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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO UFMT DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa De Pós-Graduação Em Filosofia O INDIVIDUALISMO E A PERDA DA TRADIÇÃO COMO CAUSAS DA DECADÊNCIA DA CULTURA OCIDENTAL SEGUNDO RENÉ GUENÓN: Uma Análise Crítica VALMIR OISSA CUIABÁ-MT 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO – UFMT

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Programa De Pós-Graduação Em Filosofia

O INDIVIDUALISMO E A PERDA DA TRADIÇÃO COMO CAUSAS DA DECADÊNCIA DA CULTURA OCIDENTAL SEGUNDO RENÉ GUENÓN: Uma Análise

Crítica

VALMIR OISSA

CUIABÁ-MT 2018

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VALMIR OISSA

O INDIVIDUALISMO E A PERDA DA TRADIÇÃO COMO CAUSAS DA DECADÊNCIA DA CULTURA OCIDENTAL SEGUNDO RENÉ GUENÓN: Uma Análise

Crítica

Orientador: Prof. Dr. Walter Gomide do Nascimento Junior

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso como parte das exigências do Curso de Pós-Graduação em Filosofia para obtenção do título de mestre

CUIABÁ-MT 2018

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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte.

Ficha catalográfica elaborada automaticamente de acordo com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

O39i Oissa, Valmir.

O Individualismo e a Perda da Tradição Como Causas da Decadência do Ocidente Segundo Rene Guenon : uma análise crítica / Valmir Oissa. -- 2018

ii, 72 f. ; 30 cm.

Orientador: Walter Gomide do Nascimento Junior.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Programa de Pós- Graduação em Filosofia, Cuiabá, 2018.

Inclui bibliografia.

1. Individualismo. 2. Tradição. 3. Metafísica. I. Título.

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SUMÁRIO

Página RESUMO .................................................................................................................. iii ABSTRACT .............................................................................................................. iv

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 1

1. CAPÍTULO I: ANÁLISE DO PENSAMENTO DE RENÉ GUENÓN .................... 4 1.1 CRÍTICAS DE RENÉ GUENÓN AO OCIDENTE ................................................ 4 1.2 METAFÍSICA SOB A ÓTICA DE RENÉ GUENÓN ............................................ 11 1.3 A DIVISÃO DO MUNDO EM DOIS POLOS ....................................................... 16 1.4 CONCEITO DE TRADIÇÃO ............................................................................... 17 1.4.1 Conceito De Tradição Na Cultura Ocidental ................................................... 18 1.4.2 Conceito De Tradição Oriental Nos Escritos De René Guenón ...................... 20 1.5 O INDIVIDUALISMO SEGUNDO RENÉ GUENÓN ........................................... 23 1.6 A REFORMA PROTESTANTE E O ROMPIMENTO FINAL COM A TRADIÇÃO OCIDENTAL ................................................................................. 25

2. PAUL TILLICH E O INDIVIDUALISMO ............................................................ 29

3. REFUTAÇÕES ÀS CRÍTICAS DE RENE GUENON ........................................ 38 3.1 METAFÍSICA ...................................................................................................... 38 3.1.1 Kant e a Metafísica ......................................................................................... 41 3.1.2 Bergson e o Intuicionismo ............................................................................... 46 3.1.3 Pragmatismo ................................................................................................... 49 3.1.4 Conclusões Sobre Metafísica .......................................................................... 51 3.2 A QUESTÃO DA TRADIÇÃO ............................................................................. 52 3.2.1 Tradição e Metafísica ...................................................................................... 52 3.2.2 Tradição e Ciência ........................................................................................... 55 3.2.3 Tradição Religiosa ........................................................................................... 59 3.3 INDIVIDUALISMO .............................................................................................. 66 3.3.1 Humanismo ..................................................................................................... 66

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 69

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 72

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RESUMO

OISSA, Valmir. O individualismo e a perda da tradição como causas da decadência da cultura ocidental segundo René Guenón: uma análise crítica. 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia Social) – Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá-MT. Orientador: Prof. Dr. Walter Gomide do Nascimento Junior. O presente estudo teve como objetivo fazer uma análise das críticas do filósofo francês René Guenón ao ocidente quanto à perda da tradição que, segundo ele, teria sido causada pelo individualismo e teria levado o ocidente a uma decadência intelectual. Embora René Guenón não seja um filósofo clássico, sua obra exerce influência na atualidade em vários países, existindo alguns centros de estudos de doutrinas tradicionais em países da América do Sul, como o Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais, em São Paulo. Guenón critica todo o sistema filosófico ocidental moderno por ter se afastado de concepções metafísicas tradicionais e relegado à razão a solução dos dilemas da humanidade. Segundo ele o ocidente se desviou da intelectualidade verdadeira e descambou em um pragmatismo em que somente a utilidade prática de qualquer conceito é relevante. Ao tecer sua crítica ele ataca pensadores como Descartes, Kant e Martinho Lutero, aos quais acusa de terem selado a decadência intelectual do ocidente devido ao uso da razão e ao rompimento com a tradição medieval. Para ele o que selou a queda ocidental foi a consolidação do individualismo no meio filosófico, o que teria impossibilitado o estudo de uma metafísica verdadeira e assim afastado toda ciência de sua essência. Martinho Lutero, por sua vez, é acusado por Guenón de ter dado o golpe final nesse rompimento do ocidente com a metafísica pura por ter ele causado a ruptura da religião ocidental, a qual era, segundo ele, a detentora de uma metafísica tradicional. Ao analisar suas obras percebemos que sua preocupação é com o afastamento do pensamento ocidental da metafísica mística que ele defende e todas as suas críticas estão embasadas nesse conceito místico de metafísica que defende. Para fazer a presente análise tomamos como base duas obras suas: Orient et Ocident e A Crise do Mundo Moderno, nas quais estão as críticas referidas. No decorrer dos estudos percebemos que suas afirmações não são compartilhadas por outros filósofos e nos valemos de pensadores por ele criticados ou contemporâneos seus para demonstrar a invalidade de suas críticas. Concluímos então que suas ideias estão equivocadas em diversos aspectos e que o melhor não é o retorno do ocidente à tradição passada, mas a adequação do oriente ao pensamento moderno em harmonia com sua tradição, fazendo os ajustes necessários para tal. Palavras-chave: metafísca, individualismo, tradição

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ABSTRACT The present study aimed to analyze the criticism of the French philosopher René Guenón to the West as to the loss of the tradition which, according to him, would have been caused by individualism and would have led the West to an intellectual decay. Although René Guenón is not a classical philosopher, his work is currently influential in several countries, with some centers of traditional doctrine studies in South American countries, such as the René Guénon Institute of Traditional Studies in São Paulo. Guenón criticizes the whole modern Western philosophical system for having moved away from traditional metaphysical conceptions and relegated to reason the solution of the dilemmas of humanity. According to him, the West has deviated from the true intelligentsia and has descended into a pragmatism in which only the practical utility of any concept is relevant. In his critique he attacks thinkers such as Descartes, Kant, and Martin Luther, whom he accuses of sealing the intellectual decadence of the West due to the use of reason and the break with medieval tradition. For him what sealed the western fall was the consolidation of individualism in the philosophical milieu, which would have prevented the study of a true metaphysics and thus removed all science from its essence. Martin Luther, on the other hand, is accused by Guenón of having given the final blow in this rupture of the west with the pure metaphysics for having caused the rupture of the western religion, which, according to him, was the holder of a traditional metaphysics. In analyzing his works we realize that his concern is with the remoteness of Western thought from the mystical metaphysics he defends, and all his criticisms are rooted in this mystical concept of metaphysics which he defends. In order to make the present analysis we have based on two works of his: Orient et Ocident and The Crisis of the Modern World, in which the criticisms referred are. In the course of the studies we realize that his statements are not shared by other philosophers and we use thinkers he criticized or contemporaries to demonstrate the invalidity of his criticisms. We conclude then that his ideas are wrong in many respects and that the best is not the return of the West to the past tradition, but the adequacy of the East to modern thought in harmony with its tradition, making the necessary adjustments for i

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INTRODUÇÃO

René Jean Marie Joseph Guenón, nasceu em Blóis, na França em 1886 e

morreu em Cairo, no Egito, em 1951. Foi, além de matemático, um influente filósofo,

metafísico e um estudioso da tradição oriental, bem como um crítico da cultura

ocidental de sua época. Era um poliglota que dominava, além de sua língua pátria,

diversas outras, incluindo alemão, grego, latim, árabe, sânscrito. Em sua formação

recebeu também “dados doutrinais obtidos por via oral diretamente de representantes

do hinduismo (escola de Shankara), do Islã (tariqah do Sheikh Elish El Kebir) e do

Taoísmo (por intermédio do filho espiritual de Tong Sou Luat, eminente mestre

Taoísta)”. (PONTUAL, em http://www.reneguenon.net/guenonbiografia.html)

Quanto à erudição de Guenón não restam dúvidas, nem quanto ao seu

interesse por doutrinas orientais. O que se pretende analisar nesta dissertação é a

validade de suas críticas ao ocidente que ele afirma experimentar um declínio

intelectual causado pelo que denomina de perda da tradição ocidental.

Pretendemos analisar de forma especial duas obras de Guenón: Orient et

Occident e A Crise do Mundo Moderno. Nelas o autor tece algumas críticas ao

ocidente moderno e defende a tradição oriental como um modelo superior de

intelectualidade a ser seguido. Dentre os pontos criticados por ele estão questões que

são caras ao ocidente e custaram por vezes muita luta e até mesmo vidas para se

alcançar. Falo de temas como sufrágio universal, acesso universal à educação, livre

exame das escrituras sagradas e democracia. Entretanto, como suas críticas se

dirigem mais pesadamente à perda da tradição religiosa que, segundo ele, foi em

grande medida causada pela reforma protestante e manifestada pelo individualismo

será nisso que concentraremos os maiores esforços.

Outros temas importantes são aludidos por Guenón e talvez constituam de

fato a verdadeira razão pela qual dirigiu pesadas críticas à cultura ocidental e propôs

a essa um retorno à tradição, falamos aqui das questões políticas. A questão da

dominação ocidental, especialmente a europeia, sobre povos orientais seja no campo

comercial ou militar, por potências mundiais como Reino Unido e França que estavam

em franco desenvolvimento industrial e buscavam expandir tanto suas fontes de

matérias primas quanto seu mercado consumidor, permeia as duas obras aqui

analisadas e é apresentada mais nitidamente no capítulo IV do livro Orient et Occident.

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Abordar essa questão, entretanto, fugiria aos propósitos dessa análise pois seria

necessário entrar no campo político, e não dispomos de espaço para tal feito. De

qualquer forma a razão que ele coloca para o afastamento entre oriente e ocidente é

fundamentalmente a perda da tradição por parte do ocidente e em suas conclusões

ele afirma que o entendimento entre oriente e ocidente não se daria no campo político

ou econômico (GUENÓN, 2009. p. 77) e propõe uma ajuda intelectual do oriente ao

ocidente para o retorno à tradição. Sendo assim, nos ateremos a essas questões

intelectuais sem nos preocupar com os temas políticos e afins.

O que pretendemos fazer aqui é inicialmente apresentar um panorama do

pensamento de Guenón exarado nessas duas obras e procurar compreender as

bases por ele utilizadas para fazer as afirmações que faz. Portanto, no primeiro

capítulo apresentaremos inicialmente as críticas por ele desferidas ao ocidente e os

conceitos que embasam tais críticas. Aqui será necessário entender desde logo sua

base metafísica, pois, como se verá, dela dependem todos os demais conceitos.

Neste ponto importa esclarecer que Guenón faz algumas afirmações sem se

preocupar em provar sua tese; quando possível recorreremos a outras obras suas

para elucidar a questão, do contrário apenas apresentaremos o que ele colocou no

texto.

Como será percebido a questão do individualismo recebe as maiores

críticas de Guenón e, por isso, no segundo capítulo apresentaremos um conceito do

filósofo e teólogo ocidental Paul Tillich sobre o individualismo, em sua obra A Coragem

de Ser. A razão para essa escolha se deve ao fato desse autor ser ligado ao

protestantismo (o maior alvo das críticas de Guenón) e tratar do individualismo na

perspectiva protestante, além de ter sido contemporâneo de Guenón.

No terceiro capítulo apresentaremos uma refutação às críticas de Guenón

tendo como base filósofos que foram por ele criticados ou que escreveram sobre os

temas a que ele se referiu. Convém esclarecer desde logo que será necessário

abordar diversos temas filosóficos, dos quais alguns são controversos e não

pretendemos propor sobre esses qualquer solução, pois o propósito desta pesquisa é

analisar criticamente as colocações de René Guenón e demonstrar suas

impropriedades. Por vezes nos valeremos de um autor específico que discorreu sobre

o assunto analisado para nele embasar nossas respostas às críticas de Guenón. Além

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disso, não temos espaço para esmiuçar cada tema por ele referido e procuraremos

sintetizá-los buscando uma compreensão satisfatória, coerente.

Finalmente faremos a conclusão procurando recapitular o que foi analisado

e apresentando o desfecho final dos estudos.

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1 ANÁLISE DO PENSAMENTO DE RENÉ GUENÓN

Inicialmente esclarecemos que neste capítulo apresentaremos diversos

temas que têm sido longamente discutidos na filosofia, mas não os aprofundaremos

devido a limitação tanto de tempo quanto de espaço. Tais temas precisam ser

mencionados porque o são nas obras críticas de Rene Guenon, mas nem ele mesmo

desce a detalhes sobre os mesmos, apenas os insere em seus textos apresentando-

os sob sua ótica e usando-os como bases de suas críticas. Por vezes ele nos dá

conceitos como se fossem universalmente pacíficos e se preocupa apenas em refutar

ou criticar. Isso será percebido nitidamente ao apresentarmos a questão da metafísica

e do individualismo, temas controversos nos estudos ocidentais aos quais ele

apresenta definições bem sintéticas como se fossem verdades pacíficas. De qualquer

forma pretendemos aqui apenas apresentar as críticas de Guenon ao ocidente, sua

validade ou não será apresentada no terceiro capítulo, onde precisaremos então

investigar um pouco mais a fundo o que for essencial para nossa pesquisa.

1.1 CRÍTICAS DE RENÉ GUENÓN AO OCIDENTE

Já na introdução do seu livro La Crise du Monde Moderne – A Crise do

Mundo Moderno – publicado originalmente em 1927, ele afirma a existência de uma

crise no ocidente e que tal crise teria já chegado a um ponto crítico. (GUENÓN, 2015b.

Introdução). A crise à qual se refere estaria concentrada no campo intelectual, isso está

por ele bem estabelecido desde a obra Orient et Occident (publicada originalmente

em 1924), bem como em A Crise do Mundo Moderno. É necessário ter em mente que

essa suposta crise não está por ele embasada em fatos nem em qualquer literatura.

Trata-se de uma asseveração guenonista simplesmente e as bases que ele

estabelece para tal crise são bases metafísicas, como será demonstrado no decorrer

deste estudo.

De maneira sucinta pode-se dizer que Guenón classifica a civilização

ocidental (representada especialmente pela Europa e América do Norte) como pueril

e orgulhosa, uma verdadeira contradição em si mesma, pois, mesmo sendo a

civilização mais jovem se autoproclama a mais sábia e se empenha em impor seus

pretensos saberes e sua cultura a todos os povos, engajando-se assim em um

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verdadeiro proselitismo ao redor do mundo no qual propaga sua pretensa evolução e

seus costumes como os melhores a todos os povos em todas as partes do planeta.

Certamente o termo “civilização” pode causar estranheza ao leitor culto,

pois alguns não o usariam para tratar de povos tão diferentes que habitam toda a parte

ocidental do planeta. Por mais que as nações das américas sejam formados por

misturas de povos da Europa, África e dos próprios habitantes primordiais das

américas ainda existem características substanciais que as distinguem (isso pode ser

observado ao se comparar o México com os Estados Unidos ou o Brasil com o

Paraguai, por exemplo). O mesmo cuidado deveria ser tomado para se falar dos povos

orientais, pois culturas como a da China certamente diferem em muito com a da Índia

e ambas diferem dos povos árabes. Mas Guenon usa, por vezes, o termo civilização

de modo geográfico, como se pode notar em sua afirmação seguinte:

Que existe uma civilização ocidental, comum à Europa e à América, é um fato que todos devem estar de acordo, seja qual for o valor que se atribua a essa civilização. Quanto ao Oriente, as coisas são menos simples, porque na verdade não existe uma, mas várias civilizações orientais; mas basta que elas possuam alguns traços comuns, aqueles que caracterizam o que chamamos de civilização tradicional, e que esses mesmos traços não sejam encontrados na civilização ocidental, para que a distinção e até mesmo a oposição de Oriente e Ocidente sejam plenamente justificadas. (GUENON, 2015b. p.31, tradução nossa)1

Entretanto, seu intento maior é distinguir Oriente e Ocidente sob um

aspecto metafísico, porém sobre isso falaremos ao tratar da metafísica a partir da ótica

guenonista.

Mas, retornando ao ponto inicial, quais seriam esses vantajosos saberes e

essa cultura de que o ocidente tanto se orgulha e que procura disseminar por todo o

mundo? Além do que foi apresentado na introdução (educação acessível a todos, livre

exame das escrituras sagradas, etc.) a civilização ocidental também apresentaria o

progresso científico e o desenvolvimento econômico como benfeitores da humanidade

que deveriam ser conhecidos e deles se deveriam apropriar as nações que quisessem

evoluir.

1 “Qu'il existe une civilisation occidentale, commune à lÉurope et à l'Amerique, c'est lá un fait sur lequel tout le

monde doit être d'accord, quel que soit d'ailleurs le jigement qu'on portera sur la valeur de cette civilisation. Pour

l'Orient, les choses sont moins simples, parce qu'il existe effectivement, non pas une, mais plusieurs civilisations

orientales; mais il suffit qu'elles possèdent certains traits communs, ceux qui caractérisent ce que nous avons

appelé une civilisation traditionnelle, et que ces mêmes traits ne se trouvent pas dans la civilisation occidentale,

pour que la distinction et même l'opposition de l'Orient et de l'Occident soit pleinement jistifiée.”

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Observe-se que ele não esclarece em suas obras como seria esse

proselitismo que afirma existir. Porém, da leitura de seu livro Orient et Occident

(Oriente e Ocidente), especialmente a primeira parte: Illusions Occidentales (Ilusões

Ocidentais) notamos que ele se refere à propaganda ocidental sobre sua cultura e seu

desenvolvimento material, especialmente científico e tecnológico. Mas não se trata de

mera publicidade, trata-se de imposição, por meios políticos ou militares. Para

Guenón o ocidente estaria tentando impor a qualquer custo seu progresso material e

seus costumes. Afirma ele:

Os ocidentais de hoje ainda estão persuadidos de que o progresso, ou o que eles chamam disso, pode e deve ser contínuo e indefinido; ... e eles se entregaram à missão de fazer esse progresso penetrar em todos os lugares, impondo-o, se necessário, pela força às pessoas que cometem o erro, imperdoável a seus olhos, de não aceitá-lo prontamente. (GUENON, 2015c. p. 98-99, tradução nossa)

Tal coisa é vista pelos orientais, segundo afirma René Guenón, como uma

arrogância que incomoda e afasta cada vez mais as civilizações orientais e ocidentais

por se tratar de um desenvolvimento meramente material acompanhado de uma

regressão intelectual. Por essa razão, ele se detém mais minuciosamente na crítica

da intelectualidade ocidental, que seria, segundo ele, a raiz dos demais problemas,

pois o desenvolvimento científico e tecnológico poderiam ser recebidos de bom grado

pela civilização oriental (pelo menos até onde essa julgasse importante receber) e até

mesmo os costumes sociais do ocidente seriam tolerados e respeitados caso

estivessem firmados em uma intelectualidade pura. No terceiro capítulo trataremos

brevemente dessa questão a fim de avaliar a relação do desenvolvimento tecnológico

e científico do ocidente com seu desenvolvimento intelectual.

Convém esclarecer que Guenon reconhece a superioridade material do

ocidente, mas infere a ele uma inferioridade intelectual e, para ele, as questões de

ordem intelectual estão hierarquicamente acima das de ordem material e, como ele

considera o oriente intelectualmente superior ao ocidente crê por isso que o ocidente

estaria em desvantagem e deveria buscar apoio intelectual no oriente antes de tentar

levar-lhe seu desenvolvimento material.

Entretanto, antes de prosseguir é necessário entender que por

intelectualidade ele não se refere à mera erudição, o que tem em mente e que chama

de intelectualidade pura, seria “a verdadeira intelectualidade, a que não se limita à

ordem humana nem à ordem natural, aquela que torna possível o conhecimento

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metafísico puro em sua absoluta transcendência.” (GUENÓN, 1985. P.13. PDF) Mais

adiante voltaremos a tratar dessa intelectualidade e como se pode atingi-la segundo

o entendimento de Guenón. Antes, porém, façamos um apanhado das suas críticas

no campo intelectual. Procuraremos apresentar a questão de forma a compreender o

centro do problema aludido por ele. Perceberemos que a crítica dele forma um sistema

fechado, com um núcleo unindo todas as partes.

Na abertura de seu livro Orient et Occident (publicado em 1924), René

Guenón desfere seus primeiros ataques à filosofia ocidental, citando notadamente

Bacon (1561 a 1626), Descartes (1596 a 1650) e Bergson (1859 a 1941)1, seu

contemporâneo. Esses filósofos seriam representantes ilustres de uma filosofia que

limitou a inteligência à razão e àquilo que se pode absorver por ela. Essa filosofia

exponenciada por Bacon e Descartes ficou conhecida como racionalismo e teria, na

concepção de Guenón, lançado as bases para outro movimento filosófico ainda

inferior: o intuicionismo (de Henri Bergson) que, segundo Guenon, rebaixa a verdade,

o conhecimento, ainda mais, a ponto de identificá-lo apenas à realidade sensível com

todas as flutuações que lhe são próprias (muito embora tal conceito simplista de

intuicionismo seja ao menos criticável) e, finalmente descambou no pragmatismo, que

identifica a verdade apenas com sua utilidade (na terceira seção abordaremos

brevemente esse tema). O que se percebe aqui é que, para Guenón, a filosofia no

ocidente iniciou um afastamento da verdade de seu centro e acabou por tornar essa

verdade algo no mínimo duvidoso. Esse afastamento abriu portas para movimentos e

teorias que acabaram por tirar o ocidente de seu prumo. Para ele o que dirige os

ocidentais já não é a inteligência, a intelectualidade, mas o sentimento ou o

sentimentalismo, posto que a preocupação ocidental se restringiria apenas ao

desenvolvimento material. Neste sentido afirma Guenón que “é o sentimento, e não a

inteligência, o que parece estar ligado à matéria. (GUENÓN, 2009. P.19)

Qual seria esse centro que aprumava o ocidente? Para Guenón seria a

tradição católica medieval, por ser a igreja católica da idade média a detentora do

verdadeiro conhecimento metafísico, ainda que a igreja apresentasse a metafísica

1 Pode causar estranheza ao leitor que esses filósofos sejam todos “postos no mesmo cesto”, mas é assim que o faz Rene Guenon e nesta seção estamos apenas reproduzindo suas críticas. No decorrer do estudo ficará claro que ele procura dividir tudo (pensadores e ideias) simplesmente em metafísicos verdadeiros (conforme o seu entendimento particular de metafísica) e não-metafísicos ou pseudometafísicos, por isso consegue citar pensadores muito diferentes como se fossem muito assemelhados.

