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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL PÓSCRITICA / DEDC II ALAGOINHAS ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA Jair Cardoso dos Santos Orientadora: Profa. Dra Maria Anória de Jesus Oliveira ALAGOINHAS BAHIA 2016

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL

PÓSCRITICA / DEDC II ALAGOINHAS

ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS

IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA

Jair Cardoso dos Santos

Orientadora: Profa. Dra Maria Anória de Jesus Oliveira

ALAGOINHAS – BAHIA

2016

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Jair Cardoso dos Santos

ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS

IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Crítica Cultural Poscrítica/DEDC II Alagoinhas, Departamento

de Educação, Universidade do Estado da Bahia, como requisito

para obtenção do grau de mestre.

Área de concentração: Crítica Cultural.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Anória de Jesus Oliveira

ALAGOINHAS – BAHIA

2016

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Jair Cardoso dos Santos

ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS

IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Crítica Cultural Poscrítica/DEDC II Alagoinhas, Departamento

de Educação, Universidade do Estado da Bahia, como requisito

para obtenção do grau de mestre.

Banca Examinadora

Profa. Dra. Maria Anória de Jesus Oliveira - UNEB

Profa. Dra. Fábia Barbosa Ribeiro - UNILAB

Prof. Dr Osmar Moreira dos Santos - UNEB

Suplentes

Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte - UFMG

Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel - UNEB

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RESUMO

A pesquisa multidisciplinar em tela estuda parte da produção poética e jurídica de Luiz

Gama, através da qual busca-se identificar se prevalece a ressignificação identitária

negra, considerando sua acirrada luta em prol da igualdade racial de direitos em um

complexo contexto escravagista do Brasil oitocentista. Esse filho da diáspora africana,

ao pensar e construir a sua luta contra os grupos hegemônicos vigentes, ganhou

notoriedade e projeção social e, mesmo após tanto embate em uma terra injusta e

excludente, fez o som da sua voz ecoar até os dias atuais, sendo a palavra a principal

arma de combate ante as amarras racistas. Reconhecido por sua trajetória de vida e pela

produção escrita, há diversas faces a serem vislumbradas. Destacamos, entre estas, a de

um pensador de vanguarda no Brasil, fato que evidencia a sua importância histórico-

social, dentro do contexto de implementação da história e cultura afro-brasileira na

Educação Básica. No trilhar desses estudos, realizamos a pesquisa qualitativa nos seus

aspectos documentais e bibliográficos; no que tange à fundamentação crítica e teórica, a

presente pesquisa respalda-se nos campos da critica cultural, literatura, história e direito.

Esperamos, por fim, contribuir para ampliar mais suportes teóricos e críticos na área em

questão, primando-se pela valorização e ressignificação da história e cultura afro-

brasileira e africana no ensino brasileiro.

Palavras-chave: Luiz Gama, ressignificação, identidade negra, literatura negra, estado

de exceção.

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ABSTRACT

The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic

production, whereby it has been pursued the knowledge whether black identity

reframing prevails, considering his hard struggle in favor of racial equality of rights

within a complex slavery context in Brazil during the nineteenth century. This son of

the African Diaspora, for thinking and building his struggle against the prevailing

hegemonic groups, gained notoriety and social projection and, even after so much

struggle in an unfair and exclusionary land, made the sound of his voice echoed to the

present day, the word being the main weapon to fight against racist moorings.

Renowned for his life story and writing production, there are several faces to be

glimpsed. It stands out, for instance, that one of a vanguard thinker in Brazil, fact that

reflects his historical and social importance, within the context of implementation of

history and African-Brazilian culture in Basic Education. Along the path on those

studies, it was accomplished the qualitative research in its bibliographical and

documental aspects; regarding the critical and theoretical background, the present

research draws upon the fields of cultural criticism, literature, history and law. It has

been expected, at last, it may contribute to enlarge more theoretical and critical support

in the area on focus, giving priority for appreciation and reframing to history and

african-brazilian and african culture in brazilian education.

Keywords: Luiz Gama, reframing, black identity, black literature, regime of exception.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

07

2 AS LEIS E AS LETRAS NO BRASIL OITOCENTISTA E O

LEGADO DE LUIZ GAMA

19

2.1 TRAFEGANDO NA CONTRAMÃO: TRAJETÓRIAS E

TRAVESSIAS DE LUIZ GAMA

23

2.2 VIVÊNCIAS IDENTITÁRIAS DE “UM SOLDADO DE PELE

NEGRA”

30

2.3 LITERATURA UN PASSANT E “MEDO BRANCO” 35

3 IGUALDADE E O STATUS QUO EM QUESTÃO

44

3.1 A PRODUÇÃO POÉTICA DE LUIZ GAMA:

CONTEXTUALIZAÇÃO

46

3.2 LITERATURA NEGRA E RESSIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA

57

3.3 O PALCO RACIAL E NOVAS DESMONTAGENS

66

4 ESTADO DE EXCEÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO E

RESISTÊNCIAS NEGRAS

71

5 CONCLUSÃO 94

REFERÊNCIAS 98

ANEXOS 103

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1 INTRODUÇÃO

Quem adentra o Cemitério da Consolação, na cosmopolita cidade de São Paulo, talvez

não tenha a exata ideia do número de mortais considerados pouco comuns, cujos restos estão

ali depositados. Nas suas quadras, a profusão de túmulos com nomes famosos salta aos olhos

dos visitantes, assim como a inscrição de sobrenomes portugueses, italianos, libaneses,

japoneses e de diversas outras nacionalidades nos mausoléus, expondo todos eles a um teatral

espetáculo da igualdade que só a morte permite. O seu endereço mais visitado por integrantes

de movimentos negros fica logo na primeira entrada à direita: é o Terreno 17, da Rua 12. Lá

tem um modesto túmulo, em cuja parte frontal da lápide está insculpido:

“Abolicionista Luiz Gama

Luiz Gonzaga Pinto da Gama

* 21.06.1830

+ 24.08.1882”1

O motivo da visita a este palmo medido da Rua 12, como se pode perceber logo à

primeira visita, não são as esculturas de Luigi Brizzolara e Brecheret ou a arte gótica,

românica e neoclássica que abundam em imponentes túmulos das ruas do cemitério

inaugurado no ano de 1858. Ainda que tenham de passar pela vizinha Maria Domitila de

Castro Canto e Melo, também não é o túmulo da Marquesa de Santos que atrai a visita dessas

pessoas que se declaram negros ou afrodescendentes em São Paulo. Trata-se da visita ao

túmulo do baiano Luiz Gama, filho da revolucionária negra Luíza Mahin (FERREIRA, 2011,

p. 199), fruto da diáspora africana e oriundo, portanto, das margens do tecido social brasileiro.

Em 17 de março de 1882, três meses antes do seu último sopro de vida carnal e, dentro

das prerrogativas que as leis do Império do Brasil lhe conferiam, ele, que um dia, fora também

escravizado, em um ato que alguns podem entender como quebra de hierarquia, assinava mais

uma ação dirigida ao Tribunal da Relação da Província de São Paulo.

A quem o empoderado advogado enfrentava como parte ex adversa naquela ação? O

poderoso Barão da Palmeira, da rica cidade de Pindamonhangaba, localizada naquela

província. O que pretendia? Libertar e, consequentemente, propiciar a concretização do

1 Construído como um tributo da Loja Maçônica América (segundo o seu ex-venerável e atual tesoureiro,

Wagner Ricardo Odri, por nós entrevistado na capital paulista, em 21/01/2015). Ao lado do seu túmulo está o de

Benedicto Graccho Pinto da Gama, seu único filho, nascido em 20/07/1859 e falecido em 20/04/1910, aos 51

anos de idade.

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sonho da igualdade jurídica a oito pessoas escravizadas: Braz, Theotonio, Gregorio, Antonio,

Manuel, Agostinho, Mathias e Joanna, litigantes da Ação de Habeas Corpus tombada sob nº

84/18822 no citado tribunal provincial.

Fatos como esse, cuja pretensão era tirar da subalternização oito cidadams negros,

ajudam a explicar o porquê das constantes reverências à memória do cidadão brasileiro

sepultado no Terreno 17, da Rua 12, da Consolação; e, no lado oposto, dentro do contexto das

relações de poder existentes no Brasil dos anos oitocentos, ajudam a entender o porquê da

taxação de subversivo atribuída a esse que, além de poeta, advogado e conhecido líder

abolicionista, foi também jornalista, líder maçônico e um dos primeiros republicanos

brasileiros (MENNUCCI, 1938, p. 157). Apesar de o seu nome não ter sido vencido pelo

túmulo – como tais reverências atestam –, depois da sua morte, o líder negro foi silenciado

pelo cânone cultural, ficando o seu nome nas margens.

Aliás, o silêncio imposto pelo cânone foi uma das justificativas da pesquisa –

contribuir para dar mais visibilidade a Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Ao ler o impressionante

relato post mortem, do coração dilacerado de Raul Pompéia, publicado na Gazeta de Notícias,

sob o título “Última página da vida de um grande homem” 3

, infere-se porque o seu

sepultamento causou tanta comoção e preocupação entre a população negra da cidade de São

Paulo. Eis uma passagem desse relato do referido escritor de O Ateneu:

[...] não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em

casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados,

implorando libertação, como quem pede esmola; outros, mostrando as mãos

inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor (FERREIRA,

2011, p. 227)

O relato transportou o autor do presente trabalho para cenas da vida de inúmeras

pessoas sedentas de justiça, que batem na porta da sua casa ou de seu escritório de advocacia

na cidade negra de Candeias, localizada no Recôncavo da Bahia. A identificação do

pesquisador com o seu pesquisado passara a ser imediata e, claro, ao guardar as devidas (e

diferentes!) proporções das cenas vivenciadas, o primeiro foi tomado da mais absoluta

surpresa ao se deparar com a grandeza do segundo – trata-se de uma biografia, no exemplo da

qual os operadores do direito devem se espelhar. E não só eles. Todo o país.

Conhecer o vulto desse cidadão que se autoinventou poderá ter o condão de evocar em

2 Estes autos localizam-se no Arquivo Público do Estado de São Paulo, com a seguinte numeração, para efeitos

de pesquisa: 9000107850022.

3 Fragmento constante do relato publicado (na íntegra) no livro de Lígia Fonseca Ferreira (2011, p. 227).

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negros e não negros elevação da autoestima, sentimentos de cidadania e desejos de construção

da dignidade humana.

Assim, não conhecer a biografia e o pensamento do poeta e advogado diaspórico Luiz

Gama empobrece a ideia de nação democrática, plural, enquanto abstração jurídica que

pretende englobar representações de todos os segmentos étnicos do país; e esse fato da

grandeza moral do pesquisado traduz-se em uma das justificativas para a pesquisa, em uma

época de poucos exemplos nos quais possamos nos espelhar.

Essa pesquisa interdisciplinar tem, portanto, como contribuição e diferencial

possibilitar ao leitor – à luz dos estudos culturais, da literatura, do direito e da história – uma

re/leitura de alguns textos poéticos e de um texto jurídico de Luiz Gama, com o propósito de

identificar a ressignificação identitária negra considerando-se, para esse fim, o atual contexto

de implementação (não a contento), da lei Federal 10.639/03 e demais documentos oficiais

atinentes à mesma. Esperamos, por meio do presente estudo, contribuir para ampliar mais

suportes teóricos e críticos favoráveis à demanda atual, primando-se pela valorização e

ressignificação da história e cultura afro-brasileira e africana no ensino brasileiro.

Vale ressaltar que a leitura de alguns textos do aludido autor abrangerá o complexo

contexto do Brasil da segunda metade do século XIX, gerido sob as rígidas normas da

sociedade escravocrata, cujos setores privilegiados faziam o jogo da dissimulação e do

conluio, quando o assunto era a escravização e o trabalho compulsório de humanos de cor

negra vindos d’África ou nascidos no próprio país.

Dentre os estudos realizados sobre a vida e a obra de Luiz Gama, embora procedentes

de diversas áreas do conhecimento, dos quais destacamos o campo da história, da literatura,

do direito, crítica cultural e jornalismo, constatamos grande reconhecimento em relação à sua

trajetória de lutas, conquistas e produções nessas áreas. Nessa linha de pensamento, Maria

Eugenia Paulino (2010, p. 9), acertadamente, intitula a introdução da sua dissertação,

referindo-se ao insigne autor como “Uma vida além do seu tempo”. Partindo dessa premissa,

nos debruçamos sobre alguns textos do referido autor, considerando a relevância e atualização

da sua obra para os dias atuais. Interessa saber, portanto, em que consiste a ressignificação

identitária nas escrevivências de Luiz Gama? Essa é a nossa questão central.

Assim, outra justificativa para o presente estudo encontra-se, mais especificamente, no

campo do ensino formal, pois é notório que as elitistas políticas educacionais brasileiras

institucionalizaram o racismo no país. O silêncio, a invisibilidade e a desqualificação,

impostos como política de Estado ao papel desempenhado por lideranças negras na

construção da história do Brasil, fazem parte do racismo institucional, o qual “[...] implica

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práticas discriminatórias sistemáticas fomentadas pelo estado ou com o seu apoio indireto”

(GOMES, 2005, p. 53). Entende-se por “estado” todas as instituições que constituem o corpo

da administração pública federal, estadual e municipal. Assim, um ato discriminatório de um

policial estadual ou federal contra a dignidade de uma pessoa negra configura-se como prática

desse racismo. No campo do direito penal pratica-se crime por ação ou omissão e, no caso do

racismo institucional, o Estado o pratica também quando silencia sobre questões que deveria

fomentar.

Na primeira década do presente século, através da introdução da lei 10.639/03

(ampliada posteriormente pela lei 11.645/08) e da lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade

Racial), o Estado brasileiro, enfim, reconheceu que praticou o racismo institucional e

estabeleceu (por decreto!) a necessidade de fazer conhecidas (e reconhecidas) pelo país alguns

importantes vultos de tez negra.

Conforme consta do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(alterada por força das leis 10.639/03 e 11.645/08), incluiu-se entre os conteúdos

programáticos a serem trabalhados por docentes em sala de aula “[...] a luta dos negros e dos

povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na

formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica

e política pertinentes à história do Brasil” (VIEIRA, 2012, p. 34).

Assim, estatuído pela lei federal, essa necessidade de visibilizar mais as lideranças

negras tornou necessária a edição, pelo Ministério da Educação, das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e

Cultura Afro-Brasileira e Africana que, cujo Plano de Implementação faz menção às valiosas

vozes negras subalternizadas pelo sistema racista no passado (e no presente), propositalmente,

recusadas pelo cânone cultural. Entre essas vozes diaspóricas está a de Luiz Gama, ao lado de

Zumbi dos Palmares, Luíza Mahin, Aleijadinho, Cruz e Sousa, João Cândido, Solano

Trindade, Milton Santos e Abdias do Nascimento, dentre outros que, apesar de terem

contribuído para a construção histórica do país, passaram por um processo de inferiorização e

invisibilização quanto a esta contribuição (BRASIL, 2013, p. 96). A própria expressão

“negro”, foi criada por esse sistema racial para designar pejorativamente essas vozes, sendo

tal expressão depois ressignificada pelos movimentos negros (BRASIL, 2013, p. 89). Sabe-se,

entretanto, que poucos esforços vêm sendo envidados pelo Estado brasileiro, para, de fato,

garantir eficácia a essas diretrizes curriculares para a educação étnico-racial e o currículo

escolar continua a ser de raiz marcadamente europeia, apesar de órgãos estatísticos, a exemplo

do IBGE, afirmarem que o Brasil tem maioria negra e “parda”.

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Por outro lado, depois de uma década de muitas discussões, arquivamentos e reveses,

no ano de 2010, entrou em vigor o Estatuto da Igualdade Racial, que dedicou os artigos 9 a 20

à questão da Educação (CURIA E OUTROS, 2013, p. 1052-53), ratificando as prerrogativas

negras das leis que o antecederam e instituindo nas escolas de ensino fundamental e médio a

disciplina História Geral da África e do Negro no Brasil.

O retrocitado documento do Ministério da Educação (BRASIL, 2013, p. 96) delega

aos sistemas federal, estadual e municipal de ensino, bem como às unidades escolares,

inclusive de nível superior, o papel de viabilização do registro da história não contada dos

negros brasileiros e inclusão de lideranças negras em materiais pedagógicos a serem

trabalhados junto aos corpos discentes.

Sendo a busca do chamado estado democrático de direito – que enfatiza a cidadania e

a dignidade da pessoa humana – um dos princípios fundamentais estatuídos pela constituição

vigente (CURIA E OUTROS, 2013, p.7), torna-se necessário que o sistema educacional passe

por um processo de democratização quanto aos seus conteúdos, valorizando-se a riqueza da

diversidade étnico-racial do país, promovendo-se a ressignificação do “ser negro”,

contribuindo para a assunção da pertença étnico-racial e para a elevação da autoestima dos

estudantes negros. Trazendo no seu bojo o objetivo de resgatar “[...] historicamente a

contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira” (BRASIL, 2004,

p.8), a Lei 10.639/03 traz, também, a necessidade de pesquisas que ajudem a desconstruir as

imagens negativas produzidas sobre os africanos e sua descendência pela sociedade brasileira

ao longo dos intermináveis anos de escravização do ser humano e no pós-abolição.

Ressignificar o “ser negro” significa dar um novo sentido àquele conjunto de ideias racistas

que foram cruelmente formatadas pela ideologia do branqueamento, tornando-se “verdades”

para parte da população, inclusive para parcelas da população de tez negra que, influenciadas

por essa ideologia, passaram a se inferiorizar e decair em sua autoestima. Ressignificar exige

perspicácia e esforço de todos os movimentos sociais, a exemplo do que fez e faz o

Movimento Negro, conforme lembrado nas citadas Diretrizes:

[...] o termo negro começou a ser usado pelos [supostos] senhores para designar

pejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavra se estende até

hoje. Contudo, o Movimento Negro ressignificou esse termo dando-lhe um sentido

político e positivo. Lembremos os motes muito utilizados no final dos anos 1970 e

no decorrer dos anos 1980, 1990: Negro é lindo! Negra, cor da raça brasileira!

(BRASIL, 2004, p. 15-16).

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Vale ressaltar que o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2013), publicado após as Diretrizes (BRASIL, 2004),

deu o norte às práticas pedagógicas para as instituições de ensino do país, com a finalidade de

ser reconhecida a importância dos afro-brasileiros no processo de formação nacional, nesse

propósito de republicanização da escola brasileira.

