UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento...

25
A Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth Evânia Reich 1 Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade como terceira dimensão do reconhecimento na obra Luta por reconhecimento. A questão central é a de saber como a solidariedade pode ser a base substancial para a realização da justiça, do bem-estar e da vida boa, como parece indicar Honneth. Desenvolvo dois problemas com quais Honneth terá que enfrentar por ter assumido a solidariedade como uma exigência moral na qual todos os indivíduos estariam obrigados. O primeiro é de ordem metodológica, e diz respeito a exigência de um conjunto de conceitos capaz de explicar o coletivo social moderno como um todo ético e não meramente como um agregado de indivíduos auto-interessados. E o segundo é de ordem normativa, que trata de reconciliar as normas excessivamente exclusivas e substantivas de uma comunidade e as normas abstratas da razão prática como a base para a solidariedade social? Procuro mostrar que o objetivo de Honneth com a esfera da solidariedade é apresentar a luta pela estima social como um momento necessário para a realização do bem-estar e da vida boa, mas sem abandonar a imprescindibilidade de sua segunda esfera do reconhecimento, isto é o direito. 1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação da UFSC e bolsista Capes.

Transcript of UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento...

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

A Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth

Evânia Reich1

Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade como terceira dimensão do

reconhecimento na obra Luta por reconhecimento. A questão central é a de saber como a

solidariedade pode ser a base substancial para a realização da justiça, do bem-estar e da vida

boa, como parece indicar Honneth. Desenvolvo dois problemas com quais Honneth terá que

enfrentar por ter assumido a solidariedade como uma exigência moral na qual todos os

indivíduos estariam obrigados. O primeiro é de ordem metodológica, e diz respeito a

exigência de um conjunto de conceitos capaz de explicar o coletivo social moderno como um

todo ético e não meramente como um agregado de indivíduos auto-interessados. E o segundo

é de ordem normativa, que trata de reconciliar as normas excessivamente exclusivas e

substantivas de uma comunidade e as normas abstratas da razão prática como a base para a

solidariedade social? Procuro mostrar que o objetivo de Honneth com a esfera da

solidariedade é apresentar a luta pela estima social como um momento necessário para a

realização do bem-estar e da vida boa, mas sem abandonar a imprescindibilidade de sua

segunda esfera do reconhecimento, isto é o direito.

Palavras-chave: reconhecimento, solidariedade, estima social, luta.

1.

Vimos atualmente em destaque a luta de religiões, de culturas minoritárias e luta de

gêneros que reivindicam uma igualdade de consideração, de respeito e de direitos não

somente no âmbito jurídico, mas também no âmbito social, político e cultural. Embora uma

justa repartição de bens materiais permaneça ainda na pauta das reinvindicações apesar das

promessas de outrora da política de bem-estar social, que se revelaram irrealizáveis, assiste-se

hoje incontestavelmente o borbulhar de novas reivindicações que estão para além da

indispensável redistribuição de riquezas, saúde e educação. Paralela ou mesmo prioritária a

tais reivindicações de cunho material, a demanda por respeito, por dignidade e estima tanto

cultural quanto religiosa surge com uma força ativa nestas duas últimas décadas. Nas palavras

de Nancy Fraser (FRASER, 2003, p. 8), as lutas políticas propriamente modernas, que durante

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação da UFSC e bolsista Capes.

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

1

dois séculos tinham sido lutas por redistribuição, se tornaram prioritariamente lutas por

reconhecimento.

Essas novas exigências colocam evidentemente em dúvida as teorias de justiça que se

concentram apenas nas questões jurídico-políticas. A teoria do reconhecimento de Axel

Honneth é uma expressão deste descontentamento. Esse filósofo receia que reduzir o âmbito

das questões de justiça apenas à meras questões jurídicas não seja suficiente para entender as

variadas necessidades e exigências humanas que os indivíduos possuem (PINZANI, 2010, p.

157-158). Não se trata de por em questão o valor teórico e prático dos direitos fundamentais

individuais e coletivos, tampouco descartar e substituir as teorias de justiça que tratam sobre

questões de justiça no âmbito jurídico/político, mas antes incluir uma nova teoria que consiga

descrever e explicar as experiências de injustiças também no âmbito social.

Com a sua obra Luta por reconhecimento, publicada em 1992, Honneth elabora, pela

primeira vez, de forma sistemática uma teoria cujo conceito central de reconhecimento se

revela uma categoria moral fundamental. Honneth tem a pretensão de fazer uma teoria crítica

da sociedade a partir do critério normativo advindo de uma concepção formal de vida boa.

Esta concepção formal de vida boa pode ser depreendida nas três dimensões do

reconhecimento que Honneth desenvolverá ao longo de sua obra, isto é, o amor, o direito e a

solidariedade. Para o autor toda injustiça é uma injúria social que pode ser entendida sobre a

ótica do reconhecimento, isto é, na negação destas três dimensões positivas do

reconhecimento. Mesmo as questões relativas à justiça distributiva que estariam segundo uma

concepção dualista como a de Nancy Fraser2, por exemplo, separadas das questões de

reconhecimento, para Honneth, elas são derivadas da teoria do reconhecimento. (FRASER e

HONNETH, 2003, p. 2-3).