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apenas em sua forma religiosa. Então, segundo ele, o que ocorreu foi que a

intelectualidade verdadeira, que é a metafísica pura – como veremos logo adiante –

começou a ser gradualmente degenerada, inicialmente pela filosofia (tendo Descartes

como o principal expoente dessa degradação) e pela teologia protestante

(considerando-se Martinho Lutero o grande mentor desse movimento) e,

posteriormente, pela ciência (entenda-se como a ciência naturalista, a que só se

ocupa com o observável) e até mesmo pela psicologia.

Em suma, entendemos que toda a crítica de Guenón ao ocidente deriva de

seu conceito a respeito da metafísica, que ele chama de intelectualidade pura.

Teríamos um esquema centrífugo do conhecimento, tendo a intelectualidade pura ao

centro e todos os ramos do saber partindo e derivando dela; porém, quanto mais se

afastarem dela menos força terão. Já quando se trata de atingir essa intelectualidade

é possível e mesmo mais provável que ocorra um movimento centrípeto, pois o

homem partirá de seu estado atual e se deslocará gradativamente ao centro através

de uma progressão dos estados múltiplos do seu ser até alcançar a intelectualidade

pura.

A conclusão a que chegamos e acabamos de apresentar deriva do contexto

dos escritos de René Guenón estudados para esta pesquisa. E cremos que está bem

sintetizado na afirmação dele que transcrevemos a seguir:

Poder-se-ia dizer que há aí dois pontos de vista, um descendente e outro ascendente, dos quais o primeiro corresponde a um desenvolvimento do conhecimento partindo dos princípios para chegar às aplicações cada vez mais afastadas deles, e o segundo uma aquisição gradual desse mesmo conhecimento procedendo do inferior para o superior, ou, ainda, do exterior para o interior. (GUENÓN, 2007. p.49-50)

Portanto, o que Guenón assevera é que, partindo da filosofia, o ocidente foi

desfigurando o conhecimento verdadeiro e limitando-o apenas ao que a razão pode

perceber e, com esse movimento, terminou por desfigurar a intelectualidade, a

metafísica pura, a tal ponto que perdeu completamente sua tradição (metafísica) e

chegou mesmo a perder a capacidade de ainda absorver esse conhecimento

verdadeiro, que é o conhecimento metafísico.

Uma das críticas que ele desfere ao ocidente moderno é quanto à

especialização cada vez maior da ciência que vai criando ramificações do

conhecimento, mas a tal ponto que isso afasta esses ramos da raiz – a intelectualidade

pura. Como exemplos mencionaremos aqui a Física e a Astrologia e a Alquimia.

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Quanto à Física, Guenón alude que esta era até recentemente na história

uma ciência que estudava o mundo físico, a natureza, em seu conjunto. Segundo ele

Aristóteles via a Física como dependente da Metafísica, pois seria apenas uma

aplicação dos princípios superiores – Metafísicos – ao mundo natural e só se poderiam

compreender as leis da Física tendo em mente os princípios superiores dos quais ela

deriva. (GUENÓN, 2007. p.43-44. PDF) Mas, modernamente o termo Física refere-se

apenas a uma parte muito específica das ciências naturais, sem qualquer ligação a

priori com algo superior a ela. E, devido a esse afastamento dos princípios metafísicos,

ainda que se reunissem todos os ramos da ciência moderna não seria possível

reconstruir a verdadeira ciência tradicional, pois tudo estaria alijado da raiz de onde

de fato se originaram.

Tratando-se da Astrologia e da Alquimia ele afirma que é possível dizer que

a Astronomia e a Química modernas procedem delas; essa procedência, contudo,

“não é por ‘evolução’ ou ‘progresso’, como é pretendido, mas pelo contrário, pela

degeneração”. (GUENÓN, 2015b. p. 60, tradução nossa) A razão para essa

degradação seria novamente o afastamento do que ele chama de conhecimento de

ordem superior, ou intelectualidade pura.

Enfim, a tese de René Guenón é que nenhum conhecimento, nenhuma

ciência, pode ser verdadeiramente significativa se estiver separada da intelectualidade

pura, da metafísica pura. Para ele o Ocidente se degenera cada vez mais porque

quanto mais sua ciência se especializa e avança (apesar de que para os orientais –

segundo Guenón – não há avanço verdadeiro, a não ser nas aplicações práticas de

algumas ciências; há antes um retrocesso e uma valorização de aspectos secundários

ou irrelevantes da verdadeira ciência), mais se afasta do seu centro perdendo assim

a sua importância real, que vai muito além das aplicações práticas, posto que essas

são transitórias. Para sintetizar sua visão a respeito das ciências encontradas no

ocidente moderno podemos repetir suas palavras de que são um saber ignorante, vão

e ilusório, que partem do nada e ao nada conduzem. (GUENÓN, 2007. p. 52)

Ele desfere críticas a Descartes a quem acusa de limitar a inteligência à

razão e colocar a metafísica unicamente como um pano de fundo à física e colocar a

física como a ciência necessária para a constituição de todas as ciências aplicadas,

inclusive a moral. Para Guenon a filosofia cartesiana seria uma negação do

conhecimento “suprarracional” (referindo-se à metafísica verdadeira que seria um

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conhecimento não atingível pelo simples uso da razão, como veremos mais adiante)

e isso estreitaria a inteligência humana em vez de expandi-la. (GUENON, 2015c. p.20)

Em suas considerações sobre as ciências ele afirma ainda que há “ciências

tradicionais” no oriente das quais os ocidentais não têm a menor ideia e que houve no

ocidente na idade média ciências que poderiam ser comparadas às ditas ciências

tradicionais do oriente, mas não deixa claro quais seriam essas ciências. Todavia, do

contexto maior de suas obras depreende-se que estaria se referindo à alquimia e

astrologia, entre outras. (GUENON, 2015c. p. 50)

Ao tentar estabelecer uma hierarquia adequada do conhecimento humano

ele estabelece ainda que a metafísica está acima de qualquer outro conhecimento,

inclusive do conhecimento científico:

O que está acima da ciência, na hierarquia necessária do conhecimento, é a metafísica, que é o conhecimento intelectual puro e transcendente, enquanto a ciência é, por definição, apenas um conhecimento racional; A metafísica é essencialmente supra-racional, deve ser assim ou não deverá ser absolutamente nada.1 (GUENON, 2015c, p. 50, tradução nossa)

Sobre a metafísica defendida por Guenon trataremos logo a seguir e

quanto a essas questões da ciência, especialmente suas críticas a Descartes,

trataremos no terceiro capítulo.

Apesar de desferir críticas à ciência - a que ele atribui o epíteto de

cientificismo - e à psicologia e filosofia também, às quais ele acusa de levarem o

homem a um nível “infra-humano, com o apelo ao ‘subconsciente’, que marca a

derrocada completa de toda a hierarquia normal” (GUENÓN, 2015b, p. 72, tradução

nossa), é ao individualismo e ao protestantismo que ele responsabiliza pela

decadência intelectual do ocidente, porque, em sua visão, esses movimentos

concluíram a ruptura do ocidente com sua tradição metafísica.

Inicialmente precisamos ter em mente que a inclinação metafísica de

Guenón é indissociável de toda a sua obra. Para ele existe uma intelectualidade pura,

suprema, da qual derivam todas as ciências verdadeiras, essas ciências, portanto, são

apenas manifestações de partes específicas da verdadeira intelectualidade ou nas

palavras de Guenón: “um prolongamento ou um ramo secundário da doutrina, cuja

1 “Ce qui est au-dessus de la science, dans la hiérachie nécessaire des connaissances, c'est la métaphysique, qui est la connaissance intellectelle pure et transcendante, tandis que la science n'est, par définition même, que la connaissance rationnelle; la métaphysique est essentiallement supra-rationelle, il faut qu'elle soit cela ou qu'elle ne soit pas.”

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parte essencial é constituída pela Metafísica pura.” (GUENÓN, 2007. p.48) Essas

diversas ciências não seriam apenas ramos secundários da intelectualidade pura ou

da intuição intelectual verdadeira, mas igualmente meios para se chegar a ela,

exercendo assim uma dupla função a quem a ela se dedica, como vimos

anteriormente.

Chama a atenção a expressão metafísica pura que o filósofo usa em suas

obras e como já se pode perceber é necessário compreender a inclinação metafísica

dele para que se entenda todo o restante da sua crítica, isso faremos em seguida.

1.2 METAFÍSICA SOB A ÓTICA DE RENÉ GUENÓN

Ao longo de suas obras transparecem diversas críticas às diferentes

abordagens dos filósofos ocidentais à metafísica. No capítulo VIII de seu livro

Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus ele trata do pensamento filosófico

e do pensamento metafísico, os quais, na sua visão, são completamente distintos.

Afirma Guenon o seguinte:

O fato de tratar a metafísica como um ramo da filosofia, seja colocando-a assim sobre o mesmo plano que quaisquer relatividades, seja mesmo qualificando-a de ‘filosofia primeira’, como fazia Aristóteles, denota essencialmente um desconhecimento de seu verdadeiro alcance e de seu caráter de universalidade: o todo absoluto não pode ser uma parte de qualquer coisa, e o universal não poderia ser encerrado ou compreendido em qualquer coisa que seja. (GUENON, 2015a, p. 88)

Como ele define metafísica é o que buscaremos tratar neste capítulo. Há

uma definição de Guenon que parece simplificar seu conceito sobre metafísica: “A

metafísica é o conhecimento dos princípios universais, dos quais todas as coisas

necessariamente dependem direta ou indiretamente.” (GUENON, 2015c. p. 51,

tradução nossa)1 Porém ao longo de seus escritos ele deixa claro que essa é apenas

uma forma de se abordar o tema, mas a metafísica não pode ser reduzida a um

conceito. Ao dar esse conceito ele estaria apenas formulando uma exposição para

traduzir tanto quanto possível, em um discurso racional, as verdades metafísicas, mas

a própria metafísica, como concepção intelectual pura estaria totalmente acima das

limitações individuais. (GUENON, 2015a, p. 91) Para ele nem o objeto estudado pela

metafísica nem os meios empregados nesse estudo poderiam ser encontrados no

1 “La métaphysique est la connaissance des pricipes d'ordre universel, dont toutes choses dépendeent nécessairement, directement ou indirictement.”

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mundo físico, natural. Uma indagação proferida por ele em uma conferência

apresentada na Sorbonne (universidade de Paris) e publicada inicialmente em 1939

resume bem sua crítica à metafísica ocidental: “Como então podem alguns alegar que

o conhecimento metafísico é um conhecimento natural, seja quanto ao seu objeto,

seja quanto às faculdades pelas quais esse conhecimento é obtido?” (GUENON,

1985. p.5. PDF) Durante sua exposição ele afirma que a verdadeira metafísica é

universal, pois está além de todas as formas e contingências. As formas exteriores de

que ela se reveste, porém, para exprimir o que dela é possível podem variar –

basicamente podem ser orientais, a forma pura dessa expressão segundo ele, ou

ocidentais; mas essa última é imprecisa ou mesmo apenas hipotética e até fantasiosa.

(GUENON, 1985. p.4. PDF)

Nessa exposição René Guenón indica não ser possível definir a metafísica

(sempre entendida como a metafísica pura – a que é estudada sob a ótica oriental),

pois ela é absolutamente ilimitada não podendo ser enclausurada “em nenhuma

fórmula e em nenhum sistema.” (GUENON, 1985. p.6. PDF) Entretanto ele deixa claro

que a metafísica verdadeira se ocupa daquilo que está além da natureza; em suas

palavras, metafísico “é aquilo que está além e acima da natureza, é portanto,

propriamente o ‘sobrenatural’.” (GUENON, 1985. p.6. PDF) Tal asseveração remete

ao conceito de metafísica como um conhecimento acima da razão e que nada tem em

comum com qualquer ciência particular. Essa distinção ele faz questão de destacar:

Importa destacar que dissemos conhecimento e não ciência; nossa intenção nisto é marcar a profunda distinção que é preciso estabelecer necessariamente entre a metafísica de um lado, e, de outro, as diversas ciências no sentido próprio desta palavra, isto é, todas as ciências particulares e especializadas, que têm por objeto tal ou qual aspecto determinado das coisas individuais. Eis aí, no fundo, a distinção mesma entre universal e individual, distinção que não deve ser tomada como uma oposição, porque não há entre ambos os termos, nenhuma medida comum nem qualquer relação de simetria ou de coordenação possível. Aliás, não poderia haver oposição ou conflito de qualquer espécie entre a metafísica e as ciências, precisamente porque seus respectivos domínios são profundamente separados; e ocorre exatamente da mesma maneira, de resto, em relação à religião. (GUENON, 2015a. p.69)

Outra expressão empregada por ele para descrever o conhecimento

metafísico é intuição intelectual, que ele apresenta como estando no “domínio dos

princípios eternos e imutáveis”. (GUENON, 1985. p.6)

Como podem os homens adquirir tal conhecimento que transcende mesmo

a natureza? De que forma um ser natural poderia absorver o sobrenatural? Para

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responder a essa questão Guenón apresenta inicialmente, sem dar maiores detalhes,

uma teoria dos estados múltiplos do ser1. Diz ele:

Não é enquanto homem que o homem pode chegar a ele; mas sim na medida em que esse ser, que é humano em um de seus estados, é ao mesmo tempo outra coisa e mais que ser humano; e é a tomada de consciência efetiva dos estados supra individuais que é o objeto real da metafísica, ou melhor ainda, o conhecimento metafísico mesmo. (GUENON, 1985. p.6. PDF)

René Guenón entende que para o indivíduo (o ser humano) alcançar o

conhecimento metafísico terá, obviamente, que partir do seu estado humano atual,

limitado, e prosseguir até atingir estados superiores. Sinteticamente ele apresenta

dois passos para se atingir a realização da metafísica. Inicialmente ele afirma que o

ser humano hoje está em um estado decaído em relação ao seu estado original e, por

isso, seria necessário restaurar o ser ao seu estado primordial. Segundo ele todas as

tradições concordam que houvera uma ocasião em que o ser usufruíra de uma

condição mais elevada. Em suas palavras:

por que essa denominação ‘estado primordial’? É porque todas as tradições, incluindo a do Ocidente (porque a própria Bíblia não diz outra coisa), concordam em ensinar que esse estado é o que era normal para as origens da humanidade, enquanto o estado atual é apenas o resultado de uma decdência. (GUENON, 1985, p.9. PDF)2

Portanto, o primeiro passo deve ser restaurar o estado primordial do ser.

Para tanto seria necessário “colocar-se fora do tempo... no ‘não-tempo’.” (GUENON,

1985, p.9. PDF)

Esse estado primordial do ser embora não seja ainda um estado supra

individual já conferiria a quem o atingiu o senso de eternidade, ou seja, esse indivíduo

já estaria liberto da noção do tempo, vivendo não mais uma sucessão aparente das

coisas, mas uma perfeita simultaneidade, em outras palavras, estar fora do tempo e

possuir o sentido de eternidade significa conseguir ver o mundo em um eterno

1 Estados Múltiplos do Ser: Para não fugirmos do propósito desta seção – apresentar a metafísica sob a ótica de Guenón – nos absteremos de esclarecer quais seriam esses estados do ser ao qual ele se refere, apenas deve-se entender que para essa teoria há múltiplos e ilimitados estados em que o mesmo ser se apresenta e que o indivíduo (a individualidade do ser) é uma manifestação transitória e acidental desse, mas o mesmo ser é completamente independente de qualquer das suas manifestações e todos os estados do ser estão em simultaneidade perfeita no presente, que é para o ser um eterno presente. Na obra LES ÉTATS MULTIPLES DE L’ÊTRE ele desenvolve essa teoria com mais profundidade. Esse livro pode ser encontrado em https://electrodes.files.wordpress.com/2008/12/guenon-1932-les-c3a9tats-multiples-de-lc3aatre.pdf 2 “Pourquoi cette dénomination d'«état primordial»? C'est que toutes les traditions, y compris celle de l'Occident (car la Bible elle-même ne dit pas autre chose), sont d'accord pour enseigner que cet état est celui qui était normal aux origines de l'humanité, tandis que l'état présent n'est que le résultat d'une déchéance.”

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presente e não como uma sucessão de eventos; o que está restaurado a seu estado

primordial é capaz de ver o presente, o passado e mesmo o futuro simultaneamente.

Isso seria possível através do desenvolvimento de possibilidades virtualmente

contidas na individualidade humana. Como, porém, se desenvolvem tais

possibilidades virtuais ele não indica aqui (essa questão é abordada por ele na obra

Les États Multiples De L’être - Os Estados Múltiplos Do Ser, publicada originalmente

em Paris no ano de 1932). Guenón coloca que, para se atingir a realização metafísica

a única preparação verdadeiramente indispensável seria o conhecimento teórico e

este se alcança principalmente através da concentração. (GUENON, 1985, p. 8-9.

PDF)

A segunda fase nesse processo poderia ser subdividida em muitas

etapas que se sucederiam partindo de estados que pertencem à existência

manifestada pelas formas (aqui o ser já restaurou seu estado primordial; este seria já

um estado supra individual, ainda condicionado mas de forma diferente do estado

humano apenas) até atingir um estágio em que o ser seria absolutamente

incondicionado, que seria o estado universal do ser puro, onde o ser se encontra

liberto de limitações; é um estado que não se consegue exprimir em palavras; “é o

que a doutrina hindu chama de ‘Libertação’, quando o enfoca em relação aos estados

condicionados, e também de ‘União’, quando se reporta ao Princípio Supremo.”

(GUENON, 1985. p.10. PDF – tradução nossa)

Podemos afirmar que René Guenón entende a metafísica verdadeira como

o conhecimento por excelência, um conhecimento intelectual puro e transcendente,

universal, uno1 e que está hierarquicamente acima da ciência, aqui entendida tanto

como a ciência experimental que ele chama de cientificismo ou como qualquer ramo

de conhecimento que se possa alcançar pelo uso simples da razão, inclusive a

teologia, e que não se atinge esse conhecimento pelo simples uso da razão, sendo

necessário atingir estados mais elevados do ser, estados transcendentes mesmo,

para se alcançar essa intuição intelectual. Ademais, convém esclarecer que para ele

1 No capítulo VIII do seu livro Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, especialmente da página 96 à 99, Guenon aborda a controvérsia entre o dualismo e o monismo (fala do monismo espiritualista, que reduz a matéria ao espírito, e do monismo materialista, que reduz o espírito à matéria) e apresenta uma doutrina que ele denomina de não-dualismo e que seria segundo ele uma doutrina verdadeiramente metafísica que abarca dualismo e monismo “simultaneamente na unidade de um princípio comum, de ordem mais universal, e no qual eles são igualmente contidos, não mais opostos propriamente falando, mas complementares, por uma espécie de polarização que não afeta em nada a unidade essencial desse princípio comum.” (GUENON, 2015a, p. 99) Para ele o não-dualismo é a única doutrina que corresponde à universalidade metafísica.

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a metafísica pura é distinta de qualquer outro ramo de conhecimento, inclusive a

teologia e não pode ser confundida com religião ou religiosidade. Guenón de fato

separa a metafísica da teologia e da religião. Em nenhum momento faz menção a

Deus ou divindade e para ele a teologia é apenas uma das formas de se expressar a

metafísica verdadeira, mas consegue expressar apenas alguns poucos aspectos dela,

sem dar mais do que uma pálida ideia desses aspectos o que a torna imperfeita;

imperfeição essa acentuada por costumar vir carregada de sentimentalismo.

Para Guenón a metafísica pura é encontrada na tradição oriental,

especialmente a tradição hindu (mas não se deve pensar no hinduísmo enquanto

manifestação religiosa) e a chinesa (ainda que, especialmente na China, ela seja

privilégio de uma elite intelectual). Já na cultura islâmica a metafísica é conhecida

apenas por algumas escolas esotéricas que são distintas da filosofia árabe exotérica

– externa - em geral. Essa metafísica é inspirada pela filosofia grega e nunca foi

totalmente distinta da teologia, o que a torna uma metafísica incompleta.1

Para ele tanto o conhecimento que se busca quanto os meios, as

faculdades usadas para alcançá-lo estão fora do mundo natural e sua simples

racionalidade; estão esses meios todos no aspecto transcendente, na realidade supra

individual. Apenas duas ciências, na verdade, além da teologia, têm, segundo ele,

alguma proximidade com a metafísica pura, essas não são ciências experimentais;

trata-se da lógica e da matemática. Quanto à lógica, sua aproximação com a

metafísica se deve ao fato de que os princípios lógicos são, segundo Guenón, uma

aplicação e especificação, em um determinado domínio, dos princípios universais.

Quanto à matemática, apesar de estar restrita ao domínio da quantidade, se vale de

princípios relativos que estão ligados a alguns princípios universais. Entretanto,

apesar desses princípios refletirem algo da metafísica pura, estão ainda assim

profundamente separados dela, pois estão contingenciados no domínio da razão

(GUENON, 2015. p.90-91).