O referido plano busca implementar uma instituição escolar democrática, plural,

traçando caminhos para uma educação das relações étnico-raciais. Ele define seus próprios

eixos fundamentais, dando ênfase à necessidade de fortalecimento da Lei 10.639/03 em todas

as unidades da federação e estabelecendo as políticas de formação (inicial e continuada) para

profissionais da educação e de materiais didáticos como as suas principais ações operacionais;

ele estabelece, também, as atribuições dos sistemas de ensino, conselhos de educação, grupos

colegiados, núcleos de estudo e instituições de ensino, além de traçar ações para os diversos

níveis e modalidades do ensino.

Enfatizando que há uma estrita correlação entre pertencimento etnicorracial e sucesso

escolar (BRASIL, 2013), o citado plano advoga a necessidade do empenho do sistema

educacional brasileiro no sentido de valorizar a diversidade cultural no ambiente escolar.

Dessa maneira, trazer à cena atual a importante trajetória de Luiz Gama como

referência para a afirmação identitária negra, pode favorecer outros estudos e imersões em

face da sua rica e variada produção poética, jornalística e jurídica, indo ao encontro das

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino da História e Cultura Africana e Afro-

brasileira e demais documentos oficiais (o Plano e o Estatuto, por exemplo).

A hipótese que aqui se aventa é de que a trajetória e a obra de Luiz Gama podem

favorecer a afirmação e a ressignificação identitária negra. Iremos, portanto, adentrar parte da

sua produção, a fim de identificar em que consiste a aludida ressignificação.

Quanto à sua linguagem jurídica, observe-se, a título de exemplo, que a ideia esboçada

por esse advogado sobre a legítima defesa, afirmando ser legítimo ao escravizado assassinar o

seu senhor (AZEVEDO, 1987, p. 192), como em ato de autodefesa. Tal pensamento inovador

subverte a ordem legal no contexto escravocrata do Brasil oitocentista. Vale ressaltar que o

cânone jurídico daquela época não admitia a existência de personalidade jurídica ao

escravizado, considerando esse como não portador de direitos.

Saliente-se, ainda, que vários escritos jornalísticos e discursos orais de Luiz Gama

também reforçam a possibilidade de uma construção de igualdade racial de direitos. Alguns

contemporâneos seus informam que, quando Luiz Gama falava sobre a igualdade, “[...] já não

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era um homem que falava, era um princípio que falava... digo mal, não era um princípio, era

uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia!...” (MENNUCCI, 1938, p. 160).

No que diz respeito à metodologia, no trilhar desses estudos, predomina a pesquisa

qualitativa nos seus aspectos documentais. Nessa trajetória de estudos procedeu-se à análise

de alguns versos de poesias da única obra de cunho poético escrita por Luiz Gama: as

Primeiras trovas burlescas de Getulino, publicadas pelo próprio autor em duas edições – a

primeira, em 1859, em São Paulo, e a outra, em 1861, na capital do império brasileiro. Alguns

versos de dez poemas seus foram selecionados para o presente estudo: No cemitério de São

Benedito, Prótase, No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral, Lá vai verso, Quem sou

eu?, A cativa, Minha mãe, Epístola familiar, Sortimento de Gorras e Que mundo é este?

Tais versos possibilitam uma re/leitura da linguagem de Luiz Gama em suas

abordagens igualitárias e identitárias. A publicação, em 2011, de uma edição das Trovas pelo

governo do Estado da Bahia, através da Fundação Pedro Calmon e a edição do trabalho Com

a palavra, Luiz Gama, de Lígia Fonseca Ferreira (2011), trouxeram a lume essas importantes

fontes primárias apropriadas para o estudo em tela.

Dentre os processos judiciais que tivemos acesso, entre os dias 11 e 30 de janeiro de

2015, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Tribunal de Justiça de São

Paulo, figuram alguns autos intitulados de ações de liberdade, habeas corpus e autos de

indagação, todos subscritos pelo rábula baiano.

Dessas citadas postulações negras e não negras, selecionamos para análise do estudo: a

petição inicial do Habeas Corpus impetrado no Tribunal da Relação de São Paulo, tombado

sob o nº 26/18774, no qual os supostos negros fugidos Felipe e João Ricardo são litigantes.

Escolhemos esse libelo por diversos motivos: pelo teor dos argumentos do advogado

diaspórico, que denotam laços identitários na linguagem do seu autor, pela atualidade do tema

que ele traz, enfocando o racismo institucional praticado pela polícia e pelo fato de os autores

desta ação serem considerados “negros fugidos”, evidenciando a presença do constante e

ininterrupto estado de exceção, sobre o qual estuda o filósofo italiano Giorgio Agamben, um

dos principais referenciais teóricos do presente estudo.

Outros documentos históricos que o presente estudo coletou na cidade de São Paulo

foram as atas da Loja Maçônica América, da qual Luiz Gama foi venerável. Foram analisadas

4 Localizamos os autos desse processo no lote 2010.0700.0616 do Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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as atas de reuniões5 realizadas entre os dias 26 de agosto de 1874 e 29 de julho de 1881,

principalmente aquelas referentes a reuniões presididas pelo líder maçônico.

Ainda em São Paulo, foram entrevistados o Sr. Benemar França, tataraneto de Luiz

Gama (CÂMARA, 2010, p. 304), o Sr. Wagner Ricardo Odri, tesoureiro da Loja Maçônica

América (da qual Gama foi venerável) e o escritor Nelson Câmara, um dos seus biógrafos. Na

capital paulistana a pesquisa fez incursões no Cemitério da Consolação (local do

sepultamento do pesquisado) e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP),,

instituição que o teria rejeitado como aluno e que, enfim, entronou o seu retrato pintado a óleo

na Sala Visconde de São Leopoldo, em um ato de desagravo. No desejo de constatar a

presença do poeta e advogado diaspórico em sítios da cidade que o viu nascer e se erigir

através do uso da palavra, visitamos, também, a Rua Luiz Gama, no Cambuci, a Praça Luiza

Mahim, na Freguesia do Ó e o Largo do Arouche (onde fora colocada a sua herma, em uma

“homenagem dos pretos do Brazil”, em 1930).

Desde as primeiras décadas do século XX, pesquisas realizadas por diversos

estudiosos vêm mostrando importantes análises sobre Luiz Gama. Uma das mais antigas é O

precursor do abolicionismo no Brasil – Luiz Gama, de Sud Mennucci, lançado no ano de

1938. Ao ocupar a cadeira de nº 15 da Academia Paulista de Letras – que tem o poeta negro

como patrono –, o autor desta obra, no afã de escrever sobre o patrono da cadeira que iria

ocupar, além de fartar-se das fontes da tradição oral, trouxe à lume escritos de autores que

conviveram com Luiz Gama, os quais contribuem para um estudo acerca da sua obra.

Ao lado desse trabalho de Sud Mennucci, uma das obras mais ecléticas sobre a vida e

produção do intelectual baiano é o trabalho intitulado Com a palavra, Luiz Gama, da profa.

Lígia Fonseca Ferreira (2011), que traz algumas das suas mais significativas poesias e

diversos artigos publicados em jornais paulistas, nos quais Luiz Gama ridiculariza as

instituições e seus representantes, os quais sustentavam a escravidão e o racismo: a justiça, o

clero católico, os senhores escravocratas e a monarquia, escancarando as suas contradições,

tudo às claras e sem subterfúgios. São textos que expõem a nu debates jurídicos públicos entre

o rábula baiano e os grupos dominantes do conluio escravocrata.

O livro dessa pesquisadora traz, logo no seu início, um lacônico e bem escrito artigo

do jurista Fábio Konder Comparato, cujo título é: Luiz Gama, contemptor de nossas falsas

elites, no qual se afirma que o advogado baiano colocou em prática as ideias de Cícero,

importante jurista romano. Este trabalho da profa. Lígia Ferreira elenca várias cartas escritas e

5 Essas atas foram gentilmente colocadas à nossa disposição, no dia 21/01/15, conquanto não fossem

fotografadas, digitalizadas ou de outra forma reproduzida para além do templo maçônico.

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assinadas por Luiz Gama, como a que foi dirigida ao filho, Benedicto Gracho e a sua

autobiografia escrita a pedido do amigo Lúcio de Mendonça. O livro traz, ainda, máximas

ditas por Gama e diversos escritos sobre a sua morte, além de cinco depoimentos sobre ele,

escritos por seus contemporâneos.

Além do imprescindível trabalho de Lígia Ferreira, outra publicação da área de letras,

cuja apropriação do conceito de literatura negra se dá nesta pesquisa é Introdução à literatura

negra, de Zilá Bernd (1988), ao analisar diversas obras literárias de autores negros e colocar o

Orfeu de Carapinha como um marco, no nascedouro dessa literatura negra, ao produzir

afirmativas poéticas da sua pertença étnico-racial.

Ainda da área literária, o livro Literatura negro-brasileira, de Cuti (2010), além da

discussão do conceito de literatura negra, também possibilita ao leitor visualizar a poesia de

Luiz Gama como um marco na história da literatura brasileira, uma vez que esse autor o

coloca como o precursor da literatura negro-brasileira.

O professor Eduardo de Assis Duarte (2009), autor, dentre outras publicações, de

Machado de Assis afro-descendente: estratégias de caramujo, seleciona, organiza e comenta

a produção machadiana (romances, crônicas, contos, poesias e textos de crítica teatral),

através da qual pode-se estabelecer paralelos com a produção do assumido poeta de

carapinha.

Dois trabalhos publicados por Elciene Azevedo trouxeram importantes contribuições

para os estudos sobre Luiz Gama e, naturalmente, para esta pesquisa: Orfeu de carapinha: a

trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo (2005) e O direito dos escravos

(2010). No primeiro trabalho, a autora dá relevo ao poeta da assunção negra – conforme o

próprio título da obra denuncia – e enfatiza o perfil do “rábula da liberdade”, debruçando-se

sobre alguns processos nos quais ele atuou e mostrando, ainda, a figura radical, ímpar, do

republicano e abolicionista. Trata-se de uma biografia do Orfeu de Carapinha. No segundo

trabalho, a autora interpreta as atuações de Luiz Gama e do seu discípulo e sucessor Antonio

Bento, questionando se as mesmas representam fases do abolicionismo paulista,

respectivamente, “legalista” e “radical”. E, ao contrário de ver o negro como um agente

passivo do processo de abolição da escravidão, a presente abordagem o coloca também como

ator do teatro social, cujas aspirações foram abraçadas por Luiz Gama, sendo essa a temática

do segundo capítulo do livro, que mais nos interessa.

As pesquisas sobre Luiz Gama contam, também, com três trabalhos do advogado

Nelson Câmara. Ele escreveu O advogado dos escravos – Luiz Gama (2010) e Escravidão

nunca mais! Um tributo a Luiz Gama (2009), sendo que no primeiro trabalho o autor traça a

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trajetória do negro baiano, desde o seu nascimento até a sua morte, destacando os seus

variados perfis nas áreas nas quais atuou; no final dessa obra, relata as homenagens post

mortem ao tribuno baiano; no segundo trabalho há apenas um capítulo dedicado ao Orfeu de

Carapinha: Luiz Gama, paladino da abolição, no qual o autor acrescenta alguns dados da

presença gamista nas arenas abolicionistas da província de São Paulo e a sua árvore

genealógica. A camélia branca: 1882, romance histórico ambientado na São Paulo da década

de 1880, época em que Luiz Gama morreu, também é da autoria do citado escritor, porém, tal

trabalho não é citado nesta pesquisa.

O trabalho de Célia Maria Marinho de Azevedo (1987), “Onda negra, medo branco”

remete o leitor àquelas personagens defendidas por Luiz Gama e que tanto medo provocava

nos senhores: os negros, aos quais o advogado pretendia dar o status de igualdade jurídica. Ao

publicar esse trabalho, Célia Azevedo, impressionada com a ousadia e a inovação jurídica do

rábula, ao defender o direito ao instituto da legítima defesa, sugere aos estudiosos do Brasil a

pesquisar as ideias desse tribuno negro.

Da editora Expressão popular, pouco conhecida nos meios acadêmicos e que edita

biografias de personagens que ficaram nas margens da história, Mouzar Benedito (2006)

apresenta o seu opúsculo Luiz Gama: o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza

Mahin, no qual faz o traçado, em linguagem coloquial e de forma bastante resumida, dos

vários perfis do negro baiano.

Acrescente-se, ainda, que, para compreender algumas questões relativas à justiça

brasileira do século XIX, foram estudados três capítulos da coletânea Direitos e justiças no

Brasil, organizada por Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (2006):

Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX, de Keila Grimberb; O direito de

ser africano livre: Os escravos e as interpretações da lei de 1831, de Beatriz Galloti

Mamigonian; e Para além dos Tribunais: advogados e escravos no movimento abolicionista

em São Paulo, de Elciene Azevedo. Esses artigos apresentam uma maneira de tratar a história

do direito e da justiça, intrinsecamente ligada à história social.

Vale acrescentar, ainda, o trabalho Direito de igualdade racial: aspectos

constitucionais, civis e penais, de Hédio Silva Jr. (2002), trazendo a lume questões de ordem

histórica e jurídica sobre a condição jurídica da pessoa escravizada no Brasil.

Constituições do Brasil, de Eduardo Campanhole (1989), integra o elenco das obras

jurídicas consultadas na produção dessa dissertação ao trazer, na íntegra, a primeira

constituição brasileira com suas concepções excludentes de igualdade, liberdade e

propriedade vigentes na época em que Luiz Gama viveu e atuou na literatura, na imprensa e

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nos foros.

Nilma Lino Gomes (2005) traz no artigo Alguns termos e conceitos presentes no

debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão, importantes reflexões a

respeito de conceitos como raça, identidade negra e etnia e, assim como o trabalho de Adam

Kuper (2002) intitulado Cultura – a visão dos antropólogos, serve como esteio para o debate

das questões que envolvem uma identidade negra em Luiz Gama. Salientar-se-á, entretanto,

que nem a obra, nem a vida de Gama são objetos de reflexão nestes dois textos.

Para entrelaçar os fios teóricos com as fontes primárias utilizadas para a leitura do

pensamento de Luiz Gama, além dos já citados livros e artigos, também serviram de

importantes esteios para este trabalho de pesquisa, os conceitos e noções de dispositivo,

estado de exceção e profanação, formulados por Giorgio Agamben, nos seguintes trabalhos de

sua autoria, respectivamente: O que é contemporâneo? (2009) Estado de exceção (2014) e

Profanações (2015).

Quanto ao entrelace dos fios teóricos, acrescente-se, ainda, a apropriação dos

conceitos de desconstrução formulado por Jacques Derrida (2001), de literatura negra

formulado por Zilá Bernd (1988), de escrevivências sugerido por Conceição Evaristo (2015) e

de militância intelectual apropriado por Stuart Hall (2003).

Este estudo também abeberou-se nos seus entrelaces teóricos e críticos, em pesquisas

de autoria da historiadora Lília Moritz Schwarcz: Negras imagens (1996), O espetáculo das

raças (2015) e Retrato em branco e negro (2001); e do historiador Sidney Chalhoub: Visões

da liberdade (2009) e A força da escravidão (2012).

Dividimos o presente trabalho em três capítulos, precedidos da introdução, através da

qual situamos a presente pesquisa, apresentamos a questão central, a delimitação temática, os

objetivos, a revisão bibliográfica, e esboçamos, de modo geral, as visões dos respectivos

estudiosos em relação ao autor em questão, à sua produção poética, jornalística e/ou jurídica,

conforme recorte de cada pesquisador/a e a relevância das suas ideias para o nosso percurso.

No primeiro capítulo expandimos as ideias, procurando contribuir para que o leitor

perceba a importância histórica da militância, atuação profissional e pensamento de Luiz

Gama, em seus vários perfis e único fio de linguagem. Recorremos, nessa perspectiva, aos

estudos sobre a arena racial: o Brasil dos anos oitocentos, mostrando como intelectuais,

políticos e religiosos se comportavam frente à questão da escravização de pessoas negras,

configurando um jogo imoral de dissimulação e conluio.

No segundo capítulo, nos detemos sobre alguns textos poéticos de Luiz Gama, através

dos quais tentamos identificar a sua crítica em relação às imagens da suposta superioridade

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racial branca sem, contudo, incorrer nas ciladas de inferiorizar o segmento negro. Nessa

produção priorizamos o seu olhar em relação à origem de procedência africana, também, à

crítica social e à imagem da mulher negra, por ele delineada.

No terceiro capítulo focalizamos a luta do advogado diaspórico Luiz Gama nos foros

contra o brutal espetáculo da arena racista, oferecendo, através de anúncios em jornais, os

seus serviços advocatícios, denunciando o racismo institucional da polícia do estado de

exceção monarquista e defendendo o direito à legítima defesa do escravizado contra o seu

senhor. Observaremos o poder da sua palavra para fazer valer a justiça nesta terra socialmente

injusta que é o Brasil oitocentista; e, por fim, que os fios que tecem a sua linguagem

ressignicadora de advogado (que ecoa nos fóruns), são os mesmos fios da linguagem do poeta

e do jornalista que ecoam na imprensa e nas ruas.

Na conclusão, além de desvelarmos a importância do autodidata que se erigiu como

sujeito através da linguagem, buscamos mostrar o papel dessa linguagem na atribuição de um

sentido positivo do negro; e, também, que depois da sua morte, o nome de Luiz Gama passou

a ser uma referência para pessoas negras espalhadas pelo Brasil.

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2 AS LEIS E AS LETRAS NO BRASIL OITOCENTISTA E O LEGADO DE LUIZ

GAMA

Os anos setecentistas, chamados por alguns historiadores de “Século das Luzes”,

foram os anos em que a dupla Revolução Burguesa – Industrial e Francesa – derrubou os

tronos, balançou os altares e passou a afinar o discurso de afirmação do Ocidente e da

burguesia; o século XIX, no qual atuou Luiz Gama, constituiu-se em anos de contestação

dessa nova ordem (HOBSBAWM, 1986, p. 332). Veja-se, por exemplo, a publicação do

Manifesto Comunista, em 1848, da obra O Capital, de Karl Marx e a ocorrência das Ondas

Revolucionárias de 1820, 1830, 1848 e da Comuna de Paris, em 1871. Essa época e cenário

europeu conhecem, ainda, diversas ideologias que se opõem à história única6 imposta pelo

sistema capitalista burguês, sendo o socialismo e o anarquismo as principais delas.

Nesse mesmo século de contestação, Boas (2004, p. 47) cria a ideia esboçada para um

tema atualíssimo e que influencia os estudos culturais, que é o etnocentrismo, levando os

pesquisadores das várias áreas das ciências sociais a estudar cada cultura singularmente, por

seus próprios termos. Contrapondo-se ao evolucionismo dominante, o antropólogo teuto-

americano inaugura a expressão culturas, no plural, através do particularismo histórico, por

meio do qual considera-se que cada cultura (e cada pessoa) tem sua própria história,

contribuindo para a derrocada da hierarquia que considera povos e pessoas de maneira

binária, tatuando-os como superiores e inferiores. Segundo Nilma Lino Gomes, “[..] o

etnocentrismo é um termo que designa o sentimento de superioridade que uma cultura tem em

relação a outras” (GOMES, 2005, p. 53), podendo a exacerbação de tal sentimento

transformar-se em racismo, na hipótese de este passar a considerar os diferentes como

inferiores (GOMES, 2005, p. 54).