No livro Luta por Reconhecimento, Honneth dedica a primeira parte do seu trabalho à

leitura da teoria do reconhecimento do jovem Hegel, precisamente aquilo que o filósofo havia

escrito nos fragmentos de O Sistema da eticidade (1802-1803) e da Realphilosophie (1805-

1806). O que interessa inicialmente Honneth é a alternativa trazida por Hegel ao modelo da

2 Para Fraser existem dois tipos de reinvindicações nas sociedades ocidentais contemporâneas, a primeira está focada na distribuição igualitária de bens e saúde e a segunda na luta por reconhecimento étnico, racial e de gênero. Essas duas exigências parecem estar separadas tanto do ponto de vista da teoria quanto da própria práxis. Do ponto de vista da teoria os defensores da distribuição igualitária encaram o reconhecimento das diferenças como uma falsa consciência, isto é, um estorvo para a própria luta por justiça social. Por outro lado, os defensores do reconhecimento acreditam que a política de redistribuição que tenta assegurar a igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, através de um igualitarismo econômico é um tipo de materialismo “démodé” que não consegue mais desafiar os problemas surgidos com as diversas experiências de injustiça. Para a autora é necessário compreender o problema de distribuição apartado daquele do reconhecimento, pois somente quando separamos essas duas categorias conseguimos apreender as imbricações da desigualdade de classe e da hierarquia de status em nossas sociedades contemporânea. (FRASER, 2003, p. 8-12).

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

2

“luta pela existência” - que predominava na filosofia da primeira modernidade, com Hobbes e

Maquiavel – pelo modelo de “luta por reconhecimento”. (HONNETH, 2003, p. 30). Na

segunda parte desta obra, Honneth introduz a teoria psicológica social de George Herbert

Mead com o intuito de “reconstruir as intuições da teoria da intersubjetividade do jovem

Hegel num quadro teórico pós-metafisico” (HONNETH, 2003, p. 125). Por último o autor

formula a sua própria teoria apresentando como critério normativo para uma crítica da

sociedade, o conceito de reconhecimento. É este conceito que, segundo Honneth terá o papel

de fundamentar uma concepção de eticidade, ou de vida boa pós-tradicional que vai além de

uma concepção limitada de justiça que se apoia apenas em normas legais. (HONNETH, 2003,

p. 269-270)

Honneth, ao se inspirar na filosofia hegeliana da juventude, acrescentando a psicologia

social de Mead (e também a psicanálise de Winnicott), quer demonstrar que a formação da

identidade de cada indivíduo necessita das relações de reconhecimento que são

essencialmente de natureza intersubjetiva. Isto é, a realização de si mesmo como pessoa

autônoma e individualizada depende da presença de um reconhecimento recíproco no seio de

três esferas normativas distintas: do amor, do direito e da solidariedade. Unicamente a partir

do momento em que as pessoas são efetivamente reconhecidas como portadoras de

necessidades afetivas, como sujeitos iguais portadores de direitos, e por último, como

detentoras de atitudes práticas singulares contribuindo à reprodução de uma vida comum, é

que elas podem então se autocompreender como indivíduos plenamente realizados. Estas três

dimensões de reconhecimento possibilitam três atitudes positivas aos indivíduos, isto é, a

autoconfiança, o autorrespeito e a auto-estima necessárias para a sua plena realização.

(HONNETH, 2003, p. 194-198).

Axel Honneth situa desta forma os conflitos sociais a partir da violação das

expectativas normativas de reconhecimento arraigadas em uma destas três dimensões. Tais

privações de reconhecimento são, portanto, decorrentes de experiências morais negativas

onde os sujeitos concernidos se vêem recusados das condições de uma formação positiva de

sua identidade. São essas experiências de desrespeito, na forma de maus-tratos e violação na

negação do amor, a privação de direito e exclusão na esfera do direito e a degradação e ofensa

no âmbito da sociedade, que constituem o arcabouço de injustiças que, em muitos casos, se

tornam motivos de luta na conquista de relações de reconhecimento cada vez mais plenas e

efetivas. (HONNETH, 2003, p. 211)

O modelo de luta pelo reconhecimento honnethiano traz consigo um objetivo bem

mais ambicioso do que aquele oferecido pelas teorias de justiça cuja construção intelectual é

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

3

basicamente abstrata e desvencilhada de todo contexto social. O que Honneth deseja com

tamanho projeto é prolongar a tradição crítica que, após Hegel – passando por Marx e a

Escola de Frankfurt -, enraizou sua crítica nas experiências práticas da sociedade e não em

teorias abstratas. Honneth situa a instância prática “intramundana” de justificação de

pretensões normativas da crítica teórica no sentimento de injustiça proveniente da experiência

negativa dos sujeitos sociais quando suas aspirações por reconhecimento são aniquiladas. A

partir da dinâmica social do reconhecimento, do desrespeito, do desprezo e da luta pelo

reconhecimento, Honneth pretende extrair uma concepção formal de eticidade ou vida boa

que sirva como padrão normativo de justificação (WERLE e MELO, 2007, 16).