Só encontramos uma forma de expressar o entendimento de Guenón sobre

a metafísica pura: é o conhecimento universal, uno e imutável, e é sobrenatural,

transcende o mundo físico, incluindo-se o ser humano e, para se alcançar essa

metafísica pura, é necessário transcender os limites naturais do homem, passando

1 Mais detalhes podem ser encontrados em http://www.reneguenon.net/GUENONtextos/IRGETGuenonMetafisicaOriental.html

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desse estado de manifestação do ser em que nos encontramos para outro, supra

individual. Um conceito realmente estranho para a mentalidade ocidental, como ele

mesmo afirma, e que nos parece mais uma espécie de misticismo.

Lembramos que a razão para dedicarmos esse pequeno espaço para

abordar a visão metafísica de Guenón deve-se ao fato de que não se conseguiria

entender as críticas desse filósofo francês à cultura ocidental sem compreender este

ponto, pois sua metafísica é a base sobre a qual ele alicerça toda a sua crítica.

Portanto, quando tratarmos da tradição e do individualismo deveremos ter em mente

este seu conceito do que é a metafísica pura. Pelo exposto até aqui fica claro que é

uma metafísica diversa da que se conhece no meio ocidental (ele inclusive rejeita o

uso do termo aristotélico filosofia primeira para designar a verdadeira metafísica, pois

a filosofia não poderia ser de nenhum modo equiparado à metafísica, a essa tentativa

da filosofia de tratar da metafísica, ele classifica de pseudo metafísica.

Isso posto podemos prosseguir na análise da crítica de René Guenón à

cultura ocidental.

1.3 A DIVISÃO DO MUNDO EM DOIS POLOS

Em uma visão panorâmica de duas de suas obras (Oriente e Ocidente e A

Crise do Mundo Moderno) podemos afirmar que para ele o mundo poderia ser dividido

em dois grandes contingentes, a civilização oriental e a ocidental. Do lado oriental se

encontrariam na verdade diversas civilizações, mas que podem ser reunidas em um

único grupo por conservarem todas os mesmos princípios fundamentais, embora

divirjam nas formas exteriores nas quais esses princípios se manifestam (as religiões,

por exemplo, seriam formas exteriores de manifestação do mesmo princípio

fundamental que forma a tradição oriental); assim, poder-se-ia dizer que há múltiplas

civilizações orientais e que essa multiplicidade se deve a aspectos culturais e/ou

geográficos que as condicionam, mas todas elas podem ser reunidas em um mesmo

grupo. Essas diferentes civilizações são tidas por ele como tradicionais, ou normais e

mesmo sendo distintas em vários aspectos não são opostas entre si (entendendo-se

oposição não no sentido político, mas no sentido intelectual e esse último tendo em

vista a intelectualidade pura exposta anteriormente) justamente por se manterem

todas fiéis à tradição. Por outro lado existe outro bloco, a civilização ocidental. Essa é

mais facilmente percebida, inclusive geograficamente, e trata-se da Europa e das

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Américas. Segundo ele pelo fato da civilização ocidental moderna ter-se afastado da

sua tradição tornou-se uma civilização anormal e desviada, que nega qualquer

princípio superior, estando assim em verdadeira oposição à civilização oriental não

lhe restando nessa condição nenhuma possibilidade de entendimento com as

civilizações orientais.

Da leitura dessas obras de Guenón anteriormente aludidas extraímos

que ele atribui a causa dessa ruptura entre oriente e ocidente ao fato de o ocidente

ter perdido seu espírito tradicional, ter rompido modernamente com sua tradição

própria. Como se deu essa ruptura e de que forma ela se apresenta é o que

passaremos a analisar em seguida. Nosso ponto de partida aqui será entendermos o

conceito de tradição no qual se baseia René Guenón.

1.4 CONCEITO DE TRADIÇÃO

1.4.1 Conceito De Tradição Na Cultura Ocidental

Inicialmente busquemos um conceito ocidental de tradição. Há várias

formas de se abordar a questão e, normalmente a tradição é estudada a partir da

sociologia ou da história. Aqui, porém, buscaremos encontrar um conceito comum que

atenda ao propósito desta pesquisa e possa sintetizar o entendimento filosófico sobre

o termo (pelo menos o conceito de tradição na filosofia moderna).

Originalmente o termo tradição carregava em si um significado religioso,

mas com o passar do tempo passou a representar o produto do passado que

permanece no presente conservando não só as características da religião de uma

dada sociedade ou civilização, mas todos os elementos culturais dos costumes, artes,

etc. Entretanto, há discussões se tradição seria algo estanque ou mutável e se é

possível conciliar tradição e modernidade, tradição e criticismo. A resposta a esses

embates vai variar justamente de acordo com o entendimento do que seria a tradição.

Para alguns pensadores, como Dominique Wolton a tradição seria uma constante

evolução e transformação que acompanha o desenvolvimento de uma sociedade,

uma fonte de aprendizado e reapropriação, uma espécie de elo entre o passado e o

presente que daria estabilidade para a sociedade suportar as mudanças necessárias,

servindo como moderador na medida em que lança bases para mudanças paulatinas;

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essa ligação da tradição com as mudanças tem sido aceita de forma frequente na

atualidade por muitos estudiosos (SILVA, 2009. p.405-406).

No campo filosófico o cenário é semelhante. Inicialmente se tinha a tradição

como a transmissão de uma verdade ou um conjunto de verdades e, normalmente, se

encarava a tradição sob um prisma religioso ou metafísico. Hegel apresenta a tradição

como um patrimônio autoconsciente da razão que é produzido pelas gerações

precedentes e transmitido às próximas gerações como uma herança. Hegel vê a

tradição como um patrimônio inestimável para o avanço da ciência e da filosofia. Como

se observa a seguir:

Se alguma coisa somos no domínio da ciência e da filosofia, devemo-lo à tradição, a qual, através do que é caduco, e por isso mesmo passado, forma, segundo a expressão de Herder, uma corrente sagrada que conserva e transmite tudo quanto o mundo produziu antes de nós. Mas esta tradição não é apenas uma ama que conserva fielmente o patrimônio recebido para o manter e transmitir invariável aos vindouros, como o curso da natureza que, através de infinitas variações e atividades de formas e funções, sempre se conserva fiel às suas leis originais sem progredir; não é estátua de pedra, mas é viva, e continuamente se vai enriquecendo com novas contribuições, à maneira de rio que engrossa o caudal à medida que se afasta da nascente. (HEGEL, s.d. p. 328)

Hannah Arendt apresenta um conceito semelhante, mas de forma sintética

ao afirmar que “a tradição ordena o passado não apenas cronológica, mas antes de

tudo sistematicamente, ao separar o positivo do negativo, o ortodoxo do herético, o

que é obrigatório e relevante dentre a massa de opiniões e dados irrelevantes ou

simplesmente interessantes.” (ARENDT, 1983, p. 32. PDF)

Walter Benjamin igualmente traz essa ideia de tradição como algo que se

transmite ao declarar que “a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite

os acontecimentos de geração em geração.” (BENJAMIN, 1994, p. 211, PDF) Para

ele a tradição é o veículo que traz a sabedoria do longe temporal (Idem, p. 202).

Com base no exposto até aqui podemos afirmar que tradição na cultura

ocidental pode ser entendido como um produto em constante mutação, tanto por

agregação de novos conhecimentos quanto por desalienação de paradigmas

longamente sustentados, mas que já não se mostram condizentes com fatos

empíricos ou raciocínios lógico-filosóficos amadurecidos por gerações de pensadores.

A título de ilustração é possível afirmar que a tradição é como uma herança que uma

geração recebe de sua antecessora e no decurso da sua existência se desfaz de

elementos que se tornaram obsoletos – sejam dados científicos, filosóficos ou

religiosos – e agrega novos elementos apresentados à luz por meio de intensas

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pesquisas ou experimentações e quando tal geração repassar essa herança a sua

sucessora entregará um produto similar ao recebido, porém com modificações que

podem ser sutis (como o foi por séculos ao longo da idade média) ou substanciais,

como tem acontecido a partir da idade moderna devido ao avanço tecnológico sem

precedentes que tem possibilitado também maior desenvolvimento das ciências

empíricas. Sempre haverá elementos que se conservarão, ainda que não gozem de

aceitação plena, mas serão mantidos por também não poderem ser refutados

incontestavelmente e do mesmo modo sempre haverá algum acréscimo, o que

identifica a tradição como um produto em constante transformação.

1.4.2 Conceito De Tradição Oriental Nos Escritos De René Guenón

Inicialmente, convém estabelecer que para entender a tradição nos escritos

de René Guenón se faz necessário ter em mente seu conceito metafísico

anteriormente apresentado, pois para ele a tradição verdadeira é a que se liga a

princípios universais, daí se conclui que a tradição oriental pura é indissociável da

metafísica pura.

Outro ponto importante a se destacar antes de prosseguirmos é que

Guenón procura separar nitidamente o conceito de tradição e civilização,

especialmente ao falar sobre o ocidente, já que no que se refere ao oriente ele admite

que tais termos acabam se assemelhando. E porque tradição e civilização não podem

ser confundidas no ocidente, mas se confundem no oriente? A resposta está na

maneira como cada qual lida com a tradição. Segundo Guenón, o conjunto da

civilização oriental se apresenta como essencialmente tradicional, mas a civilização

ocidental, ao contrário, é desprovida de tradição, exceto no âmbito religioso, o qual

conserva alguns elementos dela. (GUENÓN, 2015a. p.54)

Uma vez que o termo civilização poderia gerar questionamentos,

esclarecemos que aqui estamos nos valendo da definição que Guenón lhe dá, qual

seja, “que uma civilização é o produto e a expressão de uma certa mentalidade comum

a um grupo de homens mais ou menos extenso, reservando para cada caso particular

a determinação precisa de seus elementos constitutivos.” (Idem) Assim, civilização e

tradição no oriente poderiam ser entendidas como sendo a mesma coisa, pois ambas

se referem à reunião e conservação de elementos comuns constitutivos de um

determinado grupo de pessoas em uma dada sociedade. O elemento comum

constitutivo da civilização oriental seria especialmente a doutrina metafísica,

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entendida como aquela doutrina que é fruto de uma intelectualidade pura, embora

possa a intelectualidade sofrer a influência de outros elementos (como os elementos

religiosos, por exemplo), sem deixar de ser tradicional, como ocorre no caso dos povos

islâmicos.

Guenón afirma que o ocidente já teve uma tradição comparável à tradição

oriental – mormente à tradição islâmica - essa tradição era encontrada, segundo ele,

na idade média, mais especificamente nas doutrinas católicas do período. Mas como

o ocidente abandonou completamente sua tradição essa ‘mentalidade comum’ ter-se-

ia tornado efêmera e constantemente mutável. No oriente, entretanto, tal mentalidade

conservaria os mesmos elementos constitutivos há séculos e na verdade, segundo

Guenón, tais elementos seriam impossíveis de se verificar historicamente, posto que

são eternos, por serem derivados da intelectualidade pura. Para ele a tradição oriental

e suas doutrinas não tem, portanto, uma origem histórica. Veja-se o exposto por René

Guenón:

Qual é a sua origem? ... não existe uma origem humana, suscetível de ser determinada no tempo. Em outros termos, a origem da tradição, se é que esta palavra ‘origem’ tem ainda uma razão de ser em semelhante caso, é ‘não-humana’, tal como a metafísica mesma. As doutrinas desta ordem não ‘apareceram’, num momento qualquer da história da humanidade: a alusão que fizemos ao ‘estado primordial’ e também, de outro lado, aquilo que dissemos do caráter intemporal de tudo que é metafísico, deveriam permitir compreender sem demasiada dificuldade, ... que existem coisas às quais o ponto de vista histórico não é de maneira alguma aplicável. (GUENON, 1985. p.12. PDF).

Retornaremos a essa questão logo mais. Por enquanto convém abordar a

tradição oriental a partir de uma cultura que Guenón entende como intermediária entre

oriente e ocidente: a cultura islâmica.

A visão da tradição como algo em constante mutação por agregação ou

desalienação que apresentamos anteriormente como uma visão tipicamente ocidental

é também partilhada por filósofos de cultura oriental da atualidade, dentre os quais

está o filósofo marroquino Mohammed Abed Al Jabri que trata do assunto da tradição

árabe-islâmica em seu livro Introdução à Crítica da Razão Árabe. Nessa obra Al Jabri

coloca a tradição (turath – em árabe) como um produto em constante e necessária

transformação e não algo há muito concluído e imutável. Ele entende que diversos

elementos compõem a tradição de um povo, dentre eles o idioma, a religiosidade, a

literatura, a mentalidade. Para ele a tradição árabe-islâmica é devedora “a pessoas

que marcaram a história porque souberam, pelo menos em parte, libertar-se dos

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entraves da sociedade e da história.” (Al Jabri, 1987. p. 60). Nessa obra de Al Jabri é

apresentado um panorama histórico da filosofia árabe-islâmica onde se percebem

diversos conflitos intelectuais ao longo da história dos povos árabes. De forma

destacada ele apresenta Avicena e Averróis e como esse último desconstruiu a

filosofia aviceniana que ele reputa como agnóstica. Quando fizermos as refutações ao

pensamento de René Guenón voltaremos a esse ponto e o expandiremos, então ficará

claro que há divergências no entendimento da tradição oriental. Por agora apenas

precisamos ter em mente que o entendimento do termo tradição não é pacífico na

cultura oriental.

Como colocamos anteriormente René Guenón declara que a cultura

islâmica é um pouco diferente das demais culturas orientais e a que mais se aproxima

da cultura ocidental (não em relação ao ocidente moderno, mas em relação à cultura

tradicional ocidental como se apresentava na idade média). Isso, entretanto, não a

torna ocidental e de todo modo ela continua sendo oposta à tradição ocidental

moderna (ele mesmo afirma que a civilização oriental é mais complexa que a

ocidental, mas está toda ela embasada nos mesmos princípios imutáveis), validando

assim nossa introdução do pensamento de Al Jabri sobre essa questão.

Falando da cultura islâmica ainda, René Guenón afirma que “no islã a

tradição apresenta dois aspectos distintos, dos quais um é religioso...enquanto que o

outro é aquele puramente oriental, verdadeiramente metafísico.” (GUENÓN, 2015a.

p.55). O aspecto religioso da cultura islâmica é o que permeia toda a ordem social e

é absorvido por todas as pessoas dessa sociedade, constituindo um conhecimento

acessível a todos independente de sua capacidade intelectual (conhecimento

exotérico); já o metafísico é compreendido normalmente apenas por uma elite

intelectual, seria o lado esotérico da tradição. Convém destacar que, como exposto

anteriormente, a metafísica islâmica nunca se separou completamente da teologia o

que a tornaria uma metafísica limitada.

Algo semelhante ocorre na tradição chinesa, a qual também tem duas

nuances: uma exotérica, que se apresenta na forma do Confucionismo e outra

esotérica – restrita a uma elite intelectual – que se apresenta no Taoísmo e este deriva

de uma tradição ainda mais pura, a tradição do I Ching (Livro das Mutações) que

apresenta traços essenciais da cultura milenar chinesa. Tanto o Taoísmo quanto o

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Confucionismo se valem do I Ching na formulação de suas filosofias, por isso, talvez,

Guenón o veja como a tradição primordial chinesa.1

Em seu livro Introduction Générale à L’Étude dês Doctrines dês Hindoues,

Paris, 1921 (Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, que foi inicialmente

sua dissertação de mestrado na Sorbonne e, posteriormente publicado em forma de

livro) Guenón busca transmitir o conceito de uma tradição que não sofreu

modificações ao longo da história, uma que ele denomina de tradição primordial. Essa

seria a tradição que se confunde em seu sentido com a intelectualidade pura, que é a

mesma coisa que metafísica pura, como já expusemos. A tradição hindu seria o

representante mais fidedigno de tal tradição primordial. Nas linhas seguintes

buscaremos aclarar o sentido desse termo ‘tradição primordial’ pois é ao retorno a

essa espécie de tradição que ele se refere como o ideal ao qual o ocidente deveria

devotar seus maiores esforços. Não que ele incite o ocidente a absorver a tradição

hinduísta ou qualquer outra manifestação da tradição oriental, mas insiste em que

deve buscar em sua própria tradição confusa e corrompida pela modernidade uma

aproximação, tanto quanto possível, dessa tradição primordial, que ele entende como

tendo sido um pouco refletida pelo catolicismo da idade média.

Essa tradição primordial a que se refere não pode ser confundida com a

tradição religiosa, como a islâmica, pois ela se apoia em princípios muito mais

profundos e independentes de qualquer contingência histórica (o islamismo surge com

Maomé em 621 da era cristã). Essa tradição estaria, segundo ele, fundamentada

sobre princípios eternos, como já expusemos a pouco em uma citação de René

Guenón. Esses princípios, ele afirma, não são históricos, nem mesmo de origem

humana, segundo ele, são na verdade de uma ordem superior, transcendente, uma

ordem puramente intelectual e essencialmente metafísica e que dão à civilização

oriental a unidade capaz de fundir o conceito de tradição com o de civilização que

apresentamos na abertura deste tópico, pois, estando toda a civilização oriental

assentada em tais princípios, é capaz de carregar mutuamente a mesma tradição

primordial que lhes têm assegurado sua continuidade. O fato de as diferentes nações

orientais terem elementos secundários que divergem (como a manifestação de ordem

social ou religiosa de cada povo) não contradiz sua unidade tradicional, pois todos

esses elementos secundários são extraídos dos mesmos princípios da tradição

1 I Ching: mais detalhes sobre o livro podem ser buscados em http://tattwa.org.br/livros/i-ching.pdf.

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primordial, que é metafísica, e constituem apenas adaptações às diferentes

mentalidades de grupos étnicos do oriente. (GUENON, 2015a. Cap. 3, p.53-56).

Essa tradição primordial, metafísica, Guenón afirma que era encontrada em

certa medida na doutrina escolástica da idade média (talvez por ter como fundamento

a Bíblia e os pais da igreja ao transmitir seus ensinamentos) e foi abandonada

especialmente após a Reforma Protestante.

Portanto, a tradição oriental seria uma manifestação da metafísica pura e

comunicaria assim seu caráter de intelectualidade pura ao conjunto da civilização

oriental, tornando-se tradição e civilização, termos que podem ser entendidos como

idênticos, pois o conjunto da civilização oriental se apresenta como essencialmente

tradicional. Mesmo que haja diferenças nas formas em que essa tradição se manifesta

(como por exemplo a diferença do xintoísmo no Japão e do Taoísmo na China) pois

as formas podem variar, mas a essência da tradição, que acaba sendo a mesma da

metafísica, repousa sobre princípios imutáveis, eternos.

Guenón afirma que “etimologicamente, a tradição é simplesmente ‘o que

se transmite’ de uma maneira ou de outra.” (GUENÓN, 2015a. p. 53) Mas diverge

quanto à origem e ao conteúdo dela, pois fundamenta seu conceito de tradição no que

ele chama de metafísica pura, ou seja, para ele, só se pode falar em tradição caso se

conserve a intelectualidade pura, então pode-se afirmar que em sentido estrito

tradição é, como já dissemos, uma manifestação da metafísica pura. Mas a tradição

pode vir acrescida de outros elementos desde que estes também estejam ancorados

na metafísica pura, e a tradição costuma se manifestar nas diferentes culturas através

de sua forma religiosa, pois dessa maneira pessoas que não pertencem a uma elite

intelectual conseguem absorver traços essenciais da metafísica pura. As formas

religiosas da tradição do oriente seriam meios para transmitir pelo menos alguns

elementos da metafísica pura ao povo comum, que não pertence à elite intelectual.

1.5 O INDIVIDUALISMO SEGUNDO RENÉ GUENÓN

Sobre esse tema não buscaremos na filosofia ocidental as conceituações

possíveis, pois no capítulo seguinte apresentaremos o individualismo sob a ótica de

um filósofo e teólogo protestante contemporâneo de Guenon, Paul Tillich. Portanto o

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que passamos a apresentar é a visão particular de Rene Guenon sobre o

individualismo.

Para Rene Guenón o espírito moderno se caracteriza como anti-tradicional

e sua manifestação é percebida através do individualismo. Para ele o individualismo

seria o causador da ruptura entre oriente e ocidente (ruptura essa que como já

dissemos é uma afirmação particular dele e estaria no campo intelectual, mas não nos

apresenta dados concretos para verificar sua real existência). Afirma ele: “é realmente

o individualismo tal como acabamos de defini-lo, portanto, que é a causa determinante

da atual queda do Ocidente.” (GUENON, 2007. p.53. PDF). No campo filosófico ele

coloca Descartes como representante do espírito moderno, não, porém, como o

originador dele ou como o causador do rompimento ocidental com sua tradição. Essa

ruptura teria se iniciado já no século XIV e eclodiu mais tarde em movimentos como a

Renascença e a Reforma Protestante:

O Renascimento e a Reforma, que são mais frequentemente considerados como as primeiras grandes manifestações do espírito moderno, completaram a ruptura com a tradição em vez de provocá-la; Para nós, o início dessa ruptura remonta ao século XIV, e é aqui, e não um ou dois séculos mais tarde, que devemos começar os tempos modernos. (GUENON,

2015b, p. 73. Tradução nossa)1

Para Guenón o individualismo foi um movimento que abriu caminho para a

introdução de outras teorias que foram cada vez mais afastando o ocidente do

verdadeiro conhecimento, que, como já vimos, é para ele o conhecimento metafísico,

a intelectualidade pura. Na sua crítica ele afirma que o individualismo trouxe o

racionalismo – Descartes seria o seu principal fundador – e que o racionalismo, por

sua vez, trouxe consigo naturalmente o relativismo, este foi descambar no

evolucionismo. Mas este último acabaria por se voltar “contra o ‘racionalismo’,

criticando que a razão não pudesse aplicar-se adequadamente ao que é apenas

mudança e pura multiplicidade, nem encerrar nos seus conceitos a indefinida

complexidade das coisas sensíveis.” (GUENÓN, 2007, p. 55. PDF) Finalmente, como

consequência dessa cadeia involutiva do pensamento humano teria surgido o

intuicionismo de Bergson que, na concepção de Guenón, embora critique o

racionalismo “cai ainda mais baixo ao fazer apelo a uma faculdade propriamente infra-

1 “De même, la Renaissance et la Réforme, qu'on regarde le plus souvent comme les premières grandes manifestations de l'esprit moderne, achevèrent la rupture avec la tradition baucoup plus qu'elles ne la provoquèrent; pour nous, le début de cette rupture date du XIVᵉ siècle, et c'est là, et non pas un ou deux siècles plus tard, qu'il faut, en réalité, faire commencer les temps modernes.”