Em um dos vieses de interpretação sociológica, esse binarismo superior x inferior no

Brasil do século XIX traduziu-se nas relações de poder e de dominação estabelecidas não

apenas entre livres e escravizados, mas também entre brancos e negros, não importando a

condição jurídica desses últimos. Prova desse fato é que nessa época as diversas

representações da imagem de uma suposta superioridade racial recaem sobre os brancos,

independente da sua condição social ou econômica. Em sentido inverso, as representações da

imagem de uma suposta inferioridade recaem sobre as pessoas de cor negra,

6 Termo utilizado por Chimamandia Adichie para alertar quanto ao perigo que representa para os povos

oprimidos do planeta a imposição de verdades absolutas pelas potências capitalistas do Ocidente (ADICHIE,

2009, p. 5).

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independentemente de elas serem escravizadas ou livres, endinheiradas ou pauperizadas,

cultas ou não cultas.

O texto poético de Luiz Gama constituir-se-á em uma oposição a essas representações

criadas pelo discurso colonialista de inferioridade do negro, em uma contestação da hierarquia

binária que desigualiza pessoas no Brasil oitocentista. E não apenas pelo teor da linguagem,

mas também pelo lugar de fala de quem discursa: um ex-escravizado que, sendo filho de um

homem branco e de uma mulher negra e, por essa razão, podendo vestir uma roupagem

embranquiçada de mestiço – já que o discurso predominante era o do embranquecimento

(SCHWARCZ, 2015, p 203) da pele – assumiu a sua negritude, a princípio através da

expressão em que se autodenominava “um soldado de pele negra”, afirmando que “[...]

consigo levava ignorância e vontade inabalável de instruir-se” (MENNUCCI, 1938, p. 137).

Através de informações biográficas de Gama, percebe-se uma imagem positiva do negro, que

se ressignifica enquanto trabalhador livre, operoso e que busca o conhecimento, apesar das

condições adversas estabelecidas pelo tenso jogo das relações raciais.

Quanto ao contexto do século XIX, no qual atuou Luiz Gama, sabe-se que o final

desse século de contestação foi crucial para as diversas desmontagens, ocorrendo nele,

também, a virada linguística: com a descoberta dos signos, a linguística desfere sério golpe no

positivismo matemático, que reinava desde o século XVI, passando a entrar em campo a

ciência engajada, militante, comprometida com a práxis, com a transformação social.

Como herdeiros que são dessa ciência comprometida e em sintonia com as ideias de

Stuart Hall (2003) sobre militância e engajamento intelectual, pensadores dos estudos

culturais vêm buscando tirar das margens os silenciados da história, intervindo,

desmascarando e combatendo o cânone hegemônico, dedicando-se, para tanto, à discussão

transformadora de diversas temáticas:

Belas artes, literatura e conhecimento, as matérias regulares das ciências humanas,

mas abrange também as artes negras da mídia e a esfera vagamente demarcada da

cultura popular (um misto do que costumava ser chamado de folclore e arte

proletária, mais os esportes). Essas formas de cultura são valorizadas de maneira

bastante distinta. (KUPER, 2002. p. 290)

Em diversos campos do conhecimento, os estudos culturais promovem essa

continuidade da “virada” que desmonta, ressignifica, desconstrói, posto que todos os

conceitos são historicamente construídos.

Distante mais de um século do surgimento dos estudos culturais (e por ter sido

relegado às margens pelo cânone, estudado por seus pesquisadores), a linguagem de Luiz

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Gama vai ao seu encontro no sentido pleno da concepção que afirma que as ideias construídas

podem (e devem) ser desconstruídas.

Assim como alguns pensadores da doutrina jurídica buscam no texto constitucional – à

margem do cânone jurídico – verbos afirmativos, tais como: promover, erradicar, construir

(CURIA, CESPEDES, NICOLETTI, 2013, p. 7) que contribuam para o sonho jacobino da

igualdade, incluindo juridicamente os excluídos, assim agem os críticos culturais, à margem

do cânone cultural, trazendo as vozes silenciadas ao longo da história. Assim também age

Luiz Gama, conforme veremos mais adiante. Segundo Osmar Moreira (2012):

Como em Auschwitz (AGAMBEM, 2008), em que milhões de judeus

desapareceram sem poder testemunhar, ou assombrando os modos do testemunho,

assim são as legiões de pobres e subalternos, cujas memórias foram

sistematicamente apagadas sob a força daquelas ordens de despejo linguístico,

cultural, territorial e ontológico (MOREIRA, apud OLIVEIRA, FRANÇA,

OLIVEIRA, 2012, p. 93).

Como se pode perceber através da afirmação de Osmar Moreira (2012), os despejos

impostos a alguns setores sociais trazem consequências nefastas às suas vítimas,

desterritorializando-as e empurrando-as para as margens. No Brasil, as principais vítimas

desses despejos foram os africanos, arrancados das suas famílias e comunidades para, logo a

seguir, serem submetidos ao regime de trabalho escravo, sendo que alguns deles sofreram

uma dupla desterritorialização, a exemplo dos agudás. Esses, depois da forçada e violenta

vinda para o Brasil, ao voltarem para a África, por força da lei de 7 de novembro de 18317,

não se reconheciam mais nas suas comunidades; e também não eram mais reconhecidos como

dela, passando a ser vistos como “brasileiros” nessas antigas comunidades (CUNHA, 2012, p.

10).

Assim, observa-se que a crítica cultural tem o propósito de deslegitimizar as

“escolhas” feitas pelo cânone hegemônico, ao arrepio dessas massas sociais excluídas que,

naturalmente, também têm suas construções históricas e culturais.

A cultura oficial resulta da imposição de uma história única, que despreza e silencia

segmentos da população, sendo mais um reforço às relações de poder estabelecidas pelas

classes dominantes, razões pelas quais esse padrão cultural estatuído pelo cânone hegemônico

precisa ser contestado. Segundo Jacques Derrida (2001), desconstruir invertendo as

hierarquias é a ordem para desestabilizar e desmontar a ordem:

7 Esta lei, aprovada por pressão inglesa, proibia a entrada de escravizados no Brasil, determinado o seu retorno

para a África. Ela foi o principal instrumental jurídico usado por Luiz Gama para promover a libertação de

africanos.

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Em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência

pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos termos

comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir

a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia

(DERRIDA, 2001, p. 48)

No Brasil, desde os anos iniciais da colonização, o estabelecimento da escravidão

impôs relações sociais rigidamente estratificadas e, por consequência, produziu tensas e

perversas relações de poder e dominação. Dessa forma, os anos que assistiram o pensador

Luiz Gama lidar com essa coexistência nada pacífica, assistiu a bestiais cenas de tortura e

sangue, razão pela qual a sua linguagem – respondendo à altura da violenta hierarquia

estabelecida entre brancos e negros, foi percebida como subversiva e o seu autor foi taxado de

radical e perigoso (BENEDITO, 2006, p. 35).

Assim, nesse contexto de afirmação do mundo burguês e, ao mesmo tempo, de

contestação, deslegitimação e desmontagem dessa ordem que caracterizam a segunda metade

do século XIX na Europa; e de afirmação do poder das classes aristocráticas no Brasil

escravista, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, um profanador das instituições racistas e

desconstrutor de discursos, vem desmascarar a dissimulação e o conluio escravocrata.

Analisando a entrada desse ator na cena social brasileira, Lígia Ferreira (2011) afirma:

A partir dos dezessete anos, graças à “transgressão” de um estudante residente na

casa de seu senhor que o ensina a ler e escrever, Luiz Gama, qual Prometeu,

empreende sua prodigiosa conquista do saber e da palavra que lhe devolvem a

liberdade e constroem o improvável destino de um ex-escravo, no Segundo Reinado:

o destino de um homem “letrado” cuja voz se fez ouvir na sua cidade, na sua

província e na sua nação (FERREIRA, 2011, p. 17).

Depois de alfabetizar-se, a conquista do poder da palavra o fez abrir os grilhões da

escravidão, obtendo provas da sua condição de pessoa livre (MENNUCCI, 1938, p. 48),

passando a reinventar-se, erigindo o seu próprio edifício humano e ressignificando totalmente

a sua existência de ex-escravo, de negro. Mais do que ressignificar a sua existência através da

sua própria trajetória e discursos, a linguagem de Gama contesta o sentido negativo atribuído

aos escravizados, além de questionar as leis então vigentes, utilizadas para subjugá-los.

Foi usando desse mesmo poder que o instrumental da palavra confere a alguém, que

ele se tornou um desconstrutor de ideias que desigualam pessoas, um poeta e pensador

jurídico avançado para a sua época. Logo, além de disseminar ideias, colocou a sua militância

para ajudar a construir a possibilidade jurídica que ele mais acreditava: a igualdade formal

entre negros e brancos no Brasil. Entretanto, naqueles idos das décadas de 1850 a 1880, a

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materialização desse ideal somente seria possível com a abolição da escravidão, razão pela

qual dedicou toda a sua vida à concretização desse mister.

2.1 TRAFEGANDO NA CONTRAMÃO: TRAJETÓRIAS E TRAVESSIAS DE LUIZ

GAMA

Um fato surpreendeu um diplomata francês na sala de ex-votos de uma igreja católica

de Salvador: um quadro do ano de 1847, no qual havia a alegoria de um navio chamado de

negreiro, entrando no porto da cidade (MENUCCI, 1938, p. 117-118) e através do qual o

pagador de promessa agradecia a um santo católico pela graça da chegada de sua mercadoria

constituída por carne humana. O quadro fora colocado ali 16 anos após a lei de 7 de

novembro de 1831, editada pelo Império do Brasil, proibindo o tráfico de pessoas

escravizadas para o país.

O fato, a princípio, chama a atenção por dois fatores – um de ordem religiosa, pois se

espera que da leitura dos textos bíblicos, cristãos de qualquer parte do mundo repudiem atos

atentatórios à dignidade humana, como a escravidão; outro, de ordem jurídica: mesmo

proibido, o tráfico em massa de pessoas da África para o Brasil ocorria corriqueiramente,

sendo o seu sucesso celebrado pública, solene e religiosamente, nesse caso sem qualquer

disfarce, sem qualquer ato dissimulador. Se para o estrangeiro, de nacionalidade francesa, o

fato causou surpresa, para a maioria do povo brasileiro ele era visto com indisfarçável

naturalidade. A hipocrisia daqueles que usavam a religião e os santos católicos para atender a

seus interesses escravistas era tamanha que, até Santo Antonio “[...] era solicitado a propiciar

diversas e numerosas pretensões [como] dar conta de escravos fugidos” (QUERINO, 2014, p.

39).

Nesse ano de 1847, ocasião em que se alfabetizou com a ajuda de um amigo, Luiz

Gama era um adolescente escravizado de 17 anos. Esse filho da alforriada Luíza Mahin

(REIS, 2003, p. 301), depois de nascer e viver livre os primeiros dez anos de sua vida na

capital baiana com os seus genitores, foi vendido como escravo pelo pai, conduzido no

Patacho Saraiva pelos mares da criminalidade (CÂMARA, 2010, p. 30) para a Corte no Rio

de Janeiro e, logo após, para São Paulo, sendo recusado em ambas províncias, por ser baiano8.

8 A Bahia colacionou um grande número de insurreições negras nas primeiras décadas do século XIX,

culminando com a mais importante delas: a Revolução dos Malês, em 1835, e da qual participou a mãe de Luiz

Gama, a costa mina forra Luíza Mahin. A partir desse importante fato, em várias províncias do império, “ser

baiano”, (ou seja: negro procedente da Bahia) passou a ser sinônimo de revolucionário e insubordinado,

originando-se daí a recusa dos mercadores de carne humana em comprar Luiz Gama.

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Dos 18 aos 24 anos de idade, quando ocupou o seu primeiro trabalho assalariado, na

função de soldado, Luiz Gama, após ser julgado, condenado e preso por ato de suposta

insubordinação, abandona a carreira militar, passando a servir como amanuense da Secretaria

de Polícia de São Paulo. Depois de doze anos de serviço nessa função, no ano de 1869, se

deparou com mais um conluio dos “homens da lei” contra um escravizado africano de

prenome Jacinto, partindo em defesa deste e se chocando frontalmente com os despachos e

decisões do juiz Rego Freitas, “a quem chamara de ‘incompetente’” (FERREIRA, 2011, p.

27) e com as determinações do chefe de polícia, Furtado de Mendonça, sendo, por isso,

demitido do serviço público, “por turbulento e sedicioso” (FERREIRA, 2011, p. 27).

Interessante o fato de ser um servidor público negro, sem diploma, sem verniz e ex-

escravizado, o subversor do status quo naquele momento, o autor de um ato que afrontava

aqueles que ostentavam anéis de brilhante nos dedos. Até porque, ao fazê-lo, o ex-escravizado

colocou em risco iminente o único bem econômico que possuía: o seu emprego, que garantia,

além do respeito, o seu sustento, de sua esposa Claudina Fortunata Sampaio e de seu filho,

Benedito Graco Pinto da Gama9.

Diversas publicações sustentam a tese de que poucas vozes se levantavam contra as

injustiças praticadas em desfavor de pessoas traficadas da África para realizar o trabalho

escravo no Brasil naqueles idos que entremeiam as décadas de 1850 a 1870, alguns

afirmando, nas entrelinhas, que havia um conluio da sociedade brasileira para legitimar e

sustentar tal trabalho (MENNUCCI, 1938, p. 161), mesmo existindo leis proibitivas a ele.

Enquanto dissimuladamente grande parte da população do país fingia que essas leis não

existiam, Luiz Gama (depois de combater a escravidão e o racismo no campo das Letras, com

a sua poesia), articula usar o Direito para tornar tais leis instrumentos da liberdade e da

igualdade jurídica.

Em finais do ano de 1869, ele, depois de ser vítima do racismo, sendo recusado como

colega pelos alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na capital paulista

(MENNUCCI, 1938, p. 140), ingressa com o pedido de Provisão para advogar10

, no Tribunal

da Relação de São Paulo, sendo esse pedido deferido sete dias após:

9 Saliente-se que, até o fim da sua vida, Luiz Gama continuou pobre: o seu próprio túmulo foi construído pela

Loja Maçônica América, da qual foi venerável por quatro períodos.

10

Diante da carência de advogados com diploma universitário, até a década de 1970, perdurou a figura do

advogado provisionado, popularmente conhecido como rábula. Na Bahia, Cosme de Farias, falecido em 1972,

foi um dos rábulas mais conhecidos.

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25

Luiz Gonzaga Pinto da Gama, desejando solicitar no fôro d’esta cidade,

interinamente, vem requerer a V. E. que, satisfeitos os requisitos legais, manda

passar-lhe a provisão respectiva; e

P. a V. benigno deferimento

São Paulo, 20/12/1869 11

.

A partir de 1870, quando Luiz Gama passou a exercer a sua profissão de advogado

provisionado e defender nas duas primeiras instâncias da Justiça clientes como a africana

Luíza12

, o conluio escravocrata encontrou na intelligentsia brasileira um importante suporte

para que, sob o manto da ciência, fossem reconhecidas diferenças e se determinassem

inferioridades contra mulheres e homens negros e mestiços (SCHWARCZ, 2015, p. 38).

Para manter a escravização no Brasil e, logo após a abolição, manter a hierarquia, as

distinções sociais e a negação da cidadania e da igualdade à população negra, os “homens de

sciencia” adotaram, produziram e divulgaram ideias racistas já em descrédito na Europa, mas

que serviam aos interesses dos escravocratas. Sob a chancela da ciência, da suposta verdade

única, as principais instituições formadoras de intelectuais do país – as faculdades de Direito

de São Paulo e Recife, de Medicina da Bahia e Rio de Janeiro –, os institutos históricos e

geográficos e os museus etnográficos fortaleceram a trama escravocrata. “Teorias

formalmente excludentes, racismo e liberalismo conviveram no país [inclusive] em finais do

século XIX, merecendo locais distintos de atuação” (SCHWARCZ, 2015, p. 321). Sobre o

papel dessas teorias no século XIX, Lilia Moritz Schwarcz afirma:

Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e

pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se

apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de

interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à

substituição da mão de obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social

bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania

(SCHWARCZ, 2015, p. 24).

Assim, como se pode perceber, o projeto de nação que vinha sendo construído pelas

elites intelectuais e econômicas excluía o negro. Do ponto de vista étnico-racial, o Brasil

afirmar-se-ia como branco ou índio. A própria igualdade jurídica formal que seria conquistada

mediante a luta política dos escravizados (AZEVEDO, 2010, p. 29) e do movimento civil

abolicionista, do qual Luiz Gama teria sido um precursor (MENNUCCI, 1938, p. 131) já

estava previamente ameaçada com o projeto de exclusão gestado pelas elites do país. O poeta

11

Esse processo foi tombado sob o nº 28/1869 (lote 201007000098, caixa 322) e encontra-se no Arquivo Público

do Estado de São Paulo.

12

Autos tombados sob o nº 71/1870, encontram-se na caixa 7, no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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diaspórico baiano que se autointitula Orfeu de carapinha – como se verá mais adiante – surge,

portanto, “[...] num campo de disputas políticas de afirmação de uma identidade” (SANTOS,

2015, p. 714) étnico-racial.

Muito antes de as ideias contra o povo negro ganhar foros de ciência no Brasil,

reforçando os interesses escravocratas, emblemático é o papel da Igreja Católica nos

aproximados 350 anos de vigência dessa maquinação atentatória à dignidade de milhões de

africanos e seus descendentes nascidos no país.

Desde os primórdios da invasão portuguesa, no século XVI, várias ordens religiosas

recebiam sesmarias (SANTOS, 2008, p. 45) e dedicavam-se às atividades econômicas de

plantio da cana de açúcar e produção do ouro branco, auferindo lucros à custa da mão de obra

escravizada. O centro e alguns bairros da cidade baiana de Candeias, por exemplo, viu o seu

núcleo populacional inicial surgir em uma dessas sesmarias doadas aos padres jesuítas, onde a

Companhia de Jesus foi proprietária de um engenho entre os séculos XVII e XVIII (LEITE,

1945, p. 256). O Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, em meados do século

XVIII, possuía 400 mulheres escravizadas à disposição de 75 religiosas (COMPARATO13

apud FERREIRA, 2011), o que equivale a mais de cinco pessoas em cativeiro servindo a cada

freira católica. Tal fato continuava a ocorrer no seio da Igreja no século XIX, quer fosse nas

suas atividades religiosas de reclusão quer nas suas atividades econômicas, a exemplo do que

testemunhou o norte-americano Thomas Ewbank, que visitou o Brasil em meados desse

século:

Num “grande estabelecimento” que a ordem beneditina possuía na Ilha do

Governador, no Rio, “numerosas gerações de rapazes e moças de cor são criadas até

terem idade suficiente para serem enviadas ao trabalho nas propriedades do interior”

(COMPARATO14

, apud FERREIRA, 2011).

