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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
LEVI OLIVEIRA MATOS
REGIME JURIDICO APLICÁVEL ÀS ENTIDADES RELIGIOSAS DE NATUREZAMISTA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO NO PROCESSO Nº 2013/00147741 – CGJ –
TJ/SP
FORTALEZA
2019
LEVI OLIVEIRA MATOS
REGIME JURIDICO APLICÁVEL ÀS ENTIDADES RELIGIOSAS DE NATUREZAMISTA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO NO PROCESSO Nº 2013/00147741 – CGJ – TJ/SP
Monografia apresentada ao Curso de Direito daUniversidade Federal do Ceará, como requisitoparcial para obtenção do Título de Bacharel emDireito.
Área de concentração: Direito Civil.Orientadora: Profa. Msc. Fernanda CláudiaAraújo da Silva
FORTALEZA
2019
LEVI OLIVEIRA MATOS
REGIME JURIDICO APLICÁVEL ÀS ENTIDADES RELIGIOSAS DE NATUREZAMISTA: UMA ANÁLISE DA DECISÃO NO PROCESSO Nº 2013/00147741 – CGJ – TJ/SP
Monografia apresentada ao Curso de Direitoda Universidade Federal do Ceará, comorequisito parcial para obtenção do Título deBacharel em Direito.
Aprovada em: ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________Profa. Msc. Fernanda Cláudia Araújo da Silva (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________Prof. Dr. William Paiva Marques JúniorUniversidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________Mestrando Caio Rodrigues GonçalvesUniversidade Federal do Ceará (UFC)
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, compreendendo que dele provém toda boa
dádiva, não havendo nenhum comportamento humano que, destituído da ação da sua graça,
possa ser bom.
À mamãe pelos joelhos dobrados diante de Deus, em intercessão pelos meus dias;
pelo seu amor, manifesto em cada conselho, em cada cuidado; pelo encorajamento nos dias
difíceis, em que a fé fraquejou e o coração pediu seu alento; e pelo seu exemplo, como
sonhadora, que, em todo tempo, alimentou meu ânimo durante esta jornada.
Ao papai por sonhar comigo, fazendo das minhas conquistas as suas; pelo amor
abundante e sensível, não recebido na proporção que me foi dado até aqui; pelo orgulho que
não mereço, mas que sempre esteve estampado na sua face a cada pequeno sucesso. Não há
melhor sensação do que a de vê-lo feliz!
Ao Davi, meu irmão, pela alegria imbatível e contagiante; pelo abraço a cada
reencontro neste tempo que passamos distantes. Em todo tempo, a compreensão da minha
condição como referência para você me restaurou o desejo de ser melhor.
À Profa. Fernanda, orientadora deste trabalho, pela confiança depositada em mim
desde o primeiro contato, pela atenção dedicada ao longo deste tempo e pelo valioso
conhecimento compartilhado neste processo de orientação.
Aos demais membros da minha banca examinadora, Prof. William Marques e
Caio Rodrigues pela disponibilidade.
.
“Busquem, pois, em primeiro lugar o Reino de
Deus e a sua justiça, e todas essas coisas serão
acrescentadas a vocês. ” [Mateus 6:33]”
RESUMO
A Lei nº 10.825/03 alterou a redação original do Código Civil de 2002, fazendo constar do rol
das pessoas jurídicas de direito privado a figura da “Organização Religiosa”. O regime
jurídico conferido a estas entidades se caracteriza pela ampla autonomia para a sua criação e
auto-organização, como forma de atendimento ao princípio constitucional da liberdade
religiosa. O legislador civilista, porém, furtou-se de apresentar às organizações religiosas
uma definição, permitindo que surgissem questões que tocam a sua própria caracterização. Na
esteira dessa lacuna, encontra-se a dificuldade enfrentada pelas entidades de caráter religioso
cujos fins extrapolam os limites do seu culto e dos seus rituais litúrgicos de realizarem o seu
registro como pessoa jurídica. Este trabalho, desenvolvido por meio de uma pesquisa
bibliográfica combinada a um estudo de caso, se propõe, pois, a avaliar a questão do regime
jurídico aplicável às entidades religiosas que exercem atividades de natureza mistas a partir da
sua caracterização.
Palavras-chave: Liberdade Religiosa. Laicidade. Organizações religiosas.
ABSTRACT
The Law 10.825/03 amended the original wording of the Civil Code of 2002, making the list
of legal entities of private law the "Religious Organization" figure. The legal regime granted
to these entities is characterized by the broad autonomy for their creation and self-
organization, as a form of service to the constitutional principle of religious freedom. The
civilian legislator, however, shied away from presenting religious organizations with a
definition, allowing questions to arise that touch upon their own characterization. In the wake
of this gap lies the difficulty faced by religious entities whose ends go beyond the limits of
their worship and liturgical rituals. This work, developed through a bibliographical and
casuistic research, proposes, therefore, to evaluate the question of the legal regime applicable
to religious entities that carry out activities of a mixed nature based on their characterization.
Keywords: Religious freedom. Laicity. Religious organizations.
LISTA DEABREVIATURAS
Art. - Artigo
CGJ – Corregedoria Geral de Justiça
TJ/SP – Tribunal de Justiça de São Paulo
Proc. – Processo
CF/88 – Constituição Federal de 1988
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 142 RELIGIÃO E ESTADO: LINHAS HISTÓRICAS E GERAIS DESSA
RELAÇÃO ................................................................................................. 152.1 Modelos de relação Estado-Igreja ............................................................. 182.1.1 Sistemas de identificação.............................................................................. 192.1.2 Sistema de União .......................................................................................... 192.1.3 Modelo de separação .................................................................................... 202.2 Estado Laico ................................................................................................. 213 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA LAICIDADE E DA LIBERDADE
RELIGIOSA NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO .............. 243.1 Brasil-Colônia ............................................................................................. 253.2 Brasil-Império ............................................................................................ 253.3 A proclamação da República .................................................................... 263.4 A Constituição de 1934 .............................................................................. 273.5 A Constituição de 1937 .............................................................................. 293.6 A Constituição de 1946 .............................................................................. 293.7 A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº1/1969 ............... 303.8 A Constituição de 1988 .............................................................................. 304 A DISCIPLINA JURÍDICA DAS ENTIDADES RELIGIOSAS SOB A
SEARA DO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO – UMA ANÁLISE DA
DECISÃO DO PROCESSO Nº 2013/00147741 – CGJ –
TJ/SP ........................................................................................................... 334.1 Criação, organização e regulação estatutária das organizações religiosas 344.2 O problema da definição das organizações religiosas com vista a seus fins 364.2.1 Organização religiosa, associação ou entidade de natureza mista? ...... 374.2.2 Personalidade Jurídica das entidades religiosas no acordo Brasil-Santa Sé . 38
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 41REFERÊNCIAS ................................................................................................ 44ANEXO A - Decisão no processo Nº 2013/00147741 – CGJ – TJ/SP............. 47
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1 INTRODUÇÃO
As entidades de natureza religiosa reclamam constantemente seu espaço na arena
pública, colaborando com seus poderes nos mais diversos âmbitos da sociedade. Assim, o
protagonismo dessas instituições atrai a para si a necessidade de compreensão da sua atuação
à luz do Direito, encarregado de lhe definir os contornos necessários para o seu ideal
desenvolvimento e manifestação. Sob esta compreensão se justifica este trabalho.
A presente pesquisa se propõe, pois, a avaliar a caracterização jurídica das
entidades religiosas cujas atividades extrapolam os limites das ações afeitas diretamente aos
fins precípuos da religião, manifestos em suas ações litúrgicas, de modo a entender o regime
jurídico adequado a essas entidades. Para tanto, far-se-á a análise da decisão no processo Nº
2013/00147741, julgado pela Corregedoria Geral da Justiça, do Tribunal de Justiça de São
Paulo.
O percurso lógico dessas questões centrais, porém, requer a compreensão da
estrutura constitucional e civilista incidente, direta e indiretamente, sobre o tema proposto.
Assim, cumpre analisar-se: a construção histórica dos ideais de laicidade e liberdade religiosa
e a forma como esses princípios se desenvolveram ao longo do trajeto constitucional
brasileiro; bem como de aspectos pais específicos da disciplina das organizações religiosas,
como o tratamento conferido a elas pelo Código Civil de 2002, a sua diferença quanto às
associações e o entendimento dos limites da sua atividade.
Desta forma, os capítulos segundo e terceiro tratarão das questões afeitas à
construção dos princípios da laicidade e da liberdade religiosa, compreendendo-a em uma
perspectiva histórica e geográfica mais abrangente, em um primeiro momento, para, então,
passar-se a análise da história constitucional brasileira.
Em seguida, com base na decisão no processo Nº 2013/00147741 – CGJ – TJ/SP,
passar-se-á ao enfrentamento das questões afeitas à caracterização das entidades religiosas,
bem como do regime jurídico adequado a elas.
Para tanto, utilizar-se-á de uma pesquisa bibliográfica combinada a análise de
caso, que terá por objeto a decisão citada acima.
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2 RELIGIÃO E ESTADO: LINHAS HISTÓRICAS E GERAIS DESSA RELAÇÃO
A religião como sendo um traço histórico da cultura humana, esteve quase sempre
atrelada, assumindo diferentes feições, ao desenvolvimento das civilizações, influenciando a
construção das coletividades no que tange à sua moral e às suas formas de se organizarem
social e politicamente. A religião, portanto, sempre esteve atrelada às estruturas de poder.