É somente com um critério normativo interno à própria sociedade que Honneth

pretende fazer uma crítica das patologias sociais. Segundo ele, os critérios, a partir dos quais é

possível falar de patologias sociais, fazem alusão à modos de constituição possíveis de

relações de vida em sociedade que podem ser consideradas intactas ou não distorcidas na

medida em que elas garantem a todos os membros da sociedade a oportunidade de uma

autorrealização bem-sucedida (gelingende Selbstverwircklichung) (BASAURE, 2009, 68). Na

medida em que Honneth insere-se em uma corrente filosófica cujo modelo de justiça é

fundamentado através de princípios normativos que levam em conta o contexto social, então

uma autorrealização bem sucedida deve ser derivada de uma ordem social compartilhada nas

suas diferentes práticas. Na perspectiva da sua teoria do reconhecimento, Honneth procura

achar as condições categoriais necessárias para a possibilidade de exercer um diagnóstico das

patologias sociais3.

Para Honneth, as relações sociais ocorrem de forma não patológicas quando um

indivíduo é visto como uma pessoa independente. Esta completa independência atingida na

fase madura do ser humano vem galgando relações intersubjetivamente positivas até alcançar

o seu mais completo nível de relacionamento, isto é, com o outro ser social. A primeira fase

positiva da vida humana é a experiência do amor que prepara os sujeitos à passagem para as

dimensões sucessivas de relação de reconhecimento, isto é, no direito e na sociedade. Com

3 O termo patologia é retirado da psicanálise, precisamente quando Honneth interpreta à teoria de Winnicott em Luta por reconhecimento. Na primeira fase de relação intersubjetiva entre o bebê e mãe, Winnicott descreve um tipo de relação até os primeiros seis meses de vida do bebê que tem como fim saudável a separação destes dois seres que se encontram simbioticamente unidos. O desligamento entre mãe e bebê ocorre de forma não patológica quando o reconhecimento substitui a forma simbiótica. Isto é, através da primeira relação bem sucedida, tanto o bebê quanto a mãe conseguem viver de forma autônoma e emotivamente seguros. O reconhecimento na fase do amor significa uma liberação da fase simbiótica e um se dar conta que o outro possui uma individualidade. Ao mesmo tempo em que uma ligação emotiva simultânea permanece, ambos se reconhecem como seres autônomos. A autoconfiança se dá com o sucesso desta primeira forma de amor e a patologia advém justamente do insucesso desta primeira relação. Isto é, quando tanto a mãe quanto o bebê não conseguem reconhecer no outro um ser individualizado. (HONNETH, 2003, p. 176-178).

Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

4

esta primeira fase bem sucedida, o indivíduo possui a base indispensável à participação

autônoma da vida pública, tanto como portador de direitos quanto como detentor de estima

social.

A compreensão de si como portador de direito ocorre quando o indivíduo começa a

compreender quais obrigações ele tem que realizar em relação ao outro e quais direitos ele

pode exigir do outro. É sempre a partir deste outro que o indivíduo se percebe como pessoa

portadora de direitos e obrigações. O reconhecimento ocorre sempre nesta mão de via dupla.

Neste saber das obrigações que o indivíduo tem para com o outro ele também se sente seguro

do cumprimento social de suas pretensões (HONNETH, 2003, p. 179).

Entretanto, segundo Honneth, esta fase do reconhecimento no direito, indispensável

para a constituição do autorrespeito, ainda não é suficiente para que o indivíduo possa se

compreender positivamente como alguém que possui diferenças biograficamente constituídas

em relação aos outros membros de uma sociedade e como tal pode ser reconhecido. O

reconhecimento, portanto, na terceira dimensão não se daria mais em um nível universal, isto

é, todos são reconhecidos no âmbito do direito através de normas gerais, mas antes no nível

particular, ou seja, da singularidade. (Idem). Tanto no âmbito jurídico quanto no âmbito da

estima social podemos dizer que o indivíduo é respeitado em virtude de determinadas

propriedades, mas a propriedade do qual se fala no primeiro é universal e para o segundo

trata-se de uma propriedade privada, isto é, aqueles valores particulares que cada indivíduo

possui que pode despertar uma estima social. (HONNETH, 2003, p. 139). No terceiro

momento do reconhecimento ocorre uma volta à primeira dimensão, mas agora as qualidades

particulares do indivíduo não são reconhecidas apenas por algumas pessoas cujo vínculo do

amor possibilitava tal reconhecimento, mas antes por todas as pessoas numa ampla sociedade.

Se na fase do direito o reconhecimento de suas propriedades particulares é perdido em relação

aquele primeiro reconhecimento no amor, a sociedade tem o papel, nesta terceira dimensão,

de devolver este reconhecimento dispensável na esfera jurídica. É somente nesta última esfera

que os indivíduos podem referir-se novamente positivamente à suas propriedades e

capacidades concretas (HONNETH, 2003, p. 198). A sociedade através da solidariedade

devolve ao indivíduo o reconhecimento de suas qualidades particulares tão importantes

naquela primeira fase de sua vida e que se tornou irrelevante no âmbito do direito.