Sem pudor, elementos do clero defendiam a escravidão e dela auferiam vantagens

econômicas, razão pela qual Luiz Gama teve sérios embates públicos com padres e bispos,

chegando a questionar em uma das suas máximas publicadas no jornal “O Polichinelo”, de 20

de agosto de 1876, que “se tão horroroso é o Diabo pintado pelos padres, o que seria dos

padres se os pintasse o Diabo” (FERREIRA, 2011, p. 291).

13

Fábio Konder Comparato, em página não numerada da apresentação do trabalho Com a palavra, Luiz Gama,

de Lígia Fonseca Ferreira.

14

Idem, nota anterior.

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27

Observa-se dessa afirmação que o seu autor põe em xeque as ideias construídas pela

Igreja sobre sacerdotes católicos, que os apresentava como “homens de Deus”, os quais

cometiam barbaridades com seus semelhantes, sendo capazes de transformá-los em peças de

mercancia. Diante disso, não podiam ser considerados sacerdotes do Deus que faz dualidade

com o demônio, ou seja, não tinham autoridade moral para descrever e repudiar as forças do

mal, representadas pelo diabo, na representação que Gama faz dos homens de batina. Nessa

afirmação, Luiz Gama, ao dessacralizar os sacerdotes de Roma, profana a religião oficial e

única instituída pelo estado de exceção monarquista (CAMPANHOLE, 1989, p. 749).

Quanto aos homens de sciencia, aos doutores burregos (GAMA, p. 23), que do alto

dos seus pedestais nas faculdades de direito ou nos tribunais, conspiravam contra a

possibilidade de igualdade jurídica da população negra, quer sustentando teorias racistas quer

dando sucessivas sentenças em desfavor da sua liberdade, o pensador diaspórico usa a poesia

para lhes dar várias alfinetadas, como se observa desses versos do poema Sortimento de

gorras:

[...] Se temos majestosas faculdades,

Onde imperam egrégias potestades,

E, apesar das luzes dos mentores,

Os burregos saem Doutores;

Se a justiça, por ter olhos vendados,

É vendida, por certos Magistrados,

Que o pudor aferrando na gaveta,

Sustentam – que o direito é pura peta [...]

(GAMA, 2011, p. 23 e 24).

Como se percebe através do excerto acima, considerando, também, essa poesia como

um todo, prevalece nela a crítica aos grupos hegemônicos; no caso da “justiça” e das

faculdades de direito, a crítica aos “Doutores”. O texto poético tira essas instituições do lugar

sagrado em que foram colocadas, profanando-as e desafiando o cânone jurídico. Profanação é

“[...] um termo que provém da esfera do direito e da religião” (AGAMBEM, 2009, p. 44) e

segundo o seu autor, profanar é devolver ao humano aquilo que foi sacralizado (AGAMBEN,

2015, p. 71), quer seja na esfera da religião, da economia ou do direito.

Partindo do texto acima citado, é possível inferir que, ao dessacralizar essas

importantes instituições imperiais, Luiz Gama pretende começar a atingir o propósito de

desativar os dispositivos de poder para possibilitar o surgimento de uma nova ordem política,

social e econômica, em um novo país “[...] sem reis e sem escravos” (FERREIRA, 2011, p.

193).

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O filósofo italiano Giorgio Agambem busca no pensamento de Foucault uma

explicação para o termo dispositivo (AGAMBEM, 2009, p. 27) e o descreve como um

conjunto heterogêneo, que inclui discursos, instituições, leis, medidas de polícia, cuja função

“[...] se inscreve sempre numa relação de poder [...] e resulta do cruzamento de relações de

poder e de relações de saber” (AGAMBEN, 2009, p. 29). Sendo o dispositivo um termo que

“[...] nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem

fundamento no Ser” (BATISTA, 2015, p. 25), a profanação seria um contradispositivo, uma

operação para desativar esses dispositivos. Conforme assinala Giorgio Agamben, “[...] a

profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido

profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura” (AGAMBEN, 2015, p. 68).

Assim, a profanação empreendida por Luiz Gama pode ser entendida como tentativa

de desativar os dispositivos do poder, pois, “[...] a criação de um novo uso só é possível ao

homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante” (AGAMBEN, 2015, p. 75). A

sátira gamista possui essa função de desmontagem dos discursos racistas e da ordem

escravocrata. Além de profanar o “sagrado econômico” (leia-se: a propriedade privada sobre a

pessoa escravizada) declarando “guerra de morte aos salteadores da liberdade” (MENNUCCI,

1938, p. 137), Gama ia além, profanando a própria coluna mestra da organização: o estado

monarquista, em uma tentativa de desmonte do sistema político vigente, que sustentava a

escravidão com o seu aparato de exceção (MENNUCCI, 1938, p. 158). Em uma máxima

publicada n’O Polichinelo, no dia 12 de novembro de 1876, Gama afirma que: “A felicidade

dos povos depende da supressão das coroas” (FERREIRA, 2011, p. 296). Alguns autores

sustentam que ele foi um dos mais ferrenhos antimonarquistas e um dos primeiros a somar

fileiras entre os republicanos do país (MENNUCCI, 1938, p. 157), tendo, inclusive, subscrito

o Manifesto Republicano de 1870 (CÂMARA, 2009, p. 207).

O autor do poema Sortimento de Gorras observa que os interesses escravocratas

cegavam a população brasileira de um modo geral, a ponto de os próprios homens da lei,

representantes do direito e da justiça verem a instituição servil como algo natural e como um

direito inalienável, que o ordenamento jurídico colocou no campo do direito da propriedade

privada (AZEVEDO, 2010, p. 26). Aliás, ser possuidor de pessoas escravizados era aspiração

de muitos e as cenas públicas retratadas pelo pintor francês Jean Baptiste Debret

(BANDEIRA, 2013, p. 122, 139, 146, 147, 175), de liteiras, nas quais escravizados

carregavam seus algozes nas ruas, eram desejadas por grande parte dessa população, inclusive

por setores das nascentes classes médias (MENNUCCI, 1938, p. 170-171).

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Dessa forma, representantes da ciência e da fé, fazendeiros, senhores de engenho,

comerciantes, juízes, políticos, advogados, médicos, professores e outros integrantes de

setores das camadas alta e média escravizavam pessoas e, naturalmente, como quem legisla

em causa própria, defendiam a instituição da escravidão: “Os interesses escravagistas, mais

fortes e mais convincentes que todas as convenções e convênios haviam se transformado em

pura fé púnica” (MENNUCCI, 1938, p. 142).

Quanto ao papel da imprensa nesse jogo de dissimulação de interesses, era comum, no

século XIX, jornais publicarem anúncios de escravizados fugidos, como o Jornal Tolerância,

de Salvador, que publicava, em 27 de junho de 1849: “Escravo fugido do Engenho Matoim,

do Barão de Passé. [Quem encontrar] entregar a Paulo Pereira Monteiro ou Inácio José

Jacobeiro” (SANTOS, 2008, p. 19). É interessante constatar que muitos dos jornais que se

diziam abolicionistas publicavam esses anúncios de escravos fugidos, em um flagrante da

falta de real compromisso de parte da imprensa brasileira com a causa abolicionista.

Salientar-se-á, para o mister do estudo aqui empreendido sobre o papel desempenhado

pelo subversivo Luiz Gama no desmonte que culminou na abolição da escravidão, que São

Paulo era “a província mais escravocrata do império” (MENNUCCI, 1938, p. 113) e, por ser a

que mais crescia economicamente, usava esse fato como justificava para a continuidade do

trabalho compulsório em sua lavoura cafeeira, não sendo poucos os que afirmavam que sem a

existência dessa instituição a província e o Brasil entrariam em bancarrota (CHALHOUB,

2009, p. 43).

Contra esse jogo escravocrata, o profanador Luiz Gama lança mão, a princípio, das

Letras, da poesia. Com muita propriedade, a respeito da sua obra poética, Antonio Candido

afirmou que ela “[...] trafega na contramão” (BERND, 1988, p. 39). Somente encetando uma

“viagem” ao Brasil escravocrata do século XIX, pode-se compreender tal afirmativa. Isso

porque é em oposição aos valores e dispositivos criados por aquela sociedade que atentava

contra a dignidade humana, que a resposta poética será dada, em um tom de contestação e

insubordinação. Essas foram as antíteses apresentadas pela contra linguagem de Gama.

Profanar era preciso.

E, posteriormente, ele, ao tornar-se advogado, usará o poder das Leis, também na

contramão. Apesar das atuações em searas distintas, percebe-se uma coerência identitária no

seu fio discursivo, evidenciada em diversos pontos de encontro entre a sua tessitura poética e

jurídica, conforme veremos mais adiante.

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2.2 VIVÊNCIAS IDENTITÁRIAS DE “UM SOLDADO DE PELE NEGRA”

Do ponto de vista histórico, raças são “[...] construções sociais, políticas e culturais

produzidas nas relações sociais e de poder” (GOMES, 2005, p. 49). A discussão sobre raça

passa por uma questão de ordem política, mas, enquanto conceito biológico, tornou-se

bastante ultrapassada, sobretudo depois do horror produzido pelo Holocausto nazista na

Segunda Guerra Mundial, fazendo o termo etnia ganhar força, enquanto “[...] conceito usado

para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa

sociedade” (GOMES, 2005, p. 50).

Adam Kuper (2002, p. 303) questiona se a autenticidade da identidade de uma pessoa

dependeria do fato de ela ser fixada pela ascendência. No entendimento de Elciene Azevedo

(2005), Gama, ao afirmar na Bodarrada que “[...] todos são meus parentes” (antecedida pelo

fato de uns serem ricos e nobres, outros pobres), induz-nos a inferir que “[...] o pressuposto

desta afirmação está na ideia de que o ser branco ou negro não era apenas uma questão de

pigmentação ou ainda da condição social de cada um, mas sim de ascendência”, (AZEVEDO,

2005, p. 63), sendo que tal fato seria confirmado pela insistência de Luiz Gama em recuperar

uma origem africana.

A respeito dessas questões que envolvem raça, diferença e pertencimento étnico-racial,

digressão se faz necessária. Conceitos como raça e etnia no Brasil oitocentista são expressões

que em algumas situações possuem eco mais alto do que o próprio conceito de lutas de classes

elaborado pela teoria marxista. Consideramos que não se pode presumir que as relações entre

classes são a única base importante da dominação e subordinação nas sociedades modernas,

ou que elas são as mais importantes em qualquer circunstância (THOMPSON, 1998, p. 200).

No que se refere às questões que envolvem raça e identidade no Brasil do século XIX,

o fato de um indivíduo ser supostamente da mesma cor ou da mesma classe social que outros,

não possui o condão de torná-los iguais; hipoteticamente, a igualdade econômica poderia

levá-los a uma aproximação, à existência de uma identidade entre eles, mas tal identificação

não ocorre automaticamente, pois não se trata de um determinismo histórico.

A sociedade escravocrata brasileira do século XIX não aceitava as diferenças e negava

o negro: a sua cor, voz, religião, idioma, enfim, negava a sua cultura; e negava, também, o seu

direito de ser juridicamente igual. As diferenças econômicas e sociais são comuns durante

todo o processo histórico, sobretudo em tempos de globalização, nas sociedades que tomaram

o capitalismo “[...] como religião moderna por excelência, que se tornou o improfanável

absoluto” (ASSMANN apud AGAMBEN, p. 12). Quanto às diferenças entre as pessoas,

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Adam Kuper (2002) assinala que:

A questão não reside na existência de diferenças, mas sim no fato de elas serem

tratadas com desprezo, como desvios da norma. Uma cultura hegemônica (branco,

anglo-saxão, de classe média, homem, heterossexual) impõe suas regras a todos. O

restante da população é estigmatizada por ser diferente. Suas diferenças os definem:

eles não são brancos, não são anglo-saxões, não pertencem à classe média e não são

homens e heterossexuais. Sob um aspecto, o grupo dominante simplesmente impõe

suas próprias características ideais como normas definidoras e tacha qualquer um

que seja diferente como fora do padrão. (KUPER, 2002, p. 296).

Assim, segundo esse autor o problema não estaria nas diferenças entre as pessoas, mas

em determinados setores da população instituírem-se como hegemônicos, decidindo e agindo

sob o pretexto de representarem uma suposta vontade da maioria, decretando a tirania que,

muitas vezes vem travestida sob o rótulo de “democracia”. O problema estaria, enfim, em não

perceber ou não querer enxergar o outro em sua grandeza, em sua dignidade, em sua condição

humana.

Na sociedade brasileira oitocentista, que se esforçava para definir-se como branca e

que parte considerável da sua população negra-mestiça procurava “[..] fugir do estigma da

raça [pois] muitos ainda sofriam por terem origem africana” (TELLES, 2003, p. 45), pode-se

asseverar que o poeta Luiz Gama afirmou-se identitariamente como negro? Existem muitos

rastros dessa identidade. Além de possivelmente a mesma ter sido fixada por sua ascendência

africana, existem outros elementos a induzir que a cor da sua pele seja um fator de

aproximação e identificaçao com aquelas pessoas que com ele guardam similares

características fenotípicas.

Por outro lado, situações de conflito (como as formas de poder exercidas pelos brancos

portugueses e seus descendentes impondo o terror racial15

aos escravizados no processo de

colonização no Brasil [e depois dele]) podem se constituir em contextos que permitam essa

aproximação e ajudem a construir um perfil identitário tanto em brancos quanto em negros,

nesse caso em tela.

A consciência, quanto a uma mesma origem africana, e quanto à existência de

interesses comuns com os negros escravizados e livres, pautada na experiência do terror racial

pode ter contribuído para a assunção da identidade negra de Luiz Gama. Quando Franz Fanon

afirma, por exemplo, que “[...] o colonizado está sempre alerta” (1968, p. 28), por

extrapolação, pode-se entender que a expressão “colonizado” agrupa um número de pessoas

15

Essa expressão é usada por Franz Fanon (1968) no trabalho Os condenados da terra, para caracterizar e

exprimir o tom de tensões existentes nas relações entre colonizados e colonizadores.

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32

subordinadas que vivem no mesmo contexto e situação de conflito, e de hierarquia violenta,

que caracterizam o terror racial, favorecendo a uma posição de sentimento de igualdade, de

semelhanças entre elas, contribuindo para o surgimento ou fortalecimento de uma identidade

negra.

O coletivo nós (colonizados, negros, discriminados, nesse caso), comumente utilizado,

denota esse sentimento de igualdade em determinados grupos, sendo um indicativo da

formação de uma identidade. Interpretando a análise feita pela antropóloga Sílvia Novaes

sobre esse tema, Nilma Lino Gomes (2005, p. 41) enfatiza que, “[...] de acordo com essa

autora, esse nós se refere a uma identidade, no sentido de uma igualdade”. Esse sentimento de

igualdade entre os semelhantes pressupõe diálogo, interação entre eles, sendo elementos da

constituição de uma identidade negra, desde os tempos da colonização portuguesa no Brasil.

Ou, também, entender-se-ia que aqueles que se encontram na antagônica condição de

colonizadores pudessem desenvolver o mesmo tipo de sentimento de semelhanças e

desenvolvessem posterior identidade:

Se a ideia de raça era funcional para os brancos, afinal, agregando um racismo

comum às suas variadas escolhas políticas, ela desempenhou papel análogo para os

negros. Identidades raciais foram construídas também por eles (e não apenas contra

eles), aspecto muitas vezes negligenciado nas análises do tema (CUNHA, apud

ALBUQUERQUE, 2009, p. 22).

Alguns autores, entretanto, duvidam da existência de uma identidade definida para

determinado grupo de indivíduos. Afinal, os seres humanos representam o somatório de tantos

perfis – negro, rico, mulher, alto, magro, idoso, morador de periferia, letrado... Qual seria o

perfil identitário delineador?

Existem diversas concepções de identidade e Kuper (2002, p. 311), antes de concluir

que todos nós temos identidades múltiplas, também discorre sobre a possibilidade de um

indivíduo afirmar a sua pertença por uma questão de opção pessoal. Nessa linha de

pensamento mas, no caso, referindo-se a Luiz Gama, Azevedo (2005, p.28) pontua que:

Ao construir sua imagem como um homem orgulhoso de sua cor, coerente em seus

poemas ao valorizar o negro e ridicularizar o pretenso branco, este autor está

também construindo um exemplo para ser admirado e seguido, conseguindo através

dele despertar no leitor a reflexão sobre a consciência negra e o racismo

(AZEVEDO, 2005, p. 28).

Observe-se que a autora refere-se a Gama como um negro “orgulhoso de sua cor”,

fazendo-nos perceber, através do seu sentimento de orgulho, além da afirmação da sua

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pertença étnico-racial, a elevação da autestima, construindo uma imagem ressignificada do

“ser negro” e do “sentir-se negro”, contrária àquelas colocadas em voga pelo sistema racista.

A enunciação do eu lírico negro aparece em diversos poemas de Luiz Gama e os rastros de

identidade negra estão presentes em inúmeros outros documentos que servem de pano de

fundo para vários momentos de sua vida. Na obra intitulada Vozes Literárias de Escritoras

Negras, Ana Rita Santiago (2012) afirma que ele, além de ironizar os pretensos brancos, “[...]

procura criar para si uma identidade local com feições africanas – Orfeu de carapinha –, que

troca a lira pela marimba e pela cabaça de urucungo e é o Pretinho da costa” (SANTIAGO,

2012, p. 105). Em se tratando da ressignificação identitária de Luiz Gama e à sua produção

poética, Duarte (2011, p. 130) o reconhece como:

Satírico mordaz, [que] adentrou a cidade letrada do Segundo Império, nela

afirmando sua etnia e sua história de vida, como um efetivo precursor da consciência

negra. Preservou, em sua poesia, elementos orais da tradição africana e satirizou

valores hegemônicos eurocêntricos. Foi o primeiro escritor afro-brasileiro a resistir

ao ideal de embranquecimento da sociedade da época, não apenas afirmando seu

orgulho étnico, mas ainda zombando dos preconceitos raciais dos escravocratas com

pretensões de nobreza e “pureza” de sangue (DUARTE, 2011, p. 130).