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racional, a uma intuição sensível bastante mal definida e mais ou menos misturada

com imaginação, instinto e sentimento.” (idem, p.56) No terceiro capítulo abordaremos

essa questão do intuicionismo bergsoniano.

Concluindo a conceituação de Guenon sobre o individualismo percebemos

que ele nada vê nesse movimento de positivo, ao contrário, ele afirma que o

individualismo é “puramente negativo, ... que se poderia chamar de ausência de

princípio.” (idem, p.53) Com isso ele afirma que o individualismo, em vez de elevar o

ser humano em sua individualidade, na verdade o teria rebaixado por passar a

embasar a inteligência em um nível infra-humano, e aqui ele se refere especialmente

ao subconsciente como apresentado pela psicologia. Em suma, para ele “o

individualismo implica primeiramente a negação da intelectualidade, que é

essencialmente uma faculdade supra-individual, e da ordem de conhecimento que

constitui o domínio próprio dessa intuição, ou seja, da Metafísica entendida no seu

verdadeiro sentido.” (idem, p. 53)

Guenon finalmente vai agora centrar seus ataques ao protestantismo, o

qual classifica como a manifestação religiosa do individualismo e o movimento que

teria consumado a decadência intelectual do ocidente. Não entraremos na questão da

psicologia mencionada acima porque não atenderia aos propósitos desta pesquisa.

Já quanto ao movimento protestante, apesar de poder ser melhor analisado a partir

de uma abordagem teológica, julgamos imprescindível dedicar algumas linhas para

elucidar o tema, pois é o principal alvo das críticas de Guenon.

1.6 A REFORMA PROTESTANTE E O ROMPIMENTO FINAL COM A TRADIÇÃO OCIDENTAL

O ponto central da obra de Rene Guenón – como já exposto anteriormente

- é exatamente a questão da perda da tradição que ele afirma ser a causa da

decadência da sociedade ocidental. O filósofo atribui a perda da tradição

especialmente ao Movimento de Reforma Protestante:

A tradição ocidental era nessa altura, exteriormente, uma tradição de forma especificamente religiosa, representada pelo Catolicismo; é então no domínio religioso que temos que ver a revolta contra o espírito tradicional, revolta que, quando tomou uma forma definida, se chamou Protestantismo. (GUENON, 2007. p.57. PDF).

A Reforma protestante eclodiu com Lutero e suas noventa e cinco teses

afixadas nas portas da igreja do castelo de Wittenberg nas quais criticava vários

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pontos da doutrina católica. Mas ela não se iniciou com Lutero. Séculos antes outros

padres católicos também questionaram sua igreja, dentre os quais destacamos John

Wycliffe (1328 a 1384), um teólogo inglês que contou com o apoio da nobreza e por

isso não sofreu a pena capital por suas ideias; e Jan Huss (1369 a 1415), este foi

condenado pelo tribunal da inquisição e morto em uma fogueira devido a suas ideias

consideradas pela igreja de Roma como heréticas. Apesar de defenderem pontos

semelhantes aos de Lutero não conseguiram expandir seu movimento, mas

certamente lançaram sementes que iniciaram o processo da Reforma.

Martinho Lutero surge em uma época em que o ambiente estava mais

favorável a profundas mudanças. O século XVI trouxe à tona importantes movimentos

filosóficos, como a Renascença iniciada no século XIV, mas que então alcançava seu

apogeu. Apesar desse termo ser normalmente usado para descrever seus efeitos na

filosofia, nas artes e na ciência, a Renascença abarcou toda a cultura, incluindo a

política e a religião. No campo religioso – objeto de nosso estudo nesta seção – a

influência se deu especialmente pelas características do Humanismo que ela trazia.

O pensamento renascentista buscava devolver ao homem uma dignidade e glória que

se julgava perdida e sua vertente humanista visava enaltecer a capacidade racional

do ser humano na busca do conhecimento. Um expoente renascentista era o filósofo

e teólogo Erasmo de Roterdã, a quem Lutero admirava (como se percebe em uma de

suas cartas a ele na qual diz: “Portanto, meu Erasmo, homem amável, se a você

parece reconhecer este menor irmão em Cristo, devotíssimo e afeitíssimo por você.”)1

e cujas ideias Lutero absorveu e procurou dar-lhes uma aplicação prática, causando

assim a ruptura com a igreja católica, embora o próprio Erasmo jamais tenha aderido

abertamente à Reforma nem se desligou da igreja. Mesmo assim sua filosofia buscava

retirar o domínio da religião sobre a cultura, a ciência e a educação. O cerne da

filosofia de Erasmo era o antropocentrismo, contrariando a filosofia cristã então

vigente que submetia tudo ao transcendente e colocava a autoridade da igreja como

acima de qualquer outra e seus representantes como os detentores do conhecimento

transcendente. Essa filosofia passou a ser conhecida posteriormente como

humanismo.

1 Essa carta pode ser encontrada no endereço eletrônico; http://reformadoseculo16.blogspot.com.br/2014/04/carta-de-matinho-lutero-erasmo-de.html

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O mecanismo usado pela Reforma Protestante que solapou a autoridade

da igreja e proporcionou a ruptura da tradição foi, segundo Guenón, a introdução do

livre exame das escrituras, ou seja, a interpretação da bíblia deixada a cargo de

qualquer pessoa, “mesmo dos ignorantes e dos incompetentes, e fundada unicamente

sobre o exercício da razão humana” (GUENON, 2007. p.57. PDF), retirando assim dos

clérigos a exclusividade e a autoridade interpretativa. Com a introdução do livre exame

o filósofo vê três consequências especialmente danosas:

1- a disseminação de seitas motivada pelas interpretações diversas das

escrituras sagradas dos cristãos;

2- o moralismo religioso como consequência da dificuldade de se

estabelecer uma doutrina em meio a tantas interpretações e, finalmente,

3- o descambar da religião em religiosidade, marcada por sentimentos,

sentimentalismo, e não intelectualidade religiosa. Segundo Guenón tal

sentimentalismo é chamado de experiência religiosa e essa “incorpora-se no

‘pragmatismo’, em nome do qual se preconiza a ideia de um Deus limitado com mais

‘vantagens’ do que a do Deus infinito, porque se pode ter por ele sentimentos

comparáveis aos que se têm a respeito de um homem superior.” (GUENON, 2007.

p.57-58. PDF).

O filósofo tece críticas ao ocidente, especialmente ao movimento de

Reforma, afirmando que esse é uma expressão religiosa do individualismo e do

espírito moderno e que, apesar de ter a Bíblia como suposta base de suas ideias

acaba por solapar sua autoridade ao adotar a teoria do livre exame das escrituras –

conforme anteriormente exposto. Tal livre exame por qualquer indivíduo, e não apenas

por uma casta clerical, teria ocasionado a total ruptura com a tradição religiosa e

mesmo com os princípios religiosos contidos nas escrituras sagradas dos cristãos.

Classifica ainda o protestantismo como ilógico pelo fato de não negar a

revelação, mas ao mesmo tempo tentar humanizar a religião. O que torna tais coisas

incongruentes seria exatamente a adoção do livre exame das escrituras, pois assim

estaria a interpretação do sagrado entregue apenas ao arbítrio humano solapando

suas bases e terminando por aniquilar o sagrado (GUENON, 2007. p.59. PDF).

Valendo-se de argumentos bíblicos Guenón dirige suas críticas ao

ocidente, especialmente ao protestantismo, afirmando que seus expositores são guias

cegos: “Ai de vós, guias cegos’, diz-se no Evangelho; hoje, efetivamente, só se veem

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por toda a parte cegos que conduzem outros cegos e que, se não forem detidos a

tempo, os conduzirão fatalmente ao abismo, onde cairão com eles.” (GUENON, 2007.

p.59. PDF).

No terceiro capítulo apresentaremos mais detalhes sobre a Reforma e suas

bases, por agora nos basta saber a crítica que Guenón desfere a esse movimento.

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2 PAUL TILLICH E O INDIVIDUALISMO

Paul Tillich foi um filósofo e teólogo alemão que migrou para os Estados

Unidos no período da segunda guerra mundial por ter se oposto ao regime nazista.

Ainda na Alemanha, na escola de Frankfurt, foi orientador da tese doutoral de Theodor

Adorno. Nos Estados Unidos foi professor de Teologia Filosófica no Union Theological

Seminary e na Columbia University (New York) e lecionou nas universidades de

Harvard e de Chicago. Ao longo de sua vida escreveu diversos livros, notadamente

na linha teológica.

Tillich não faz uma crítica direta a Rene Guenón, provavelmente nem o

tenha estudado, mas o escolhemos por ser um autor protestante contemporâneo ao

filósofo francês (Guenón viveu de1886 a 1951 e Paul Tillich de 1886 a 1965) e que

tratou de temas severamente criticados por Guenón, especialmente a teologia

protestante e o individualismo.

A obra de Tillich tomada por base será o livro “A Coragem de Ser”. Ele não

trata diretamente do individualismo, mas o aborda no contexto de seu propósito de

discorrer sobre a coragem de ser, a questão da autoafirmação do indivíduo e o faz

especialmente no capítulo cinco: “Coragem e Individualização (A Coragem de Ser

Como Si Próprio)”. Tillich abre o capítulo cinco com uma definição de individualismo

que difere daquilo que Rene Guenón colocou em sua obra. Para Tillich:

INDIVIDUALISMO é a autoafirmação do eu individual como indivíduo sem considerar sua participação em seu mundo. Como tal é o oposto do coletivismo, a autoafirmação do eu como uma parte de um todo maior, sem considerar seu caráter como um eu individual. (TILLICH, 2014. p.105).

Percebe-se desde logo que o autor tem uma visão mais positiva sobre o

individualismo se comparada à visão de Rene Guenon. Tillich explora esse tema

traçando um panorama histórico sobre os eventos que influenciaram e de certa forma

justificaram o surgimento do individualismo. Nessa linha ele cita a questão da culpa

muito marcante no que ele chama de coletivismo primitivo. Segundo o autor a questão

da culpa e da indagação individual marcantes no coletivismo primitivo “conduziram ao

inconformismo radical dos cínicos e dos céticos, ao inconformismo moderado dos

estoicos, e à tentativa de alcançar um fundamento transcendente para a coragem de

ser no estoicismo, misticismo e cristianismo.” (TILLICH, 2014. p.105-106).

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Seria dispendioso buscar estabelecer com precisão o período marcado

pelo coletivismo primitivo e isso não é essencial para nosso trabalho. Porém é preciso

esclarecer brevemente as implicações desse tipo de coletivismo para o indivíduo

enquanto indivíduo. Nessa perspectiva apenas queremos lembrar que o coletivismo

primitivo está relacionado a um extenso período em que os indivíduos se viam como

interdependentes em sua comunidade local. A vida era pensada em termos de

sociedade e não de indivíduos. Encontramos essa característica em filósofos

clássicos ao elaborar seus ensinamentos sempre em função da polis como se percebe

em A República, de Platão. Outra forma de se perceber o coletivismo primitivo está

na ideia da culpa coletiva que se fez presente em civilizações antigas e que, no mundo

judaico-cristão, se observa em relatos bíblicos, especialmente no antigo testamento,

onde toda uma nação sofre castigos por ter praticado algum pecado coletivo

(normalmente adoração a outros deuses ou desobediência a preceitos religiosos

como a desobediência à lei de Deus ou a não entrega de dízimos e ofertas pelo povo

judeu – como pode ser visto nos seguintes textos bíblicos: Oséias capítulo 4, Isaias

24 e Malaquias 3, respectivamente).

Certamente que a vida em sociedade era, e continua sendo, um fator

positivo e mesmo necessário para a humanidade, pois é em sociedade que o ser

humano encontra proteção contra agressões externas, seja de animais – como era

frequente nas civilizações primitivas – ou de outros fenômenos naturais e até mesmo

de outros seres humanos hostis. Como geralmente ocorre, o coletivismo primitivo

tinha sua razão de ser e seu lado positivo, pois era uma forma de organização social

que visava à garantia de uma existência pacífica em sociedade. Thomas Hobbe em

sua obra Leviatã afirma ser necessária uma organização em sociedade tendo um

poder superior legítimo para a aplicação das regras e mesmo da violência se

necessário for a fim de preservar a paz social e garantir a continuidade da vida

humana. O problema, entretanto, foi a demasiada ênfase na coletividade em

detrimento da individualidade dos membros da sociedade, pois ao se desconsiderar a

importância da autoafirmação do ser individual acabou-se por produzir indivíduos com

pouca motivação para realizações pessoais e reprimidos por recorrentes sentimentos

de culpa e autorreprovação. Com o passar das gerações a necessidade de

autoafirmação torna-se cada vez mais premente e os conflitos pessoais mais

recorrentes.

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Embora o coletivismo primitivo com sua carga negativa de desvalorização

do indivíduo tenha lançado sementes para a necessidade do surgimento de um

pensamento que reafirmasse o eu individual, e essas experiências tenham assim

formado um pano de fundo propício ao surgimento do individualismo, não foi ainda,

na fase do coletivismo primitivo – anterior à idade média – que surgira tal movimento.

Uma vez que o indivíduo era apenas uma parte do coletivo, e só sendo

parte do coletivo encontraria sua autoafirmação, alguns problemas passaram a ser

presentes nos indivíduos, como lembrou Tillich, notadamente a questão da ansiedade

e do desespero. Mas na idade média essa situação se alterou devido a dois

elementos, ambos transmitidos pela igreja católica, são eles a descoberta na teologia

da culpa pessoal (em oposição à culpa coletiva), ou culpa perante Deus como os

profetas antigos denominavam, e o surgimento da indagação autônoma na filosofia

grega. O primeiro elemento possibilitou o início da personalização da religião e da

cultura, e o segundo, que cultura e religião pudessem ser problematizadas e assim

questionadas. Surge no cenário ocidental o semicoletivismo medieval. Mas ainda

assim as questões da ansiedade da culpa e condenação e da dúvida, ou indagação

radical, e insignificação presentes no coletivismo primitivo continuaram a existir no

semicoletivismo medieval.

Para remediar tais problemas a solução apresentada pela igreja foi

envolver os indivíduos em si mesma, suas tradições, seus sacramentos, sua

educação formal e sua autoridade. Com isso o que houve não foi ainda uma ênfase

no individualismo (embora já se inicie uma abertura para tal experiência), mas uma

mitigação do coletivismo primitivo. O semicoletivismo medieval inicia a personalização

da religião e abre espaço para que pensadores a problematizem, mas mantém a

noção de valorização do indivíduo apenas como parte de algo maior, pois agora o

indivíduo passa a ser parte de uma comunidade sacramental e assim encontraria sua

coragem de ser1 para superar a ansiedade da culpa. Já a coragem de ser que o

capacita a vencer a ansiedade da dúvida, a encontra ao tornar-se parte dessa

comunidade que, além de ser sacramental também une em si revelação e razão para

1 Coragem de ser é um termo usado por Paul Tillich para designar a coragem de um indivíduo de se auto afirmar. Afirma ele em sua obra The Courage To Be na página 6 que “a coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua auto afirmação essencial.”

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superar a dúvida surgida da problematização da cultura e da religião, bem como as

surgidas a partir da indagação radical, a indagação filosófica.

Entretanto, ao se valer de sua autoridade a igreja acabou por exercer uma

dominação opressora sobre os indivíduos acentuando a ansiedade da culpa; e a

própria essência dos sacramentos ministrados e a forma dessa ministração acabaram

por aprofundar neles a ansiedade da insignificação enquanto seres individuais

preparando o terreno para receber as sementes do individualismo. Dissemos

fortalecimento e não surgimento porque ao longo da história houve influentes

pensadores que defenderam de alguma forma o individualismo, ou mais

especificamente a valorização do ser individual como ser individual e sobre isso

teceremos maiores comentários no capítulo seguinte. Aqui apenas queremos lembrar

o já mencionado Francesco Petrarca que viveu no século XIV e é considerado o pai

do humanismo devido a sua busca por harmonização do potencial humano e a fé

cristã; fora ele um incentivador do estudo do pensamento e da ação humana ainda na

fase do semicoletivismo medieval.

A igreja, contudo, estava disposta a manter sua autoridade e tradição e

exigia submissão absoluta a seus dogmas e suas leis. Dessa forma a valorização do

indivíduo não era possível à parte de sua obediência incondicional aos ensinamentos

dos padres e bispos. A igreja detinha a educação formal superior no ocidente, sendo

as universidades regidas por padres e bispos sob a supervisão de Roma papal e seus

professores compostos quase que exclusivamente por clérigos.

Até esse ponto da história a interpretação dos livros sagrados do

cristianismo era exclusividade da casta sacerdotal e todos os ramos do conhecimento,

como a física, astronomia e filosofia precisavam coincidir com o que a igreja

estabelecera, sob pena de excomunhão (que equivalia a uma maldição capaz de selar

o destino do excomungado como condenado ao fogo do inferno após sua morte) e até

de morte, geralmente na fogueira, a quem apresentasse qualquer ideia que pudesse

ameaçar a soberania dos ensinamentos católicos. Um dissidente era chamado de

herege e forçado a se retratar ou morrer caso não o fizesse. Não devemos nos

aprofundar nesses temas, pois são afetos à teologia.

Além dessa questão intelectual outros fatores foram relevantes para

acentuar a ansiedade da culpa e insignificação nos indivíduos. A história relata os

abusos que se cometia em nome da igreja, como a venda do perdão (indulgências), a

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exploração de todo o povo com vendas de relíquias e cobrança de ofertas para a igreja

e seus propósitos ambiciosos de construção e manutenção da suntuosidade e até

mesmo da luxúria de padres e bispos, ao passo que a população pobre sofria com

doenças e desnutrição.

Os indivíduos se sentiam cada vez mais oprimidos pela própria instituição

que prometia libertá-los através dos sacramentos e rituais como a confissão dos

pecados e a participação na comunhão. Todas essas questões, aliadas ao surgimento

da indagação radical antes mencionada prepararam o terreno para a eclosão de um

movimento de ruptura, de protesto, que já apresentara em séculos passados sinais

de que irromperia no cenário ocidental causando divisão não apenas no campo

teológico/religioso, mas também no campo político e filosófico. Referimo-nos ao

protestantismo, cujo principal expoente foi Martinho Lutero.

Mas antes de Lutero outros padres se insurgiram contra as teorias

opressoras do catolicismo, como John Wyclif e Jan Huss, sendo que o primeiro logrou

apoio da nobreza inglesa e escapou da condenação da inquisição, mas Huss,

seguidor e propagador das ideias de Wyclif, acabou sendo condenado à pena capital

pelo tribunal da inquisição.

O protestantismo trouxe inicialmente uma grande ênfase na consciência

individual, a Reforma rompeu com o semicoletivismo da idade média, mas acabou por

descambar em um sistema autoritário e conformista similar ao da igreja Católica

Romana de seu tempo. Não foi nesse período ainda que o individualismo se

consolidou, embora o protestantismo trouxesse mais uma contribuição para tal. Uma

significativa contribuição do movimento de reforma encabeçado por Lutero foi colocar

o indivíduo como capaz de se aproximar de Deus sem a intercessão direta da igreja,

o que possibilitava ver-se como um eu individual sem depender da comunidade para

se afirmar enquanto indivíduo. Claro que a comunidade continua sendo essencial,

mas agora a comunidade começa a ser vista como a reunião de indivíduos e não mais

os indivíduos como meras partes da comunidade.

Mas convém lembrar que ainda não se estava diante do estabelecimento

do individualismo. De fato, mesmo com o nascimento de novos grupos confessionais

como o anglicanismo e o luteranismo, como afirma Tillich, “não havia individualismo

em nenhum dos grandes grupos confessionais. E só havia individualismo oculto fora

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deles, já que haviam tomado para si as tendências individualistas da Renascença e

as adaptado à sua conformidade eclesiástica.” (TILLICH, 1992. p.87-88. PDF).

Esse período durou cerca de um século e meio e foi denominado por Tillich

de período da ortodoxia confessional. E somente após ele é que o elemento individual

veio novamente à tona. Mas ainda não se instalara fortemente o individualismo,

embora estivesse pronto para eclodir.

Tillich apresenta novos movimentos surgindo nesse cenário histórico, como

o pietismo e o metodismo, mas não trataremos deles por serem movimentos

teológicos. Mas destacamos que para Tillich, “o pietismo foi o caminho para o

Iluminismo. Mas mesmo o iluminismo não se considerava individualístico. (TILLICH,

1992, p. 88. PDF)

Agora, segundo o autor, o ocidente estava inescapavelmente pronto para

o individualismo. Não era apenas no campo religioso que se buscava uma

autoafirmação do eu, mas buscava-se uma conformidade que se firmasse no poder

da razão individual, razão prática e teórica, capazes de criar, com a ajuda da pesquisa

e da educação, uma nova conformidade, diferente da conformidade com base na

revelação bíblica.

Todo o período acreditava no princípio da ‘harmonia’ — harmonia sendo a lei do universo, segundo a qual as atividades do indivíduo, embora concebidas e desempenhadas de modo personalístico, conduziam ‘pelas costas’ do ator singular a um todo harmonioso, a uma verdade com que pelo menos uma grande maioria pode concordar, a um bem do qual cada vez mais gente pode participar, a uma conformidade que é baseada na atividade livre de cada indivíduo. (TILLICH, 1992. p.88. PDF).

Da análise feita até aqui notamos que o individualismo foi um movimento

que se firmou paulatinamente na história do pensamento humano e não se restringiu

a um campo específico, pois ele foi sendo absorvido e se concretizando na teologia,

filosofia, política. Neste ponto de sua obra Paul Tillich enumera alguns campos da

sociedade que teriam já absorvido tendências do individualismo por entender que ele

acrescenta benefícios sem destruir o que de bom já está construído na sociedade.

Vamos apenas citar essas áreas da sociedade sem descer a minúcias, pois é

exatamente assim que está em sua obra.

Tillich afirma que no campo político a valorização do indivíduo era preciso

a fim de se garantir dignidade de existência em uma sociedade sempre elitizada e

discriminadora que mesmo com as transformações no sistema de produção com a

revolução industrial continuava a excluir os de nascimento não nobre ou os que não

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se destacavam em qualquer área da sociedade. Esse tipo de individualismo enfatizava

que o indivíduo, ao se afirmar, não anula o coletivismo, pois ele pode ser livre sem

anular o grupo. Outras transformações sociais, como o liberalismo econômico e a

liberal democracia corroboravam com essa posição.