(AMBRÓSIO, 2011, p.22)
As idades Primitiva e Antiga conheceram um modelo de relacionamento entre fé e
esfera pública que confundia os âmbitos de atuação entre os dois polos. Em suas formações
sociais o papel do elemento religioso, sob sua feição sobrenatural, condicionava o exercício
do poder, as formas de estruturação social, além, claro, da cultura, de modo a relacionar
diretamente os âmbitos do sagrado e do secular (RAMOS; ROCHA, 2013, p. 166). Tomando
por objeto os casos grego e romano, Fustel de Coulanges (1961, p. 36 e 37) ressalta a
influência do elemento religioso sobre a formação de suas instituições:
Mas, à frente dessas instituições e dessas leis, colocai as crenças, e os fatos tornar-se-ão claros e sua explicação tornar-se-á evidente. Se, considerando as primeiras idadesdessa raça, isto é, a época em que fundou suas instituições, observamos a ideia quefazia então da criatura humana, da vida, da morte, da segunda existência, do princípiodivino, percebe-se íntima relação entre essas opiniões e as regras antigas do direitoprivado, entre os ritos que se originaram dessas crenças e as instituições políticas.(...)A comparação das crenças e das leis mostra que a família grega e romana foiconstituída por uma religião primitiva, que igualmente estabeleceu o casamento e aautoridade paterna, fixando as linhas de parentesco, consagrando o direito depropriedade e de sucessão. Essa mesma religião, depois de estabelecer e formar afamília, instituiu uma associação maior, a cidade, e predominou sobre ela como o faziana família. Dela se originaram todas as instituições, como todo o direito privado dosantigos. Da religião a cidade tirou seus princípios, regras, costumes e magistraturas.
No que tange, pois, à relação entre o elemento religioso e o secular, em especial
no que dizem respeito ao papel do Estado, essas civilizações não chegaram a gozar de ampla
liberdade individual. O Estado era onipotente e limitava as liberdades dos seus seguidores.
A consolidação da influência do Cristianismo, cuja ascensão se deu ainda sobre a
existência do império romano, trouxe consigo mudanças consideráveis na estrutura das
sociedades, em especial no relacionamento entre as esferas do sagrado e do Estado. Tais
transformações não significaram, porém, um avanço em termos de desenvolvimento do ideal
de liberdade religiosa.
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A consolidação da Igreja Católica como a instituição de maior poder social
durante a Idade Média permitiu-lhe a detenção do monopólio do conhecimento e da fé. A
religião católica imbricava uma espécie de unificação cultural de gênese claramente religiosa.
Nesse contexto, aqueles que se opunham à fé professada pela igreja eram perseguidos e
punidos (RAMOS; ROCHA, 2013, p. 167).
O fim da Idade Média representou, no entanto, a emergência de valores
disruptivos em relação à cultura celebrada até este período, em que poder da Igreja Católica
reinou amplamente. A Renascença desenvolvida entre os séculos XIV e XV primou pelo
desenvolvimento da ciência como materialização do ideal de racionalidade e promoveu uma
descrença em relação aos ensinamentos religiosos e às autoridades que por sobre os valores da
religião fincavam a sua legitimidade (RAMOS; ROCHA, 2013, p. 167).
Nessa toada, aliado ao desenvolvimento dos estados nacionais, a Reforma
Protestante exerceu fundamental papel na reconfiguração da relação entre religião e Estado. A
sociedade europeia no princípio da Idade Moderna compartilhava da ideia de que a coesão
política estatal demandava uma unidade religiosa. Na contramão dessa perspectiva,
encontrava-se a Reforma cujos preceitos, conforme aponta TERAOKA (2010, p. 19)
baseavam-se em três grandes premissas: a autoridade suprema das escrituras, a salvação pela
fé – e não pelas obras – e o sacerdócio universal de todos os crentes. Este último preceito
revelou-se como valioso nesse processo de realocação da esfera religiosa na sua relação com
o secular, uma vez que defendia a responsabilidade pessoal do crente em manter um
relacionamento direto com Deus e a divulgação do evangelho, de modo que o emanciparia da
absoluta autoridade dos líderes da igreja.
A divisão da Igreja Católica operada por meio da Reforma Protestante e o ulterior
desenvolvimento das confissões religiosas que dela se subdividiram, permitiram o
enfraquecimento do laço umbilical que havia entre o Estado e a igreja no momento precedente
(STARK, 1996, p. 15).
Essa ruptura, embora tenha servido como um ponto de partida da ideia de
liberdade religiosa, uma vez que permitia a emergência de um pensamento religioso
desenvolvido à margem dos limites estabelecidos pela Igreja Católica, criou um ambiente em
que deveriam coexistir diferentes crenças de forma pacífica (TERAOKA, 2010, p.19), o que,
na prática, não aconteceu em um primeiro momento.
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A primeira grande tentativa de solução para a pacificação dos conflitos religiosos
emergentes da nova situação pós-reforma na Europa veio por meio da Paz de Augsburgo, em
1555. O acordo consagrou o chamado “cuiús régio, eius religio”, princípio que incorporou a
ideia acordada de que cada príncipe ou príncipe-bispo das terras germânicas deveriam ditar a
religião a ser seguida por seus súditos (TERAOKA, 2010, p.19).
A Paz de Augsburgo seguiu a ideia até então vigente de que o coeso
funcionamento do Estado dependia da existência de um território unificado na sua fé. Assim,
embora o acordo tenha contribuído para a coexistência entre os Estados, em nada melhorou a
situação da liberdade de crença e de consciência dos indivíduos, uma vez que estas eram
limitadas pela escolha do Príncipe, mantendo o pré-existente entrelaçamento entre Estado e
religião (STARK, 1996, p. 11).
Terminada a Guerra dos Trinta anos, com a Paz de Westfália, foi elaborado o
chamado Instrumentum Pacis Osnabruguense de 1648, que avançou no tratamento da questão
da liberdade religiosa. Se através da Paz de Augsburgo consignou-se que caberia ao príncipe
territorial o papel de definir a religião a ser seguida aos seus súditos, por meio desse novo
instrumento, assegurou-se que os católicos, os luteranos e os reformados, embora não
professassem a fé do líder local, poderiam emigrar ou mesmo serem tolerados, caso se
mantivesse no território. O culto privado também admitiu certa ampliação, sendo permitidos
aos crentes que cultuassem conjuntamente com outras famílias, sob a assistência de ministros
de fora do território (STARK, 1996, pp. 11-12).
Apesar do estado de tolerância inaugurado com Westfália representar uma
evolução com relação ao modelo anterior, que se valia de um mecanismo de autoridade como
saída para a gestão dos conflitos religiosos, não havia nele ainda uma compreensão do Estado
como sendo neutro. Nesse sentido, pontua STARK (1996, p. 20):
La tolerância debía regir la relación del Estado respecto de los creyentes de otrasconfesiones. Un Estado vinculado a la verdad propuesta por una religión adquiria laobligación de ser tolerante hacia los membros de otras confesiones. La tolerânciaEstatal presupone, pues, un sistema confessional, es decir, um posicionamento jurídicodel Estado respecto a la religión.
A tolerância como marca dessa relação entre Estado e esfera religiosa conduz,
pois, a um comportamento meramente negativo do universo secular, caracterizado por uma
concessão da maioria religiosa para com a minoria. A liberdade religiosa, no entanto,
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demanda para além das abstenções, um comportamento positivo do Estado que deve tomar
por premissa a condição do indivíduo como sujeito de direito, capaz de escolher a sua
confissão, tendo por garantia que receberá tratamento em par de igualdades com os demais
(JANÉ, 2014, p. 20).
A liberdade religiosa tomada sob uma perspectiva mais ampla se deu apenas após
a revolução americana. Ao longo de um processo, os Estados Unidos superou a ideia de mera
tolerância, avançando ao trato da questão religiosa sob a perspectiva de uma verdadeira
liberdade (TERAOKA, 2010, p.22).
Em uma clara ruptura com o modelo de tolerância religiosa ainda vigente na
Europa àquele período, a Primeira Emenda americana dispôs:
O Congresso não deve fazer leis a respeito de se estabelecer religiões, ou proibir o seulivre exercício, ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre odireito das pessoas de se reunirem pacificamente, ou de fazerem pedidos ao governopara que sejam feitas reparações por ofensas.
Assim, consagrou-se a ideia de um Estado neutro, no qual o elemento legitimador
do poder deixava de ser o elemento religioso, dando lugar ao povo, ao qual se estenderia
amplamente o ideal de liberdade religiosa.
Mais tarde, a Revolução Francesa conduziu o país à consolidação da liberdade
religiosa, incorporada no texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Conforme explica BONAVIDES (2013 pp.164-165), o processo revolucionário francês
subverteu a ideia de que o poder constituinte provinha da figura divina, aquela que legitimava
a atuação de seus escolhidos – encarnados outrora na figura dos monarcas – atribuindo esse
poder a nação ou ao povo.
Esse longo percurso histórico, tratado de forma breve aqui, demonstra as fases por
quais passou o relacionamento da questão religiosa com o secular, em especial com a
formação do Estado, desde a Antiguidade até aqui. Viu-se que a história observou diferentes
graus de relacionamento, passando por uma completa confusão entre os dois polos,
atravessando um período marcado pela mera tolerância, até a consagração de liberdade
religiosa, firmada sob a égide de um Estado laico.
2.1 Modelos de relação Estado-Igreja
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Historicamente é possível se observar diferentes formas e graus de relação entre a
esfera religiosa e aquela que compete ao Estado. Atendendo a uma dinâmica de aproximação
e distanciamento, a doutrina costuma traçar características de diferentes sistemas interação
entre o público – materializado na figura do Estado – e o religioso.