Sendo filho de um homem branco, tendo cor mais clara que os africanos escravizados

no Brasil, Luiz Gama poderia se identificar com os mulatos, morenos e outros mestiços – até

mesmo para ser melhor aceito pela sociedade racista e afirmar-se como mestiço. Teria, nessa

hipótese, afirmado a sua pertença mulata por uma questão de opção, mas não o fez assim, pelo

contrário: segundo Duarte (2011), o poeta diaspórico disse não ao projeto de branqueamento

da nação proposto pelas elites e firmou o orgulho da sua pertença étnico-racial, o que

representa uma ressignificação, ao trazer o elemento da afirmação da autoestima, da altivez do

“ser negro” e do “sentir-se negro”, naqueles idos oitocentistas.

Identifica-se a afirmação identitária negra em alguns traços da linguagem poética de

Luiz Gama, a exemplo do observado em expressões por ele escritas, bem como em textos de

diversos autores que o estudam, tais como: filho da “mais linda pretinha” (GAMA, 2011, p.

152), “um soldado de pele negra” (MENNUCCI, 1938, p. 137), amanuense defensor do

africano Jacinto (FERREIRA, 2011, p. 27), rábula da liberdade (AZEVEDO, 2005, p. 189),

poeta que se enuncia de carapinha (SANTIAGO, 2012, p. 105), jornalista que se autointitula

“afro” (SANTOS apud A TARDE, 2014, p. 2) e abolicionista (CÂMARA, 2009, p. 220).

Também, nas suas atividades como presidente da Loja Maçônica América16

é possível

16

Compulsando, em 28/01/2015 as atas dessa loja maçônica localizada no bairro paulistano do Paraíso,

percebemos que Luiz Gama fora eleito seu venerável em seis mandatos, entre os anos de 1874 e 1881.

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identificar a afirmação identitária negra na vida de Luiz Gama. Levando-se em conta as suas

proposições naquela casa – consta em ata de uma das sessões dirigidas por ele, uma proposta

sua aos seus pares, de um pedido, a tronco de beneficiência17

, de “uma esmola de vinte mil

réis, á favor da liberdade de Umbelina, escrava da herança de Alexandrina C. de Carvalho”18

,

o que foi aprovado.

Percebe-se com esse exemplo, a identificação e preocupação para com o próximo ou

com os “seus iguais”, algo recorrente por parte do aludido escritor. Lilia Moritz Schwarcz

aponta o líder maçônico, aliás, como a figura mais representativa das lutas abolicionistas em

São Paulo: “Nesse sentido, Luiz Gama, ele próprio um ex-escravo, representava, enquanto

líder e advogado, a figura mais eminente no interior dessa causa, contando inclusive com o

apoio dos maçons da casa América” (SCHWARCZ, 1987, p. 80). Gama contava, inclusive,

com a admiração e o apoio dos maçons mais jovens dessa loja, como o poeta e conterrâneo

Castro Alves e Joaquim Nabuco, ambos estudantes de Direito da Faculdade do Largo São

Francisco. Estes se associaram a ele no seu projeto que “propunha que os maçons assumissem

o compromisso de libertar o ventre de suas escravas e que essa exigência fosse exigida para os

novos maçons” (MELANTONIO apud CÂMARA, 2009, p. 225). Esse projeto de Gama foi

sustentado por outro jovem baiano estudante de Direito: Ruy Barbosa, que contava com 19

anos de idade e também era abolicionista e integrante da Loja América.

A sintonia da ação de Ruy Barbosa, Luiz Gama e outros maçons com a Loja América

foi de extrema importância na ressignificação de negros e negras em São Paulo, como se

observa da criação de ações afirmativas em pleno século XIX:

“[...] com o apoio de Luiz Gama, Ruy apresentou outro projeto na Loja América, e

que foi aprovado por unanimidade, qual seja, o de arrecadar verbas para alforriar

escravos e promover a educação popular de crianças e adultos negros” (CÂMARA,

2009, p. 223).

Esses projetos tiveram repercussão até mesmo na Corte no Rio de Janeiro e dois meses

depois de aprovados “[...] a Loja Maçônica América instalou, na Rua 25 de Março, uma

escola gratuita para 25 crianças, também com aulas noturnas para 160 negros adultos, de

ambos os sexos, todos com material fornecido pela própria Loja” (CÂMARA, 2009, p. 226).

17

Segundo Benemar França, tataraneto de Luiz Gama (CÂMARA, 2010, P. 304), integrante e ex-venerável da

Loja Maçônica Luiz Gama, que fora por nós entrevistado em 29/01/2015, no bairro de Pompéia, na capital

paulista, até os dias atuais é comum no final de cada sessão os maçons levantarem valores que são destinados a

pessoas e instituições, respondendo esse ato pelo nome de tronco de beneficiência.

18

Ata do dia 23 de setembro de 1874.

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Essa ação traduz-se na adoção de ações afirmativas, que segundo Flavia Piovesan (2005, p.

39) são um poderoso instrumento de inclusão social e buscam “[...) remediar um passado

discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade

substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais [...]”

(PIOVESAN, 2005, p. 39).

A criação dessa escola levanta diversas hipóteses sobre o pensamento e ação de Luiz

Gama e seus confrades da maçonaria. Uma delas é que eles tenham se valido dessa estratégia

afirmativa como forma de empoderamento desses alunos negros frente à escravização, à

pobreza e ao racismo.

A igualdade substantiva, a qual faz referência Piovesan (2005), segundo Joaquim

Barbosa Gomes (2003) tenta evitar “[...] o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades

engendradas pela própria sociedade (GOMES, 2003, p. 19). Partindo das leituras desses dois

autores acima, outra hipótese que se afigura reside na reflexão sobre a própria trajetória de

vida de Luiz Gama, pois, sendo ele fruto do conhecimento que ressignifica a vida, teria visto

na educação o viés que um dia conduziria o negro à igualdade substancial. Apesar de a

pesquisadora Lígia Ferreira (2011) ter se referido a Luiz Gama como professor (FERREIRA,

2011, p. 26), não sabemos qual teria sido o seu papel na manutenção e funcionamento dessas

escolas. Certo é que, a depender dos níveis dessa atuação, poder-se-ia considerá-lo um dos

artífices da busca prática pela igualdade de oportunidades pelo viés educacional. Tais fatos e

questionamentos evidenciam a necessidade de estudos que elucidem a forma como o negro é

representado em um pensamento de igualdade substancial de Luiz Gama.

Quer seja nas suas atividades à frente da loja maçônica, na sua atuação como

advogado e militante da causa abolicionista ou no teor dos seus escritos poéticos, jurídicos e

jornalísticos, trata-se de vivências e escrevivências identitárias de um sujeito étnico negro que

vai muito além daquele ao qual faz referência o escritor e poeta Cuti (2010, p. 22, 63). A

atuação e o pensamento de Luiz Gama o colocam, de fato, como “um soldado de pele negra”.

Assim se autointitulando: como de “pele negra”, afirma a sua pertença étnico-racial; e como

“soldado”, se posiciona para o combate na arena racial brasileira. Afirmar e ressignificar o ser

negro, infere-se ser esta a razão da sua luta.

2.3 LITERATURA UN PASSANT E “MEDO BRANCO”

Conforme o escritor Cuti (2010, p. 18), “[...] a antropologia brasileira nasce no Brasil

sob o signo do racismo. A sociologia segue os mesmos passos, a literatura e a história

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também”. Conforme o aludido poeta, a discriminação racial dava a tônica também nas linhas

e entrelinhas da literatura brasileira, a qual nasceu sob a égide do preconceito contra o negro.

No período em que Luiz Gama entra na cena poética, segundo David Brookshaw (1983) tal

cena não conhecera significativos avanços e isto “[...] fica patente na caracterização do negro

na literatura criativa a partir da segunda metade do século XIX, quando começou a ser

retratado com crescente freqüência em prosa e em verso” (BROOKSHAW, 1983, p. 16). A

literatura dos anos oitocentistas, portanto, continuou a retratá-lo “[...] sob o signo do racismo”

(CUTI, 2010, p. 18), pois não apenas nos primeiros escritos literários feitos em terras

tupiniquins, mas também nos séculos vindouros, a figura do negro, ou era invisibilizada ou

carregada de estereótipos, em representações negativadas, recheadas de preconceito.

Da leitura de algumas obras do século XIX, infere-se que os argumentos dos autores

que pregavam a abolição da escravatura não possuem um apelo fundado nas questões de

justiça, de direito natural, de posicionamento sobre a igualdade jurídica entre as pessoas.

Essas obras evidenciam atitudes de crueldade ou insensibilidade da sociedade brasileira para

com as agruras de africanos desterritorializados e seus descendentes nascidos no Brasil.

Atitudes essas que, quando não representam claramente o conluio, a dissimulação, a

indiferença, a negação da alteridade nesse jogo de subalternidade, na melhor das hipóteses

representam um posicionamento que sugeria uma abolição da escravidão negra para que esta

livrasse os brancos de possíveis atos de vingança dos escravizados contra eles. Observe-se, na

hipótese em questão, que não há a cobrança de territórios perdidos por africanos

desterritorializados, não há a exigência da restituição de um status quo ante19

que fizesse

triunfar os ideais de justiça entre os homens.

Segundo Brookshaw, “a literatura abolicionista partiu da premissa que a escravidão

era ruim para os donos de escravos porque os colocava em contato com degenerados morais”

(BROOKSHAW, 1983, p. 32). Seguindo, assim, essa linha de interpretação, o argumento que

parece ser preponderante é que a desigualdade formal determinada pela instituição da

escravidão é ruim não necessariamente porque é injusta ou desumana, mas porque ela põe a

vida do escravizador em risco iminente. É o que se infere a partir da leitura dos trabalhos

Onda negra, medo branco e O direito dos escravos. Nessa última publicação, a autora afirma:

Histórias de crimes violentos cometidos por escravos contra seus senhores e feitores

repercutiam nas páginas dos jornais paulistas da segunda metade do século XIX,

tirando o sono dos proprietários de escravos e seus familiares. “Cenas de sangue!”,

19

A situação anterior, expressão latina.

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37

título que usualmente aparecia em tais notícias, conferia o tom sensacionalista dos

jornais a esses episódios, muitas vezes descritos em minúcias para dar maior ênfase

à crueldade e barbárie das circunstâncias em que ocorriam (AZEVEDO, 2010, p.

37).

Obviamente que as cenas de sangue derramado de escravizados barbaramente

castigados até a morte não eram menos bárbaras do que as descritas nessas cenas acima.

Entretanto, o que realmente interessa para o nosso estudo é o fato de esses atos de resistência

terem produzido tamanho horror nas elites, a ponto de fazer com que parte delas passassem a

aceitar o fim da escravidão. Nos tribunais, ao darem seus depoimentos, a maioria dos

escravizados presos por assassinato de seus algozes – quer fossem seus supostos senhores ou

feitores – não mostrava arrependimento. José Mulato, o gaúcho de 25 anos escravizado em

Campinas e curatelado20

de Luiz Gama, por exemplo, depôs informando ao juízo que matou a

vítima porque ela tentara prendê-lo como “negro fugido’” (AZEVEDO, 2010, p. 76) e que

“havia fugido para ‘se ver livre’ dos maus tratos do feitor da roça” (AZEVEDO, 2010, p. 75).

Assim, essas sangrentas cenas de resistência protagonizadas por escravizados acabaram por

contribuir para o medo das elites e, consequentemente, para o próprio fim da escravidão.

No campo literário, com relação à indiferença da população brasileira à escravização

de pessoas, ressalte-se que, a princípio, a poesia condoreira de Castro Alves fora recebida sem

plateia nem aplausos. Uma indisfarçável indiferença foi a resposta inicial do público do país

(MENNUCCI, 1938, p. 132), denotando um total desinteresse da sociedade pelas questões

referentes a um possível fim da escravidão.

A literatura deixa patente, ainda, a cumplicidade da sociedade brasileira com a

escravidão e o escárnio e a crueldade contra escravizados, conforme se percebe da análise da

crônica “O caixão de Teresa”, na obra Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos,

escrita na segunda metade do século XIX. A crônica conta a história de uma mulher

escravizada de prenome Teresa, que juntou vintém por vintém até comprar a sua alforria; e,

para pagar a Deus pela bênção da liberdade, adquirira um caixão de defunto enfeitado como o

dos brancos e o entregara à Igreja do Rosário para conduzir os escravizados mortos ao

cemitério para “[...] que eles tivessem, na morte, uma igualdade que não haviam conseguido

em vida. O caixão levá-los-ia a enterrar e voltaria para a igreja, à espera de outro viajante da

Eternidade”. (CAMPOS, 2009, p. 353-355). O seu autor revela que:

20

No julgamento de escravizados, a lei previa, além do advogado, a presença do curador de escravos, nomeado

pelo juiz. Nesse feito, o curador nomeado não compareceu e Luiz Gama manifestou interesse, sendo nomeado

curador.

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Ao passar o caixão de um branco, os transeuntes se calavam, compungidos,

murmurando um “Deus te leve!”, com a pena e o terror no coração. Se era, porém, o

caixão de Teresa que atravessava as ruas, aos ombros de quatro negros que levavam

a enterrar um companheiro, os brancos paravam pilheriando, e as senhoras corriam

para a janela, sorrindo, numa zombaria alegre da última vaidade daqueles homens de

cor (CAMPOS, p. 353-354).

Essa mesma igualdade requerida no ocaso da vida era cobrada pela Irmandade de São

Benedito do Convento de São Francisco, em Salvador, que relatava o transporte indigno de

escravizados mortos em um esquife ou padiola chamado de banguê, “[...] tão ludibrioso e

ridículo que serve de irrizão e galhofa pública aos rapazes” (REIS, 2012, p. 147). Observe-se

que, em ambos os casos relatados, as menores tentativas de equiparação dos negros aos

brancos, quer fossem em práticas da vida civil, quer nos atos mais sagrados e mais santos,

como a dos enterros, por exemplo, serviam de zombaria popular (MENNUCCI, 1938, p. 132).

Ao contrário dessa desumanização do escravizado, note-se, no verso abaixo, a

representação que Luiz Gama faz do direito à dignidade na morte, através da interpretação do

poema No cemitério de São Benedito:

Em lúgubre recinto escuro e frio,

Onde reina o silêncio aos mortos dado,

Entre quatro paredes descoradas,

Que o caprichoso luxo não adorna,

Jaz de terra coberto humano corpo,

Que escravo sucumbiu, livre nascendo!

Das hórridas cadeias desprendido,

Que só forjam sacrílegos tiranos,

Dorme o sono feliz da eternidade [...]

(GAMA, 2011, p. 156).

A princípio, o próprio nome do patrono onomástico do cemitério do poema, São

Benedito, santo católico negro muito popular entre as “pessoas de cor” (REIS, p. 54)21

, não

fora colocado à toa, ao nada e, de per si, remete-nos a uma identidade religiosa que se

formava entre os africanos e sua descendência no Brasil. Não consta naqueles idos de 1859

(ano em que a poesia foi lançada nas Trovas) a existência de um cemitério destinado a

escravizados na capital paulista com o nome de nenhum santo católico, muito menos com o

nome de São Benedito. O próprio cemitério paulistano da Consolação, onde os restos mortais

de Luiz Gama foram e estão sepultados, em uma exceção, no ano de 1858 recebera o corpo de

21

Em Salvador, por exemplo, o historiador João José Reis, no trabalho intitulado “A morte é uma festa” assinala

a existência, entre os anos de 1790 e 1830, das irmandades de São Benedito do Convento de São Francisco e São

Benedito da Igreja do Rosário das Portas do Carmo.

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um negro escravizado para que este ato pudesse marcar a inauguração22

do lúgubre espaço,

remetendo-nos à história da inauguração do cemitério da cidade de Sucupira, na obra O Bem –

Amado (GOMES, 2012).

Segundo Nelson Câmara (2010), essa poesia remete o leitor à ideia “[...] que o negro

tinha direito até à igualdade de sepultamento no cemitério” (CÂMARA, 2010, p. 101) e

segundo João José Reis (2012):

A morte era uma das poucas chances, e a última, de estabelecer simbolicamente a

igualdade entre brancos e negros, escravos e senhores, ricos e pobres. Viver mal,

mas morrer bem, seria o lema. O pobre que consumia economias ou entrava numa

irmandade para ser enterrado com dignidade talvez desejasse se igualar aos

poderosos pelo menos uma vez na vida (REIS, 2012, p. 159).

A condição de ser igual era o desejo do povo negro, mesmo que fosse depois do

desenlace carnal, segundo o autor acima. Na Bahia, não era raridade a existência de áreas

destinadas ao enterro de escravizados nas cidades e vilas brasileiras, para onde levavam,

inclusive (e às vezes, principalmente), escravizados que morriam durante a travessia dos

navios tumbeiros no Oceano Atlântico. A área que existiu entre os séculos XVIII e XIX, no

Campo da Pólvora, em Salvador, destinada aos escravos, indigentes, criminosos e suicidas,

por exemplo, sequer era chamada de cemitério pelas posturas da Câmara da cidade e “[...]

possuía valas comuns e superficiais, ficando os cadáveres à mercê de animais famintos”

(REIS, 2012, p.196).

Assim, como se pode perceber, essas áreas podem ser traduzidas mais como depósitos

de cadáveres do que cemitérios propriamente ditos, até porque “a preocupação em enterrá-los

bem não objetivava dar-lhes sepultura decente, mas evitar a disseminação de doenças” (REIS,

2012, p. 196). Aliás, vale salientar que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, as elites

brancas não apenas achavam desnecessários os cemitérios de negros como temiam “que

funerais africanos terminassem em revoltas escravas” (REIS, 2012 p. 162).

É óbvio que há exceções nessa falta de igualdade na morte, a exemplo da cidade de

Cachoeira: na mesma época em que Gama escreveu o poema ora analisado, essa localidade

baiana possuía, além de dois cemitérios para os brancos de origem portuguesa e um para os

alemães que exploravam a produção e comercialização de fumo, possuía, também, o

Cemitério dos Africanos (também chamado de Cemitério dos Escravos, dos Pretos e dos

Nagôs), onde eram sepultados babalorixás, yalorixás, ogãns, equedes e irmãs integrantes da

22

Informação fornecida em 16 de janeiro de 2015, por Francivaldo Almeida Gomes, o Popó, funcionário do

cemitério, durante visita guiada.

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Irmandade da Boa Morte. Aliás, o poema gamista que reclama aos escravizados uma

“igualdade que não tiveram em vida” evoca nas memórias de parte da população do

Recôncavo o esforço dessas mulheres de santo para darem uma morte digna às suas

confrades, assim como o desejo da personagem negra alforriada Teresa, criada por Humberto

de Campos e que foi alvo de análise no primeiro capítulo dessa dissertação.