Também no campo da ciência se evidenciou que a liberdade de ter

convicções científicas individuais não quebra a harmonia científica estabelecida.

Na educação se “mostrou que a ênfase no livre desenvolvimento do

indivíduo-criança não reduz suas oportunidades de se tornar um membro ativo de uma

sociedade conformista.” (TILLICH, 1992. p.88. PDF).

Igualmente, o protestantismo evidencia a positividade do individualismo

para a sociedade religiosa ao confirmar “a crença dos reformistas de que o livre

encontro de cada um com a Bíblia pode criar conformidade eclesiástica a despeito de

diferenças individuais e mesmo de denominação.” (TILLICH, 1992. p.89. PDF).

No campo da filosofia o autor menciona Leibnitz e sua lei da harmonia

preestabelecida, com a ideia das mõnadas que “embora não tenham portas e janelas

que abram uma para a outra, participam do mesmo mundo que está presente em cada

uma delas, quer seja confusa ou claramente percebido.” (TILLICH, 1992. p.89. PDF).

Com isso Tillich quer ilustrar que até a menor partícula da natureza experimenta uma

espécie de individualismo, pois as mônadas são simples, ou seja, não existem por

composição, mas, segundo Leibnitz, surgem por criação e desaparecem por

aniquilamento. Entretanto mesmo sendo simples (portanto individuais) elas se juntam

a outras mônadas igualmente individuais e formam assim outra substância, agora

composta, sem contudo, perder sua individualidade.

A principal razão para o estabelecimento do individualismo foi a premente

necessidade humana em se auto afirmar, sua necessidade de se ver como essencial

no cenário da vida e não apenas uma parte insignificante de um todo que o alienava

e oprimia. Essa auto afirmação e valorização em sua essência eram necessárias para

enfrentar dilemas existenciais sempre presentes no ser humano, especialmente as

razões de ser e a questão do não ser, ambas longamente discutidas em filosofia e

teologia.

Assim, o problema da individualização e participação parecia estar

resolvido, tanto filosófica como praticamente. O individualismo finalmente estaria bem

estabelecido no ocidente apenas a partir desse ponto.

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Percebe-se que, para Paul Tillich, o individualismo foi um movimento

necessário para que o ser humano alcançasse uma coragem de ser como si próprio,

indispensável para resgatá-lo do sentimento de culpa e habilitá-lo a enfrentar a

questão da inescapabilidade da morte (a questão do não ser).

O que essa coragem de ser, expressão do individualismo, ataca não é a

autoridade como um todo, mas a autoridade irracional. E tal coragem não busca um

conformismo mórbido com as questões existenciais – especialmente a culpa religiosa

e insignificação e a certeza da morte – mas procura transformar essa realidade

conforme os ditames da razão. Assim expressa Tillich essa questão:

É uma coragem combatente, desafiante. Domina a ameaça da insignificação pela ação corajosa. Domina a ameaça da culpa pela aceitação dos erros, defeitos, delitos, na vida individual e social, como sendo inevitáveis e, ao mesmo tempo, para serem superados pela educação. ((TILLICH, 1992. p.89. PDF).

Esses conceitos de individualismo foram dados especialmente pelo

iluminismo e os movimentos que o antecederam, conforme já exposto.

Na sequência o filosofo abordará o tema do existencialismo, especialmente

sua manifestação no movimento romântico. Sobre o movimento romântico e a

valorização do indivíduo destacamos a seguinte afirmação de Tillich:

O indivíduo é valorizado em sua unicidade, como uma expressão incomparável e infinitamente significante da substância de ser. Diferenciação e não conformidade é o alvo dos desígnios de Deus. Autoafirmação da própria unicidade, e aceitação das exigências da própria natureza individual, são a correta coragem de ser. (TILLICH, 1992. p.91. PDF).

Mas o movimento romântico, segundo Tillich, “colocou o indivíduo além de

todo conteúdo e fê-lo vazio: não mais era obrigado a participar de nada seriamente.”

(Idem, p. 91) Isso fez com que a auto-afirmação do indivíduo voltasse a depender de

seu pertencimento a uma instituição. Isso, de certa forma representou um retrocesso

e contribuiu para o surgimento do naturalismo. Tillich define assim esse termo:

“naturalismo significa identificação do ser com a natureza, e a conseqüente rejeição

do sobrenatural.” (Idem, p. 91), mas admite que o termo naturalismo admite vários

usos e logo procura delimitá-lo: “A palavra naturalismo é usada de variadas maneiras.

Para nosso propósito, é suficiente tratar daquele tipo de naturalismo no qual a forma

individualística de coragem de ser como si próprio é efetiva.” (Idem, p. 91) Tillich

apresenta Nietzsche como o mais proeminente representante desse naturalismo que

resgata o eu individual. Sendo este eu individual o centro de vontade do ser é ele

decisivo para o movimento (o naturalismo).

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O autor cita ainda outros movimentos que contribuíram para o

estabelecimento do individualismo, como o estoicismo e neoestoicismo e conceitos

filosóficos de Platão (especialmente a afirmação de que o homem está extraviado do

que essencialmente é por estar dissociado do mundo das ideias), cita ainda Dante e

“A Divina Comédia” que trata de forma poética a questão do existencialismo. Não

podemos abordar todos esses movimentos, mas o que pretendemos esclarecer é que

para Tillich o individualismo foi sendo estabelecido paulatinamente e não há como

fixar um período específico, incontroverso, para sua consolidação. De qualquer modo

o que houve parece ter sido uma transição necessária e natural de uma forma

coletivista de pensamento para outra que buscou firmar o indivíduo como primordial

para a sociedade. E mais, o estabelecimento do indivíduo nunca está separado da

realidade da coletividade, como percebemos na seguinte afirmação de Tillich: “A

coragem de ser como si próprio nunca está separada por completo do outro polo, a

coragem de ser como uma parte.” (TILLICH, 1992. p.94. PDF).

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3 REFUTAÇÕES ÀS CRÍTICAS DE RENE GUENON

Nesta seção pretende-se refutar as críticas de Guenón naquilo que

entendemos estar equivocado. Inicialmente trataremos da metafísica, que é o ponto

central de toda filosofia de Guenón e então, nesse contexto, retomaremos o tema do

intuicionismo aludido no início deste trabalho, posto que o mesmo é relevante nesta

crítica. Em seguida falaremos da tradição, especialmente buscando uma visão geral

dos efeitos que esse tipo de tradição defendida por Guenon pode causar na sociedade

(especialmente quanto à inquisição, cruzadas e radicalismo islâmico atual). Por fim se

demonstrará a injustificação de Guenon ao afirmar que o cristianismo apresentado

pela igreja católica romana seria a expressão do espírito tradicional ocidental e que o

protestantismo seria a causa da ruptura dessa tradição.

3.1 METAFÍSICA

Como dissemos, Rene Guenon afirma que o ocidente já teve uma tradição

e uma abordagem metafísica próxima ao que há no oriente. Ele se refere à tradição

medieval, especialmente à filosofia escolástica, que, segundo ele, embora não fosse

uma metafísica pura – pois era presa a contingências filosóficas e assemelhada à

teologia – trazia algo de puramente metafísico. (GUENON, 1924, p.101)

O período medieval comporta diferentes momentos da filosofia no ocidente,

como podemos notar na seguinte afirmação do professor Jorge Coutinho:

Por outro lado, no interior da própria Idade Média, é nítida a existência de dois (ou três) períodos profundamente distintos. O primeiro, entre os séculos V e VIII, correspondendo à chamada Alta Idade Média, acompanha o processo de consolidação da ocupação bárbara e do arruinamento das estruturas da civilização e da cultura clássicas. No interior da história da Igreja, ele corresponde à segunda grande vertente da chamada Era Patrística ou dos Padres da Igreja... O segundo período, por sua vez, prolonga-se entre os séculos XI e XV. É o tempo da Baixa Idade Média — já profundamente distanciada do Classicismo, mesmo decadente, com marcas profundas de medievalidade — e da Escolástica... Entre os dois, os séculos IX e X constituem uma fase de ruptura e transição, culturalmente bastante obscura. (COUTINHO, 2008. p. 26)

Tentar abordar todo esse período com as diferentes vertentes filosóficas

características demandaria mais tempo do que dispomos e nos afastaria do propósito

crítico desta pesquisa. Entretanto, acreditamos que podemos prosseguir em nossa

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análise aludindo apenas a uma questão bastante pontual – a questão dos universais

- que marcou a filosofia medieval e especialmente o segundo período, a escolástica,

pois, como afirma Coutinho, devemos ter em mente que “alguns historiadores

consideram como medieval apenas a Filosofia Escolástica.” (COUTINHO, 2008. p. 27)

De fato, pelo contexto da crítica de Guenon, bem como a sua descrição do que seria

a metafísica verdadeira1 deduzimos que ele se refere especialmente ao conceito dos

universais2, muito presente e amplamente discutido na filosofia escolástica.

Entretanto, não nos propomos aqui a investigar a fundo a doutrina escolástica, nem

mesmo a controvérsia dos universais, apenas sintetizaremos esse conceito nos

valendo da solução de Tomás de Aquino para o problema dos universais e o faremos

meramente como ponto de partida para discutir suscintamente a metafísica na filosofia

ocidental.

Antes de apresentarmos a questão dos universais é interessante notar o

comentário do professor Coutinho a respeito da metafísica de Tomás de Aquino.

Inicialmente Coutinho nos lembra que a metafísica tomista é realista, pois entende

que o conhecimento que podemos obter de toda a realidade, mesmo das questões

metafísicas, se inicia no conhecimento das coisas sensíveis, reais (bem diferente da

proposta de Guenón de restaurar um tal estado primordial do ser e colocar-se fora do

tempo para se alcançar o conhecimento metafísico). Coutinho assevera que para

Tomás de Aquino quando buscamos o conhecimento, físico ou metafísico, a realidade

do mundo sensível é a primeira realidade com que nos deparamos:

A primeira realidade com que deparamos quando abrimos os olhos (não só os olhos sensitivos mas também o olhar da inteligência) sobre o mundo é a realidade do mundo sensível. É aí que primeiramente ela se abre para o ser como primeiro objeto do seu conhecimento. Daí é que partimos depois para o conhecimento das realidades insensíveis (insensibilia) ou puramente inteligíveis, que são o objeto próprio da metafísica. (COUTINHO, 2008. p. 131)

Percebemos desde logo que a filosofia medieval não tem o viés que

Guenón tenta lhe atribuir de uma escola de pensamento que teria uma tradição

1 Definição dada por Guenon e citada na página 9 desta pesquisa: “A metafísica é o conhecimento dos princípios universais, dos quais todas as coisas necessariamente dependem direta ou indiretamente.” (GUENON, 2015c. p.51. Tradução nossa) 2 Em geral, podemos entender o universal como algo comum às coisas, e o particular no sentido de algo individual. Para Aristóteles universal seria "o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas" (ARISTÓTELES, apud ABBAGNANO, 2007. p. 983) O professor Coutinho ao comentar sobre a filosofia medieval define os universais como “categorias lógicas do nosso pensamento que se aplicam distributivamente a todos os indivíduos de uma mesma espécie ou de um mesmo género.” (COUTINHO, 2008. p. 105)

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semelhante à tradição metafísica do oriente (metafísica oriental nos moldes que ele

apresenta, como algo supra-racional). Talvez a grande questão que levou Guenón a

considerar a filosofia escolástica como um ideal a ser retomado pelo ocidente seja a

preocupação de ambos, Guenón e a escolástica, com as questões metafísicas. A

forma de se buscar o conhecimento metafísico, porém, em muito difere entre eles,

pois já na escolástica as coisas sensíveis eram instrumentos necessários para a

busca de todo conhecimento.

Retornando ao ponto que mencionamos acima – a questão dos universais

– que talvez seja o que seduziu René Guenón, nos valeremos de um estudo do

professor Marco Aurélio Oliveira da Silva, o qual em sua tese doutoral (A QUESTÃO

DOS UNIVERSAIS. A PERSPECTIVA DE TOMÁS DE AQUINO (DA SILVA, 2009, p

19 e ss) informa que para Tomás de Aquino os universais existem em três estados:

inicialmente os universais existem ante rem, quando os universais existem no intelecto

divino; o segundo estado dos universais seria in rem, existindo agora nas coisas

sensíveis, na diversidade do mundo, mas ainda fora do intelecto humano (entretanto

o professor Marco Aurélio lembra que “Tomás de Aquino nega que a universalidade

tenham existência atual in rem. Pois considera que a universalidade seja

consequência da existência abstrata da essência no intelecto.”) (DA SILVA, 2009, p.

23); e finalmente os universais existem post rem, depois da coisa, como conceitos

mentais.

Perceba-se que ao passo que Rene Guenon coloca a questão do

conhecimento dos princípios universais como se fosse algo pacífico (ao longo de sua

crítica ele se refere a “princípios universais” como se fosse um termo de domínio geral,

sem explicar o que seriam tais princípios, apenas diz que todas as coisas dependem

deles), na filosofia escolástica jamais se chegou a uma definição totalmente aceita e

até a existência de universais foi questionada. Não podemos prosseguir na análise

desse termo e nem julgamos imprescindível para nossa crítica adotar qualquer

posição a esse respeito, apenas introduzimos o problema, como esclarecemos acima,

para ter um ponto de partida para abordar a metafísica no ocidente e escolhemos essa

escola filosófica por ser a aludida por Guenon como mais próxima ao pensamento

oriental e tocamos na controvérsia dos universais para situar de alguma forma a

metafísica apresentada por Guenón com sua declaração de que na idade média

houve algo semelhante ao pensamento metafísico oriental.

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O que conseguimos encontrar de mais próximo entre a metafísica

apresentada por Guenón e a metafísica escolástica é a dependência de ambas de

algo além da razão. No caso de Guenón já vimos que o misticismo dirige suas

abordagens sobre o tema e no caso da escolástica temos que a filosofia era serva da

teologia, ou da fé. Nessa direção Coutinho afirma:

A teologia ocupa o lugar cimeiro, como rainha das ciências, à qual todas as demais estão subordinadas e em função da qual existem e funcionam. A filosofia inclui-se nessa subordinação e serviço, em lugar imediatamente abaixo da ciência divina, como ancilla theologiae (serva da teologia). (COUTINHO, 2008. p. 7)

A partir de agora pretendemos afunilar a abordagem quanto à metafísica

no ocidente para um momento em que a metafísica passa a ser estudada sob um

prisma menos dependente da teologia e para isso nos valeremos de dois importantes

pensadores que abordaram a metafísica no ocidente, Immanuel Kant e Henri Bergson

3.1.1 Kant e a Metafísica

A razão para darmos esse salto no estudo da metafísica, deixando para

trás grandes pensadores como o próprio Descartes, deve-se ao fato de que buscamos

um momento em que a metafísica vai se desligar de conceitos teológicos na busca da

verdade. O próprio Descartes, embora tenha dado uma valiosa contribuição para o

conhecimento de forma geral, especialmente o conhecimento científico, não se

desvinculou da ideia de Deus como a fonte de onde emana todos os conhecimentos.

Veja-se, por exemplo, a preocupação cartesiana que, ao que nos parece, buscava na

metafísica a unificação de todas as ciências, mas apesar de seus esforços para

mostrar que só através da razão o ser humano pode realmente adquirir conhecimento,

Descartes acabou alicerçando sua tese metafísica na existência de Deus, que seria

para ele a fonte de todas as ciências. Isso pode ser observado, dentre outros lugares,

nas meditações quatro e cinco da sua obra Meditações Sobre a Filosofia Primeira1 de

onde extraímos o texto abaixo para sintetizar o que queremos mostrar:

Quando percebo atentamente que duvido, a saber, que sou coisa incompleta e dependente, apresenta-se-me clara e distinta a ideia de um ente independente e completo, isto é, Deus. E, ou unicamente porque tal ideia esteja em mim, ou porque eu, eu que possuo essa ideia, existo, concluo, do modo mais manifesto, que Deus também existe ...Parece-me ver, agora, um caminho que leva dessa contemplação do verdadeiro Deus, onde afinal

1 Essa obra pode ser baixada em PDF no seguinte endereço eletrônico: https://mega.nz/#!ox0yBKQR!SpNJKdY2dbeuAnCvCE5AjcXXkfYTDLiNml_nZziuhaA

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se encerram todos os tesouros das ciências e da sabedoria, ao conhecimento de todas as outras coisas. (DESCARTES, p. 111)

Outro influente filósofo que deixamos de lado é David Hume e, neste caso,

o fazemos por uma razão de economicidade, pois Kant tem como ponto de partida

para sua metafísica alguns conceitos Humeanos, mas dá a eles uma direção

totalmente diversa e mais racional. A influência de David Hume nas investigações de

Kant é por ele exposta no que se segue: “Confesso francamente: foi a advertência de

David Hume que, há muitos anos, interrompeu o meu sono dogmático e deu às minhas

investigações no campo da filosofia especulativa uma orientação inteiramente

diversa.” (KANT, 1988, p. 17)

Segundo Chatelet, Kant pertenceria a um grupo de pensadores que pode

ser chamado de filósofos das luzes. Seriam filósofos que se opunham aos teólogos e

aos metafísicos que extraíam seus conceitos da teologia. Esses filósofos confiavam

apenas na experiência e procuravam libertar o homem das trevas das superstições,

do fanatismo religioso, das trevas intelectuais. (CHATELET, 1997, p. 88-89) Talvez

haja algum exagero nessa declaração de Chatelet, pois não havia apenas fanatismo,

superstição e trevas nos estudos metafísicos e na teologia. Contudo, Kant procura

estabelecer a razão como o meio de se auferir conhecimentos de uma forma mais

segura e procura desvenciliar a filosofia da teologia.

Kant não está interessado em pôr fim à metafísica enquanto campo de

estudos, mas em encontrar o lugar adequado a ela e em estabelecer um método

seguro para o estudo do que a ela concerne. Para ele o conhecimento não é uma

mera apreensão passiva da mente, mas um processo ativo no qual os objetos do

conhecimento (o cognoscível) são dados empiricamente ao sujeito (o cognoscente)

no espaço e tempo em que este se encontra. Os objetos seriam regulados pelo

entendimento do sujeito de conhecimento, que estabeleceria algo a priori sobre eles

(com base nas categorias, das quais falaremos mais à frente). Perceba que na visão

kantiana não é possível um conhecimento que ultrapasse a experiência do sujeito, na

verdade ele afirma que “seria um absurdo se esperássemos conhecer de um objeto

qualquer mais do que o que pertence à experiência possível do mesmo.” (KANT, 1988,

p.143) Ele defende que os seres humanos só podem conhecer os fenômenos, ou seja,

conhecer aquilo que de fato se apresenta empiricamente ao homem. Isso não significa

dizer que ele não admitia qualquer conhecimento além dos fenômenos, pois Kant

afirma haver também o numenous, ou seja, as coisas em si: “O entendimento, pois,

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justamente por aceitar fenômenos, admite também a existência de coisas em si;

podemos, por conseguinte, dizer que a representação de tais seres, que estão na

base dos fenômenos, portanto, de simples seres inteligíveis, não só é admissível, mas

também inevitável.” (KANT, 1988, p. 92) Na verdade ele está procurando organizar a

maneira de se obter conhecimento de forma segura; não nega a metafísica nem que

existam universais, mas parece nos dizer que até aqui os seres humanos só têm

conseguido obter conhecimento através dos sentidos. Veja-se a seguinte afirmação

de Kant:

Seria um absurdo se esperássemos conhecer de um objeto qualquer mais do que o que pertence à experiência possível do mesmo, ou se pretendêssemos o menor conhecimento de uma coisa, acerca da qual admitimos que ela não é um objeto de experiência possível, para a determinar segundo a sua constituição, tal como é em si mesma; com efeito, como queremos nós realizar esta determinação já que o tempo, o espaço e todos os conceitos do entendimento, mais ainda, os conceitos tirados pela intuição empírica ou pela percepção no mundo sensível não têm, nem podem ter nenhum outro uso senão tornar possível a experiência, e que, se omitirmos esta condição dos puros conceitos do entendimento, eles já não determinam então nenhum objeto e não possuem nenhuma significação. Mas, por outro lado, seria um absurdo ainda /A 1«3 maior se não admitíssemos nenhumas coisas em si, ou se quiséssemos fazer passar a nossa experiência pelo único modo de conhecimento possível das coisas, por conseguinte, a nossa intuição no espaço e no tempo pela única intuição I164 possível, o nosso entendimento discursivo pelo protótipo de todo o entendimento possível, portanto, os princípios da possibilidade da experiência pelas condições universais das coisas em si. (KANT, 1988, p. 143-144)

Enquanto os metafísicos anteriores a ele pretendiam que a realidade pode

ser conhecida em si mesma, até mesmo suas causas (como o motor primeiro de

Aristóteles), Kant diz que não temos acesso à realidade como ela é em si. Só podemos

acessar a realidade sensível, ou seja, aquela que se apresenta a nós como fenômeno

em nosso espaço e tempo e, para se acessar a realidade sensível é necessário

recorrer às categorias, que são propriedades de nosso entendimento sempre que ele

representa a realidade. Categoria, nas palavras de Chateleut “é simplesmente um

conceito-base, que tem uma grande generalidade.” (CHATELEUT, 1997, p. 96) Em

suma, categorias são conceitos básicos que reúnem a multiplicidade das intuições

sensíveis. Pode-se dizer também que as categorias são princípios gerais que regulam

tanto a nossa concepção quanto a nossa percepção da realidade sensível.

Precisamos entender que essa realidade sensível é produzida pelo sujeito

cognoscente, como afirma Chateleut: “É em função de sua sensibilidade e de sua

organização intelectual que o sujeito cognoscente transforma o material que lhe é

fornecido, imposto, por essa exterioridade incognoscível.” (Idem, 97)

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Como exemplo podemos pensar em um objeto qualquer, como por exemplo

a pedra. A pedra aparece para o sujeito cognoscente, no seu espaço e tempo, como

um fenômeno. Percebo a pedra através do sentido da visão, e essa sensação da visão

será recebida e organizada pelo meu intelecto de acordo com os conceitos já

existentes em mim, como por exemplo: a pedra é dura; tanto “pedra” como “a pedra é

dura” são conceitos básicos do meu entendimento, ou seja, categorias.