2.1.1 Sistema de identificação
Neste modelo, há a caracterização de um Estado confessional (SERVEJAN, 2012,
p. 40), que assume uma religião como oficial. Com maior ou menor interação, essas duas
esferas se ligam, (GALLEGO, 2010, p.122), produzindo uma confusão entre as esferas
religiosa e do Estado.
A medida dessas relações caracteriza uma subdivisão nos modelos de
identificação. Na teocracia, por exemplo, há uma sobreposição do aspecto religioso por sobre
o político. Os mandamentos religiosos assumem aqui caráter de normas jurídicas, em uma
flagrante mescla entre as duas esferas. (PRIETO apud GALLEGO, 2010, p. 123). Conforme
explica Scampini (1974, p. 374):
No cume está a autoridade do Papa, universal sob todos os aspectos, por estender-senão só a todos os homens mas também a todas as coisas, quer sejam de caráterespiritual ou temporal. (...)Sem fazer uma clara distinção entre a esfera natural e sobrenatural e fundamentando-se no caráter eminente e supremo das finalidades de igreja, pretendiam considerar oImperador simplesmente como vassalo mais digno e elevado do Papa.
No cesaropapismo, por outro lado, havia uma inversão na primazia do poder na
relação simbiótica entre igreja e Estado em relação ao modelo teocrático (SERVEJAN, 2012,
p. 41). Conforme explica SCAMPINI (1974, p. 374), havia uma tentativa de unificação das
duas esferas na figura do Imperador.
2.1.2 Sistema de união
Esse segundo modelo de relação entre igreja e Estado reconhece uma distinção
entre as duas esferas, sem que, no entanto, haja uma separação institucional entre ambas,
conforme explica FERREIRA FILHO (2002, p. 85), que dará o nome de “modelo de aliança”
a essa conjuntura.
O Estado confere apoio à igreja e declara a sua fé, resguardando para si
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determinadas prerrogativas que se inserem inicialmente no âmbito das religiões (LANARES
apud SEVERJAN, 2012, p. 42). Sob esse modelo, constituiu-se o Regalismo, que permitia a
interferência do Estado no seio da igreja, sacramentados em institutos político-jurídicos tais
como o padroado, o beneplácito e os recursos (SCAMPINI, 1974, p.373).
Conforme pontua MIRANDA (2014, p. 6) as monarquias absolutas vigentes entre
os séculos XVII e XVIII foram regalistas, lembrando ainda que, mesmo após o surgimento
das monarquias constitucionais no século XIX, o referido instituto continuou a existir.
2.1.3 Modelo de separação
GALLEGO (2010, p.124) aponta como características desse sistema o seu caráter
não confessional, não havendo, pois, o estabelecimento de uma religião como sendo a oficial
do Estado; o funcionamento das confissões religiosas como pessoas jurídicas de direito
privado; e, por fim, o reconhecimento de ampla liberdade religiosa. Seguindo traços
semelhantes, MIRANDA (2014, p. 6) acrescenta a abstenção por parte do Estado no
funcionamento interno das religiões, mesmo passo em que prevê um afastamento destas em
relação ao contraditório político.
A história tratou de consagrar dois grandes – e diferentes – modelos de separação
entre a esfera religiosa e a do Estado. O primeiro caso decorre da experiência norte-
americana. A composição dos Estados Unidos compreendia uma agregação de diferentes e
influentes experiências confessionais. Embora houvesse uma maioria fiel ao protestantismo,
conforme explica FERREIRA FILHO (2002, p. 87), não se podia falar em um credo absoluto,
muito em virtude da existência de uma minoria católica, provenientes muitas vezes de uma
emigração forçada pelas perseguições.
Esse contexto levou à vedação, constante já da Primeira Emenda americana, de
que o Estado pudesse estabelecer alguma lei que instituísse ou proibisse culto de religião.
Posteriormente, com o advento da Décima Quarta Emenda, tais direitos ganharam mais força
com a proibição para que o Estado privasse qualquer pessoa da vida, da liberdade, ou
propriedade sem determinação judicial, tendo ainda que assegurar a devida proteção às
pessoas sob o crivo do Direito (GALLEGO, 2010, p. 124). Tais preceitos consagram a ideia
de separação entre Estado e religião, vigentes até hoje nos Estados Unidos, impedindo que ali
haja o favorecimento de uma confissão em detrimento das demais, sem que haja, no entanto,
absoluta vedação à comunicação entre as duas esferas em contextos específicos.
O modelo Francês de separação, por outro lado, tratou de estabelecer um
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distanciamento maior entre Estado e igreja. Conforme explica FERREIRA FILHO (2002, p.
87), sob esta visão, as instituições religiosas não deveriam ser reconhecidas pelo Estado e suas
simbologias deveriam ser evitadas na esfera pública. Desta forma, ao fenômeno religioso,
caberia sua manifestação estritamente na esfera privada.
2.2 Estado laico
A pretendida neutralidade do Estado no tocante a matéria religiosa, conforme
ponderam Pierre Caye e Dominique Terré (apud GALLEGO 2010, p. 113), não se perfaz
apenas com a promoção por parte do Estado de um ambiente propício à coexistência pacífica
entre as confissões religiosas, mas também se caracteriza pela rejeição por parte do Estado de
firmar a sua legitimidade por sobre algo que não ele próprio. Assim, a neutralidade que
condiciona a laicidade alça o Estado a uma condição de prevalência sobre o religioso, mesmo
nas situações de mútua cooperação.
Sob condições ideais, a neutralidade do Estado traz consigo ainda a ideia de
separação da esfera religiosa, o que implicaria em reservar a esfera pública dos caracteres
imanentes aos seios das religiões, alocando-as na esfera privada da consciência de seus
participantes. (GALLEGO, 2010, p. 114).
Os limites dessa relação entre o Estado e as confissões religiosas, sob o prisma da
laicidade, não são, no entanto, simples de serem tecidos na prática. Tomando como base a
dificuldade de se compreender a concretização da laicidade como uma realidade estanque,
Marco Huaco (2010, pp. 11 e 12) estabelece “indicadores de laicidade”, a partir dos quais se
poderia graduar o desenvolvimento da laicidade e identificar suas peculiaridades em
diferentes Estados. Para ele, então:
El contenido de la laicidad como principio jurídico, a nuestro entender vieneconformada por los siguientes elementos esenciales: a) la separación orgánica y defunciones así como la autonomía administrativa recíproca entre agrupacionesreligiosas y Estado, b) el fundamento secular de la legitimidad y de los fines y valoresúltimos del Estado y del Gobierno, c) la inspiración secular de las normas legales ypolíticas públicas estatales, d) la neutralidad o imparcialidad valorativa ante lasdiferentes cosmovisiones ideológicas, filosóficas y religiosas existentes en la sociedad(neutralidad que no significa vaciedad valorativa, sino imparcialidad hacia lasdiferentes creencias), y e) la inconcurrencia del Estado en manifestaciones de fe oconvicción ideológica junto con los individuos. La mayor o menor presencia de estascaracterísticas –adecuadamente medidas a través de indicadores de laicidad a serelaborados todavía por las ciencias sociales- nos permitiría encontrar grados delaicidad en los Estados bajo estudio así como las peculiaridades de las etapas de susrespectivos desarrollos históricos.
BLANCARTE (2008, pp. 27 e 28) corrobora com essa ideia da existência de
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diferentes graus de concretização da laicidade, pontuando que esta não se pode compreender a
partir de uma conceituação estática, mas deve ser entendida como um processo. Para ele, o
desenvolvimento histórico a partir do qual se deu a separação da esfera pública do Estado do
universo religioso condiciona a existência de uma maior ou menor zona de interseção entre a
atuação de ambos. Tomando por base essas premissas, explica:
De la misma manera que no se puede afirmar la existencia de una sociedadabsolutamente democrática, tampoco existe em la realidad um sistema político que seatotal y definitivamente laico. (...) De esa manera, por sus propias trayectorias históricas los países de implantaciónprotestante son bastante laicos, a pesar de tener Iglesias nacionales u oficiales. Por suparte, allí donde las Iglesias ortodoxas están arraigadas, como Grécia o Rússia, elestado es menos laico, ya que depende todavia em buena medida de la legitimidadproveniente da la instituición religiosa. El caso de los países mayoritariamentecatólicos presenta uma terceira variante, en la que generalmente se dan diversosgrados de separación y uma relación tirante entre el Estado, que busca uma autonomíade gestón y la Iglesia mayoritaria, que pretende moldear la política pública.
Levando-se em conta, pois, esse contexto, ponderando ainda que Estado e Igreja
atuam sob uma mesma realidade, tem-se por inevitável o relacionamento entre as duas esferas
quando se trata da realidade objetivamente considerada, havendo em dado momento pontos de
interseção entre os seus objetos de ação, apesar da separação e neutralidade apregoada por um
estado de laicidade ideal.
Sob essa realidade, emergem situações diversas que materializam o conflito entre
as atuações do Estado e das Confissões religiosas. Para a devida constatação, serve a
lembrança dos debates que dizem respeito às questões relacionadas ao aborto, a utilização de
células-tronco, questões de gênero, etc. A partir dessa compreensão, fazem-se, então,
necessárias importantes ponderações no que diz respeito ao papel do Estado nessa relação,
amparados pelo arcabouço da laicidade.
Neste ponto, cumpre-nos diferenciar a laicidade do laicismo que, embora se
constitua um conceito próximo, derivado do mesmo radical e também incidente sobre a
relação entre o Estado e a Igreja, revela-se como um modelo distinto de tratamento da questão
religiosa.