2.

Deixemos de lado os dois primeiros níveis do reconhecimento, isto é, o amor e o

direito, - os quais Honneth retira sua fundamentação da filosofia hegeliana e da psicologia de

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

5

Mead – para nos concentrarmos apenas no terceiro momento do reconhecimento, a

solidariedade. Esta terceira dimensão do reconhecimento, tão cara à Honneth, parece a que lhe

causa maiores problemas, ao mesmo tempo em que lhe é indispensável na sustentabilidade e

plausibilidade da sua própria teoria do reconhecimento.

Para Honneth está claro que as sociedades pós-modernas necessitam de um modelo de

solidariedade social que seja capaz de ligar seus membros entre si em uma rede de

reconhecimento recíproco. Esta rede deve ser forte o suficiente para ser capaz de sustentar as

tensões e desafios que os indivíduos sociais sofrem em suas relações mútuas. As redes de

solidariedade não podem advir apenas daquelas primeiras fontes de relações familiares e de

amizades, assim como não podem permanecer dependentes unicamente do direito. A forma de

solidariedade social especificamente moderna tem sido explicada em termos de características

básicas da modernidade social, com o colapso das fontes tradicionais e correspondente

aumento do pluralismo cultural. O que significa dizer que nas sociedades modernas a

solidariedade para Honneth tem que ocorrer em relações intersubjetivas que estão para além

do escopo da família, dos amigos, mas igualmente daquela rede de relações cujo parâmetro de

reconhecimento estava centrado apenas nas características e virtudes do grupo do qual o

indivíduo pertencia. Honneht faz uma análise histórica em Luta por reconhecimento, (2003,

p. 203-205) a respeito da estima social nas culturas das sociedades tradicionais e sua mudança

com a revolução burguesa. Essa mudança ocorre a partir de um reconhecimento que advinha

dos valores baseados no código de honra para aqueles que passam a ser calcados no conceito

de prestígio social. Nas sociedades tradicionais os indivíduos eram estimados através de sua

honra como alguém pertencente a uma determinada classe social. O indivíduo e suas

particularidades cedia lugar a honra advinda do grupo do qual ele fazia parte. No limiar da

modernidade, a revolução burguesa e sua luta contra as concepções feudais e aristocráticas

estabelecem novos princípios axiológicos que fundamentam o valor do indivíduo a partir da

sua grandeza biograficamente individuada e não mais determinado pelas propriedades

atribuídas ao grupo inteiro. A luta da burguesia contra a hierarquia tradicional de valores

“leva a uma individualização na representação de quem contribui para a realização das

finalidades éticas: (...) já não são mais as propriedades coletivas, mas sim as capacidades

biograficamente desenvolvidas do indivíduo aquilo por que começa a orientar a estima

social”. (HONNETH, 2003, p. 205).

Nas sociedades pós-tradicionais, portanto, o indivíduo deixa de ser valorizado pela sua

pertença a uma determinada casta hierárquica da sociedade e passa a sê-lo pela sua

contribuição pessoal aos objetivos da sociedade. A questão obviamente que surge com tal

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

6

mudança é a respeito da definição destes objetivos da sociedade. Doravante, os critérios de

estima de uma sociedade não são mais estanques. Não existe mais um referencial

universalmente válido no qual se poderia medir o valor social de determinadas propriedades e

capacidades individuais. As propriedades e capacidades dos indivíduos são interpretadas no

seio de uma determinada cultura de valores que conferirão ou não um reconhecimento

positivo. Na medida em que não existe mais um referencial universal de valoração, dá-se

abertura as lutas nas quais os diversos grupos procuram elevar o valor de suas capacidades

associadas à sua forma de vida. Segundo Honneth, quanto mais os movimentos sociais

conseguem chamar a atenção da esfera pública para a importância de suas propriedades

representadas por eles de modo coletivo, tanto mais existe para eles a possibilidade de elevar

na sociedade o valor social, ou mais precisamente, a reputação de seus membros.

(HONNETH, 2003, p.207-208).

A estima das particularidades dos indivíduos ainda permanece de alguma forma ligada

a sua pertença ao grupo, mas o seu valor social deixa de ser atribuído apenas aquelas

propriedades “coletivas tipificadas de seu estamento”. “O indivíduo não precisa mais atribuir

a um grupo inteiro o respeito que goza socialmente por suas realizações conforme os standars

culturais, senão que pode referir-se a si próprio”. (HONETH, 2003, p. 210). Segundo