Devido às conclusões a que Kant chegou sobre como é possível alcançar

o conhecimento, ou seja, que só é possível ao homem conhecer de fato aquilo que se

lhe apresenta empiricamente, é que ele formula a questão: Como é possível a

metafísica? Em outras palavras, ele vai questionar se é realmente possível adquirir

um conhecimento sobre algo que não é dado ao homem empiricamente e vai concluir

que isso não é possível. Nessa linha temos o comentário de Chatelet abaixo:

Os metafísicos se enganaram ao falar de seus três grandes

objetos privilegiados: a alma, o mundo e Deus. Da alma não se pode dizer

nada. Do mundo, não se pode dizer nem que é finito nem que é infinito, nem

que é eterno nem que não é eterno. De Deus, não se pode demonstrar que

existe nem que não existe. São objetos que não têm a ver com o

conhecimento, pois são objetos dos quais não podemos ter nenhuma

experiência. (CHATELEUT, 1997, p. 98)

Obviamente Kant não está afirmando que os objetos alma, mundo e Deus

não existem, mas afirma que não podemos conhecê-los de fato porque eles não se

apresentam a nós no mundo sensível, não nos são dados. Ele conclui que conhecer

Deus, ou o ser supremo, em sua essência, ou seja, naquilo que é em si, é algo

impensável, pois não temos condições de penetrar empiricamente nesse ser, “somos

assim impedidos, segundo os nossos conceitos que temos da razão enquanto causa

/i79 eficiente (graças à vontade), de fazer um uso transcendente para determinar a

natureza divina mediante propriedades, que, no entanto, sempre são tiradas somente

da natureza humana.” (KANT, 1988, 154-155)

Para arrematar essa questão colocamos abaixo uma citação de Peter

Sloterdijk que sintetiza o que discutimos sobre Kant até aqui:

O grande feito do esclarecimento kantiano foi ter mostrado que a razão só funciona de modo confiável sob as condições do conhecimento empírico... Segundo a crítica lógica, portanto, proposições frutíferas sobre objetos para além da experiência não são mais possíveis. Em verdade impõem-se inexoravelmente ao pensamento as ideias centrais metafísicas de Deus, da alma, do universo. Não obstante, elas não podem ser tratadas de maneira conclusiva com os meios dados do pensamento. Subsistiria uma perspectiva, caso elas fossem empíricas; no entanto, como elas não o são, não há nenhuma esperança para a razão fechar um dia o ‘balanço’ em relação a esses temas. (SLOTERDIJK, 2012. p. 68)

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Na visão kantiana os temas da metafísica são os mais importantes e não

podem ser negligenciados, ainda que não possamos nos valer da experiência para

estuda-los:

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão, investigações que por sua importância nos parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos. (KANT, 2008, p. 20)

Kant afirma ainda que o homem que pensa nunca irá renunciar à

investigação metafísica, mas não pode mais ser uma metafísica sem qualquer padrão,

como a que havia até os seus dias, pois essa não satisfaz aquele que reflete. Ele julga

necessário ao menos tentar uma metafísica que seja uma crítica, realmente

investigativa, seguindo padrões racionais coerentes, analíticos. Para ele a metafísica

não teria feito nenhum progresso nesse sentido até então. (Idem, 166-167) Para Kant

a boa metafísica é conduzida de forma crítica, criteriosa e por isso a denomina de

crítica da razão. Segundo ele “a crítica da razão conduz, por fim, necessariamente, à

ciência; o uso dogmático da razão sem crítica conduz, pelo contrário, a afirmações

infundadas, que sempre podem ser contraditadas por outras não menos verossímeis,

o que conduz ao ceticismo.” (Kant, 2008, p. 20-21)

Mas, se como Sloterdijk sintetizou (ver citação acima), não é possível à

razão fechar a questão de conhecimentos metafísicos, como poderia a metafísica

ainda ser útil? Na sua obra Crítica da Razão Pura Kant apresenta a impossibilidade

dos pressupostos metafísicos até então apresentados, pois, como já dissemos, não

se apresentam empiricamente ao homem. Por vezes a única coisa que uma metafísica

bem elaborada poderá nos dar é a conclusão de que alguns temas estão fora do

alcance da razão, portanto não os esclareceremos satisfatoriamente. Entretanto, mais

tarde, Kant vai retomar a investigação metafísica na sua obra Crítica da Razão Prática,

mas aqui toma por base os argumentos morais, fazendo da ética o grande tema da

metafísica.

Penso que Rene Guenon e Kant concordam que a metafísica está fora do

mundo fenomênico e pelo simples uso da razão jamais se chegará ao conhecimento

de seus princípios universais. Diferem, porém, em pontos muito importantes. Kant não

se aventura a buscar outros meios para o conhecimento que não seja a razão e passa

a se preocupar de questões éticas, morais, ao prosseguir suas apresentações

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metafísicas. Mas Guenon não quer que a metafísica seja reduzida apenas ao campo

da moral e apresenta a teoria dos estados múltiplos do ser (referido no primeiro

capítulo) como o meio de se atingir o conhecimento metafísico. Para Guénon é uma

afirmação de ignorância reconhecer que não temos como conhecer o que está além

do alcance da razão1.

Passaremos agora brevemente por outro filósofo que, na nossa opinião é um

intermediário entre Kant e Guenon. Trata-se de Henri Bergson.

3.1.2 Bergson e o Intuicionismo

René Guenón, como vimos, critica a filosofia de Bergson, por julgar que a

mesma rebaixa a verdade, o conhecimento, a ponto de identificá-lo apenas à realidade

sensível com todas as flutuações que lhe são próprias. Guenón critica o intuicionismo

por classifica-lo como antimetafísico e infra-racional, critica sua inclinação ao

evolucionismo e especialmente sua teoria a respeito da intuição como meio para a

apreensão do conhecimento. Faremos uma síntese do intuicionismo de Bergson e o

compararemos a um viés do pensamento de Guenón para ver se suas críticas

procedem.

Bastaria, para rebater essas acusações de Guenón, o seguinte comentário

de Bergson:

Nada diremos acerca daquele que pretende que nossa ‘intuição’ seja instinto ou sentimento. Nenhuma linha daquilo que escrevemos se presta a uma tal interpretação. E em tudo o que escrevemos há a afirmação do contrário: nossa intuição é reflexão. Mas, pelo fato de que chamávamos a atenção para a mobilidade que está no fundo das coisas, pretendeu-se que encorajássemos não sei que relaxamento do espírito. (BERGSON, 2006. p. 99)

Entretanto, visando a uma compreensão melhor do assunto, apresentamos

uma síntese do intuicionismo Bergsoniano. A grande questão discutida por Bergson é

como se pode apreender a realidade das coisas, como se alcança o conhecimento de

fato. A tendência de muitos pensadores (como Kant e os pós-Kantianos, por exemplo)

era o uso da inteligência, do raciocínio lógico para se conhecer um objeto. Bergson,

por usa vez, afirma que a inteligência é uma faculdade que se desenvolveu para a

ação e ajuda na adaptação ao ambiente físico em que vivemos. A realidade não é

outra coisa senão algo em contínua mutação. A preocupação dele é estabelecer uma

1 Quanto a isso veja-se o capítulo 4: Ciência Sagrada e Ciência Profana - do livro: A Crise do Mundo Moderno.

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forma de aquisição de conhecimento diferente do método científico, o qual é mais

quantitativo e esquematizador. Bergson busca uma forma de conhecimento filosófico,

que possa colher a realidade como ela é efetivamente, em todo o seu dinamismo e

vitalidade. E isto é impossível quando a realidade é seccionada, fragmentada,

esquematizada. Em suma, Bergson busca colher a verdade como se apresenta aos

olhos primeiramente, mas não superficialmente, ao contrário, o conhecimento por

intuição chega até a interioridade profunda das coisas, à sua essência; conhecer por

intuição significa transportarmo-nos ao interior da realidade, no que ela tem de único

e indescritível. A intuição bergsoniana seria uma reinserção no próprio tempo e não

um salto para o eterno. A tese de Bergson é que a inteligência não opera naturalmente

sobre o tempo real, isto é, sobre a duração, mas que é capaz de fazê-lo através de

um esforço que reverte a sua inclinação natural. Esse esforço, contração ou tensão é

o que Bergson chama de intuição e define como consciência imediata do fluxo da vida

interior, passível de ser prolongada em intuição da consciência em geral por meio de

uma “simpatia divinatória” com tudo o que vive e dura. Tratar-se-ia, neste caso, de

uma intuição do vital; recuperação, pela consciência, do elã de vida que também está

em nós. O método filosófico proposto por Bergson é caracterizado por um esforço de

redirecionamento da inteligência que, somente contrariando a sua tendência natural,

é capaz de iluminar de algum modo o movimento próprio da vida. A nova metafísica,

fundada na intuição da duração, não seria uma sistematização da ciência, mas um

conhecimento complementar que dela difere tanto em seu método quanto no aspecto

da realidade que toma por objeto. A intuição seria o método da metafísica, enquanto

o espírito (ou o que há de espiritual na matéria) seria seu objeto. À ciência caberia a

análise da matéria, por intermédio da inteligência. Ciência e metafísica seriam,

portanto, métodos diferentes, mas complementares e de igual valor, que consideram

metades diferentes de uma mesma realidade. Essa ideia pode ser vista e sintetizada

na seguinte afirmação de Bergson:

Intuição’, ... a função metafísica do pensamento: principalmente o conhecimento íntimo do espírito pelo espírito, subsidiariamente o conhecimento, pelo espírito, daquilo que há de essencial na matéria, a inteligência sendo sem dúvida feita antes de tudo para manipular a matéria e, por conseguinte, para conhecê-la, mas não tendo por destinação especial tocar-lhe o fundo. (Nota de Rodapé. BERGSON, 2006. p. 223)

Bergson tenta se contrapor a Kant no que se refere à possibilidade do

conhecimento metafísico. Para ele “As doutrinas que têm um fundo de intuição

escapam à crítica kantiana na exata medida em que são intuitivas; e essas doutrinas

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são tudo na metafísica.” (BERGSON, 2006a, p. 232) Nota-se que ele está

argumentando sobre uma primazia que haveria nas questões metafísicas, as quais

através da intuição alcançariam um saber absoluto, sem sofrer mediação de

conceitos, o que levaria o estudante a se identificar com o núcleo da realidade.

Intuição “significa primeiro consciência, mas consciência imediata, visão que mal se

distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência.”

(BERGSON, 2006a, p. 29) Aquilo que Kant julgou impossível ao ser humano alcançar

Bergson tenta demonstrar que é possível e o é dentro dos sentidos e da consciência,

não porém por esforços dialéticos, mas por intuição. Kant também argumentou a

respeito dessa possibilidade, mas concluiu que era impossível o conhecimento

metafísico por faltar justamente tal intuição. Para demonstrar que essa intuição é sim

possível Bergson vai argumentar a respeito de outra forma de se perceber o tempo,

como segue:

Pois para ir até a intuição não é necessário transportar-se para fora do domínio dos sentidos e da consciência. O erro de Kant foi acreditar que isso fosse necessário. Após ter provado por argumentos decisivos que nuca nenhum esforço dialético irá nos introduzir no além e que uma metafísica eficaz seria necessariamente uma metafísica intuitiva, acrescentou que essa intuição nos falta e que essa metafísica é impossível. Sê-lo-ia, com efeito, caso não houvesse outro tempo e outra mudança além daqueles que Kant percebeu [...] pois nossa percepção usual não poderia sair do tempo nem apreender algo diferente da mudança. Mas o tempo no qual permanecemos naturalmente instalados, a mudança que normalmente temos em mira são um tempo e uma mudança que nossos sentidos e nossa consciência reduziram a pó para facilitar nossa ação sobre as coisas. Desfaçamos o que estes fizeram, reconduzamos nossa percepção às suas origens e teremos um conhecimento de um novo gênero sem ter precisado recorrer a novas faculdades. (BERGSON, 2006a, p. 147).

A intuição, que é intuição da duração, teria uma certa prioridade ontológica,

mas o caráter originário e positivo da intuição, assim como o caráter secundário da

inteligência não invalidam a relação de complementaridade entre ambas. O êxito

dessa relação, que equivale à relação entre metafísica e ciência, depende de que

cada uma se volte para o seu objeto próprio. Intuição seria, pois, pensamento da

duração, do tempo não espacializado, não figurado, não representado, não

fragmentado, seria intuição do espiritual e o espírito seria o objeto da metafísica.

Segundo a Dra Catarina Rochamonte:

O que Bergson se propõe a demonstrar é que a inteligência não nos põe naturalmente em contato com o tempo real, mas apenas com um tempo espacializado, adequado ao nosso modo próprio de concebê-lo, com vistas à ação. De acordo com isso, a preensão do “Ser” ou do “absoluto” seria antes a apreensão efetiva e desinteressada do tempo concreto e não a suposta apreensão de uma eternidade atemporal. Haveria, então, a

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possibilidade de uma experiência do absoluto, embora tal não se dê, como supuseram os pós-kantianos, através de uma intuição atemporal, mas sim através da intuição própria da duração.1 (ROCHAMONTE, 2012)

Podemos concordar com Rene Guenón que é de pouca clareza o conceito

do intuicionismo de Bergson assim como é difícil saber como se atingir a intuição de

que fala. Entretanto, os conceitos de Guenón a respeito de como se alcançar a

intelectualidade verdadeira, que ele também denomina de “intuição intelectual”, a qual

só se alcança em um mais elevado estado do ser (um estado de transcendência)

dentro de seu conceito dos estados múltiplos do ser também não nos ajudam. A

diferença mais substancial neste tema a meu ver reside no fato de que enquanto

Guenón afirma que o ser irá entrar em um estado de não-tempo, fora do tempo, onde

poderá ver o passado, presente e futuro como eventos simultâneos, Bergson insiste

que a intuição acontece no espaço-tempo em que o ser se encontra, embora para ele

o tempo vivido (ou duração interna ou simplesmente consciência) é o passado vivo

no presente e aberto ao futuro no espírito que compreende o real de modo imediato.

É um tempo completamente indivisível por ser qualitativo e não quantitativo. Claro que

esse é um conceito igualmente difícil de se explicar minuciosamente, mas me parece

até um problema a menos para se resolver, pois se já é complicado entender essa

“intuição” de Bergson, muito mais será entender a “intuição intelectual” de Guenón

que só pode ser atingida em um “não-tempo”.

Dissemos que Bergson seria um intermediário entre Kant e Guenon porque

ele tentou formular um modo de se alcançar o conhecimento daquilo que a razão não

poderia atingir e essa tentativa foi apresentada através do que se tornou conhecido

como intuicionismo de Bergson. Guenon também apresentou sua teoria sobre como

se atingir o conhecimento universal no seu livro Estados Múltiplos do Ser. São teorias

diferentes, mas na minha opinião ambas são carregadas de espiritualismo e, no caso

de Guenon, até mesmo de misticismo.

3.1.3 Pragmatismo

No primeiro capítulo informamos que retomaríamos aqui a crítica específica

de Guenón de que o racionalismo finalmente descambou no pragmatismo, que

1 Rochamonte, Catarina. http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-content/uploads/2012/05/catarinarochamonte.pdf.

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identifica a verdade apenas com sua utilidade. Precisamos, portanto tratar dessa

questão antes de concluirmos esse item sobre a metafísica.

O pragmatismo é outro tema que poderia consumir muitas páginas para

uma análise detalhada, porém vamos mais uma vez sintetizar a questão. Edna Maria

Magalhães do Nascimento nos informa o seguinte sobre o pragmatismo:

São diversas as versões e caracterizações do pragmatismo, entretanto em que pese essas distinções entre seus propositores, os pragmatistas têm em comum, dentre outras questões: a oposição às filosofias especulativas; uma revisão do empirismo; a superação da filosofia contemplativa pela racionalidade científica; a objeção ao ceticismo, bem como a formulação de uma nova concepção de verdade. (NASCIMENTO, 2010. p. 2)

A Dra Nascimento esclarece que o intento de William James e Charles

Peirce era desenvolver a metafísica sob uma base científica buscando pôr fim às

disputas filosóficas em metafísica. Para Nascimento, Peirce é considerado o pai do

pragmatismo1 e o concebia como um método de estudo e não uma teoria:

Peirce concebia a sua filosofia muito mais como um método do que como uma teoria da verdade, de maneira que ele assegurava que não pretendia desenvolver uma teoria metafísica, o seu pragmatismo deveria ser uma espécie de técnica auxiliar à compreensão dos problemas filosóficos e científicos. O desejo era a formulação de um método que pudesse assentar as disputas metafísicas. (NASCIMENTO, 2010. p. 3)

A afirmação de Guenón de que o pragmatismo identifica a verdade apenas

a utilidades pode ser uma referência à corrente interpretativa do pragmatismo que foi

seguida por William James. Segundo a Dra Nascimento James de fato deu ao

pragmatismo um viés humanista e condicionou a verdade a relações práticas:

Enquanto Peirce caracterizou o pragmatismo como um método para determinar os significados das proposições e se amparou numa doutrina semiótica do conhecimento, William James ampliou o significado da verdade, trouxe para o pragmatismo a doutrina humanista e demarcou a sua condição de verdade, isto é, a verdade corresponde ao que é vantajoso ao pensamento ou àquilo que gera uma relação satisfatória com a realidade, de tal forma que a vantagem e a satisfação estejam vinculadas ao que é útil, ao prático. Em outras palavras, a verdade corresponde ao que é bom. (Idem, p. 6)

A tentativa de James é estabelecer uma filosofia que harmonize o

racionalismo ao empirismo, de tal forma que as abstrações intelectuais possam ser

aplicadas ao mundo real e de alguma forma contribuírem para a melhoria da vida.

1 Segundo Nascimento, no início do século XX Peirce se desaponta com as interpretações extraídas do pragmatismo e cria um novo termo – pragmaticismo – para diferenciar sua filosofia das demais correntes de seus dias: “Peirce sente-se desapontado com a interpretação corrente do pragmatismo e se esforça para divulgar sua própria versão. Buscando se distinguir de seus contemporâneos denomina sua filosofia de pragmaticismo.” (NASCIMENTO, 2010. p. 5)

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Temos assim que o pragmatismo pode ser visto como uma filosofia que

analisa questões metafísicas sob bases racionalistas ou empíricas e não sob um

fundamento além da razão (ou como Guénon costuma afirmar: conhecimento

suprarracional). Certamente há quem discorde de James sobre a verdade dever ser

buscada apenas em relação a seus fins práticos, mas o misticismo de Guenón na

busca da intelectualidade pura além de aparentemente inalcançável nos parece inútil,

afinal em nenhum momento ele nos apresenta o que acontece com aquele que

porventura alcance tal conhecimento suprarracional. Além disso, até hoje nos parece

que todas as pesquisas sempre visavam algum fim prático, ainda que esse fim fosse

religioso (alcançar a vida eterna, por exemplo).

3.1.4 Conclusões Sobre Metafísica

Atualmente a metafísica continua sendo estudada por diferentes

pesquisadores, e embora ainda haja os que se debruçam a pesquisar sobre a

existência de Deus e coisas relacionadas à teologia e religião, parece que as questões

éticas e morais (como a controvérsia entre liberdade e determinismo,

responsabilidade moral, etc.) têm sido mais amplamente discutidas. De qualquer

forma poucos se arriscam a utilizar métodos não científicos nos estudos metafísicos.

Ramos da ciência cada vez mais são aliados dos pesquisadores em suas

investigações, como por exemplo a neurociência nas pesquisas sobre teorias da ação

e responsabilidade moral.

Concluímos esse esboço sobre metafísica tendo a impressão de que a

metafísica conforme apresentada por Rene Guenon já foi superada no ocidente, pois

ela tem um fundo místico e ele apresenta meios não racionais para alcançá-la. Em

seus escritos não encontramos uma evidência sequer de que de fato alguém é capaz

de restaurar o tal estado primordial, muito menos de passar para estágios

transcendentais do ser, na verdade não restou provado que existam múltiplos estados

do ser, como ele afirma por verdade. A metafísica como apresentada por Guenon

parece-nos mais com misticismo do que com filosofia. É possível também classificar

essa abordagem de Rene Guenón como gnóstica, pois essa sua tentativa de buscar

estados do ser nos quais esse se aparta do tempo e da história outra coisa não é

senão uma manifestação gnóstica. Umberto Eco assim se refere ao gnosticismo: “O

gnosticismo... elabora uma síndrome de rejeição em relação ao tempo e à história.”

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(ECO, 2000. p. 27) Eco, após apresentar sua tese sobre Semiose Hermética1, dedica

uma seção do capítulo Aspectos da Semiose Hermética, da sua obra: Os Limites da

Interpretação, a Rene Guenón, e o título dessa seção é bastante curioso: René

Guénon: Deriva e Navio dos Doidos; nela o escritor faz a seguinte afirmação a respeito

dos escritos de Guenón: “Quase todas as características do pensamento hermético

são representáveis nos procedimentos argumentativos de um de seus epígonos

contemporâneos: René Guénon.” (ECO, 2000. p. 36) Parece-nos de fato que Guenon,

apesar de sua formação filosófica, é na verdade um escritor espiritualista, místico,

gnóstico e, ainda que algumas obras suas (como A Crise do Mundo Moderno e Oriente

e Ocidente) sejam produções críticas, não estão livres de seu espiritualismo e nem

apresentam bases crítico-científicas, apenas afirmações com base em uma metafísica

gnóstica.

No primeiro capítulo desta pesquisa afirmamos que todas as críticas de

Guenon ao ocidente têm como base essa metafísica singular que ele defende. Uma

vez que não aceitamos tal metafísica como plausível certamente não poderemos

aceitar suas críticas, pois, retirada a base, fatalmente ruirá todo o edifício. Mesmo

assim prosseguiremos em nossa análise como anunciamos nos capítulos anteriores.

3.2 A QUESTÃO DA TRADIÇÃO

Dividiremos essa seção em três tópicos. Inicialmente abordaremos a

questão da tradição e metafísica, em seguida falaremos de tradição e ciência e

finalmente nos concentraremos na tradição religiosa.