Diferenciando os dois conceitos, GALLEGO (2010, p. 119) explica que o Estado
laico, comprometido com a laicidade não nega espaço ao fenômeno religioso, antes, o
reconhece como um fato público, sem deixar de lado, no entanto, a distinção entre as duas
esferas. Por outro lado, explica o referido autor, que o Estado condicionado pelo laicismo se
aproximaria da ideia de um Estado ateu, destituindo as confissões religiosas da sua autonomia
social. Nesse sentido, posiciona-se SARLET; MARINONI; MITIDIERO (2017, p. 559), para
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quem:
[...] há que se distinguir entre laicidade e separação (no sentido de independência)entre Estado e igreja (e comunidades religiosas em geral) de laicismo e de umapostura de menosprezo e desconsideração do fenômeno religioso (das religiões eentidades religiosas) por parte do Estado, pois uma coisa é o Estado não professarnenhuma religião e não assumir fins religiosos, mantendo uma posição equidistante eneutra, outra coisa é assumir uma posição hostil em relação à religião e mesmoproibitiva de religiosidade.
Sob uma perspectiva laica, portanto, o Estado deve assumir perante o fenômeno
religioso uma dupla postura. Sob um aspecto, abstendo-se de interferir no exercício da
liberdade religiosa dos indivíduos; e, por outro lado, como promotor e garantidor do exercício
dessa liberdade. De modo algum, pois, fundado por sobre o prisma da laicidade, deve o
Estado comportar-se em face do fenômeno religioso com uma postura hostil, rejeitando-lhe de
forma absoluta a sua manifestação na esfera pública. Nesta esteira, são oportunas as palavras
de André Ramos Tavares (2012, p. 637), para quem:
Há uma dimensão positiva da liberdade de religião, pois o Estado deve assegurar apermanência de um espaço para o desenvolvimento adequado de todas confissõesreligiosas. Cumpre ao Estado empreender esforços e zelar para que haja essa condiçãoestrutural propícia ao desenvolvimento pluralístico das convicções pessoais sobrereligião e fé.
Na esteira das concepções de laicidades aqui expostas, MAGACHO (2010)
pontua que não cumpre ao Estado a tarefa de concretizar os padrões éticos construídos pelas
religiões; de outra banda, no entanto, não deve ser vedada aos seguimentos religiosos a sua
participação na esfera pública, sob pena de constituir-se aí uma ofensa ao Estado democrático
de Direito.
Conforme coloca MILANI (2014, p.99), no seio da sociedade desenvolvem-se
questões que se relacionam a aspectos da moralidade, a respeito dos quais não se pode
desprezar a perspectiva religiosa. Assim, conclui a autora, deve-se assegurar à religião, de
modo geral, não somente autonomia para atuar na esfera pública, mas também o gozo da
guarida do Estado do seu espaço, a partir do seu reconhecimento como sendo um fato social.
24
3 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA LAICIDADE E DA LIBERDADE RELIGIOSA NO
CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO
O desenvolvimento dos conceitos de laicidade e liberdade religiosa nas
democracias ocidentais esteve atrelado a um processo transformação da relação de
legitimação do poder ao longo da história. (CIROLINE, 2012, pp. 17 e 18). A lógica da
soberania, tomada sob uma perspectiva teocrática, reinou em uma era pré-constitucional,
associando as figuras dos detentores do poder à esfera do sagrado.
Dando sequência a um processo de desmistificação da figura do Estado como
sendo portador de um caráter divino – outrora concentrado na figura do Soberano – o Estado
liberal incorporou a ideia de controle das atuações dos detentores de poder, impondo a estes
freios em face dos direitos individuais. (CIROLINE, 2012, p. 19).
Nessa toada, o Estado absorveu a condição de garantidor das liberdades dos
indivíduos, cujos vetores deveriam basear-se na ideia de soberania popular, imbuída dos
conceitos relacionados aos direitos fundamentais. O desenvolvimento da laicidade no ocidente
acompanha, pois, a transformação do elemento legitimador do poder neste lado do globo. A
soberania outrora fundamentada em raízes religiosas passa a ter por base o povo
(BLANCARTE, 2008, p. 19). Esse contexto abre as portas para a ideia de laicidade, que
passa a integrar como fenômeno os ordenamentos constitucionais, legando a estes
documentos os ideais de igualdade, liberdade, tolerância e pluralismo.
Logo, vê-se que historicamente o desenvolvimento da laicidade e, por
consequência, da liberdade religiosa guarda íntima relação com as transformações das
estruturas dos Estados e das formas de aquisição e legitimação de poder.
A história brasileira caminha na esteira dessas relações, de forma que o conceito
de laicidade foi se desenvolvendo na medida em que os sistemas e as formas de governo
sofriam mutações no país (CIROLINE, 2012, p. 26), modulando os graus de liberdade
religiosa. As relações entre Estado e Religião foram tomando contornos diversos ao longo dos
tempos, traçando um caminho, registrado nas Cartas Políticas do Estado brasileiro, que partiu
da confessionalidade e alcançou diferentes patamares de laicidade e liberdade religiosa até
encontrar-se no estágio atual.
Nesse contexto, faz-se conveniente o estudo do percurso histórico do fenômeno
religioso no Brasil, tomando-o sob a perspectiva do ordenamento jurídico pátrio, em cotejo
com os diferentes períodos da história brasileira.
25
3.1 Brasil-Colônia
O período colonial brasileiro foi marcado pela preponderância do domínio
português sobre o território brasileiro e o funcionamento dele. A regência da colônia se dava
com a conjugação dos interesses religiosos e econômicos da coroa portuguesa
(GONÇALVES, 2015, pp. 461 e 462).
A questão da unidade religiosa destacava-se dentre os interesses dos
colonizadores. Gilberto Freyre (2003, p. 91) pontua que a homogeneidade racial não atraia
para si as preocupações portuguesas, desde que a fé católica fosse comum entre os colonos.
A preocupação da Coroa em manter a unidade de fé no território da colônia
destaca a aproximação entre a igreja e o Estado, que perdurou por todo o período colonial
brasileiro. Tanto era forte essa relação que, nessa época, medidas de proteção e maximização
do aspecto religioso foram perpetradas no campo político, alçando o catolicismo à condição
religião oficial e reprimindo o desenvolvimento de religiões concorrentes no país.
(GONÇALVES, 2015, p. 463).
A simbiose entre Estado e Igreja produziu efeitos de longo alcance nas esferas de
atuação administrativa e jurídica do Estado. O elemento jurídico de maior força nessa relação
durante o período colonial foi o direito de padroado, através do qual o soberano português era
tido como patrono da igreja. Com base nesse regime, o líder político se imiscuía em
determinadas diretrizes da igreja – tais como a cobrança dos dízimos e rendas eclesiásticas –
em troca do oferecimento de sua parte do sustento da igreja e financiamento do seu
desenvolvimento (GONÇALVES, 2015, p. 466). Para além dos efeitos sobre a administração
da colônia, essa relação desenvolveu-se de tal modo que os preceitos da religião católica
serviram de norte para o funcionamento de tribunais eclesiásticos. Ou seja, a harmonia entre
fé e política no Brasil garantiam mútuas participações entre Coroa e Igreja Católica em suas
respectivas áreas.
3.2 Brasil Império
As primeiras mudanças na relação entre Estado e Igreja começam a tomar forma
após a vinda da família real ao Brasil. Em 1808, D. João celebrou com a Inglaterra o Tratado
da Amizade, Comércio e Navegação, assumindo por meio do documento uma relativa
garantia de tolerância à prática de cultos dos ingleses, ainda que professassem fé distinta dos
católicos (GONÇALVES, 2015, p 469). Essa previsão foi significativa, mas limitada, haja
26
vista que, embora se pudessem realizar cultos não católicos – e até construir templos para
esses cultos – havia restrições a essas manifestações religiosas e até penalidades àqueles
criticassem a fé católica.
De todo modo, a partir do Tratado há o estabelecimento de um espírito de
tolerância religiosa, que já configuraria uma mudança em relação ao que se viu no período
colonial no que diz respeito ao exercício da fé não católica em terras brasileiras, e que viria a
influenciar a Lei Fundamental do Império, posteriormente outorgada.
A tolerância religiosa presente na Constituição de 1824, no entanto, não pode ser
confundida com liberdade. Nesse sentido se coloca José Afonso da Silva (2014, p. 253)
lembrando que, embora os participantes de religiões não católicas tivessem o direito de
realizarem seus cultos domésticos e, conforme previsões constitucionais, não pudessem ser
perseguidos por motivos de Religião, suas manifestações sofriam limitações e não gozavam
aqueles de determinadas prerrogativas asseguradas aos católicos. Era o que restava claro das
disposições constitucionais que estabeleciam: a religião católica como sendo oficial do
império; a exclusividade dos católicos para serem nomeados Deputados e Conselheiros; a
proibição de que os locais de culto das demais religiões denotassem externamente sua
natureza; e o dever de respeito à religião do Estado e a Moral Pública.
A caracterização desse período no que tange à relação da ordem jurídica com a
religiosa perpassa, portanto, pela constatação de que: o Estado obedecia a um regime
confessional, exposto na consagração da religião católica como oficial do império; o respeito
à atuação de religiões não católicas passou a existir em determinada medida; e que, embora
houvesse tolerância à prática de cultos de outras religiões, a publicidade era atributo exclusivo
do catolicismo.
3.3 A proclamação da República
A relação entre Estado e Igreja experimentou durante o período final do Império
profundo desgaste (SCAMPINI, 1974, p.375). A República, dessa forma, trouxe consigo a
consolidação da separação entre Estado e Igreja (SCAMPINI, 1974, p. 165), perpetrando
através do Decreto nº 119-A um Estado Laico e não confessional (BASTOS, 1999, p. 191),
que representou a mudança no tratamento conferido à questão religiosa no ordenamento
jurídico pátrio.