Como foi afirmado anteriormente, ao invés de o escravizado aparecer nas

representações de Luiz Gama desprovido da sua condição humana, o poeta, ao admiti-lo

sendo sepultado em um cemitério o representa na condição de igualdade com os brancos, que

possuíam cemitérios próprios para seus sepultamentos, além de usarem o interior das igrejas

para essa mesma finalidade (REIS, 2012, p. 171). O significado da expressão “humano corpo”

usada no poema para referir-se ao escravizado morto iguala este a todos no momento em que

se é vencido pela paralisia do corpo e do cérebro.

A concepção segundo a qual a morte seria um alívio diante da tortura vivenciada

(“Dorme o sono feliz da eternidade”) representa o desencarne como algo desejado, conforme

se percebe do adjetivo “feliz” usado pelo poeta diaspórico. Observe-se que a liberdade do

escravizado aparece no poema em duas situações, pois o poeta faz a ressalva à sua condição

de liberdade antes de sucumbir “às garras do crime” e também representa a morte como uma

forma de liberdade, de desprendimento do corpo “das hórridas cadeias”, o que seria garantia

para um repouso e uma felicidade que não tivera em vida.

Ainda encetando incursões nos escritos que exibem uma posicionalidade dos homens

de letras quanto à escravização de pessoas, em artigo intitulado “Escravistas versus

emancipacionistas na prosa romântica: as representações senhoriais no romance a escrava

Isaura”, o seu autor, Kleberson da Silva Alves (2010) analisa três diferentes estratégias das

quais se serviram alguns autores consagrados pelo restrito círculo canônico das décadas de

1860 a 1880 para convencer o público leitor à causa abolicionista (ALVES, 2010, p. 01-02).

Alguns dos autores estudados neste trabalho teriam apelado para a sensibilidade com os

sofrimentos dos escravizados e outros para mostrar a inviabilidade econômica da escravidão,

sendo que o escritor Bernardo Guimarães teria usado os dois argumentos no seu romance

Escrava Isaura. Uma terceira forma de convencimento do público leitor para a causa

abolicionista seria “[...] a possibilidade de esses [escravizados] agirem violentamente, como

recurso para justificar a necessidade da extinção da escravidão” (ALVES, 2010, p. 01).

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Diante das cenas de sangue protagonizadas pela “onda negra”, gerando “medo branco”

(AZEVEDO, 1987)23

, expostas como vísceras de um sistema carcomido e opressor, ao que

tudo indica, teria sido essa última alternativa a mais provável a “sensibilizar” parte das elites

econômicas e políticas do império no propósito do desfazimento – tardio, diga-se de

passagem – do jogo da dissimulação e do conluio escravocrata.

Nessa última linha de posicionamento está Joaquim Manoel de Macedo, que, em 1869

(ano de intensa atividade de Luiz Gama, no final do qual ele começou a advogar) publicou As

vítimas algozes: quadros da escravidão. É indício flagrante desse medo e dessa necessidade

de abolição urgente a seguinte passagem:

Os ódios, os ferozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor,

os miasmas, deixem-nos dizer assim, a sífilis moral da escravidão infeccionando a

casa, a fazenda, a família dos senhores, e a sua raiva concentrada, mas sempre em

conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra dos seus incônscios

opressores. É o quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes

involuntária e irrefletidamente ao senhor (MACEDO, 2010, p. 19).

Observe-se que o seu autor coloca o escravizado como um “inimigo natural e

rancoroso do seu senhor”. Macedo (2010, p. 19) sustenta que o feroz instinto do escravizado –

comparado a uma grave doença – infeccionaria ou destruiria a família do senhor e poria um

fim às suas riquezas. Assim, a escravidão não era um mal em si, mas para evitar o mal [contra

os seus senhores] melhor aboli-la, é a leitura óbvia que se faz. Nesse sentido, David

Brookshaw enfatiza que a mensagem é clara: “[...] os escravos eram uma segura ameaça a

seus senhores e, acima de tudo, à família de seus senhores” (BROOKSHAW, 1983, p. 33),

logo, o medo deveria ser o elemento motivador do processo abolicionista.

Outra obra de autores emergidos, reconhecidos e consagrados pelo cânone, como a

comédia do ano de 1857, intitulada Demônio familiar, de José de Alencar, figuraria entre os

que defendem essa tese do “medo branco”, para evitar os perigos das cenas de sangue

protagonizadas por escravizados contra seus algozes.

Essa comédia mostra as ações do jovem escravizado Pedro que, “bem cuidado” por

seus senhores, no afã de deixar de ser pajem e tornar-se cocheiro, inventa artimanhas que

possuiriam o condão de desestruturar, quiçá destruir as relações familiares do seu suposto

senhorio. Moral da história: a ter de enfrentar os perigos de uma “onda negra”, representada

23

Nesse trabalho intitulado Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites – século XIX, Celia

Azevedo Marinho aborda a ação autônoma e violenta protagonizada por escravizados contra seus supostos

senhores, gerando medo nas elites e, dessa forma, forçando o próprio fim da escravidão.

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pela presença de “demônios” dentro das residências senhoriais, infere-se a existência de um

“medo branco”, cuja ação mais sensata seria a libertação de todos os escravizados.

O enredo que envolve a personagem Pedro, criado por José de Alencar deixa patente,

aliás, mais um ato dissimulador das elites: ser “bem cuidado” por seu algoz representava mais

um artifício usado por alguns senhores para justificar a sua posse sobre pessoas, o que, em

tese, anularia ou minimizaria os efeitos danosos da escravidão. Esse enredo remete-nos a uma

das passagens da vida de Luiz Gama, quando advogado:

Um dia Luiz Gama estava em seu escritório e entrou um negro que tinha o dinheiro

para comprar sua liberdade, e pediu que ele o alforriasse. Em seguida, entrou no

escritório o próprio senhor do escravo. Surpresa! Ele era um amigo de Luiz Gama.

Não era uma má pessoa, era considerado um bom homem e estava inquieto, triste e

abatido, pois tratava bem o escravo. Conforme dizia, e o escravo não negava, ele o

tratava mais como um pai, sempre foi bom, e não sabia porque o homem queria

abandoná-lo. Argumentou inclusive que o escravo vivia muito bem com ele e

sozinho poderia ser infeliz, poderia não viver bem. O escravo não respondia e ele

não se conformava. Perguntou ao cativo o que lhe faltava em sua casa, insistia em

perguntar o motivo para abandoná-lo. Foi Luiz Gama quem respondeu no lugar do

escravo: “Falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira”. E procedeu

à libertação do negro (BENEDITO, 2006, p. 49).

Em uma ligeira reflexão sobre a linguagem de Luiz Gama nota-se uma diferença

colossal de posicionamentos vistos até aqui quanto às questões envolvendo a escravidão e o

direito à liberdade e à igualdade de todos perante a lei. Essa prerrogativa de ser livre faculta

ao indivíduo inclusive o direito de ser feliz ou infeliz, conforme ele queira ou não. Observe-se

na linguagem de Gama que o vocábulo “direito” – traduzido em liberdade, igualdade e

autodeterminação como prerrogativa, faculdade de todas as pessoas – é introduzido pelo

advogado na ordem do dia daquela sociedade desigual por excelência, ao contrário dos

discursos literários e jurídicos proferidos até então no cenário brasileiro. Os vocábulos

“onde”, “quando” e “como”, além de darem o tom à autodeterminação do indivíduo livre, dão

a dimensão do significado da palavra liberdade na linguagem de Luiz Gama. Note-se que o

texto remete o leitor a uma imagem autônoma do negro escravizado, dando um novo

significado ao “ser negro” naquele contexto.

Inobstante o fato de existirem literatos brancos nos anos 1850 a 1870 que buscavam

sensibilizar os seus iguais à libertação da população escravizada, ainda que suas letras sejam

discursos carregados de preconceitos; e da existência de reduzidíssimo número de “homens de

cor” na seara literária, imbuídos desse mesmo desejo, questiona-se qual o lugar de do campo

literário-linguístico desses autores e se há uma discursividade negra nesses lugares de fala.

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Também se esses autores reclamam, de fato, uma condição de igualdade jurídica entre negros

e brancos na sociedade brasileira.

Preconceitos de cor e sutilezas à parte, o que se observa da análise de algumas obras

de escritores brasileiros desse período é, na melhor das hipóteses, o papel de un passant. Em

que medida teriam elas o poder real de convencer a sociedade da dissimulação e do conluio

escravocrata para o fim da instituição servil, poderia se constituir em um viés deste estudo.

Mas o que se pretende mostrar é o lugar de fala e o teor da linguagem de Luiz Gama

nesse contexto. Trata-se da voz e da pena de alguém que percebe a realidade sócio-histórica

brasileira a partir de uma dupla consciência: social e racial, 24

“[...] forjada na experiência e na

memória da diáspora e na escravidão” (SANTOS, 2015, p. 718). Ao contrário desses

posicionamentos acima vistos na literatura – que por vezes reforçavam o preconceito e a

existência de estereótipos racistas –, ele usa uma linguagem pautada na sua própria

experiência de negro e ex-escravizado: ela é direta, dura, intransigente e, por isso, Coelho

Neto disse que “[...] seu verso é leve como a flecha; silva, vai direto ao alvo, crava-se e fica

vibrando” (BERND, 1988, p. 51). E é nessa vibração que o poder da palavra confere, que sua

linguagem é usada na desconstrução de discursos de subalternidade e na construção de um

sentido positivo para o negro.

24

A dupla consciência é um conceito formulado por W. E. B. Du Bois, considerado o pai do pan-africanismo,

conforme se observa através das reflexões de Kabengele Munanga (1986, p. 36).

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3 IGUALDADE E O STATUS QUO EM QUESTÃO

A subversão na obra do poeta diaspórico Luiz Gama dá o tom ao seu discurso, que é um

só: a desconstrução da ordem política, jurídica, social e econômica estabelecida que,

subalternizando, desigualava a população negra, na qual ele se inclui e com a qual ele

publicamente se identifica. Nesse sentido, aliás, não apenas o seu discurso poético é crítico e

contestador. Em todos os campos do conhecimento que atua, percebe-se luta para fazer valer a

justiça, conforme se infere da leitura de poemas, escritos jornalísticos e de petições iniciais

colacionadas aos autos de processos da justiça da Província de São Paulo.

Vale pontuar que os temas da igualdade, liberdade e justiça muitas vezes se

confundem na produção da sua linguagem antiescravista, sendo palavras sinônimas no seu

vocábulo. No entanto, é importante ressaltar que o termo igualdade é de difícil conceituação

(SILVA, 2003, p. 34), e desde os tempos do domínio das cidades-estados gregas e do império

romano, na antiguidade, tem sido discutida por filósofos e juristas.

O grego Aristóteles, por exemplo, ao desenvolver a noção de desigualdades inatas,

afirmava que os escravizados tinham por natureza ser comandados (SILVA, 2002, p. 19) e um

dos maiores expoentes da própria civilização que criou o direito, o romano Cícero, não

admitia a igualdade entre as pessoas (VILAS-BOAS, 2003, p. 6). Apesar das discussões que

giravam (e giram) em torno da exigência da justiça (ou seja, do direito natural à vida e à

liberdade) no direito positivo, segundo Hans Kelsen, criador da teoria pura do direito, este não

é filosofia moral nem teoria social: é teoria dogmática, é norma (ROSS, 2003, p. 25). A

existência da escravidão no império dos césares constitui-se em prova cabal de que desde o

seu início, direito não se confunde com justiça, podendo ser, inclusive, dois dispositivos

bastante antagônicos, como, aliás, denunciava Luiz Gama no escravocrata Brasil oitocentista.

Segundo Alf Ross: “Se a igualdade é tomada num sentido absoluto, significa que todos,

quaisquer que sejam as circunstâncias, deverão encontrar-se exatamente na mesma posição

que os demais” (ROSS, 2003, p. 314), mas o próprio autor de Direito e justiça conclui que

isso não é o que se entende por justiça. Inexiste ordenamento jurídico que iguale as pessoas na

mesma posição e, mesmo a tão propalada igualdade cuja expressão jurídica remonta ao

ideário da Revolução Francesa, pode ser considerada uma farsa, “[...] não passa de mera

ficção” (GOMES, 2013, p. 18) que servia aos interesses de classe da burguesia:

As exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do

Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade

hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade

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democrática e igualitária (HOBSBAWM, 1986, p. 77).

O autor refere-se às conquistas burguesas da Revolução Francesa, sendo a igualdade

formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei, uma delas. Trazendo uma “[...] concepção

clássica que se funda num elemento puramente formal e abstrato: a generalidade das leis”

(SILVA, 1992, p. 108), essa vertente que se traduz em conceito de igualdade formal não se

mostrava revolucionária para as populações “livres” oprimidas da Europa setecentista, razão

pela qual ela foi tema recorrente em todo o explosivo século XIX, como se observa das

Jornadas Revolucionárias europeias de 1820, 1830 e 1848 (HOBSBAWN, 1986, p. 332), e da

Comuna de Paris, em 1871. Em todos os casos, tratava-se de tentativas de desmontagem da

lógica dominante imposta pela burguesia para o significado dessa palavra, como bem expressa

a obra artística “A liberdade guiando o povo”, do pintor francês Eugène Delacroix. Ficou

evidenciado que para os interesses de classe da burguesia interessava, sobremaneira, a

liberdade, sendo a igualdade colocada de lado (SILVA, 1992, p. 193).

Entretanto, para a conjuntura do Brasil na época em que viveu Luiz Gama, onde

predominava o sistema escravista nas relações e no modo de produção, a igualdade formal, ou

seja, a igualdade de todos perante a lei, possui um componente revolucionário, pois

representava o fim da escravidão. Segundo Joaquim Barbosa Gomes, esse “[...] princípio da

igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo, como a garantia da concretização da

liberdade” (GOMES apud SANTOS, 2003, p. 18) e, em razão desse fato, a forma mais

presente de igualdade nos escritos do poeta, advogado e jornalista da diáspora africana é

exatamente essa, de liberdade que se confunde com igualdade formal. A Constituição de 1824

declarava a igualdade de todos perante a lei, excluindo da definição de cidadão a população

negra escravizada (SILVA, 2002, p. 7), sendo a abolição da escravatura conditio sine qua non

para a concretização da igualdade formal dessa população.

Dos textos poéticos e jurídicos de Luiz Gama, nos interessa identificar a imagem que

emerge acerca da noção de igualdade e identidade. Saliente-se que, dentro do contexto da

escravidão, qualquer possibilidade de igualdade para os negros, já representaria algum

lampejo de ressignificação. Há rastros, nas suas obras, da exigência do direito confundir-se

com justiça (direito natural), noções e ideias de igualdade racial no mercado de trabalho, no

direito penal, e até mesmo vestígios de igualdade material, cujo conceito está na base das

ações afirmativas, que podem ser definidas como: “Medidas temporárias e especiais, tomadas

ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, com o propósito

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específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da

sociedade” (VILAS-BÔAS, 2003, p. 29).

Entretanto, convenhamos que no século XIX, mesmo nos Estados Unidos e na Europa

ainda não havia lampejos da affirmative action ou da discriminacion positive. A concepção

que existia, mesmo nas primeiras décadas do século XX, era a da igualdade formal (GOMES,

2003, p. 18), formato parecido com o que se apresenta na obra escrita de Luiz Gama, cuja voz

libertária, antes de ecoar na imprensa, nos fóruns e nas tribunas, já se fazia ouvir na área

literária.

3.1 A PRODUÇÃO POÉTICA DE LUIZ GAMA: CONTEXTUALIZAÇÃO

No ano de 1859, o poeta diaspórico publicou o livro Primeiras Trovas Burlescas de

Getulino, com trinta e nove poesias (lançando a segunda edição na capital do império, em

1861), e posteriormente publicou mais treze poemas em jornais paulistanos, perfazendo um

total de cinquenta e duas poesias. Interessante perceber que neste mesmo ano de 1859, a

autora negra Maria Firmina dos Reis publicou Úrsula, primeiro romance de autoria negra

feminina em terras brasileiras (LOBO, apud DUARTE, 2011, p. 111).

O próprio Luiz Gama financiou a publicação da sua obra, fato repetido por outros

importantes autores negros que o sucederam, como Cruz e Sousa e Lima Barreto, igualmente

recusados pelo cânone literário em suas épocas25

. Na atualidade, Conceição Evaristo, que

desde os anos 1970, participa dos Cadernos Negros (MUITO, 2015, p. 8), também afirma

enfrentar dificuldade em encontrar editoras interessadas na publicação de suas obras, o que se

traduz em tentativas de silenciar a autoria negra, gerando o desabafo da criadora do conceito

de escrevivências: “Eu e outros autores negros estamos sempre publicando por editoras

menores, e isso se reflete em dificuldades de promoção e distribuição dos nossos livros”

(EVARISTO, 2015, p. 6).

Salientar-se-á que a publicação das Trovas Burlescas no ano de 1859, reveste-se de

especiais e distintos significados, sendo um deles o fato de tratar-se de um feito absolutamente

inédito na cena cultural brasileira, pois o país conhece nesse ano o primeiro trabalho

publicado por um ex-escravizado. Vale ressaltar que o primeiro autor a publicar literariamente

25

Aliás, esse fato continua a ser um óbice para escritores e escritoras negras, a exemplo de Cuti (Luiz Silva) e

Hugo Ferreira, que criaram e patrocinaram, com seus próprios recursos, a publicação dos Cadernos Negros em

1978 (CUTI, p. 128)

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em São Paulo foi um representante das elites: José Bonifácio, em 1849, apenas dez anos antes

da publicação dos poemas de Luiz Gama (PAULINO, 2010, p. 19).

Entretanto, ao que tudo indica, o seu autor não teria mensurado o próprio feito histórico,

pois, ao traçar a sua autobiografia, a pedido do amigo Lucio de Mendonça (FERREIRA,

2011, p. 199-203), não faz menção direta à sua atuação enquanto poeta, autor de um livro,

fato, aliás, muito raro no cenário cultural brasileiro de então, que contava com uma margem

de pouquíssimos autores e reduzidíssimo número de leitores.

Na carta autobiográfica, o seu autor narra sobre questões pessoais e profissionais, os anos

de escravidão a que fora submetido, como aprendeu o conhecimento da palavra escrita, suas

atividades de advogado que arrancou das “garras do crime” mais de 500 pessoas, ilegalmente

e ilegitimamente escravizadas, concluindo, naqueles idos de 1880:

Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no Ipiranga, à

rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e como folhetinista principiante;

eu como simples aprendiz-compositor de onde saí para o foro e para a tribuna, onde

ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e

para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras

do crime (FERREIRA, 2011, p. 203).