3.2.1 Tradição e Metafísica

No primeiro capítulo apresentamos a visão de Guenón sobre o que seria

para ele tradição e percebemos que ele também se vale do conceito etimológico de

tradição como aquilo que se transmite, mas não se atém à visão ocidental que

apresentamos (que parece ser também o posicionamento do filósofo árabe Al – Jabri)

da tradição como sendo um produto em constante modificação. Guenón a apresentou

1 A professora Eliana Pibernat Antonini, pesquisadora das obras de Umberto Eco informa que “a semiose hermética identificaria, em cada texto, a plenitude do significado, e revelaria os efeitos contínuos de deslizamento de todo significado possível. O significado de um texto seria continuamente proposto e, o significado último converter-se-ia num segredo inatingível.” Esse artigo pode ser encontrado em www.eca.usp.br/associa/alaic/Congreso1999/11gt/Eliana%20Pibemat.rtf

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como imutável e impossível de ser estudada historicamente, pois para ele a tradição

seria de origem não humana, impossível, portanto, de se fixar uma origem no tempo.

E assim, é por ser ela uma manifestação da doutrina metafísica, que pode se

apresentar como uma intelectualidade pura, aí se estaria diante de uma tradição

puramente metafísica, ou uma intelectualidade misturada com diversos elementos

heterogêneos, o que resultaria em uma tradição religiosa. Afirmou ele também que a

tradição e a civilização no oriente se confundem e que em geral ela se apresenta

nessas duas formas, sendo a primeira uma tradição esotérica à qual apenas uma elite

intelectual tem acesso e a segunda seria exotérica, sendo conhecida pelo povo em

geral.

Já mencionamos que toda a filosofia de Guenón é dependente de um

conceito metafísico que se pode classificar como místico e que esse misticismo

metafísico foi abandonado pelos filósofos materialistas, ou racionalistas, na filosofia

ocidental; e, embora ainda haja muitas questões metafísicas sendo debatidas,

geralmente as abordagens são feitas com o uso da razão e o auxílio das ciências

empíricas sempre que cabível. Portanto, para o ocidente, pensar em tradição como

algo estanque e de origem não humana é inconcebível, pois seja qual for o conceito

aceito quanto ao significado do termo, a tradição sempre estará vinculada à história e

sempre envolverá pessoas humanas. Falar em tradição como sinônimo ou

manifestação da tal intelectualidade pura nos parece uma confusão de conceitos ou

uma tentativa de espiritualizar tudo, pois se para se atingir essa intelectualidade pura,

como vimos no primeiro capítulo, seria necessário um esforço tal que mudasse a

condição do ser que se encontra no espaço-tempo para uma condição atemporal, tal

esforço seria também imprescindível para se conhecer a tradição nos termos que ele

coloca e isso nos parece místico ou espiritual demais (no sentido religioso de espírito

como uma entidade capaz de se separar do corpo físico).

Al – Jabri discute a questão da tradição árabe (como vimos, segundo

Guenón, essa seria uma manifestação da tradição oriental também) e percebe que

atualmente ainda há na atualidade alguns que a espiritualizam, mas observa a

necessidade de se estudar a tradição árabe sob um prisma mais contemporâneo e

racional:

A modernidade significa, pois, antes de tudo elaborar um método e uma visão modernas da tradição. Poderemos, assim, libertar a nossa concepção da tradição dessa carga ideológica e afetiva que pesa sobre a nossa consciência e nos força a ver a tradição como uma realidade absoluta,

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que transcende a história, em vez de vê-la em sua relatividade e em sua historicidade. (Al – Jabri, 1987. p. 29)

Na primeira parte de sua obra, Introdução à Crítica da Razão Árabe, Al –

Jabri apresenta três correntes atuais que buscam ler a tradição árabe, sendo a

primeira delas a corrente fundamentalista; ele afirma que “a leitura fundamentalista da

tradição é uma leitura a-histórica e, portanto, só pode fornecer um único tipo de

compreensão da tradição: uma compreensão da tradição encerrada na tradição e

absorvida por uma tradição que ela não consegue, em contrapartida englobar: é a

tradição que se repete.” (Idem, 39) Segundo Al – Jabri essa leitura fundamentalista

tem como único motor da história o fator espiritual. Apesar dele tratar apenas da

tradição árabe percebemos que suas conclusões podem bem ser aplicadas aos

conceitos de Guenón aqui apresentados, pois para Guenón a tradição é bastante em

si e está fora da história; ademais, essa tradição definida por Guenón é uma tradição

espiritual, fora dos domínios da história humana. Aqui percebemos que Guenón além

de místico tem também uma visão fundamentalista da tradição. Voltaremos a isso ao

falar da tradição religiosa. Quanto a Al – Jabri, em suas conclusões sobre como os

árabes devem lidar modernamente com a tradição ele defende um rompimento com o

pensamento gnóstico e um movimento ao encontro de uma abordagem mais racional

da tradição, o que ele chama de espírito averroísta. Enquanto Guenón tenta

convencer o ocidente a adotar o espírito oriental (ou o que ele assim define), Al – Jabri

convida os orientais árabes a permanecer em sua própria tradição, mas buscando o

que desde há muito nela existe de racional. Para ele não é viável que uma dada cultura

seja imposta a um povo que nada tem a ver com ela. Antes, é preciso que cada povo

busque dentro de sua tradição a renovação intelectual necessária ao prosseguimento

de sua tradição (como dito, Al – Jabri entende a tradição como um produto em

constante transformação, mas que conserva muitos elementos constitutivos). Por

certo que cada civilização absorve um pouco de outra civilização com a qual entra em

contato, mas tenderá sempre a conservar seus elementos distintivos. Para ele a

tradição árabe não poderá ser cartesiana ou humeana, embora receba de Descartes

e de Hume alguns elementos úteis e importantes. Na sua visão a tradição árabe deve

adotar o espírito averroísta:

O espírito averroísta é adaptável à nossa época, porque se ajusta a ela em mais de um ponto: o racionalismo, o realismo, o método axiomático e a abordagem crítica. Adotar o espírito averroísta é romper com o espírito aviceniano ‘oriental’, gnóstico e promotor das trevas. (Al – Jabri, 1987. p. 164-165)

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Embora haja alguns centros de estudos de doutrinas tradicionais baseados

nos escritos de Rene Guenón em países do ocidente que defendem suas ideias

místicas e radicais, e ainda que no mundo oriental, especialmente no mundo árabe-

islâmico, exista aparentemente uma tendência fundamentalista atualmente,

percebemos que tais coisas não são unânimes entre os orientais e o ideal de Guenón

de levar o ocidente a absorver o espírito tradicional oriental como ele definiu não

parece factível.

3.2.2 Tradição e Ciência

Ao tecer suas críticas ao ocidente Rene Guenón ataca o desenvolvimento

científico e o menospreza. Facilmente se percebe algumas contradições nessas

críticas, como mostraremos aqui. Primeiramente vejamos a contradição que ele cria

ao falar de ciência e metafísica:

Importa destacar que temos dito conhecimento e não ciência; nossa intenção, com isso, é marcar a profunda distinção que é preciso estabelecer necessariamente entre a metafísica, por um lado, e, por outro, as diversas ciências no sentido próprio desta palavra, quer dizer, todas as ciências particulares e especiais, que têm como objeto algum aspecto determinado das coisas individuais. Assim pois, no fundo, se trata da distinção mesma do universal e do individual, distinção que não deve ser tomada como uma oposição, já que, entre esses dois termos, não há nenhuma medida comum nem nenhuma relação de simetria ou de coordenação possível. Além disso, não poderia haver oposição ou conflito de nenhuma espécie entre a metafísica e as ciências, precisamente porque seus domínios respectivos estão profundamente separados. (GUENON, 2015. p.69)

Neste ponto claramente Guenón coloca metafísica e ciência como campos

totalmente separados e incomunicáveis. A primeira contradição que encontramos é

quanto ao uso dos termos universal e individual; ele diz que entre esses termos não

há nenhuma medida comum, nem simetria, nem coordenação. Ora, não é preciso

muito esforço para se perceber que qualquer coisa tida como universal

necessariamente abarcará os individuais, sob pena de não ser, caso contrário,

realmente universal. Em outros lugares de suas obras ele mesmo estabelece uma

relação entre a metafísica e as diversas ciências, como se pode observar em seu livro

A Crise do Mundo Moderno: “Uma ciência qualquer, segundo a concepção tradicional,

tem interesse menos em si mesma do que no fato de ser um prolongamento ou um

ramo secundário da doutrina, cuja parte essencial é constituída pela Metafísica pura.”

(GUENON, 2007. p. 48-49) Logo em seguida ele faz outra afirmação a respeito da

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relação entre ciência e metafísica: “Na sua repartição hierárquica segundo os graus

de existência aos quais se reportam, as ciências constituem, então, como que

escalões com a ajuda dos quais é possível elevar-se até à intelectualidade pura.”

(Idem, 49) E em uma nota de rodapé explicando essa afirmação ele usa a analogia

de uma escada colocando os degraus dessa escada como representando ciências

diversas, bem como os estados múltiplos do ser, dando a entender que as ciências

são meios para se alcançar o conhecimento verdadeiro, a intelectualidade pura:

Em meu estudo sobre ‘O Esoterismo de Dante’ indiquei o

simbolismo da escada na qual, segundo diversas tradições, os degraus

correspondem a certas ciências, ao mesmo tempo que aos estados do ser, o

que implica necessariamente que essas ciências, em lugar de serem

encaradas de uma maneira totalmente “profana” como acontece entre os

modernos, davam lugar a uma transposição, conferindo-lhe um alcance

verdadeiramente ‘iniciático’. (Idem, 49 – nota de rodapé)

Sem entrar nos méritos (ou deméritos) do texto convém destacar que ele

coloca as ciências como intimamente ligadas à tal metafísica pura, e se partirmos do

pressuposto que quando ele faz essa ligação estaria se referindo às ditas ciências

tradicionais do oriente e quando afirma que a ciência nada tem em comum com a

metafísica pura estaria se referindo às ciências do ocidente, no mínimo teremos que

admitir que seus pressupostos para tal afirmação são de cunho místico, ou hermético,

como aludimos anteriormente. Na verdade essa parece ser uma inclinação

preponderante de Rene Guenón, pois seus textos são carregados de uma filosofia

mística, espiritualista, e sem preocupação em esclarecer devidamente seus

fundamentos, apenas deixa transparecer que seu guia é essa intelectualidade pura e

que ela é alcançada apenas por uma elite intelectual, que seria constituída por

pessoas que pensem metafisicamente acima de tudo, lembrando que metafísica nada

teria a ver com questões morais, mas com os princípios universais, imutáveis e

eternos da intelectualidade pura, como ele coloca.

Em suas críticas Guenón demonstra sua preocupação com a fragmentação

do conhecimento através da especialização da ciência e como isso tende a tornar tal

conhecimento especializado incompleto. De fato, seria interessante que um biólogo,

por exemplo, pudesse dominar todo o conhecimento e as inter-relações de toda a

cadeia vital, mas seria isso possível? Qual seria, por exemplo, o número de páginas

de um livro de biologia que tentasse abarcar tudo sobre o reino vegetal somente? E

se quisermos ser mais criteriosos, podemos lembrar ainda que até mesmo as grandes

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divisões do conhecimento humano são todas especializações; temos assim que

“ciências da natureza” e “ciências exatas”, por exemplo, são ramos da ciência que

estudam objetos diferentes, os quais comportam um grande número de subdivisões

e, obviamente, não conhecemos um ser humano capaz de dominar todos eles.

Portanto, ainda que a especialização possa trazer limitações ao conhecimento é certo

que quem tentasse estudar tudo sobre tudo não arranharia nem a superfície de

qualquer objeto estudado, sendo mais viável se recorrer a especializações e buscar a

inter-relação dos conhecimentos sempre que necessária a uma finalidade específica.

Guenón, que ensina como se atingir estados mais elevados do ser a fim de

se obter a intelectualidade pura também não dominava o conhecimento de todas as

ciências (se é que dominava algum conhecimento racionalmente verificável). Mas sua

preocupação verdadeira não parece ser com a fragmentação do conhecimento

apenas, parece-nos antes uma preocupação com o abandono da metafísica

espiritualista, mística, que ele tanto apreciava.

Tratando-se do desenvolvimento do conhecimento, das ciências, em geral,

Max Weber afirma que apenas no ocidente haveria (em seus dias, claro) um estágio

de desenvolvimento científico válido, embora tenha sido no oriente que algumas

ciências se originaram. O texto abaixo vai nos ajudar a compreender as atuações de

oriente e ocidente quanto ao desenvolvimento científico:

Conhecimento e observação de grande finura sempre existiram em toda parte, principalmente na índia, na China, na Babilônia e no Egito. Mas à astronomia da Babilônia e às demais faltavam – o que torna seu desenvolvimento mais assombroso – as bases matemáticas recebidas primeiramente dos gregos. A geometria hindu não tinha provas racionais, que foram outro produto do intelecto grego, criador também da mecânica e da física. As ciências naturais da índia, embora de todo desenvolvidas sobre a observação, careciam de método de experimentação o que foi, longe de seus alvores na Antiguidade, um produto essencialmente do Renascimento, assim como o moderno laboratório. A medicina, especialmente na índia, embora altamente desenvolvida quanto às técnicas empíricas, carecia de fundamentos biológicos e particularmente bioquímicos. Uma química racional tem estado ausente de todas as áreas da cultura que não a ocidental. (WEBER, 1981. p.1)

Com base nessa afirmação de Weber parece-nos que o oriente não

conseguiu avançar no desenvolvimento do conhecimento de várias ciências que

podem ter se originado entre eles próprios. O ocidente, por sua vez, soube aliar o

conhecimento que já possuía com aquele que encontrou em terras orientais e assim,

nessa somatória harmônica de saberes, conseguiu expandir em muito o

conhecimento. E o que teria feito a diferença entre a estagnação científica oriental e

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a evolução ocidental? Falando sobre o racionalismo econômico Weber nos dá uma

pista de onde podemos encontrar a resposta à pergunta que acabamos de formular:

O racionalismo econômico, embora dependa parcialmente da técnica e do direito racional, é ao mesmo tempo determinado pela capacidade e disposição dos homens em adotar certos tipos de conduta racional. Onde elas foram obstruídas por obstáculos espirituais, o desenvolvimento de uma conduta econômica também tem encontrado uma séria resistência interna. Ora, as forças mágicas e religiosas, e os ideais éticos de dever deles decorrentes, sempre estiveram no passado entre os mais importantes elementos formativos de conduta. (WEBER, 1981. p. 11)

Recordemos que Guenón ataca Descartes e o racionalismo ocidental, mas

foi justamente essa guinada ocidental de uma postura de pesquisa que se submetia a

aspectos metafísicos (como a intuição e a indução) e até mesmo ao crivo da religião,

para uma postura racional que possibilitou a elaboração do método científico

cartesiano, o qual, por sua vez, proporcionou o início de um desenvolvimento científico

sem precedentes. De fato, devemos muito aos estudos de Decartes, pois teve

coragem de romper com algumas tradições e assim estabeleceu um método de

investigação de cuja utilização resultaram grandes avanços do conhecimento. Mas o

senhor Guenón se recusou a aceitar tais avanços e classificou a influência cartesiana

como limitadora do conhecimento. Certamente não podemos concordar com ele, pois

ainda que o método cartesiano não se preste para analisar questões metafísicas (se

é que existe algum método realmente aplicável a tal análise), foi a partir dele que a

pesquisa pode avançar com mais segurança, pois esse método estabelece passos

criteriosos de análise para se chegar a uma conclusão segura.1 Esse método foi

revisado por outros pensadores, como Augusto Comte e Edmund Husserl (dos quais

não poderemos falar para não fugir ao propósito desta pesquisa), mas nunca foi

desprezado, a não ser por aqueles que se furtam de usar a razão como meio seguro

de investigação, como é o caso de Guenón.

A crítica de Guenón à ciência como presente no ocidente é de que com a

ciência não buscam os ocidentais um crescimento intelectual, mas apenas aplicações

práticas, quando não mero desenvolvimento econômico. Por vezes as coisas podem

1 Vale recordar sucintamente os quatro passos do método cartesiano: 1- Nunca aceitar algo como verdadeiro até que seja excluída qualquer possibilidade de dúvida; 2- Dividir o problema em tantas partes quanto necessário para melhor resolvê-lo; 3- Conduzir a investigação ordenadamente, começando pelas questões mais fáceis de se conhecer e progredindo paulatinamente às mais complexas; e 4- Fazer enumerações e revisões gerais até ter certeza que nada foi omitido (Descartes, 2001. p. 23)

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ser de fato assim, pois de fato há muito se busca no ocidente conhecimentos capazes

de contribuir com a melhoria na qualidade de vida do planeta e, claro, alguns há que

visam meramente o crescimento econômico e acúmulo de riquezas, mas isso também

se verifica em outras civilizações ao longo da história humana e não cremos ser um

argumento substancial para caracterizar o ocidente como desprovido de

intelectualidade, a não ser daquela intelectualidade mística que ele chama de

intelectualidade verdadeira.

Outrossim, quando Guenón afirma que a astronomia é uma manifestação

degenerada da astrologia e a química, da alquimia, parece-nos que deixa transparecer

uma recusa em se desvencilhar de teses há muito superadas por pensadores críticos.

Atualmente a astrologia é mero objeto de especulação e curiosidade popular ao passo

que da alquimia ouvimos falar como uma espécie de ocultismo praticado na

anitiguidade. Nenhum pesquisador crítico sério daria ouvidos a semelhantes

afirmações embasadas apenas em conceitos sobre uma suposta metafísica pura, ou

intelectualidade verdadeira, transcendente ao ser humano.

A conclusão neste tópico é óbvia, não é a ciência no ocidente que se

degenerou, mas a do oriente (dos dias de Guenón) que estagnou e não se

desvencilhou das amarras religiosas ou espirituais. Se bem que, nos dias atuais nos

parece que aquelas “civilizações” elencadas por Guenón como representantes de uma

tradição metafísica inamovível, como a China e a Índia, estão mergulhadas na

modernidade e se transformando em grandes potências econômicas com significativo

avanço científico.

Parece-nos, enfim, que a ciência avança mais celeremente quando há

disposição em se quebrar tradições que já se tornaram obsoletas. Como vimos

anteriormente, a tradição é um produto em constante transformação e certamente a

tradição moderna carrega muitos pressupostos científicos e, se pudermos usar o

termo “tradição científica” poderemos perceber que essa também é um produto em

constante transformação, conservando alguns dados que se mostram verdadeiros e

úteis e se desfazendo daqueles que são superados ou perdem sua utilidade.

3.2.3 Tradição Religiosa

Quando apresentamos algumas ideias sobre a metafísica no ocidente

indicamos que René Guenón se reporta ao período escolástico como uma época em

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que o ocidente detinha uma tradição metafísica mais ou menos próxima da tradição

oriental tal como ele nos apresentou. Portanto iniciaremos essa seção analisando o

período escolástico. Tentaremos nos manter em uma análise filosófica do

escolasticismo, mas é sabido no meio filosófico que na escolástica a filosofia era

dependente da teologia, como já nos referimos na seção sobre a metafísica neste

mesmo capítulo, portanto, pode ser que em alguns momentos conceitos filosóficos e

teológicos se entrelacem nesta análise.

Chama nossa atenção essa defesa do período medieval feita por Guenón

como sendo um ideal a ser reconquistado, pois em geral temos a idade média como

um período de estagnação ou de atraso intelectual. Coutinho afirma que a Idade Média

assume o classicismo greco-romano “porém, não na sua pureza clássica, mas

submetendo-o ao espírito que lhe era próprio: medievaliza-o, quer dizer, barbariza-o

e cristianiza-o.” (COUTINHO, 2008. p. 6)

Seria tendencioso aceitar totalmente a afirmação anterior de Coutinho, pois

não podemos atribuir à idade média apenas negatividades, nem tampouco associar

os termos barbarizar e cristianizar. A história relata a luta do cristianismo contra os

bárbaros e seus costumes, muitos deles bastante primitivos e degradantes. Além

disso, houve produção intelectual e artística consideráveis no período medieval, basta

lembrarmos de nomes como Tomás de Aquino e Dante Alighieri, ou da capela sistina

– quanto à arte. O que questionamos não é com base na afirmação clássica atual de

que a idade média seria uma idade puramente de trevas, mas sim com base no fato

de tudo ter que ser submetido ao crivo da igreja, à teologia da época, caso houvesse

maior liberdade para produção intelectual, desvinculada da visão teológica, poderia

ter-se experimentado um avanço mais rápido nas ciências em geral.

Outra observação que convém registrar é que não pretendemos afirmar

que tudo o que procedeu ou procede da igreja Católica Romana é negativo. Na

verdade a igreja, ou as igrejas, as religiões, de forma geral, se adaptam à época em

que estão inseridas e, se na idade média fosse outro o movimento religioso

predominante provavelmente agiria da mesma forma, a menos que tivesse mantido o

ideal apostólico de lutar apenas pela pregação da mensagem do evangelho a todo o

mundo evitando opor-se aos governos e suas leis, tanto quanto possível. Reiteramos,

portanto, que reconhecemos a extensa obra assistencial e social da igreja Católica na

atualidade, bem como sua luta para conter os ataques bárbaros no período medieval,

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mas não podemos concordar com sua dominação, muitas vezes exacerbada, no

campo intelectual e suas condenações pelos tribunais da inquisição, pois, apesar do

fator de adequação à época, faltou-lhe o verdadeiro espírito cristão promovedor de

paz como era próprio aos apóstolos e aos pais da igreja. Foi pelo retorno a esse

espírito que a Reforma lutou, como veremos mais à frente.

É possível que o que seduziu Guenón no período medieval foi sua

preocupação com o saber teológico e místico e o pouco interesse que a Idade Média

dedicou ao estudo experimental da natureza, segundo a análise feita por Coutinho,

que nos informa ainda a primazia do espiritual sobre o material, como segue:

O homem medieval tendeu a viver voltado para as coisas do espírito. A vida em geral orientava-se fundamentalmente para o horizonte da Vida Eterna. Do ponto de vista da visão cristã do mundo, pode dizer-se que esta primazia do espiritual, com a inerente secundarização e subordinação dos valores materiais da vida, constituiu uma das riquezas da Idade Média, que o mundo moderno foi perdendo progressivamente até chegar ao materialismo da civilização contemporânea. (COUTINHO, 2008. p.7)

Essa secundarização dos valores materiais, porém, não garantia uma

sociedade pacífica com pessoas felizes e satisfeitas com sua condição social ou

pessoal; basta lembrarmos do que abordamos no capítulo anterior a respeito do

conflito do ser individual em uma sociedade valorizadora do coletivo. A igreja católica

romana exercia significativa influência na sociedade como um todo e dominava não

só os estudos teológicos, mas todos os assuntos intelectuais, os quais necessitavam

de seu aval para serem aceitos. Ao se valer de sua autoridade a igreja parece ter

freado o desenvolvimento do pensamento e das ciências e, no campo individual,

acabou por exercer uma dominação opressora sobre os indivíduos acentuando a

ansiedade da culpa, que ela buscava minimizar com a administração dos

sacramentos, mas a própria essência dos sacramentos ministrados e a forma dessa

ministração acabaram por aprofundar neles a ansiedade da insignificação enquanto

seres individuais.