O referido Decreto, promulgado em 07 de janeiro de 1890, durante o governo
Provisório da República brasileira, estabeleceu oficialmente a separação entre o Estado e a
Igreja e, por conseguinte, conforme assevera José Afonso da Silva (2014, p.253), deu cabo à
27
liberdade religiosa.
Dessa forma, o ato normativo tratou de forma incisiva das situações relacionadas
ao exercício da liberdade religiosa, tendo como pontos fundamentais: a proibição do
estabelecimento de uma religião oficial por parte do Estado (art. 1º); a permissão para que
todas as confissões religiosas exercessem seus cultos, sem que sofressem limitações em seus
atos públicos e particulares (art. 2º); e a extinção do regime do padroado vigente até então
(art. 4º).
A primeira constituição da República foi promulgada no ano seguinte ao Decreto
nº 119-A, em 1891, constitucionalizando o ideal de laicidade antecipado por aquele
documento (GONÇALVES, 2015, p 472). Dentre as principais disposições constantes do seu
texto, encontravam-se: a vedação para que União e Estados estabelecessem, subvencionassem
ou embaraçassem o exercício de cultos religiosos (art. 11, §2º); a previsão de que todos os
indivíduos e confissões religiosas poderiam exercer pública e livremente o seu culto,
associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum
(§3º); o reconhecimento apenas do casamento civil - e não mais do religioso (§4º); a mudança
na natureza jurídica dos cemitérios, que foram secularizados e passaram a ser administrados
pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos
ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendessem a moral pública e as leis. (§5º); o
ensino público não poderia ser calcado de elementos de cunho religioso, deveria ser laico
(§6º); a vedação a existência de subvenção oficial, de relações de dependência ou aliança com
o Governo da União, ou o dos Estados (§7º); a proibição da escusa de cumprimento dos
deveres cívicos ou da titularidade de direitos civis e políticos, por motivo de crença (§28º); a
previsão de que a alegação de motivo religioso para o não cumprimento de ônus imposto por
leis da República aos cidadãos, importaria em perda dos direitos políticos (§29º).
A separação entre Estado e Igreja promovida pela Constituição de 1891 foi
mantida nas constituições que a sucederam, recebendo as questões tangentes a essa relação
mudanças graduais, mas que, em essência, respeitaram aos valores inseridos nessa Carta
(ÁVILA, 2010, p. 46).
3.4 A Constituição de 1934
A Constituição de 1934 representou, no que tange à temática religiosa, uma
espécie de evolução da ideia de laicidade presente no Texto Constitucional precedente, que
fora marcado pelo laicismo, com a consagração de um distanciamento rígido entre Igreja e
Estado. Sob a égide do novo texto, passou-se a um modelo de Estado laico positivo, que
28
garantisse efetivamente o exercício da liberdade religiosa (GONÇALVES, 2015, p. 473).
O Texto Constitucional de 1934 manteve, pois, o espírito laico que orientou a
primeira constituição republicana, tanto que previu a separação entre Estado e Igreja (art. 17)
e reafirmou a liberdade de consciência e de crença (art. 113, §5º). Por outro lado, procurando
distanciar-se do laicismo que também condicionou a Carta antecedente, promoveu mudanças
em relação a esta, estabelecendo elementos que aproximavam o Estado da Igreja, permitindo
que ambos cooperassem em situações específicas (GONÇALVES, 2015, p 474) (SCAMPINI,
1974, p.195).
Símbolo da ideia de retorno do religioso à arena pública, presente na Constituição
de 1934, foi o seu preâmbulo, em cujo texto contém a menção à figura de Deus, em quem os
representantes do povo brasileiro – ali postos na condição de constituintes – punham a sua
confiança.
Uma segunda inovação na temática religiosa trazida pela Constituição de 1934 foi
a ressalva aposta à vedação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja por parte
da União ou dos Estados. O texto da constituição precedente estabelecia tal vedação, mas não
previa a ressalva trazida na nova Carta, que relativizava a referida disposição quando da
existência de interesse coletivo (art.17, III).
A questão do casamento também foi modificada, com o reconhecimento do
casamento religioso, cujo rito não contrariasse a ordem pública ou os bons costumes,
acrescido ao novo texto constitucional, ao qual foram estendidos os mesmos efeitos do civil
(art. 146).
Seguindo a mesma tônica, a Carta Constitucional de 1934 previu a figura da
assistência religiosa, cabível, segundo o seu texto nas expedições militares, nas penitenciárias
e em outros estabelecimentos oficiais, desde que não houvesse ônus aos cofres públicos, nem
constrangimento ou coação aos assistidos (art. 113, §6º).
Não menos relevante, a introdução do ensino religioso como matéria de ensino
facultativa nas instituições públicas também surge no texto da constituição de 1934 como um
sinal de tentativa da superação do laicismo que condicionara a Carta de 1937. (SCAMPINI,
1974, pp.195 e 196).
Ocorre que a vigência da Constituição de 1934 não gozou de longo alcance, sendo
substituída três anos após a sua promulgação pelo texto de 1937, outorgado em 10 de
novembro daquele ano, durante o período de campanha eleitoral por Getúlio Vargas – então
chefe do Governo brasileiro – sob a justificativa de que far-se-ia necessária uma nova
constituição para conter o avanço do comunismo no país, conforme se depreende da leitura do
29
preâmbulo da nova constituição.
3.5 A Constituição de 1937
A ordem constitucional inaugurada com a Carta Política de 1937 representou
também uma mudança no tratamento da temática religiosa em relação ao que se viu na
Constituição de 1934. Esta havia promovido no campo jurídico um cenário propício à atuação
por colaboração entre Estado e religião. Como já se falou no presente trabalho, o Texto
Constitucional de 1934 expirava um modelo de laicidade positiva, em que o Estado agia como
uma espécie de promotor da liberdade. A Constituição de 1937, por sua vez, retornou ao
laicismo presente em 1891, abandonando, pois, a laicidade por atenção da Carta de 1934.
(GONÇALVES, 2015, p. 476) (SCAMPINI, 1974, p.204).
A explicitação desse retorno ao laicismo se mostra, por exemplo, da redação do
art. 32, alínea “b” da Constituição de 1937 que estabeleceu: “É vedado à União, e aos
municípios estabelecerem e subvencionarem o exercício dos cultos religiosos”, sem que
constasse do texto a cláusula de exceção presente na Carta de 1934, que dispunha sobre a
possibilidade de colaboração recíproca entre o Estado e as confissões religiosas quando o
interesse coletivo autorizasse (art. 17, III), mesmo frente à referida vedação. Além disso, a
Carta de 1937 silenciou sobre a assistência religiosa às forças armadas, hospitais,
penitenciárias e estabelecimentos de internação coletiva; à representação diplomática à Santa
Sé; e a liberdade de consciência e de crença, referindo-se apenas à liberdade de culto,
submetendo-a, ainda, aos limites do “direito comum”, para além “das exigências do bem
comum e dos bons costumes”, já previstos em nas Cartas Políticas precedentes.
3.6 A Constituição de 1946
A Constituição de 1946 congregou em si fortes tendências democráticas. Em
território nacional – com a superação do regime implantado por Getúlio Vargas – e também
internacional – com o fim da II Guerra Mundial – o contexto histórico pedia a superação
modelos centralistas e a emergência de valores na ordem jurídica que estivessem atrelados aos
conceitos de democracia e dignidade humana.
Nessa toada, a Constituição de 1946 conferiu tratamento mais amplo que o das
constituições pretéritas à questão religiosa (VIEIRA; NETO, 2018, p. 240), embora tenha
retomado em grande medida os preceitos constantes da Constituição de 1934. Assim,
assegurou a liberdade de culto e de consciência, bem como o livre exercício dos cultos
religiosos, embora que ainda sujeitando-os ao respeito aos bons costumes e à ordem pública
30
(§7º do art. 141); conferiu o caráter secular aos cemitérios e que seriam geridos pelas
autoridades municipais, embora tenha previsto que as associações religiosas poderiam manter
cemitérios particulares (§10º do art. 141); fez menção a prestação de assistência religiosa às
forças armadas e, quando solicitada pelos interessados ou seus representantes legais, nos
estabelecimentos de internação coletiva (§9º do art. 141); novamente previu-se a extensão dos
efeitos civis ao casamento religioso (art. 146); e havia ainda a menção ao ensino religioso,
cuja matrícula seria facultativa.
Dentre as inovações trazidas pela Carta de 1946, estava a previsão da escusa de
consciência. Alternativamente à obrigação principal não cumprida em razão de convicção
religiosa, filosófica ou política arguida pelo interessado, a lei poderia estabelecer outras
obrigações (§8º do art. 141).
A Constituição de 1946 foi também a primeira a estabelecer a imunidade tributária
dos templos de qualquer culto. Assim, era vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e
aos municípios fixarem impostos sobre os locais de culto e serviços das entidades religiosas.
(art. 31, V, b).
Como síntese das suas inovações e resgates históricos, a Constituição de 1946
pode ser caracterizada a partir de uma aproximação entre Estado e Religião, sem que, no
entanto, tenha havido entre as competências de ambos alguma confusão.
3.7 A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional nº1/1969
A história brasileira novamente se viu diante de um regime de governo centralista
no período que o Brasil foi governado pelos militares, que fizeram valer suas premissas sobre
a ordem jurídica vigente. A tendência político-jurídica do período foi marcada pela maior
força do Poder Executivo, em detrimento dos demais.
Não obstante a esse contexto, a temática religiosa não recebeu grandes alterações.
Os dispositivos constitucionais desse período repetiram quase em toda a sua totalidade os
ditames da Carta que os sucedeu.