Honneth, é a partir deste momento em que os indivíduos se sentem estimados pelo seu próprio

valor, que então se pode falar de um estado pós-tradicional de solidariedade social. A

solidariedade social nas sociedades modernas está ligada ao pressuposto de relações sociais de

estima simétrica entre indivíduos individuados e autônomos. Quando Honneth se refere a esta

simetria, ele por um lado quer dizer que é possível incluir todos os indivíduos nesse processo

de estima social - e não mais somente aqueles que pertencem a um determinado grupo

hierarquicamente e previamente valorizado - mas por outro lado ele vai além desta simples

referência, isto é, é neste conceito de estima simétrica que Honneth põe todo o potencial de

sua “solidariedade”. As relações dessa espécie, diz Honneth,

Não despertam somente a tolerância para com a particularidade individual da outra pessoa, mas

também o interesse afetivo por essa particularidade: só na medida em que eu cuido ativamente

de que suas propriedades, estranhas a mim, possam se desdobrar, os objetivos que nos são

comuns passam a ser realizáveis. (HONNETH, 2003, p 211)

Parece que com esta afirmação Honneth caracterizaria a sua solidariedade como um

tipo de exigência moral a qual os indivíduos estariam obrigados a assumir em relação aos

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

7

outros. (PINZANI, 2010, p. 160) É somente na medida em que se reconhecem as

propriedades particulares do outro como algo que possui um valor para a realização de

objetivos comuns é que realmente nossa atitude pode ser considerada solidária. Não basta que

as propriedades particulares do outro não atrapalhem a minha própria vida, e que, por isso eu

as toleraria, mas antes é necessário que meu sentimento para com o outro se dê de forma

positiva, isto é que eu inclua essas propriedades na lista daquilo que eu considero importante

para o conjunto de valores de nossa sociedade em comum. Neste sentido, a solidariedade da

qual exige Honneth vai além de um tipo de perspectiva funcionalista que viria o fenômeno da

solidariedade apenas como o instrumento que permite uma sociedade manter-se íntegra.

(PINZANI, 2010, p. 160). Como aponta Pinzani em uma distinção entre solidariedade moral

e solidariedade funcionalista, a relação de solidariedade com o qual trabalha Honneth aponta

para uma dimensão afetiva e sentimental entre os membros de uma sociedade. “A

solidariedade se traduz num cuidado ativo direto com o bem-estar alheio – cuidado baseado

num interesse afetivo e não meramente racional”. (PINZANI, 2010, p. 166).

O problema com o qual Honneth terá que se deparar é o de saber em que instância os

indivíduos conseguem se relacionar solidariamente, de tal forma que esta solidariedade se

torne uma exigência moral. Quem garantirá a prática desta solidariedade? Segundo a

concepção de eticidade hegeliana, ainda conseguiríamos pensar a realização da solidariedade

se entendermos que o Estado seria a instância que asseguraria o potencial ético das relações

reciprocas de solidariedade. O Estado, como um todo universal, segundo as próprias palavras

de Honneth é a esfera de interação na qual os membros da sociedade “alcançam a

autorrealização por meio das atividades comuns e universais” (HONNETH, 2007, p. 143).

Mas, Honneth não segue a dialética lógica de Hegel, pois ele está convencido que as esferas

de reconhecimento mantêm relações que se sustentam e se limitam mutualmente, e não

relações hierárquicas nas quais as crises em uma esfera mais baixa poderia ser resolvida em

uma mais alta. (PENSKY, 2011, p.140). Honneth, ao contrário, busca fundamentar a

imprescindibilidade da solidariedade através de uma práxis intersubjetiva cujos interesses

coletivos políticos e sociais garantiriam a sua efetividade.

A questão que surge a partir desta exigência é a de saber como nossas sociedades

liberais ocidentais podem sustentar relações de solidariedade apesar da sua evidente

pluralidade de valores, e como esta solidariedade pode permanecer a base substancial para a

realização da justiça, do bem-estar e da vida boa e não o auto-interesse dos indivíduos.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

8

3.

Tal como Hegel, Honneth concebe a imprescindibilidade do reconhecimento nas

relações entre os indivíduos para a fundamentação de uma estrutura social e política

eticamente compartilhada. Tendo abandonado a premissa atomística da filosofia social

moderna, e apostado em uma teoria social da solidariedade, o filósofo frankfurtiano terá,

contudo que resolver ao menos dois grandes problemas. Segundo Max Pensky (PENSKY,

2011, p. 127) a definição de solidariedade pode ser dada sob dois pontos de vista diferentes; o

primeiro diz respeito a uma solidariedade que estaria fundada sobre a integração de uma

sociedade e seus valores e a segunda é fundada sobre as relações de reconhecimento e

obrigações que fazem de uma coletividade uma totalidade ética. Honneth parece definir sua

solidariedade segundo a perspectiva desta segunda visão. Esta é a uma definição que se

aproxima com aquele tipo de solidariedade moral do qual nos reportamos anteriormente.

