade.No que se refere a influência que essas danças tradicionais teriam sobre a

comunidade, neste caso, a Vila de Ponta Negra, Campelo (1997) nos diz,

Os brincantes quando dançam, criam um jogo de forças que se torna possível nos seus corpos. Cria-se um universo de ações e significados múltiplos e diversos, fazendo com que o tempo e espaço sejam ritualizados e os transformem em personagens. Como personagens dessa dança realizam história, armazenam conhecimentos, alimentam a cultura e, ao mesmo tempo, armazenam a história que realizam como um grande arquivo o qual espelham e projetam, de geração a geração, as mensagens neles contidos. Ou seja, esses corpos-sujeitos incorporam aquilo que lhe traz significado, de ser e conviver em comunidade.

Sobre a relação do sujeito com o seu próprio corpo, Gonçalves (1994, p. 13 a

14) nos diz,

O corpo de cada indivíduo de um grupo cultural revela, assim, não somente sua singularidade pessoal, mas também tudo aquilo que caracteriza esse grupo como uma unidade. Cada corpo expressa a história acumulada de uma

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sociedade que nele marca seus valores, suas leis, suas crenças e seus sentimentos, que estão na base da vida social.

Sendo assim, o corpo quando dança, constrói e é construído pela cultura, pelas

marcas culturais que criam significados e se manifestam no espaço, na paisagem, no

corpo, nas danças.Os corpos-brincantes da Vila de Ponta Negra são compostos em sua maioria de

idosos. São corpos de pescadores, rendeiras, contadores de estórias, que através das

danças, músicas e gestos contam e celebram sua história. Na vila, há de fato corpos-

brincantes que dançam e expressam suas histórias, suas memorias, sua cultura, seus

valores, seus sentidos e significados que se confundem muitas vezes com sua própria

arte, a arte de brincar e ser brincante de sua cultura (ALVES, 2008).A partir da vivência com essa comunidade, observei que o corpo dos brincantes

que cantam e dançam suas tradições, encontram-se efetivamente pulsantes, crível, com

uma presença viva, que nos faz fixar o olhar em sua presença no espaço de

representação.

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6. FECHANDO A JORNADA

Esta pesquisa partiu da constatação de uma realidade, que a maioria da

população natalense desconhece a existência das manifestações, mais precisamente das

danças presentes na Vila de Ponta Negra, uma vez que este espaço é reconhecido apenas

como referência de bela paisagem natural e turística, onde está situado um dos

principais cartões postais da nossa cidade. Outra questão também que procurei entender,

foi quanto à concentração de grupos de danças tradicionais na Vila de Ponta Negra e

consequentemente investigando a história e as mudanças ocasionadas na mesma.

Diante de tudo que foi pesquisado para compor e expor neste artigo científico

e, vivenciado através de um contato mais íntimo com a comunidade da Vila de Ponta

Negra, posso concluir a importância do legado cultural presente nas paisagens, nos

corpos e memória dos brincantes, nas práticas cotidianas, nas brincadeiras dos sujeitos

que compõem este espaço multicultural, que ao mesmo tempo é histórico, lúdico e

poético, sujeitos que cantam e dançam suas histórias e memórias, seus conformismos e

resistências (CHAUÍ, 1985), suas dificuldades e conquistas.

Dentro das tradições da Vila podemos encontrar as danças tradicionais, como

os Congos de calçolas, o Pastoril, a Lapinha, o Boi de Reis ou Pintadinho, o Bambelô, o

Coco de Roda, evidenciam que, ao serem produzidas dentro de um contexto social,

estão inseridas num espaço/tempo de memórias que se mantêm vivas e ativas, em plena

dinamicidade, que coadunam com a contemporaneidade, pois “a tradicionalidade de

uma cultura não significa algo estático no tempo e no espaço. Ao contrário, significa

possibilidade de ligação entre o passado e o presente, entre gerações passadas e

gerações presentes e futuras” (ALVES, 2008, p. 72). Processo que caminha e flui de

acordo com a dinâmica que acontece na sociedade, destacando e valorizando os saberes

transmitidos pelos mestres e aprendizes.

Este artigo também procurou evidenciar a valorização, a experiência dos

corpos-sujeitos que são verdadeiros agentes culturais, observando a relação dialógica

entre o tempo e o espaço, ou seja, o passado e o presente. Para isso, busquei me

aproximar e observar a historicidade desses sujeitos, os fragmentos de que alimentam a

memória, o que eles vivenciam, os fluxos e refluxos dos indivíduos e suas histórias,

alimentados pelas memórias.

Esta pesquisa me conduziu também para mostrar a importância do valor

histórico da própria Vila, bem como, compreender as mudanças ocorridas em sua

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trajetória espacial e cultural e levar, inclusive, às escolas e à população local a se

sentirem pertencentes a esta história, a essas marcas culturais significativas de tradição

popular em Natal.

Assim, nas palavras de Alves (2010), a Vila tem nos ensinado a contemplar as

nuances de sua cultura artística e a perceber a complexidade dos fios que se cruzam na

tessitura de cada cena cotidiana vivida por pescadores, rendeiras, cantadores, mestres e

brincantes.

Através do contato com a comunidade, observei o quanto é importante

evidenciar essas produções e oportunizar que essas atividades, apesar da falta de

iniciativo dos órgãos públicos, que na maioria das vezes tratam-nas com inferioridade e

dificultam o acesso aos recursos públicos voltados a cultura, a exemplo dos últimos

editais que os mestres populares não sabem preencher os formulários, continuem sendo

feitas no espaço em que as mesmas são produzidas, mostrando para o Outro e para a

própria comunidade que ali há vida, há história e, sobretudo, há saberes. Trata-se de

uma forma de incentivar e reavivar em seus moradores o sentido de identidade e

pertencimento a uma localidade e também garantir o aprendizado dessas atividades,

assim como divulgar e reafirmar a riqueza de suas práticas culturais, como as danças, as

mulheres rendeiras de bilro, o contador de história, e etc.

Por fim, essa pesquisa também foi pensada e realizada em função de sua

possível relevância para os alunos do curso de Licenciatura em Dança, da Geografia e

áreas afins, que pretendem usufruir desse campo fértil da cultura tradicional,

conhecendo e reconhecendo a Multicuturalidade da Vila, um espaço de saberes e

fazeres, de marcas culturais que dialogam constantemente com sua ancestralidade e a

contemporaneidade, através de suas memórias, de suas danças, de seus corpos

brincantes.

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