Assim, manteve-se no Texto Constitucional a previsões que diziam respeito a
liberdade religiosa e à laicidade do Estado.
3.8 A Constituição Federal de 1988
A Constituição de 1988, que sucedeu o período marcado pelo Regime Militar no
Brasil, alçou a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento da República. O
referido princípio colocou, pois, o cidadão como alvo principal da tutela do Estado. Como
31
desdobramentos desse norte, o texto consagrou um extenso rol de direitos fundamentais e
previu diferentes mecanismos de participação popular nas decisões do Estado brasileiro
(GONÇALVES, 2015, p. 481).
Esse contexto adiantou a perspectiva inclusiva presente na Carta de 1988, que sob
o prisma da dignidade humana, consagrou um maior respeito democrático pela diversidade.
Por consequência, a questão da relação entre a temática religiosa e ordenamento jurídico
assumiu novos contornos sob a égide da Constituição Dirigente.
Nessa toada, o texto constitucional reservou três dos incisos do art. 5º para tratar
da temática da liberdade religiosa. Preceitua a Carta Magna serem invioláveis as liberdades de
crença e de culto, bem como ser garantida a proteção aos locais de culto e as liturgias das
religiões (art. 5º, VI, CF/88). Neste ponto, destaca-se que, ao contrário dos textos
constitucionais precedentes, a Constituição de 1988 não limita essas liberdades às extensões
dos bons costumes, da ordem pública ou da lei. José Afonso da Silva (2014), a esse respeito,
assevera que tais conceitos possuíam conteúdos vagos e indefinidos, que mais serviam a
intervenções arbitrárias no âmbito da liberdade religiosa das pessoas, do que mesmo à
proteção desses direitos.
Os incisos VII e VIII do mesmo art. 5º ainda tecem previsões que tocam a questão
religiosa, prevendo a possibilidade de prestação de assistência religiosa nas entidades civis e
militares de internação coletiva; e a escusa de consciência, dispondo que aquele que, por
razões religiosas, filosóficas ou políticas for contrário a determinadas obrigações
constitucionais, poderão optar pelo cumprimento de serviços alternativos.
Percebe-se também que a laicidade que condiciona o texto da Carta Magna de
1988 mantém a ideia de separação entre as esferas religiosa e pública, inaugurada na ordem
constitucional brasileira através da carta de 1891, ao mesmo tempo em que explicita a
preocupação com a promoção da dignidade humana (MORAIS, 2011, p.15), assegurando um
modelo que admite a atuação do Estado com vistas à proteção das liberdades individuais –
incluindo a religiosa em seus diferentes aspectos – bem como admitindo a colaboração entre
as referidas esferas quando o interesse da coletividade for atendido.
Como exemplo do supracitado contexto, o inciso I do art. 19 da CF/88 prevê a
vedação para que os Estados, Municípios, União e Distrito Federal estabeleçam cultos
religiosos, embaracem o seu funcionamento ou para que mantenham com eles, ou com seus
representantes, relações de dependência ou alianças, fazendo, no entanto, a ressalva de que o
interesse público poderá justificar tais condutas.
Em síntese, a Constituição Federal de 1988, acomodando a evolução da relação
32
entre a questão religiosa e o Estado, consagrou um modelo que este possui o papel de tutelar a
liberdade religiosa, criando as condições necessárias para o desenvolvimento das mais
diversas crenças, para além da salvaguarda do princípio da igualdade entre os diversos credos.
Sem que tais responsabilidades sejam anuladas, faz-se mister pontuar que, esse mesmo
Estado, deverá, sob o manto do princípio da laicidade desenvolvido ao longo da história
constitucional brasileira, manter-se à margem dos assuntos religiosos, sem que tome por
especialmente protegida alguma delas (GONÇALVES, 2015, p. 482).
33
4 A DISCIPLINA JURÍDICA DAS ENTIDADES RELIGIOSAS SOB A SEARA DOCÓDIGO CIVIL BRASILEIRO – UMA ANÁLISE DA DECISÃO DO PROCESSO Nº2013/00147741 – CGJ – TJ/SP
O Código Civil de 1916 continha dificuldades técnicas no que tange ao tratamento
das pessoas jurídicas de direito privado. Em especial no que toca às entidades civis cujas
atividades se destinavam a fins não econômicos, não fazia distinção entre associações e
sociedades, o que terminou por promover uma disciplina aquém das necessidades daquelas no
que diz respeito ao seu funcionamento.
O Código Civil de 2002, por sua vez, inovou no tratamento das pessoas jurídicas
de direito privado, trazendo conceitos mais delimitados e questões mais detalhadas no que
tange à organização e atividades dessas entidades.
No que diz respeito às associações, em específico, consagrou-se o
reconhecimento doutrinário existente ainda sob a égide do antigo Código, que velava pela
ideia de separação daquelas com relação às sociedades, definindo-as a partir da finalidade de
lucro ou não. Para além dessa reclassificação, estabeleceram-se novos requisitos para a
validade dos seus estatutos e prazos para a adequação dos documentos já existentes aos novos
regramentos.
Essa nova disposição das pessoas jurídicas de direito privado, em especial no que
toca às associações, promoveu mudanças relevantes no que dizia respeito às entidades de
natureza religiosa. A redação original do Código Civil de 2002 previu somente três espécies
de pessoas jurídicas de direito privado: as associações, as fundações e as sociedades. As
entidades de caráter religioso, por exercerem atividades de natureza não econômica, a partir
do agrupamento de seus membros, não poderiam receber outra classificação, senão a de
associações, devendo adequar-se ao tratamento dispensado a estas, nos termos do Código.
Ocorre que, dada a natureza da atividade exercida pelas entidades religiosas, os
regramentos aplicáveis às associações se mostraram, em alguma medida, incompatíveis com o
modo de atuação e funcionamento daquelas. A título de exemplo, o artigo 59 atribui à
assembleia o poder de eleger e destituir os administradores, aprovar contas e alterar o estatuto.
Tais competências, embora imbuídas de um ideal democrático, poderiam ser incompatíveis
com o funcionamento comum dos agrupamentos de ordem religiosa, uma vez que nestes
prevalece um ideal hierárquico que condiciona a organização e seu funcionamento, sem que,
na prática, haja a necessidade de consulta à assembleia.
34
As referidas incompatibilidades entre o regramento aplicável às associações e o
funcionamento de uma entidade religiosa motivaram a alteração do texto original do novo
Código antes mesmo da sua entrada em vigência. Por intermédio da Lei nº 10.825/03 inseriu-
se no rol das pessoas jurídicas de direito privado os partidos políticos e as organizações
religiosas, além de promover por meio do parágrafo único do art. 2.031 a dispensa do
cumprimento de adequação ao regime das associações por parte das entidades enquadradas
nessas novas figuras jurídicas.
Com o advento da Lei nº 10.825/03, portanto, as organizações religiosas passaram
a receber uma disciplina própria, conferida nos termos do Código, com maior autonomia de
organização e funcionamento, sob a perspectiva da garantia de um regime jurídico mais
adequado a sua realidade;
Sem desconsiderar que a alteração seu deu pela incompatibilidade do regime
originalmente proposto pelo novo Código, deve-se, no entanto, ponderar que a redação trazida
pela Lei nº 10.825/03, dada a ampla flexibilidade e vagueza na disciplina das organizações
religiosas, ficou distante de conferir tratamento sólido às questões que cercam a atuação e
funcionamento dessas entidades.
Dentre as dificuldades, destaca-se a própria questão do que venha a ser uma
organização religiosa, uma vez que a legislação civilista se furtou de estabelecer uma
conceituação. Desta questão emergem dificuldades práticas que dizem respeito aos fins
determinados para a organização, a elaboração do estatuto com base em suas diretrizes e o
posterior registro da entidade.
Antes de adentrar, porém, ao cerne das questões tangentes à natureza das
organizações religiosas, cumpre-nos analisar os caracteres gerais do funcionamento nos
termos do código, tecendo considerações no que diz respeito a sua criação à luz da lei, a sua
formação, estruturação interna e a competência de auto-organização materializada no seu
estatuto.
4.1 Criação, organização e regulação estatutária das organizações religiosas
O do §1º do art. 44 consagra um modelo de funcionamento garantidor de maior
autonomia às organizações religiosas se comparado àquele originalmente descrito pelo
Código Civil de 2002, como se vê pela sua redação:
São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento dasorganizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ouregistro dos atos constitutivos necessários ao seu funcionamento.
35
Depreende-se do texto legal supra no que tange à criação e ao funcionamento da
pessoa jurídica organização religiosa, que há uma previsão abrangente, sem que tenha se
ocupado o legislador de estabelecer caracteres específicos para a configuração dessas
entidades. Tal proposta tem por fim atender ao pluralismo religioso existente no país, evitando
que confissões religiosas minoritárias tenham contra si levantadas resistências para a sua
consolidação (REIS; COSTA, p.3).
No que se refere especificamente à livre criação de organização religiosa, cumpre
destacar que sua caracterização se perfaz antes mesmo do registro da pessoa jurídica, uma vez
que a Constituição Federal assegura antes mesmo da assunção da personalidade jurídica por
essas pessoas, determinados direitos, tais como o direito de reunião e de culto, (REIS;
COSTA, p.4). Essa liberdade, por outro lado, não dispensa o controle de legalidade sobre os
atos da entidade, devendo o exercício da sua atividade ocorrer em respeito aos princípios
constitucionais e em atendimento aos próprios fins da organização assegurados em seu
estatuto. (MACEDO, 2011 p.100).
Para além da livre criação, o §1º do art. 44 assegura às organizações religiosas o
direito de se organizarem livremente, de modo a permitir-lhes que definam autonomamente,
nos termos dos seus estatutos, o seu modo de funcionamento e de estruturação interna.