Tendo considerado a solidariedade sob esse ponto de vista moral Honneth terá então que

mostrar qual o conjunto de conceitos ou terminologias é capaz de explicar o coletivo social

moderno como um todo ético e não meramente como um agregado de indivíduos auto-

interessados. Além disto, o filósofo terá que apresentar o núcleo normativo de uma teoria

social que conseguiria reconciliar a coesão social e a liberdade individual4. Isto é, como uma

teoria social, que leva a sério a ideia de vida ética, resolveria o problema de conciliar as

normas excessivamente exclusivas e substantivas de uma comunidade e as normas abstratas

da razão prática como a base para a solidariedade social? (PENSKY, 2011, p. 128). Enfim,

como uma teoria social que leva em conta a ideia de vida ética pode resolver o conflito latente

entre a defesa da liberdade individual e a necessidade de uma liberdade social?

Para Honneth o regime de direitos liberais modernos não fornece os recursos

normativos para os compromissos básicos dos cidadãos entre si e para o reconhecimento das

diferenças dos indivíduos. As relações de estima entre os indivíduos inseridos em grupos

assimétricos dependem de um intacto consenso cultural e unificação de fins sociais que a

sociedade moderna não consegue prover. Com a revolução burguesa do século XVIII ocorre

um esvaziamento de um consenso cultural substantivo dos fins sociais compartilhados, o que

dificultaria para a sociedade moderna de encontrar uma maneira de reconhecer os indivíduos

como membros sociais valiosos com base em suas diferenças. Por isso a necessidade de se

introduzir novos modos de reconhecimento, tal como o satus legal. Contudo, tal status legal

mina o reconhecimento do indivíduo através de suas qualidades e valores intrínsecos, pois no

4 Esses dois problemas são apontados por Max Pensky como sendo o primeiro de ordem metodológica e o segundo de ordem normativa (PENSKI, p. 127).

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

9

nível do direito o indivíduo é visto apenas como detentor daqueles valores reconhecidos

universalmente. Segundo Honneth, é necessário ir além desta esfera do direito, e ver uma

esfera de mútuo reconhecimento nos quais os indivíduos possam se estimar mutuamente com

base em suas diferenças individuais. Para isso é necessário pressupor um consenso cultural

abrangente segundo o qual tais diferenças individuais possam ser reconhecidas como

contribuições para um abrangente conjunto de metas sociais compartilhadas. Segundo Pensky,

(PENSKY, 2011, p 142), neste sentido, a solidariedade social para Honneth mantém um tom

distintamente pré-moderno, pois ao contrário do respeito legal com o seu nivelamento das

diferenças e sua atribuição fixa do igual status, a solidariedade ainda parece exigir um

consenso substantivo que está ausente no regime moderno dos direitos universais. Honneth

precisará, portanto, descrever um horizonte de valores que seria suficientemente substantivo

para sustentar as atribuições mútuas de estima baseadas nas diferenças individuais, mas que

não seja tão forte a tal ponte de repetir a “ultrasubstantização” hegeliana de um consenso

cultural na glorificação da instituição estatal na qual todas as diferenças individuais se tornam

dialeticamente amenizadas. Os objetivos que formam o horizonte a partir do qual nós nos

estimamos respectivamente devem permanecer abstratos ao mesmo tempo em que deve levar

em consideração nossos traços e aptidões específicos. Não é nada fácil de ver como isso pode

ser realizado.

Segundo a interpretação de Pensky, para Honneth além de um conjunto de normas

superiores definidos que dizem respeito aos objetivos coletivos sociais, deve existir algum

tipo de “prática interpretativa secundária” para determinar quais tipos de comportamentos de

realizações ampliam essas normas. São essas práticas secundárias que vimos constantemente

disputadas na sociedade. Essas interpretações secundárias são lugares de luta permanente na

medida em que elas fazem a mediação entre o nível do mundo da vida dos projetos

individuais de autorrealização e os compromissos abstratos modernos para o bem social. Tais

interpretações tem o poder de formar o vocabulário cultural que será usado para descrever a

vida boa. Esta “reprodução simbólica” do mundo da vida deve ser entendida “como um

fenômeno público e político”, pois a vantagem temporária de vários subgrupos sociais para

dominar a linguagem da estima social é causada não só pelas vantagens contingentes do grupo

em si, mas principalmente pela habilidade do grupo de atrair e manter atenção e aprovação de

membros sociais diferentemente situados dentro de uma esfera pública aberta. (PENSKY,

2011, 149-150). Para Honneth ,

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

10

O que pode ser considerado condição intersubjetiva de uma vida bem-sucedida torna-se uma

grandeza historicamente variável, determinada pelo nível atual de desenvolvimento dos

padrões de reconhecimento (...). De que maneira devem se constituir os pressupostos

intersubjetivos da possibilitação da autorrealização se mostra sempre sob as condições

históricas de um presente que abriu desde o inicio a perspectiva de um aperfeiçoamento

normativo das relações de reconhecimento. (HONNETH, 2003, p. 275).

O que não fica claro em Luta por reconhecimento é como as lutas culturais sobre as

interpretações secundárias de estima poderiam corresponder às instituições sociais e políticas.