Além do silêncio imposto pelo cânone literário, a sua própria narrativa e a sua intensa

e pública atuação como advogado abolicionista, teriam contribuído para ofuscar a sua atuação

e reconhecimento literários. Outras explicações, dadas por estudiosos da sua vida e obra,

afirmam que o poeta teria se servido da literatura como “[...] passaporte para os círculos

sociais mais altos” (CÂMARA, 2010, p. 89) e que este teria definitivamente abandonado o

campo da literatura, em um caso de “[...] renúncia voluntária e propositada” (MENNUCCI,

1938, p. 104). Entretanto, vale ressaltar que a edição das Trovas não representa o único ato de

produção poética de Luiz Gama, pois nas décadas seguintes, em meio às suas atividades de

jornalista e advogado, diversas poesias de sua autoria foram publicadas em jornais paulistanos

(FERREIRA, 2011, p. 41-42), conforme dito anteriormente.

Sílvio Roberto dos Santos Oliveira explica que “[...] os imaginários historiográficos,

literários e da negritude conduzidos pela morfologia da narrativa autobiográfica de Luiz

Gama e pela insuficiente leitura de seus poemas grifaram o mito abolicionista e abafaram o

poeta” (OLIVEIRA, 2004, p. 227). Segundo o estudioso (2004), essa leitura enviesada dos

poemas de Gama também teria contribuído para dar relevo à figura do abolicionista, em

detrimento do poeta, ofuscando-o. Tal leitura, muitas vezes, enviesada constitui-se em mais

uma mise en scène.

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Em História concisa da literatura brasileira (BOSI, 2015), trabalho conhecido nos

meios acadêmicos, o seu autor não reserva sequer uma linha à poesia de Luiz Gama. Em

trabalhos como A literatura no Brasil - era romântica, dirigido por Afrânio dos Santos

Coutinho, por exemplo, depois de colocar o gênero romântico como genuinamente brasileiro

e de fazer desfilar os nomes dos autores consagrados pelo cânone, Luiz Gama sequer é citado

entre eles. O seu autor afirma:

Em verdade, realizam os românticos a criação dos gêneros literários com feitio

brasileiro. Antes deles, a poesia reacendia a impregnações clássicas e portuguesas.

(...) O Romantismo quebrou tal submissão, introduzindo na literatura a maneira

brasileira de sentir e encarar o mundo, de traduzir os sentimentos e reações. (...) a

nova literatura adquiriu direito de cidadania, passando para o plano de igualdade,

graças ao esforço autonomista dos românticos (COUTINHO, 1997, p. 27).

Apesar de o autor afirmar que os românticos introduzem na literatura “[...] a maneira

brasileira de sentir e encarar o mundo, de traduzir os sentimentos e reações [...]”, nesse

trabalho, ele não vê Luiz Gama como um possível autor a traduzir a pulsação desses

sentimentos e reações do conflituoso jogo de interesses do Brasil oitocentista, como se a

realidade, envolvendo as conseqüências da condição de desigualdade jurídica imposta ao

negro, não fizesse parte da cena brasileira.

Luiz Carlos Santos (2010, p. 52) atribui o seu ofuscamento a uma clara punição do

cânone, devido à “[...] ousadia do negro que, com seus versos irônicos, denunciava as

entranhas da sociedade brasileira. Um dos preços que Gama pagou foi o descrédito da crítica

literária, que pouca atenção lhe deu”. Outra pesquisadora chega a afirmar que, do ponto de

vista da apreciação da crítica literária, o seu trabalho poético pode ser considerado não como

fortuna, mas como “infortúnio” crítico (PAULINO, 2010, p. 17). Alerta ao real papel

desempenhado pelo Orfeu de carapinha, Zilá Bernd (1988, p. 40), ao discorrer sobre as

instâncias legitimadoras que atuam condicionando a fortuna crítica de uma obra, explica que

não é o seu valor estético o determinante responsável por sua emergência, reconhecimento e

consagração. No entendimento dessa autora, uma obra como a de Luiz Gama pode ser banida,

jogada para as margens, pois

Quanto maior o potencial revolucionário e desagregador da ordem vigente que uma

obra contiver, tanto maior será o risco de que uma das instâncias acima mencionadas

venha obstaculizar seu percurso e sua conservação (BERND, 1988, p. 40-41).

O potencial revolucionário das ideias do intelectual diaspórico choca-se frontalmente

com os interesses econômicos das elites produtoras, sobretudo no que diz respeito à mudança

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nos modos e relações de produção e nas concepções de propriedade privada, que seria

acarretada com a abolição da escravidão; por outro lado, aceitar a disseminação de ideias de

liberdade e igualdade racial, capazes de propiciar o empoderamento da população negra, não

era o que queria aquela sociedade, cujas instituições acadêmicas defendiam abertamente as

concepções europeias do racismo científico, que “[...] foi, de certo modo, institucionalizado

com a fundação em Paris, em 1859, da Sociedade de Antropologia” (MUNANGA, 1986, p.

19). Uma vez adotadas, essas concepções libertárias e igualitárias poderiam ter o condão de

desagregar a ordem social e econômica, sendo tais fatos em grande parte responsáveis pelo

“infortúnio” crítico da obra do pensador da diáspora afro-baiana.

A despeito do silenciamento anterior, a posteridade, gradativamente, vem assistindo

outras leituras e outros julgamentos sobre a produção poética de Luiz Gama, pois, ao enunciar

o eu lírico negro na nossa grafia, o referido autor escreve seu nome na história da literatura

brasileira, podendo sua poesia estar na terceira geração do romantismo, na qual se inclui o seu

conterrâneo Castro Alves. Existem estudos que o colocam como o poeta que melhor

representa a sátira no romantismo brasileiro:

Heitor Martins fez um estudo sobre o poeta ressaltando a necessidade de se resgatar

a importância das Primeiras trovas burlescas de Getulino no movimento romântico

brasileiro. Afirmando ser Luiz Gama o mais “importante poeta satírico do

Romantismo” (AZEVEDO, 2005, p. 76).

Em artigo publicado em Literatura e afrodescendência no Brasil, Maria Consuelo

Campos registra que “Sílvio Romero incluio-o em sua História da literatura brasileira;

Manuel Bandeira, em sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica” (CAMPOS

apud DUARTE, 2011, p. 130). Vale salientar que, além do trabalho poético, o Orfeu de

carapinha publicou, também, diversos artigos e máximas26

em jornais paulistanos, verdadeiros

libelos da liberdade e da igualdade. Elciene Azevedo afirma:

As Trovas burlescas de Getulino revelam um ex-escravo lutando pelo direito dos

negros, dentro de uma organização social que os excluía. Certamente é por isso que

seus versos ganharam tanta força na posteridade, contribuindo decisivamente para a

afirmação de sua legenda (AZEVEDO, 2005, p. 77).

Ao propagar ideias antirracistas, evidenciando uma imagem positivada do negro ao

desconstruir as construções sociais que reforçavam as colossais desigualdades,

subalternizando e excluindo a população negra, o poeta diaspórico “[...] fez uso da sátira que,

26

As máximas são sentenças morais escritas em textos breves que convidam o leitor a uma reflexão. Elas

estiveram em desuso durante muitos anos, mas têm voltado à baila com o advento da internet.

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segundo a edição de 1813 do Dicionário de Língua Portuguesa de Antônio de Moraes Silva,

constituiu-se como um poema censório dos costumes e defeitos públicos ou de algum

particular” (SANTOS, 2015, p. 717). Traduzindo o pensamento hodierno, o dicionário

novíssimo Aulete, edição de 2011, define a sátira como uma composição poética jocosa de

intuito crítico, trazendo à tona as características do sarcasmo e da ironia, presentes na obra

poética de Gama. Mesmo não valorizada como gênero literário no século XIX (SANTOS,

2015, p. 717), segundo Elciene de Azevedo naquela época a sátira “[...] se popularizava e

ganhava força como instrumento de crítica, fosse ela política, de costumes ou social”

(AZEVEDO, 2005, p.44).

Luiz Gama usou também a linguagem da sátira em vários escritos no jornal Diabo

Coxo (dirigido e redigido por ele) e em outros periódicos, razão pela qual Elciene Azevedo

informa que: “Sua escolha por esta forma de literatura como meio de transmitir ao público

suas críticas à sociedade não se restringiu, portanto, à publicação das Trovas” (AZEVEDO,

2005, p. 44). A linguagem satírica de Gama traduz-se em uma escrita inédita em terras

brasileiras, desde a chegada do colonizador: tratava-se de uma nova representação do direito,

da condição de paridade, de isonomia entre a população negra e branca.

O discurso da igualdade, naquele momento histórico, lançava-se, principalmente sobre

a instituição da escravidão que desigualava grande parte da população e contra os seus

sustentáculos: as cabeças coroadas da monarquia, os integrantes do clero dissimulado que se

autointitulavam “representantes de Deus”, os ”barões da traficância” de carne humana, os que

faziam do direito “pura teta” (juízes, delegados, curadores) e os políticos corruptos. Além

desses alvos, os costumes da época foram também satirizados em suas Trovas.

Interpretando alguns versos de Prótase, o primeiro poema das Trovas Burlescas,

percebe-se, prima facie, a apresentação do seu autor, que saía do seu “cantinho/encolhidinho”

e entrava em cena na arena racial, encetando uma militância antiescravista que só pararia com

a sua morte; se observa, também, algumas características da sua poesia:

No meu cantinho

Encolhidinho

Mansinho e quedo

Banindo o medo,

Do torpe mundo

Tão furibundo,

Em fria prosa

Fastidiosa –

O que estou vendo

Vou descrevendo.

Se de um quadrado

Fizer um ovo

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Nisso dou provas

De escritor novo.

[...]

São folhas de adurente cansanção,

Remédio para os parvos d’excelência;

Que aos arroubos cedendo da loucura,

Aspiram do poleiro alta eminência.

E podem colocar-se à retaguarda

Os veteranos sábios de influência;

Que o trovista respeita submisso,

Honra, pátria, virtude, inteligência.

Só corta com vontade nos malandros,

Que fazem da Nação seu montepio:

No remisso empregado, sacripante,

No lorpa, no peralta, no vadio.

Á frente parvalhões, heróis Quixotes,

Borrachudos Barões da Traficância;

Quero ao templo levar do grão Sumano

Estas arcas pejadas de ignorância

(GAMA, 2011, p. 11 a 13).

Nas “folhas de adurente27

cansanção” escritas pelas mãos do poeta, “[...] há palavras

cruas que profanam o que parecia teoricamente sagrado” (ASSMANN apud AGAMBEN,

2015, p. 12), a exemplo da nobreza imperial, cujos títulos (barões, condes, marqueses,

duques), ao longo da história, tiraram a simplicidade e a igualdade nas relações entre as

pessoas, instituindo distinções nobiliárquicas e colocando essa “casta” em um lugar intocável,

sacralizado. A profanação lançada a efeito na linguagem do poeta diaspórico consiste em tirar

aquelas figuras ditas importantes do império do lugar sagrado da virtude e da honra, e lançá-

los no campo dos “que fazem da Nação seu montepio”.

Apesar de o poema Prótase ser apenas uma apresentação do que o leitor veria na obra

em seu conjunto, veja-se, por exemplo, a forma como o seu autor profana o clero católico e os

detentores de títulos nobiliárquicos, nas expressões “aspiram do poleiro alta eminência” e

“barões da traficância”. A pena de Gama vai direto àqueles que ele considera “parvos28

d’excelência”, ou seja, que ostentam cargos eclesiásticos, títulos de nobreza, funções públicas,

insígnias, distinções e privilégios, sem a devida autoridade moral e capacidade intelectual

para compreender os fenômenos da vida. O seu autor, nesse poema, critica a prática da

corrupção, também dirigida às figuras ditas importantes que saqueiam o erário, “[...] que

fazem da Nação seu montepio”.

27

Adurente, segundo o Dicionário Houaiss, é aquilo que provoca uma sensação abrasiva, de queimadura.

28

Segundo o dicionário Novíssimo Aulete, parvos são os tolos, pessoas com pouca capacidade ou inteligência.

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Trata-se da profanação das classes consideradas mais importantes do império, sendo

que os temidos e respeitados barões, condes, duques e marqueses (todos enriquecidos graças

ao trabalho do escravizado), estão corriqueiramente presentes no discurso profanador de Luiz

Gama.

À primeira leitura de Prótase, a princípio, perguntar-se-ia se, confessando sair do seu

“cantinho/Escondidinho/Mansinho e quedo/Banindo o medo”, o poeta, nos anos iniciais da

sua juventude, teria tergiversado com medo de ser reescravizado, o que era comum aos negros

e mestiços livres naqueles idos da década de 1850, como assegura Sidney Chalhoub, em A

força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, quando o governo imperial

instituíra a obrigatoriedade dos registros de nascimento e de óbito e anunciava o

recenseamento geral do Império para aquele ano de 1852. O que se viu foram motins em

várias províncias, a ponto de o imperador recuar do seu propósito.

Diante da trama que dava à escravidão gigantesca força, havia o sentimento de negros,

mestiços e pobres, que a sua liberdade era precária, podendo estar por um fio, o que gerava

desconfianças dessas pessoas com o governo. Esse, aliás, apesar de editar leis proibitivas ao

tráfico de escravizados para atender a pressões externas (ALBUQUERQUE, 2009, p. 45), não

fazia cumpri-las. Pelo contrário, maquinava com as elites econômicas do país – fizera leis

para “inglês ver”, afinal, “[...] nas duas décadas seguintes à promulgação da lei [de 1831]29

,

mais de 750 mil negros foram introduzidos no território nacional por contrabando”

(CHALHOUB, 2012, p. 30).

Faltava legitimidade e autoridade moral às classes políticas do Império para que o

povo brasileiro acreditasse nas boas intenções das novas medidas, razão pela qual o medo de

reescravização era grande, e Luiz Gama, nascendo livre, conhecera a escravidão pelas mãos

do seu pai, um endividado fidalgo português que o vendera quando possuía apenas 10 anos

de idade. Sendo filho de uma revolucionária negra que, forçosamente fugira ao seu convívio,

traído pelo próprio pai na infância e, tendo sido julgado e preso por suposta insubordinação

em seu primeiro trabalho livre, desconfiança é, na melhor das hipóteses, a possível atitude

dele para com as pessoas e instituições do país, as quais são representadas no poema

“Prótase” através da expressão “torpe mundo/tão furibundo”.

O verso abaixo, do poema Epístola familiar, escrito e publicado por Luiz Gama no

jornal “O Polichinelo”, parece ir ao encontro dessa ideia:

29

Uma das leis que proibiam o tráfico humano para o Brasil.

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Sabes tu, bom Gedeão,

Como vive o cidadão

Que metido entre fidalgos,

Como lebre ao pé galgos,

Anda sempre amedrontado

(PAULINO, 2010, p. 12).

Vale salientar que “O Polichinelo” foi um jornal fundado por Luiz Gama, em1876,

exatamente para ser uma exceção à imprensa áulica, comprometida com os representantes do

poder (FERREIRA, 2011, p. 42) e, quanto ao verso do poema acima, sua linguagem induz-

nos a pensar que Luiz Gama escreve sobre a sua própria experiência diaspórica de ex-

escravizado e homem letrado que percebia a sua realidade por meio da dupla consciência

(SANTOS, 2015, p. 718), a qual nos referimos anteriormente.

Lígia Fonseca Ferreira, na sua obra intitulada Com a palavra, Luiz Gama, entretanto,

tributa a este um “falso retraimento”, asseverando que o poeta “[...] finca uma voz inaugural,

a do primeiro ‘autor’ negro que se enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura

brasileira” (FERREIRA, 2011, p. 39).

Falso retraimento ou não, fato é que, desde os primórdios da violenta colonização

europeia nas Américas, nas primeiras décadas do século XVI – quando começaram a se

realizar as múltiplas e constantes desterritorializações de pessoas da África para o Brasil –, até

o último quartel do século XIX, a população negra em terras tupiniquins – não importava se

nascida n’África ou mesmo no Brasil – viveu subordinada a um estado que, para ela, era

contínua e ininterruptamente de exceção.

Analisando esse estado de exceção, Giorgio Agamben encontrou as origens dessa “[...

terra de ninguém” (AGAMBEN, 2014, p. 12) no império romano, quando o senado, usando

da prerrogativa da auctoritas, proclamava o iustitium, suspendendo o direito da pessoa

(AGAMBEN, 2014, p. 115), podendo transformá-la em hostis indicatus, caso essa “[...]

ameaçasse, através de conspiração ou traição, a segurança da república” (AGAMBEN, 2014,

p. 123). Declarando-a inimiga pública e colocando-a privada de todo estatuto jurídico, a

pessoa podia perder todos os seus bens e ser condenada à morte.

Para a população escravizada do Brasil, submetida a um estatuto jurídico que não a

considerava pessoa portadora de direitos, ficava clara a permanente existência de um tribunal

de exceção e, dessa forma, “[...] o estado de exceção [...] tornou-se a regra” (BENJAMIN,

apud AGAMBEN, 2014, P. 19) para essa população; e, até mesmo para os negros livres do

país esse estado de exceção era constante, como o foi a República de Weimar, governada

Adolf Hitler (AGAMBEN, 2014, p. 13). Mesmo alforriado, o negro podia ser pego nas ruas e

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preso ad infinitum pela polícia, como suspeito de ser “negro fugido”. O filósofo italiano

afirma que nesse estado “[...] o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria

suspensão” (AGAMBEM, 2014, p. 14), sendo esse o significado biopolítico do estado de

exceção. O trabalho poético e jurídico de Luiz Gama, nesse contexto, tem o intuito de “[...]

devolver o que está consagrado ao livre uso dos homens” (ASSMANN, apud AGAMBEN,

2014, p. 12), ou seja, o direito à liberdade, que um dia lhes fora tirado, sacralizando a

escravidão; e, também, de retirar da esfera jurídica a concepção “liberal” consagrada no

direito brasileiro quanto à propriedade se estender sobre pessoas.

Alguns versos da poesia No Álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral evidenciam

diversos vieses das temáticas aqui estudadas inclusive, o viés da denúncia do “peso do

cativeiro” imposto pelo estado de exceção ao negro escravizado. Era comum naquela época

pessoas requisitarem a poetas e famosos que escrevessem em seus álbuns. Veja-se:

[...] Vai para a tenda

Pegar na sovela,

Coser teus sapatos

Com linha amarela.

Mordendo na sola,

Empunha o martelo,

Não queiras, com brancos,

Meter-te a tarelo.

Que o branco é mordaz

Tem sangue azulado;

Se boles com ele

Estás embirado.

Não borres um livro,

Tão belo e tão fino;

Não sejas pateta,

Sandeu e mofino.

Ciências e Letras

Não são para ti[;]

Pretinho da Cost[a]

Não é gente aqui.

[...]

Não quero que digam

Que fui atrevido;

E que na ciência sou intrometido

Desculpa, meu caro amigo,

Eu nada te posso dar;

Na terra que rege o branco,

Nos privam té de pensar!...