O Estatuto da organização religiosa passa, então, a servir como uma espécie de
ordenamento jurídico desta pessoa jurídica, de natureza privada desde que suas determinações
guardem a devida consonância com as normas constitucionais e os dispositivos do Código
Civil que minimamente disciplinam o funcionamento dessas entidades. Com isso, passam
estes estatutos a disciplinarem, por exemplo, os critérios de admissão e exclusão de membros,
a sua constituição organizacional, seus fins e o modo de gestão do seu patrimônio.
Neste ponto, vale destacar a diferença no tratamento das questões relacionadas à
organização e estruturação interna das organizações religiosas das associações. Embora elas
mantenham entre si conceitualmente – ambas se caracterizam como sendo um agrupamento
de pessoas reunido para a consecução de fins não econômicos – e estruturalmente
determinada relação, o legislador civilista, a partir da elaboração da Lei n° 10.825/03 conferiu
maior liberdade às organizações religiosas. Tal privilégio consagra o tratamento especial
conferido pela Constituição Federal ao direito de liberdade religiosa coletiva que serve,
portanto, de fundamento para a maior autonomia de que goza as entidades religiosas (REIS;
COSTA, p.4).
Considerado esse tratamento diferenciado, consagrado nos termos do §1º do art.
44 em cotejo com o parágrafo único do art. 2.031, que se tem a desnecessidade da adequação
36
do estatuto da organização religiosa aos ditames específicos das associações.
No que tange ao funcionamento das organizações religiosas, portanto, há que se
reconhecer o modelo especial destinado a essa espécie de pessoa jurídica, a partir do advento
da lei nº 10.825/03, como desdobramento das garantias constitucionais inerentes ao direito de
liberdade religiosa.
4.2 O problema da definição das organizações com vistas aos seus fins
A alteração legislativa engendrada ao Código Civil de 2002 por meio da Lei nº
10.825/03 embora tenha inserido no rol das pessoas jurídicas de direito privado a figura da
organização religiosa, furtou-se de atribui-la os caracteres suficientes para defini-la. Tal
lacuna veio, como se viu, acompanhada da atribuição de uma ampla liberdade de criação e
funcionamento das entidades que se caracterizem como tal. Esse cenário, embora pareça se
coadunar com a ideia de garantia da liberdade religiosa nos amplos termos consagrados em
seu texto, abriu larga margem para a eclosão de dificuldades práticas no que tange à
caracterização e registro da figura organização religiosa.
Dada a vagueza da disciplina legal sobre o tema, algumas entidades de natureza
religiosa que não se dedicam somente ao culto e às suas liturgias têm demandado a sua
caracterização como sendo uma organização religiosa, nos termos do rol do art. 44, pleiteando
gozar das liberdades conferidas a essa espécie de pessoa jurídica.
Ocorre que, na prática, as averbações diante órgãos registrais têm sido negadas,
sob o entendimento de que as atividades que extrapolam os aspectos relacionados ao culto
impedem o enquadramento da pessoa jurídica como sendo uma organização religiosa. Por
consequência, tais entidades devem se voltar para os ditames os quais a lei determina para a
figura jurídica “associação”, as quais compreendem determinações mais rígidas e
incompatíveis, em regra, com a estrutura das entidades confessionais.
Diante de tal contexto, vê-se que as dificuldades que cercam o referido tema
perpassam, em síntese, pelos seguintes questionamentos: O que vem a ser uma organização
religiosa? Qual critério deve servir para a distinção de uma organização religiosa de uma
associação? Qual o enquadramento jurídico para fins de registro da pessoa jurídica de
natureza religiosa cujas atividades extrapolam os limites do culto e das liturgias diretamente
afeitas ao âmbito do religioso?
Essas questões foram enfrentadas pela Corregedoria Geral da Justiça, do Tribunal
de Justiça de São Paulo quando do julgamento de recurso interposto pela Associação Cultura
Franciscana contra a decisão do Juiz Corregedor Permanente do Primeiro Oficial de Registro
37
de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital, que por ocasião da decisão
indeferiu a averbação de ata de Assembleia Geral Extraordinária e demais documentos cujo
fim era o de alterar a natureza jurídica da associação para “organização religiosa”. Por
fundamento, definiu-se que a “organização religiosa” seria “aquela que se dedica apenas ao
culto e que as diversas atividades previstas no estatuto social aprovado na ata não permitiriam
o enquadramento pretendido” (fl.163)
O parecer que fundamentou a decisão do recurso caminhou no mesmo sentido da
decisão originária, de modo que, uma vez acolhido ensejou o improvimento do pleito recursal.
Os fundamentos suscitados por ocasião do julgamento serão desenvolvidos de forma temática
nos tópicos seguintes.
4.2.1 Organização religiosa, associação ou entidade de natureza mista?
Quando da redação inserida ao Código por meio da Lei nº 10.825/03 que previu a
figura das organizações religiosas, restou claro a intensão do legislador de fazer valer a
proteção jurídica da autonomia das confissões, em atendimento ao princípio constitucional da
liberdade religiosa. Ocorre que as ações que acompanham essas entidades, em regra, não se
limitam às atividades estritas ao culto, as quais também exercem outras que, embora se
relacionem com a satisfação dos interesses últimos da confissão de fé da organização, podem
ser praticadas de forma independente.
Levando em conta, pois, essa dupla natureza das atividades da entidade
eclesiástica, cumpre distinguir, para fins de caracterização da pessoa jurídica, aquelas que
possuem um caráter eminentemente religioso e aquelas que, por outro lado, possam ser
caracterizadas como atividades institucionais, que transcendem o fim precípuo da entidade
eclesiástica. (ROCHA, 2010, p.33)
Assim, quando uma instituição da raiz religiosa, ainda que sem intuito de lucro,
atua prestando assistência educacional e hospitalar, explorando atividades comerciais de
livros, praticando atos de comércio, ou outras atividades que extrapolam o âmbito da sua
confissão de fé, se valem de uma natureza amoldável à figura de uma associação. Pensar de
outro modo equivaleria a estender a proteção à liberdade religiosa em uma medida em que se
facilitaria sua utilização de forma abusiva. (ROCHA, 2010, p.32)
No caso em liça, o parecer que fundamenta a decisão recursal posiciona o
problema relembrando a crítica feita pelo Juiz Corregedor originário no que toca a técnica
utilizada pelo legislador civilista quando da previsão da figura “organização religiosa”, uma
vez que o fez sem que a definisse:
38
O problema posto pela má técnica da Lei n. 10.825/03, que inseriu na lei um termo(organização religiosa) sem dar-lhe uma definição, está em saber onde inserir a pessoajurídica que, criada e mantida com os fins últimos de dar culto e propagar a fé,desempenhe também outras atividades, como sucede a requerente. (fl. 163)
O problema reside, pois, em se definir qual a natureza jurídica das entidades de
cunho religioso que, para além das atividades de culto e as demais voltadas a sua liturgia,
atuam na mesma medida em áreas diversas, tais como a prestação de assistência social,
educacional, etc.
Conforme o caso em questão, portanto, há que se levar em conta as ações daquela
entidade que atua praticando atos de natureza eminentemente religiosa, ao passo que também
exerce atividades de outra natureza. Nesse contexto, conforme o entendimento de Pontes de
Miranda estar-se-á diante de uma entidade de natureza mista:
O fato de ter nome de santo, ou aludir a alguma religião o nome da associação pia, oumoral, não faz a sociedade ou associação religiosa. Sociedade religiosa é a que sededica ao culto. Se, ao lado do culto, pratica beneficência, ou ensino moral ouassistência moral, é mista. Se o culto é secundário, cessa qualquer caracterizaçãocomo sociedade ou associação religiosa (MIRANDA, 1954, p. 324)
O parecer, sem entrar no mérito da predominância do tipo de atividade que exercia
a associação, a reconheceu como uma entidade de natureza mista, tal qual a decisão originária
o fizera, nos seguintes termos:
Verifica-se no Capítulo II do Estatuto da recorrente a previsão de manutenção deensino fundamental, médio e profissionalizante, edição de livros, serviços na área desaúde, preservação do meio ambiente, integração no mercado de trabalho, promoçãoda cultura, esporte, entre outras.(...)Como mencionado na decisão recorrida, não há como se interpretar que no planojurídico as atividades mencionadas estejam simplesmente englobadas na religião, atéporque são atividades que podem, todas elas, ser exercidas independentemente da fé. (...)A propósito do trecho acima, de se notar que a decisão impugnada não afirmou ser oculto, para a recorrente, secundário. Apenas a definiu como mista, isto é, que ao ladodo culto pratica beneficência, ou ensino moral, etc. (fls. 167-168)
Reconhecida, pois, a natureza bifurca das atividades exercidas pela entidade,
cumpre questionar se a esta se designam as regras atinentes às associações ou, se por
praticarem atos legítimos de culto, podem ser caracterizados como organização religiosa e,
com isso, gozarem da autonomia atribuída a essa pessoa jurídica, nos termos do Código Civil.
Neste ponto, seguindo com a cronologia argumentativa da decisão, válida se faz a
análise do que diz respeito ao acordo entre Brasil e Santa Sé, incorporado ao ordenamento
jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 7.107/2010.
4.2.2 Personalidade Jurídica das entidades religiosas no acordo Brasil-Santa Sé
39
Em 11 de fevereiro de 2010 foi assinada a promulgação do Acordo Brasil-Santa
Sé, gravado por meio do Decreto nº 7.107/2010. O documento teve por fim sintetizar em um
único instrumento jurídico os diversos aspectos controversos tangentes à relação do Estado
brasileiro e a Santa Sé, bem como das relações envolvendo a figura da Igreja Católica no país
(GOEDERT, 2010, p.134).