Embora tais lutas se tornem apenas visíveis quando elas são resolvidas institucionalmente,

esse parece não ser o rumo que Honneth gostaria de tomar. A busca de Honneth é se afastar o

máximo possível da solução hegeliana de um apego excessivo à figura do Estado que tem o

papel de resolver os conflitos insolúveis na esfera da sociedade civil. Segundo Honneth,

Hegel teria insistido ao menos na Filosofia do direito, na necessidade da institucionalização

positivada juridicamente, substituindo, aonde ele já havia introduzido, o conceito de eticidade

como uma “segunda natureza” (HONNETH, 2007, p. 133). Para Honneth as instituições são

também práticas de ação que assumem rotinas e hábitos compartilhados intersubjetivamente,

isto é, os costumes também podem ser entendidos como instituições ainda que faltem neles o

ancoramento em sanções jurídicas do Estado (HONNETH, 2007, p. 133). Em Lutas por

reconhecimento Honneth diz que Hegel se deixou influenciar fortemente pela realidade

institucional de seu tempo, a tal ponto que, por exemplo, no caso do primeiro nível de

reconhecimento, o amor, “somente o padrão patriarcalista de relação da família burguesa pôde

se destacar”. (HONNETH, 2003, p. 276). Além disso, Honneth considera que tanto Hegel

quanto Mead “reduziram a relação jurídica moderna à mera existência de direitos liberais de

liberdade”, negligenciando o potencial destes direitos usados pelos indivíduos para o

aperfeiçoamento de suas próprias condições particulares (Idem, p. 277). Honneth quer ir além

da mera constatação de uma autonomia juridicamente assegurada na modernidade e considera

esta autonomia indispensável para o aperfeiçoamento das relações de direito cada vez mais

includentes e igualitárias na medida em que os indivíduos livres podem agora lutar na busca

de sua autorrealizaçao. Contudo, Honneth prefere colocar toda a força da mudança nas

próprias lutas por reconhecimento permanecendo sobre a ótica de um nível

microssociológico5 das interações dos indivíduos e grupos, e não nas instituições de direito,

5 Segundo Pensky, o nível microsociológico diz respeito aquela instância onde o que conta são as relações intersubjetivas ou de reconhecimento mútuo entre os indivíduos para a formação e permanência da solidariedade; e o nível macrossociológico diz respeito a esfera institucional que tem o papel de fornecer o material normativo na criação de membros sociais solidários (PENSKY, p. 127).

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

11

isto é, “a relação jurídica moderna só pode entrar na rede intersubjetiva de uma eticidade pós-

tradicional, como um segundo elemento, quando pensada de maneira mais ampla,

incorporando esses componentes materiais” (HONNETH, 2003, p. 277). O ponto decisivo

para Honneth parece, portanto ser a força de transformação que a luta por reconhecimento

pela estima possui. É somente através desta luta que o próprio direito pode sofrer também

transformações e ir em direção à realização do bem-estar dos indivíduos.

O que não parece evidente, contudo, em Luta por reconhecimento é se Honneth

realmente oferece uma explicação satisfatória de como as experiências de reconhecimento são

transmitidas de um nível interpessoal para um nível institucionalizado. Não fica claro se as

referências à psicologia individual e suas expressões patológicas pode conseguir explicar

como as relações de solidariedade encontram ou não uma forma institucional adequada para

elas. Para Honneth é de fato a experiência psicológica do reconhecimento ou a falta dele que

faz o papel teórico para explicar como essa transmissão de exigências ocorre do mundo da

vida para o sistema. Mas, é preciso lembrar que na prática, as lutas se tornam visíveis

enquanto momentos de mudança na história quando elas são resolvidas, e tais soluções são

invariavelmente institucionais. Este seria segundo essa análise de Pensky o problema

metodológico que Honneth enfrenta e que parece não encontrar solução (PENSKY, 2011, p.

149).

4.

O segundo problema, de caráter normativo, está vinculado ao fato de que Honneth não

definiria o horizonte de valores das sociedades modernas. Para o filósofo frankfurtiano as

sociedades modernas, justamente por serem modernas não apresentam a substância e a

concretude dos objetivos sociais gerais que poderia ser considerado uma descrição plausível

da vida ética. Na medida em que as sociedades modernas possuem diferentes objetivos, são

pluralistas, as normas cuja realização é desejável em uma sociedade ou para certa cultura

podem não ser em outra.

Como a teoria de Honneth resolveria, por exemplo, a questão fortemente problemática

na França sobre a proibição do uso do véu em lugares públicos pelas mulheres muçulmanas?

Deveria o povo francês conceder estima às mulheres muçulmanas em face à sua escolha em

utilizar um acessório que represente sua cultura ou “religião” como uma autorrealização de

um projeto individual? Talvez a resposta a esta questão necessite saber se efetivamente esse

problema se refere a uma questão de prática interpretativa secundária, ou simplesmente de um

desafio para a compatibilidade de práticas culturais específicas com a exigência de igualdade

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

12

de gênero nas sociedades liberais democráticas. A meu ver, na perspectiva honnethiana, para

que esse problema possa ser considerado um caso de práticas interpretativas secundárias seria

necessário que a comunidade mulçumana estivesse em consonância com seu próprio projeto

de autorrealização e, que, portanto lutasse pelo seu direito de expressão de sua cultura.