Além disso, a história relata os abusos que se cometia em nome da igreja,

como a venda do perdão (indulgências), a exploração de todo o povo com vendas de

relíquias e cobrança de ofertas para a igreja e seus propósitos ambiciosos de

construção e manutenção da suntuosidade e até mesmo da luxúria de padres e

bispos, ao passo que a população pobre sofria com doenças e desnutrição. Mas

criticar a igreja ou os teólogos era perigoso, como afirma Erasmo de Roterdã:

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Talvez fosse melhor não falar dos teólogos, tão delicada é essa matéria e tão grande é o perigo de tocar em semelhante corda. Esses intérpretes das coisas divinas estão sempre prontos a acender-se como a pólvora, têm um olhar terrivelmente severo e, numa palavra, são inimigos muito perigosos. Se acaso incorreis na sua indignação, lançam-se contra vós como ursos furibundos ... se recusais retratar-vos, condenam-vos logo como hereges. (ROTERDÃ, 2002. p. 124-125)

Mesmo assim, Erasmo tece algumas críticas esclarecedoras sobre a casta

sacerdotal medieval (especialmente os teólogos e os papas) tão defendida por René

Guenón. Erasmo critica inclusive as guerras promovidas pela igreja, as cruzadas e

argumenta que em vez de se empregarem soldados e armas deveriam os papas

empreender uma batalha intelectual:

A propósito de combate, parece-me que os cristãos deveriam mudar as suas tropas na guerra movida contra os infiéis. Se ao invés da grosseira e material soldadesca, que há tanto tempo empregam inutilmente nas cruzadas, expedissem, contra os turcos e os sarracenos, os clamorosos scotistas, os obstinados occanistas, os invencíveis albertistas e toda a milícia dos sofistas, quem poderia resistir ao assalto dessas tropas coligadas? (Idem. p. 132)

Em sua obra Erasmo tece críticas aos monges de várias ordens, bem

como aos reis e príncipes e, como nos lembra Maria de Lourdes Sigado Ganho, “em

seguida vêm as críticas mais mordazes, que maiores problemas lhe trouxeram:

críticas aos Papas, aos Cardeais e aos Bispos, que considera émulos destes

príncipes.” (GANHO, 2014. p. 178) A crítica aos líderes maiores da igreja centra-se

exatamente no fato deles terem se afastado da tradição e dos costumes dos pais da

igreja e dos apóstolos dos quais a igreja retira sua autoridade e legitimidade. Após

mencionar as luxúrias, ambições e vilezas dos papas e demais prelados, Erasmo

arremata:

Eu desejaria saber, porém, se haverá para a igreja inimigos mais perniciosos do que esses ímpios pontífices, os quais em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos. (Idem. p. 161)

A alegação de Guenón de que a tradição religiosa medieval seria o ideal a

ser buscado pelo ocidente por ser ela a verdadeira tradição ocidental e a que mais se

aproxima da intelectualidade pura se mostra inverídica pelo simples fato de que a

igreja não conservava a tradição da qual se originou, a tradição apostólica. Não

adentraremos muito neste campo por se tratar muito mais de teologia do que de

filosofia, bastam as declarações de Erasmo de Roterdã já citadas para evidenciar que

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a tradição religiosa medieval era diferente da tradição religiosa do início do

cristianismo.

Convém, entretanto, mencionar ainda uma coisa a respeito da tradição

cristã, pois Guenón acusa o protestantismo de romper com a tradição cristã e fundar

um novo movimento que selou a queda do ocidente nas trevas intelectuais. Refiro-me

às origens do cristianismo e, para esta análise nem precisamos recorrer a

historiadores ou teólogos, basta uma reflexão simples sobre o tema. Certamente é

sabido por qualquer leitor culto que o cristianismo se originou no seio da sociedade

judaica. Ora, o cristianismo não é outra coisa senão um movimento religioso que

rompeu com a tradição judaica de seu tempo sob a acusação de que essa tradição,

por sua vez, teria se afastado da tradição dos patriarcas hebreus. A própria Bíblia,

fonte de autoridade para todas as religiões cristãs nos mostra isso. Não que julguemos

a Bíblia um documento inquestionável ou fonte de norma absoluta, na verdade

concordamos com Sloterdijk quando diz que os textos bíblicos, filosoficamente

considerados, se mostram “as únicas fontes de si mesmos. Seu caráter enquanto

revelação é sua própria pretensão.” (SLOTERDIJK, 2012. p.55) Em outras palavras,

não consideramos os textos bíblicos a palavra final em qualquer assunto, mas nos

referimos a eles por termos sentido a necessidade de adentrar brevemente neste

campo afeto à teologia uma vez que o assunto aqui é a tradição religiosa. Mais à frente

aludiremos brevemente alguns textos bíblicos citados por Guenón, apenas para

evidenciar que até no uso desses ele se equivoca. Por enquanto, sem nos

delongarmos nisso queremos lembrar que a Bíblia, especialmente no livro ATOS DOS

APÓSTOLOS informa que os seguidores de Jesus foram expulsos do judaísmo e

impedidos de frequentar o templo, além disso, foram perseguidos pelos judeus que

tentaram barrar o surgimento do movimento dissidente chamado cristianismo.1

Recordemos de forma historicamente inversa o que estamos colocando:

Guenón acusa Lutero de romper com a tradição católica e fundar o movimento

protestante (e de fato o protestantismo nasceu dessa ruptura), mas nos dias de Lutero

Erasmo de Roterdã acusava os clérigos, inclusive o papa, de terem rompido com a

verdadeira tradição cristã – não só quanto aos costumes, mas também quanto às

ideologias cristãs – que fora ensinada pelos apóstolos e pelos pais da igreja

(concordamos com Erasmo quanto a esse rompimento). Os apóstolos de Jesus, por

1 Veja-se o capítulo 4 do livro de Atos, bem como o capítulo 8.

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sua vez, fundaram o cristianismo a partir do rompimento com as tradições teológicas

judaicas. Portanto, a conclusão a que chegamos é que Guenón se equivoca sobre a

tradição religiosa do ocidente, pois essa é historicamente mutável, conservando

alguns aspectos e abandonando outros. Convém esclarecer que nunca houve nesses

movimentos – cristianismo, catolicismo e protestantismo – uma ruptura completa com

o movimento antecessor, mas o abandono de algumas doutrinas que se julgavam

deturpadas e o retorno, ou tentativa de retorno, aos ideais originais; toda tradição

cristã é em alguma medida uma tradição judaico-cristã. Portanto a crítica de Guénon

não pode ser sustentada nem pela filosofia ocidental, nem pela teologia.

A quebra da tradição (ou sua modificação), longe de ser um contrassenso,

é na verdade uma característica do cristianismo. O cristianismo nasceu justamente de

uma ruptura com a tradição judaica. O protestantismo nasce de uma ruptura com a

tradição católica. Igrejas diversas surgem de rupturas com outras igrejas evangélicas.

Certamente que há implicações negativas nesse processo, mas não se pode acusar

o protestantismo de ser maléfico à sociedade ocidental por ter rompido com a tradição

religiosa à época vigente, pois essa mesma tradição (católica romana) é um

sincretismo da quebra da tradição judaica – que originou o cristianismo primitivo - com

a quebra da tradição pagã do império romano, especialmente a partir do imperador

Constantino.1

Guenón também ataca a filosofia protestante do livre exame das escrituras

(GUENÓN, 2007. p. 58). Entretanto, tal prática não está em desacordo com a filosofia

cristã do novo testamento, como podemos ver no seguinte texto bíblico:

E logo os irmãos enviaram de noite Paulo e Silas a Beréia; e eles, chegando lá, foram à sinagoga dos judeus. Ora, estes foram mais nobres do que os que estavam em Tessalônica, porque de bom grado receberam a palavra, examinando cada dia nas Escrituras se estas coisas eram assim. (Atos 17:10 – 11)

Percebam que o texto bíblico tece elogios aos tessalonicenses justamente

porque esses examinavam as escrituras para conferir se a interpretação trazida pelos

apóstolos estava em consonância com os escritos sagrados judaicos (no caso o

1 Não podemos nos estender sobre a fusão entre paganismo e cristianismo que dera origem à igreja católica. Dentre outros que escreveram sobre a história do cristianismo trazemos uma informação de Martin Dreher para ilustrar isso: “No ano de 321, o domingo tornou-se o dia de descanso no Império. Era o dia do deus Sol, mas os cristãos que comemoravam o primeiro dia da semana como ‘dia do Senhor’, podiam sem maiores problemas ver em Cristo o ‘sol da justiça’ e relacionar o domingo ao primeiro dia da criação, o dia em que ‘se fez luz’. Com isso o sábado foi deixado de lado. Aos poucos transferiu-se também a data do nascimento de Jesus de 6 de janeiro para 25 de dezembro, o dia do nascimento do deus Sol.” (DREHER, 2001. p. 66)

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Antigo Testamento, como conhecemos hoje). O problema, portanto, não está em se

facultar a todos o exame das escrituras, pois a própria Bíblia parece incentivar isso.

Não há nos ensinamentos dos apóstolos nem dos pais da igreja a indicação da

formação de uma elite intelectual para interpretar a bíblia e disseminar tal

interpretação para todos os cristãos; na verdade, como já vimos, no período em que

isso foi feito houve muitos abusos por parte de tais intérpretes, na idade média, ou

idade escura, como conhecemos.

Concluindo essa análise sobre a tradição queremos apenas lembrar que a

história retrata acontecimentos por vezes funestos que foram motivados pela suposta

manutenção da tradição. Neste ponto aludimos especialmente às cruzadas, que eram

guerras motivadas por duas culturas religiosas que, amparadas em suas respectivas

tradições (cristianismo e islamismo) disputavam a cidade de Jerusalém, tida como

cidade espiritual. Claro que a motivação não era apenas religiosa, mas política e

econômica, porém a tradição religiosa era usada para motivar soldados e população

de ambos os lados do conflito.

Na atualidade a tradição religiosa tem sido usada para motivar conflitos em

países de origem árabe-islâmica e atos de terrorismo ao redor do mundo. Não

pretendemos analisar se os que assim agem estão fazendo uma correta leitura de sua

tradição, apenas é inegável que o fazem por apego cego à tradição

(fundamentalismo), que lhes é ensinada. Cremos não ser necessário nos delongar

nesses assuntos, posto que são de amplo conhecimento, especialmente de

pesquisadores e leitores cultos.

Concluímos, portanto, que mesmo no campo religioso parece ser mais

viável encarar a tradição como produto em constante transformação, quer por

agregação, quer por eliminação, pois assim tem sido no mundo ocidental,

notadamente no que se refere ao cristianismo. Mais uma vez, discordamos de

Guenón, pois ele desejava a volta do ocidente para a tradição católica medieval e isso

não se mostra benéfico, nem possível.

Após esse adentramento na teologia que julgamos importante por ter

Guenón também se valido de argumentos teológicos em suas críticas voltaremos

agora a outro tema filosófico alvo de críticas de Guenón, o individualismo.

3.3 INDIVIDUALISMO

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O segundo capítulo foi dedicado a apresentar o individualismo sob a ótica

de um filósofo e teólogo protestante, Paul Tillich. Agora queremos apenas enfatizar

dois aspectos do individualismo, já apresentados no segundo capítulo, refutando

algumas afirmações de René Guenón:

a- O protestantismo não é a faceta religiosa do individualismo conforme

afirma Guenon, pois a reforma protestante não apresentava como característica

marcante o individualismo, posto que esse só se consolidou com o advento do

iluminismo e de outros acontecimentos sociais e movimentos filosóficos (liberalismo

econômico, democracia, naturalismo, etc.); e ainda, como vimos em Tillich: “Não havia

individualismo em nenhum dos grandes grupos confessionais. E só havia

individualismo oculto fora deles, já que haviam tomado para si as tendências

individualistas da Renascença e as adaptado à sua conformidade eclesiástica.”

(TILLICH, 1992. p. 87-88)

b- O individualismo não nega o coletivismo. Indivíduo e sociedade, ou

individualismo e coletivismo podem ser vistos como dois polos necessários e

complementares da sociedade. O que se busca é a não aniquilação do eu individual,

como parecia acontecer nas sociedades coletivistas.

3.3.1 Humanismo

Guenón estabelece a Renascença e o movimento do humanismo como os

iniciadores da decadência intelectual do ocidente, pois teria o humanismo, segundo

ele, condicionado o ser humano a reduzir todo o conhecimento a proporções

meramente humanas, afastando-o do conhecimento de ordem superior (a tal

metafísica pura). Abordaremos agora essa questão.

A Renascença pode ser vista como um movimento que iniciou a transição

da idade média para a idade moderna e que começa, com o Humanismo, a colocar o

ser humano como centro do universo e a razão como o meio mais eficaz de se atingir

o conhecimento. Dogmas começam a ser questionados em filosofia, política e teologia

e com isso se plantam sementes que eclodirão em revoltas e transformações sociais

em diversos setores da sociedade, notadamente no campo teológico com a Reforma

Protestante difundida por Martinho Lutero já no século XVI (talvez o primeiro grande

fruto da Renascença); no campo filosófico/científico tendo René Descartes (1596 a

1650) e o método cartesiano como representante do racionalismo moderno; também

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no político (onde podemos citar a Revolução Francesa do fim do século XVIII como

fruto do Renascimento). O que se buscava na Renascença era um renascimento do

homem, não mais em termos puramente espirituais conforme ensinado pelo

cristianismo, mas um renascimento de ordem intelectual e social no qual se buscava

um retorno a uma era considerada como um modelo de conquistas e realizações

humanas, a era Greco-romana. (ABBAGNANO, 2007. p.863. PDF).

Tratando-se mais especificamente do Humanismo é cabível entendê-lo

como um movimento literário e filosófico que nasceu na Itália no século XIV e dali se

difundiu por toda a Europa, sendo a base ideológica do Renascimento. Constitui-se

do reconhecimento do valor do ser humano na sua totalidade e a tentativa de o

compreender em seu mundo natural e histórico. Dentre os pensadores influentes que

abordaram o Humanismo está o teólogo e filósofo Erasmo de Roterdã (1466 a 1536),

que exerceu forte influência sobre Martinho Lutero (1483 a 1546); mas muito antes o

humanismo se manifestou através Francesco Petrarca (1304 a 1374) – “conhecido

por alguns como o primeiro dos modernos por causa de sua afirmação: ‘eu sou uno e

gostaria de permanecer uno’.” (MARQUES, 1999. PDF). Petrarca afirma a dignidade

do homem com base na Bíblia, de onde retira o pensamento de que esse é a imagem

de Deus e deve crescer e dominar a Terra. (MARQUES, 1999. PDF).

O humanismo renascentista propõe o antropocentrismo, o qual era a ideia

de o homem ser o centro do pensamento filosófico, ao contrário do teocentrismo, a

ideia de Deus no centro. O antropocentrismo surgiu a partir do renascimento cultural.

“Com o movimento do humanismo renascentista vai acontecer uma valorização do

homem nunca conhecida até então, que vai além do seu aspecto espiritual e que

acentuará sobremaneira seus traços e sua especificidade.” ((MARQUES, 1999. PDF).

Temos assim que o humanismo renascentista procura situar o ser humano

corretamente no contexto maior da existência, retirando-o do papel de miserabilidade

e ostracismo até então propagado pela filosofia e teologia medievais e colocando-o

no centro do pensamento filosófico.

Enfim, o Individualismo pode em muitos aspectos – como afirmou René

Guenón – ser associado com o humanismo renascentista, uma vez que ambos

buscam a compreensão de questões filosóficas e metafísicas através da

racionalidade, deslocando-as do campo exclusivamente teológico ou espiritual.

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Entretanto, Rene Guenón classifica o individualismo como “a negação de

qualquer princípio superior à individualidade e, por consequência, a redução da

civilização, em todos os domínios, apenas aos elementos humanos.” (GUENON,

2007. p.53. PDF). Portanto, segundo ele, o individualismo nega necessariamente

qualquer elemento não humano, metafísico. Mas a partir da breve apresentação que

fizemos do Humanismo renascentista percebemos que ele não nega necessariamente

as questões metafísicas, mas vai buscar o entendimento dessas questões a partir de

uma perspectiva racional e antropocêntrica.

Concluímos esta seção sobre o individualismo tendo outra vez a impressão

de que no fundo o que interessa a Guenón não é analisar se o individualismo trouxe

benefícios ou se decorreu de uma necessidade de auto afirmação do ser humano,

nem mesmo se os argumentos a favor desse movimento são válidos. O que lhe

preocupa é o fato de o individualismo contribuir para o afastamento daquilo que está

além da racionalidade, que ele chama de transcendente. O misticismo de Guenón

parece ser a fonte principal de sua repulsa ao individualismo, assim como parece ser

também a base de toda a sua argumentação crítica contra o ocidente.

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CONCLUSÃO

Ao analisar as críticas de René Guenón ao ocidente tivemos que adentrar

em diversos temas filosóficos amplamente discutidos. Com isso não foi possível

aprofundar a pesquisa sobre cada um deles, mas procuramos trazer um entendimento

essencial deles a fim de nos situarmos em relação ao que ele pretendia criticar para

analisar a validade ou não de suas críticas.

Ainda que suas críticas ao ocidente e sua manifesta vontade de influenciar

os ocidentais a adotarem um pensamento semelhante ao de doutrinas orientais

estivessem contidas especialmente em duas de suas obras (Orient et Ocident e La

Crise du Monde Moderne), sentimos a necessidade de investigar outras obras de

Guenón para entender o pano de fundo de suas críticas.

Em nossa análise percebemos que o individualismo foi o tema mais

destacado em suas críticas por julgar Guenón que ele fora o responsável por afastar

o ocidente de sua tradição metafísica medieval. Guenón colocou o protestantismo,

especialmente o movimento da Reforma de Martinho Lutero como o responsável final

dessa ruptura com a tradição, pois como a tradição que ele julga ter sido a verdadeira

representante do pensamento ocidental era uma tradição religiosa, conclui que o

protestantismo foi o maior responsável por esse afastamento.

Percebemos que todas as críticas de René Guenón ao ocidente estão

alicerçadas em sua metafísica mística e por isso dedicamos atenção especial a esse

tema, tendo concluído que o ocidente já superou esse tipo de abordagem metafísica.

Para embasar nossa discordância às críticas de Guenón buscamos nos

valer de argumentos de filósofos por ele mencionados ou que lhe fossem

contemporâneos – caso de Paul Tillich. Outras vezes buscamos argumentações de

outros escritores para solidificar o entendimento sobre determinados temas (como no

caso de se estabelecer o entendimento do termo tradição). E assim, mesmo

percebendo que há no ocidente alguns que defendem as ideias de Guenón e até

fundaram institutos guenonistas, concluímos que, de forma geral, as ideias de Guenón

são descabidas para o ocidente desde os seus dias e mais ainda na atualidade.

Outrossim, quando colocamos o pensamento de Al-Jabri entre nossa argumentação

contra as ideias de Guenón evidenciamos que na atualidade até mesmo o oriente

mostra sinais da necessidade de se afastar de concepções puramente espiritualistas

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e adotar métodos mais racionais na busca de respostas a seus temas filosóficos e

sociais.

Finalmente convém mencionar que alguns filósofos criticados por Guenón,

como Descartes e Kant, deram uma significativa contribuição ao pensamento

ocidental, tanto em questões metafísicas e morais quanto em questões empíricas e

científicas e a eles devemos em grande medida algumas conquistas da atualidade,

pois ao estabelecerem métodos de pesquisa racionais abriram portas para que outros

avançassem no conhecimento de áreas diversas, como a biologia, medicina, física, e

daí decorreram avanços tecnológicos que trouxeram melhor qualidade de vida e

longevidade aos seres humanos. Outros pensadores, como Lutero e Erasmo de

Roterdã, por exemplo, propiciaram a ruptura com um sistema autoritário que limitava

a evolução do conhecimento não só em questões religiosas, mas também em filosofia,

metafísica e ciência. A esses devemos também honra e reconhecimento. Ainda que

algumas ideias desses pensadores e de outros não mencionados tenham sido

superadas ou não sejam aceitas por todos, não podemos simplesmente menosprezar

seus feitos como se nada significassem, pois todos eles contribuíram positivamente

com a humanidade.

Encerramos essa pesquisa reafirmando que não vemos nenhum benefício

em um retorno à tradição medieval, muito menos em uma adesão a doutrinas

metafísicas orientais ancoradas em misticismos ou crenças sem fundamento lógico,

racional. Ao contrário, assim como Weber demonstrou que o ocidente sorveu alguns

conhecimentos vindos do oriente e os ampliou, cremos que esse deve ser o ideal a

ser buscado, ou seja, intercâmbio de conhecimento entre as mais diversas civilizações

na busca de uma sociedade cada vez mais valorizadora dos indivíduos que a compõe

e cada vez mais apta a proporcionar vida em qualidade e quantidade ideais em nosso

planeta. Quanto às questões fora do mundo sensível continuamos sem poder acessá-

las satisfatoriamente e nos cabe prosseguir nas investigações racionalmente e, talvez,

muitas delas sejam esclarecidas ainda. O que não devemos é retornar a uma

abordagem fora da razão (espiritual?) na tentativa de esclarecer qualquer coisa, pois

se até os métodos racionais podem ser questionáveis, muito mais indefinidos são os

meios místicos, espirituais. Que possamos prosseguir pacientemente, respeitando o

que já se conquistou e conservando sempre o que se mostra útil, mas sem receio de

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abandonar dogmas ou teorias obsoletas simplesmente em nome da tradição ou de

qualquer outra convenção.

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