Dentre as importantes temáticas colhidas do Acordo, aqui tratamos daquela que
nos interessa, uma vez que trata da personalidade jurídica das entidades eclesiásticas no país.
No seu artigo 3º, o Decreto dispõe sobre a natureza jurídica das “instituições eclesiásticas”,
enumerando-as; e, em seguida, no §2º, prevê o reconhecimento da personalidade jurídica
dessas entidades mediante a inscrição do seu registro, como se vê:
ART. 3º-A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da IgrejaCatólica e de todas as Instituições Eclesiásticas que possuem tal personalidade emconformidade com o direito canônico, desde que não contrarie o sistemaconstitucional e as leis brasileiras, tais como a Conferência Episcopal, ProvínciasEclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos ePrefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações ApostólicasPessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariado para os Fieis de OutrosRitos, Paroquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedade de Vida Apostolica. (...)§2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pelaRepública Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato decriação, nos termos da legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes oreconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também ser averbadas todas asalterações por que passar o ato.
O texto, como se vê, é abrangente no reconhecimento da personalidade jurídica do
que denominou “Instituições Religiosas”, não se limitando a conceituá-las com base na
primazia destas instituições na prática de culto ou atos litúrgicos. Prevendo ainda que essa
personalidade virá a ser reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição
dessas entidades dos seus respectivos registros.
Por uma rápida leitura, poder-se-á chegar a uma associação do texto retro com o
caso de que trata este tópico, passando conjugar o conceito de “Instituições Eclesiásticas” ao
de “Organização Religiosa”, de forma que a primeira expressão maximizaria a abrangência
desta, uma vez que aquela com base no Decreto nº 7.107/2010 possui um maior alcance,
sugerindo que mesmo aquelas entidades que atuam para além dos fins precípuos de uma
confissão religiosa, deveriam ser reconhecidas como tais no ordenamento jurídico brasileiro.
A questão, porém, congrega a necessidade de uma análise mais profunda, em que
se deve discutir, por exemplo, a extensão do alcance do Decreto às entidades religiosas que
respondem a outras confissões que não a Igreja Católica, em especial no que toca à
personalidade jurídica. Ives Gandra Martins e Marilene Talarico Rodrigues pontuam que “o
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referido tratado não privilegia apenas as instituições católicas, mas abrange todas as outras
religiões, no que diz respeito a imunidades tributárias” (2017, pp. 23 e 24). Citando esse
entendimento, PEREIRA (2008, p.191) defende que o art. 3º do Acordo Brasil-Santa Sé sirva
como um vetor interpretativo para instituições de outras confissões religiosas.
Seguindo por outro caminho, porém, o parecer que serviu para a decisão do caso
aqui em questão posicionou-se no sentido de não reconhecer a associação entre as expressões
“Instituições Eclesiásticas”, constante do Decreto nº 7.107/2010, e a “Organização Religiosa”
do Código Civil, que, sob a sua perspectiva possui abrangência mais estrita, como se vê
(fl.169):
Não nos parece correta a interpretação de que a expressão “Instituições Eclesiásticas”,do acordo, possa ser tida como sinônima da expressão “Organizações Religiosas”, doponto de vista jurídico e do Código Civil.
Não se trata, no caso dos autos, de criar embaraços ao funcionamento da pessoajurídica, ou muito menos de não reconhecer a personalidade jurídica da recorrente,mas apenas de adequar o registro/averbação ao que ela é. Ela pode funcionar, efunciona, como associação.
Ainda com base no texto do próprio decreto, utilizando-se do art. 5º que trata
das pessoas jurídicas eclesiásticas que exercem atividades de cunho não religioso, o parecer
fundamenta a existência de entidades religiosas que atuam com fins de assistência e
solidariedade social, diferindo-as daquelas que atuam nos estritos limites dos fins religiosos.
Assim dispõe o referido texto legal:
ART 5º: As pessoas jurídicas do acordo Brasil/Santa Sé reconhecidas nos termos doArtigo 3º, que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedadesocial, desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos, imunidades,isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhanteprevistos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos eobrigações exigidos pela legislação brasileira”
Uma vez que a recorrente exercia atividades que estavam a além de atos
litúrgicos afeitos a sua confissão religiosa, atuando com fins diversos, com base no texto legal
retro, deveriam, pois, se amoldar a figura jurídica mais adequada dentro do ordenamento
jurídico brasileiro.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A religião experimentou, ao longo da história, diferentes graus de relação com a
figura do Estado, até que se pudesse falar em uma neutralidade entre a existência das duas
esferas. Na esteira desse processo, os ideais de liberdade religiosa e laicidade foram tecidos,
de forma que, hodiernamente, se tem um cenário em que as democracias constitucionais os
tomam como princípios de elevado valor.
Essa evolução foi guiada por um processo de substituição do elemento
legitimador do poder que, por muito, esteve atrelado ao âmbito do sagrado. Sob o manto dessa
relação, a história conheceu modelos de interação entre religião e Estado, entre os quais
vemos: aqueles baseados em uma verdadeira simbiose entre as duas esferas, no seio do quais
o ideal de liberdade religiosa detinha pouco ou nenhum desenvolvimento; aqueles permeados
pela tolerância em que, embora se respeitasse a existência de diferentes confissões religiosas,
o Estado ainda mantinha a preferência por uma delas, guardando com esta um relacionamento
especial; e o modelo de separação, consagrado no Estado laico, cujo elemento legitimador se
desprende da figura religiosa, passando ao povo, permitindo a construção de um cenário
propício para o amplo desenvolvimento da liberdade religiosa.
A história constitucional brasileira persegue esse processo também, de maneira
que os conceitos de laicidade e liberdade religiosa foram assumindo formas mais concretas na
medida em que novas cartas foram elaboradas, distanciando o Estado da ampla
confessionalidade que marcou as primeiras relações entre Estado e igreja, até que se
assumisse uma postura de neutralidade do ente público para com o universo religioso.
Assim, sob a proteção da Constituição de 1988 consagrou-se um modelo de
Estado laico, a quem cabe, ao mesmo tempo, o dever de manter-se distante da esfera religiosa,
ao passo que tutela a liberdade religiosa, proporcionando as condições ideais para a
concretização desse princípio, a ser titulado pelas pessoas, sejam elas individuais ou coletivas,
sem que lhes seja embaraçada a assunção e o exercício dos direitos que lhes cabem na esfera
religiosa.
Na esteira da tutela da liberdade religiosa, consagrada no texto constitucional
vigente, o Código Civil de 2002, alterado pela Lei nº 10.825/03, criou no ordenamento
jurídico brasileiro a figura da “Organização Religiosa”, atribuindo-lhe ampla liberdade de
criação e auto-organização, dispensando-a da adequação estatutária aplicável ao regime das
associações.
O legislador civilista, no entanto, furtou-se de atribuir a estas organizações
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religiosas uma definição. Fato que, somado ao regime especial que lhe foi conferido, se
comparado às demais pessoas jurídicas de direito privado, produziu um cenário propício ao
surgimento de imprecisões técnicas quanto a caracterização dessas entidades para fins de
registro e, consequente, assunção da correta personalidade jurídica por elas.
No caso analisado no presente trabalho, a Corregedoria Geral da Justiça, do
Tribunal de Justiça de São Paulo julgou o recurso interposto pela Associação Cultura
Franciscana contra a decisão do Juiz Corregedor Permanente do Primeiro Oficial de Registro
de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Capital, cuja decisão indeferiu a
averbação de ata de Assembleia Geral Extraordinária e demais documentos cujo fim era o de
alterar a natureza jurídica da associação para “organização religiosa”.
A questão analisada por ocasião do parecer que fundamentou a decisão do recurso,
era a de dar a correta caracterização jurídica às entidades religiosas cujas atividades fossem
divididas entre aquelas que se relacionavam diretamente ao culto e às liturgias afeitas à
religião e aquelas que extrapolavam o âmbito do religioso e que, por isso, poderiam de
praticadas de forma independente do caráter religioso da entidade.
O parecer entendeu que essas entidades possuíam natureza mista, não se
amoldando aos estritos limites que uma organização religiosa deveria se ater, a quem caberia
atuar, nesta condição, exercendo atividades que se restringissem aos rituais litúrgicos que com
seu credo guardassem relação direta.
Reconhecendo, pois, a natureza mista da entidade religiosa recorrente, o parecer
dispôs sobre a necessidade de se conferir as garantias de um regime mais protetivo aos
membros da pessoa jurídica em questão, uma vez que parte das suas atividades extrapola o
campo de abrangência dessa espécie normativa “organização religiosa”, devendo-lhe ser
atribuído o regime de associação, fundação ou sociedade, a depender da atividade por ela
exercida.
As normas destinadas às associações compreendem a estrita obediência ao Código
Civil, sem que goze a entidade da ampla autonomia conferida às organizações religiosas. O
parecer julgou, portanto, mais adequado o regime que confere maior garantia aos membros,
em razão da atuação também mais abrangente da entidade.
Em síntese, o parecer acolhido pela decisão entendeu não ser adequado a
atribuição do regime jurídico das organizações religiosas às entidades que desenvolvem
atividades de dupla natureza: a de fins estritamente religiosos, ao lado daquelas que possuem
fins diversos, que se desenvolvem à margem do culto e dos demais rituais litúrgicos afeitos à
religião. Reconhecendo, assim, a extensão da liberdade religiosa afeita à competência de auto-
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organização da entidade religiosa nos estritos limites daquilo que está diretamente relacionado
aos seus fins precípuos, assim entendidos como sendo as atividades de culto e suas liturgias.
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