Enquanto isso não ocorre, (parece ter sido esse o caso na França) talvez esta questão diga

mais respeito a um problema sobre os princípios normativos básicos, isto é, uma

incompatibilidade de uma prática cultural da comunidade muçulmana com o princípio de

direito fundamental de igualdade entre os homens e as mulheres, que segundo a sociedade

liberal democrática francesa estaria sendo desrespeitado naquela exigência que os homens

daquela comunidade fazem às suas mulheres. Vendo desta maneira, talvez os muçulmanos na

França estejam errados em pensar que esse tipo de modo de autorrealização poderia garantir a

estima de seus concidadãos franceses, na medida em que portar o uso do véu entra em conflito

com os princípios de justiça deste país.

Honneth parece compreender esse problema na medida em que ele interpreta a

solidariedade moderna como uma narrativa em crescente expansão de possibilidade de

autorrealização pessoal e suas correspondentes exigências por reconhecimento, contudo não

se pode esquecer a segunda esfera do reconhecimento de sua teoria, isto é o direito e o

respeito legal. Parece que o direito e o respeito legal servem como uma espécie de esfera de

controle para saber até que ponto a expansão das bases da solidariedade podem ir. Se a luta

for suficientemente forte para mudar uma lei ou um princípio legal, isto significa então que

aquela interpretação secundária foi capaz de promover a mudança. Se isso não for o caso, as

regras legais permanecerão no mesmo lugar. Honneth diz que o “reconhecimento jurídico

contém em si um potencial moral capaz de ser desdobrado através de lutas sociais, na direção

de um aumento tanto de universalidade quanto de sensibilidade para o contexto”.

(HONNETH, 2003, p. 277).

Nesse sentido, parece efetivamente que as lutas pelo reconhecimento de uma estima

social tem o objetivo no final das contas de vê assegurado um direito que antes não era

concebido. Honneth afirma:

A relação jurídica moderna influi sobre as condições de solidariedade pelo fato de estabelecer

as limitações normativas a que deve estar submetida a formação do horizontes de valores

fundadores da comunidade. Por conseguinte, a questão sobre em que medida a solidariedade

tem de entrar no contexto das condições de uma eticidade pós-tradicional não pode ser

explicada sem uma referência aos princípios jurídicos. (HONNETH, 2003, p. 278).

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

13

Parece que isso Honneth não nega. Para o autor de Luta por reconhecimento as três

esferas de reconhecimento devem coexistir entre si, e a luta pela estima dos indivíduos ou de

um grupo é apenas percebida quando o resultado da luta se consubstanciou em um direito

garantido institucionalmente. Se o texto de Honneth pode ser interpretado desta maneira,

então a estima social como resultado da solidariedade necessitará para a sua realização do

apoio do direito, ao mesmo tempo em que é a própria luta pela estima social que terá o papel

de mudar os princípios e normas legais.

VIII – REFERÊNCIAS

BASAURE, Mauro. Réification et pathologies sociales. Sur la réactualisation d’un concept clé par Axel Honneth et la troisième generation de l’école de Francfort. In: LAZZERI,

CAILLĒ, Alain. Introduction. In: CAILLĒ, Alain (org.). La quête de reconnaissance: nouveau phenomena social. Paris: La découverte, 2007.

FRASER, Nancy e HONNETH, Axel. Redistribution or Recognition? A Political –Philosophical Exchange. Trad. Joel Golb, James Ingram e Christiane Wilke. Londres e NY: Verso, 2003.

HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos. Trad. Luiz Repa, Editora 34, 2003.

_________________. Sofrimento de Indeterminação: Uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel. Trad. Rúrion Soares Melo. São Paulo: Editora Singular, Esfera Pública, 2007.

_________________. Crítica del agravio moral. Patologias de la sociedad contemporánea. Buenos Aires: Fundo de Cultura Económica, 2009.

PENSKY, Max. Social Solidarity ans Intersubjective Recognition: On Axel Honneth’s Struggle for Recognition. In: PETHERBRIDGE, D. e outros (orgs.). Axel Honneth: Critical Essays. vol. 12. Leiden e Boston: Brill, 2011 , pp. 125-153.

PINZANI, Alessandro. Solidariedade e autonomia. In: Justiça, Virtude e Democracia: da amizade ao reconhecimento. Revista Dois Pontos, vol. 7, numero 2, outubro de 2010, pp. 157-173.

WERLE, Denilson Luis e MELO, Rúrion Soares. Reconhecimento e Justiça na Teoria Crítica da sociedade em Axel Honneth. In: NOBRE, Marcos (org.). Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas, SP: Papirus, 2009.

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA …  · Web viewA Solidariedade na Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth. Evânia Reich. Resumo: O artigo discute o papel da solidariedade

14

WERLE, Denilson Luis e MELO, Rúrion Soares. Introdução: Teoria crítica, teorias da justice e “reatualização” de Hegel. In: HONNETH, AXEL. Sofrimento de Indeterminação: uma reatualização da Filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Esfera pública, 2007.