Ao peso do cativeiro

Perdemos razão e tino,

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Sofrendo barbaridades,

Em nome do ser divino!!

E quando lá no horizonte

Despontar a liberdade;

Rompendo as férreas algemas

E proclamando a igualdade,

Do chocho bestunto

Cabeça farei;

Mimosas cantigas

Então te darei.

(GAMA, 2011, p. 34-36).

Usando o mesmo sarcasmo que lhe é peculiar, nesse poema Luiz Gama traz à cena um

problema social, ao denunciar a forma racista e preconceituosa como o negro livre era tratado

pela sociedade brasileira, que o inferiorizava, ignorava ou fazia chacota do seu talento.

Segundo Elciene Azevedo (2005):

Este jogo tenso entre afirmar uma suposta diferenciação, que sempre aparecia

marcada pela inferioridade, denunciar a lógica de domínio dos brancos ao tratar com

os negros e, ao mesmo tempo, registrar em um álbum sua amizade com uma pessoa

que fazia parte desta sociedade que estava criticando, perpassa todo o poema

(AZEVEDO, 2005, p. 56).

Pela lógica dominante da subalternização atividades intelectuais não estariam ao

alcance da população livre de cor negra, por suposta falta de competência técnica, seguindo o

modelo racista adotado pela intelligentsia brasileira, enclausurada nas instituições de ensino

superior (SCHWARCZ, 2015, p. 55) e nos órgãos públicos e privados. Tratava-se da mesma

visão eurocêntrica do velho colonialismo presente no país “novo”, reproduzindo a

racialização das relações de poder entre as novas identidades. Vale salientar que o arranjo da

independência feito pelas elites brancas no ano de 1822, não significou qualquer mudança

estrutural ou de mentalidades na sociedade brasileira e persistia essa visão da época colonial

que negava o negro e colocava-o em posição de inferioridade. Aliás, foi exatamente a partir

desse processo que se buscou a definição de uma identidade nacional, alijando o negro e

dando “[...] respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas” (SCHWARCZ, 2015, p.

55).

Portanto, ao construir a ideia de superioridade racial, as elites demarcavam territórios,

em uma clara demonstração de negação da cidadania, reservando ao negro os lugares das

piores tarefas, das profissões de menor recompensa salarial e mais desprestigiadas no mercado

de trabalho. A competência técnica seria mais do que um atributo da população de tez branca,

mas uma propriedade exclusiva dela. Contrapondo-se a essa suposição de uma exclusiva

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“competência branca” para atividades intelectuais, no poema Sortimento de Gorras, Gama

ironiza as “majestosas faculdades” ocupadas pelos brancos, onde “os burregos saem doutores”

(GAMA, 2011, p. 23).

Esse preconceito de não conceber a população negra em condição de igualdade com a

população branca possui o condão de fechar para aquela as portas mais importantes do

mercado de trabalho, agigantando as desigualdades, tornando-as colossais. Com o seu

exemplo e trajetória de intelectual, Luiz Gama insurge-se contra os fatos por ele próprio

denunciados em suas poesias e desmonta a estapafúrdia construção de inferioridade racial,

pois o seu próprio exemplo de vida é o de quem ocupa múltiplas atividades intelectuais.

A linguagem poética do autor de Trovas Burlescas no poema No Álbum do meu amigo

J. A. da Silva Sobral quebra as hierarquias, a princípio, pelo seu simples lugar de fala, onde o

negro exige ser ouvido e ser tratado em condição de igualdade com a população de origem

europeia. Outra característica presente nesse poema é a postura de atrevimento e de ousadia

que desafiam a violência racista (“não quero que digam/que fui atrevido/e que na ciência sou

intrometido”), o que evidencia a imagem do negro empoderado, ocupando posições e funções

em lugares até então de domínio exclusivo dos brancos.

Infere-se, nesse sujeito étnico (CUTI, 2010, p. 22) afirmando: “Ciências e letras/Não

são para ti/Pretinho da Cost[a]/Não é gente aqui” que no país a cor da escravidão é também a

cor da exclusão. Nesse verso há uma identidade negra que liga o seu autor à África – percebe-

se o seu sentimento de desterritorialização, pois mesmo tendo nascido no Brasil, se sente

excluído pelo estado de exceção monarquista; ele não tem parcimônia em satirizar a sua

exclusão e de tantos outros negros livres e escravizados. Nas suas representações, ele vê a

exclusão do negro, não o enxergando, fazendo parte da “terra que rege o branco”, o que se

traduz em denúncia contra o direito de exercer o seu talento literário, de produzir

conhecimento.

Ligia Fonseca Ferreira afirma que Luiz Gama, “[...] com perspicácia, ironiza, fingindo

endossar o pensamento e a crença de muitos brancos – ou pretensos brancos – de sua época,

convencidos da incapacidade congênita dos negros para a atividade do espírito” (FERREIRA,

2011, p. 41). Ainda que, de forma irônica, percebe-se que o poeta manifesta claramente o

desconforto em viver em uma sociedade racista, que ignorava, repudiava e zombava do

talento e do conhecimento do negro livre, filão no qual Luiz Gama se inclui.

Com sua ironia habitual, nesse poema, o seu autor não apenas denuncia o estado de

exceção controlado pelos brancos (traduzido aqui na expressão “o branco é mordaz”) e o

racismo no mercado de trabalho, mas escancara o papel do clero católico brasileiro na

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legitimação da desigualdade imposta pelo cativeiro, como se observa do verso “Ao peso do

cativeiro/Perdemos razão e tino/Sofrendo barbaridades/Em nome do ser divino”. Aliás, como

se pôde perceber anteriormente, o anticlericalismo é uma das marcas da linguagem de Luiz

Gama. Quanto a este mesmo poema, Cuti (2010), comparando a escrita de Nelson Rodrigues

com a de Luiz Gama, afirma que na escrita deste último a “[...] a identidade negra é mantida

até o final” (2010, p. 22). Note-se a alteridade de Luiz Gama ao afirmar que “na terra que

rege o branco/nos privam té de pensar” e “ao peso do cativeiro/perdemos razão e tino”. Como

conclui Cuti (2010), na construção imaginária do “eu” ou do “nós”, o sujeito enunciador é

étnico. Ele se assume como negro e assim se identifica.

Quanto à associação que Luiz Gama faz entre a escravidão e a desigualdade racial,

AZEVEDO (2005) observa: “Na origem das desigualdades e intolerâncias até então

constatadas em suas reflexões estava o ‘peso’ do cativeiro, que carregava em sua cor, e que o

impossibilitava de ser reconhecido pela sociedade como um homem de letras (AZEVEDO,

2005, p. 55).

Observe-se, no penúltimo verso desse poema (E quando lá no horizonte/Despontar a

liberdade;/Rompendo as férreas algemas/E proclamando a igualdade), que o “sujeito étnico”

sugere ser a abolição da escravidão a condição sine qua non para o estabelecimento do

princípio da igualdade formal no Brasil, por isso fez dela a grande causa da sua vida

(MENNUCCI, 1938, p. 12).

Luiz Gama enfatiza, no final desse poema, que somente valeria a pena fazer poesia

(“Desculpa, meu caro amigo/Eu nada posso te dar)” quando, enfim, a abolição da escravidão

conduzisse os negros à igualdade. Note-se a conclusão de Elciene Azevedo, nesta mesma

linha de análise: “[...] só seria viável escrever para seu amigo ‘mimosas cantigas’ quando,

abolida a escravidão, os negros recuperassem sua liberdade e pudessem ter acesso à almejada

condição em que se encontravam os brancos” (AZEVEDO, 2005, p. 56).

Azevedo (2005, p. 51) afirma que as Trovas “vão aos poucos revelando conflitos e

contradições que estavam sendo levantadas e forjadas na experiência de seu autor”.

3.2 LITERATURA NEGRA E RESSIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA

Possuidor de uma linguagem satírica, o poeta é percebido como o primeiro

representante da literatura negra brasileira pelo seu discurso enunciador do “eu lírico”. O

conceito de literatura negra foi problematizado por diversos autores, a exemplo de Zilá Bernd,

que afirma:

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O conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à

temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência

é dada pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro. Assumir a condição

negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por

essa literatura (BERND, 1988, p. 22).

A linguagem preocupada em abordar as memórias negras, o modo de ver e sentir o

mundo e essa desconstrução da criação do ser negro pelo branco, com a (re)nomeação do

mundo circundante e a reapropriação de territórios culturais perdidos, promovendo a

reterritorialização estariam a caracterizar o conceito de literatura negra, segundo Zilá Bernd.

O discurso de Gama seria, portanto, fundante desse conceito.

Luiz Gama é um autodidata que entrou no campo literário lançando mão de uma dupla

metáfora da cultura grega e da estética negra para afirmar a sua pertença etnicorracial no

poema Lá vai verso! Além de ironizar e denunciar o preconceito racial do cânone da época,

ele se apresenta, et urbi et orbi30

, como o Orfeu de Carapinha:

[...]

Quero que o mundo me encarando veja

Um retumbante Orfeu da carapinha,

Que a Lira desprezando, por mesquinha,

Ao som decanta da Marimba augusta.

(GAMA, 2011, p. 15).

Entrando no teatro social e no mundo da poesia como o poeta de cabelos crespos, o

filho da “mais linda pretinha” (GAMA, 2011, p. 152), ao desejar igualar-se a Orfeu,

personagem da mitologia grega, também acrescenta a expressão “de carapinha”, “[...]

assumindo portanto em sua representação física uma característica própria dos negros”

(AZEVEDO, 2005, p. 59). Exigindo o estatuto da igualdade para o talento negro, o poeta

assume de forma pioneira uma pertença, uma identidade negra em terras brasileiras e, “[...] ao

desprezar a ‘lira’, por ser ‘mesquinha’, faz a crítica à literatura do branco por ser ela a

negação da alteridade” (CUTI, 2010, p. 67). Trata-se da desconstrução da própria lira

estatuída pelo cânone e da exigência, da tentativa de construção de uma outra literatura, na

qual o talento fosse aceito e prestigiado independente da cor da pele de quem a escreve.

No Brasil dos anos oitocentos a simples condição de ser negro era motivo para que

todas as portas se fechassem para este – do simples emprego aos mais altos postos de chefia

ou ao reconhecimento da academia. No país já havia a articulação e institucionalização do

30

Da expressão latina à cidade a ao mundo.

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racismo científico TELLES, 2003, p. 45), e não é novidade que há séculos repetia-se o

discurso ideológico da inferiorização do negro. Foi nesse país e nesse contexto que o poeta

diaspórico, de forma corajosa e irônica, colocou à fórceps o seu nome na literatura brasileira,

desafiando todos os seus cânones, ao afirmar de maneira pioneira a sua identidade negra.

A respeito dessa literatura igualitária e identitária, vale transcrever aqui alguns versos

do poema Quem sou eu?, poesia que “[...] se vulgarizou, com o nome de Bodarrada, pelo

Brasil inteiro”31

(MENNUCCI, 1938, p. 99), onde o poeta dirige a sua lança sarcástica contra

as elites brasileiras, supostamente brancas. Eis alguns dos seus versos:

Eis aqui o Getulino

Que do plectro anda mofino.

Sei que é louco e que é pateta

Quem se mete a ser poeta;

Que no século das luzes,

Os birbantes mais lapuzes,

Compram negros e comendas

Tem brasões, não – das Calendas,

E, com tretas e com furtos

Vão subindo a passos curtos;

Fazem grossa pepineira,

Só pela arte do Vieira,

E com jeito e proteções,

Galgam altas posições!

Diz a todos, que é DOUTOR!

Não tolero o magistrado,

Que do brio descuidado,

Vende a lei, trai a justiça,

– Faz a todos injustiça –

Com rigor deprime o pobre

Presta abrigo ao rico, ao nobre,

E só acha horrendo crime

No mendigo, que deprime.

E que os homens poderosos

Desta arenga receosos

Hão de chamar-me tarelo,

Bode, negro, Mongibelo;

Porém eu que não me abalo,

Vou tangendo o meu badalo

Com repique impertinente,

Pondo a trote muita gente.

Se negro sou, ou sou bode

Pouco importa. O que isto pode?

Bodes há de toda casta,

Pois que a espécie é muito vasta...

Há cinzentos, há rajados,

Baios, pampas e malhados,

Bodes negros, bodes brancos,

E, sejamos todos francos,

Uns plebeus, e outros nobres,

31

O autor refere-se à vulgarização da Bodarrada em trabalho publicado no ano de 1938, mas não informa o

período da sua popularização. Como a terceira edição das Trovas foi publicada em 1904, supomos que tal fato

tenha ocorrido entre a primeira e a quarta década do século XX.

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Bodes ricos, bodes pobres,

Bodes sábios, importantes,

E também alguns tratantes...

Aqui n’esta boa terra,

Marram todos, tudo berra;

Nobres, condes e duquesas,

Ricas damas e marquesas.

Gentes pobres, nobres gentes

Em todos há meus parentes.

Entre a brava militança –

Fulge e brilha alta bodança.

Pois se todos têm rabicho,

Para que tanto capricho?

Haja paz, haja alegria,

Folgue e brinque a bodaria;

Cesse, pois, a matinada

Porque tudo é bodarrada! –

(GAMA, 2011, pág. 115 a 120).

A princípio, deve-se esclarecer que “[...] o nome ‘Bodarrada’ vem da palavra ‘bode’,

que, na gíria da época, significava mulato, negro” (CÂMARA, 2010, p. 90). Outros

estudiosos informam que essa palavra era aplicada “[...] aos mestiços de pele mais escura”

(FERREIRA, 2011, p. 40). Na maior parte das situações, o termo “bode” era um estereótipo

comumente usado para depreciar a população negra32

. Sendo o preconceito uma “quase

atitude” (com predisposição para a ação, “[...] o estereótipo seria uma imagem”(SILVA, 2002,

p. 23) e segundo David Brookshaw, “[...] pode ser inicialmente definido como sendo tanto a

causa quanto o efeito de um pré-julgamento de um indivíduo em relação a outro devido à

categoria a que ele ou ela pertence. Geralmente essa categoria é étnica” (BROOKSHAW,

1983, p. 9).

Na Bodarrada, ao afirmar que “Bodes há de toda a casta/ Pois que a espécie é muito

vasta”, o seu autor coloca todos os que se consideravam brancos como bodes, na mais

absoluta condição de igualdade com os negros.

A interpretação desse poema em versos como “Aqui n’esta boa terra/Marram todos,

tudo berra” ou “Em todos há meus parentes/Entre a brava militância/Fulge e brilha alta

bodança”, há também o discurso da equiparação étnica. Quanto à pretensão de Luiz Gama

nesse poema, que, naturalmente, não fazia a arte pela arte, Elciene Azevedo afirma que “[...] o

fim último dessa argumentação era defender uma origem comum que sustentasse seu ideal de

igualdade entre negros e brancos” (AZEVEDO, 2005, p. 63). Tal fato permite-nos afirmar que

o seu autor “[...] reverte o esquema tradicional, destronando as elites e abolindo a

32

O escritor Nelson Câmara, em entrevista realizada em 17 de janeiro de 2015, no seu escritório de advocacia,

na capital paulista, informou-nos que “bode” era também a forma como eram chamados os maçons em São

Paulo.

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desigualdade” (BERND, 1988 p. 53). O Orfeu de carapinha, ao tempo em que desconstrói

discursos racistas que desigualam as raças, faz emergir a figura do negro igualado, quiçá

empoderado, em oposição à ideia de inferiorização deste. O poeta diaspórico quebra as

hierarquias, por dessacralizar aqueles que o cânone tinha por superiores, como conclui a

autora abaixo:

Quem sou eu?” vai no contrafluxo das escolas literárias do século XIX por revogar,

no campo poético, o sistema de hierarquia social que exigia respeito e reverência a

nobreza e a outros representantes da classe dominante. Elimina-se toda a distância

entre os homens (BERND, 1988, p. 53).

O verso “Pois se todos têm rabicho/Para que tanto capricho?/Cesse, pois, a

matinada,/Porque tudo é bodarada!” também reforça o pensamento de igualdade racial, pois o

desmonte que ele provoca cria uma dubiedade, na qual a aplicação pejorativa da palavra

“bode” passa a ser aplicada a todos os extratos étnicos e (sociais) do país, em uma clara

proposta de nivelação. Analisando esse verso, Zilá Bernd afirma:

Neste discurso carnavalizado, caracterizado pela abolição da desigualdade entre os

homens, é recorrente a alusão ao elevado percentual de sangue negro existente na

composição étnica brasileira, o que deveria gerar um sentimento de igualdade”

(BERND, 1988, p. 54).

Fato é que o poeta diaspórico era percebido como mulato na sociedade brasileira.

Além de Brookshaw (1983, p. 153), que afirma: “[...] o mulato abolicionista Luiz Gama, autor

de uma poesia cáustica e satírica que expõe o preconceito de cor na sociedade brasileira”,

outros estudiosos, a exemplo de Edward Telles, o reconhecem nessa roupagem de mulato:

A mescla de raças chegara a todos os níveis da sociedade brasileira. No século XIX,

mulatos ocupavam posições importantes no Conselho de Estado, na Câmara dos

Deputados e no Senado e sobressaíam na literatura e nas artes, ou como figuras

proeminetes, tais como José do Patrocínio, Luiz Gama, Lima Barreto, André

Rebouças e Tobias Barreto. Mesmo o maior escritor do Brasil, Machado de Assis,

era mulato (TELLES, 2003, p. 44).

Vale destacar que, entre as últimas décadas do século XIX e as décadas iniciais do

século XX, havia um discurso que, a princípio representava o Brasil como um país de raças

degeneradas pela presença do negro (SCHWARCZ, 2015, p. 48). E, posteriormente, o

discurso das elites intelectuais do país passara a exaltar a mestiçagem brasileira, camuflando a

desigualdade e o racismo. Ambos os discursos eram formas de negação do negro enquanto

cidadão. Gilberto Freire, autor de Casa Grande e Senzala, “[...] via a profunda miscigenação

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da nossa sociedade como um motivo de orgulho do nosso caráter nacional, não considerando

que a mesma foi construída a partir da dominação, colonização e violência” (GOMES, 2005,

p. 58).

Veja-se que Edward Telles informa que no país acreditava-se que “[...] a miscigenação

acabaria por produzir indivíduos brancos” (TELLES, 2003, p. 46), sendo clara a proposta

eugenista de um país sem negros. Assim, mesmo podendo viver nos subterrâneos da

mestiçagem, ao invés de aceitar e tomar para si o discurso dominante do branqueamento e se

acomodar em uma suposta zona fronteiriça de conforto, Luiz Gama assumiu-se negro e optou

por desconstruir a lógica dominante, afirmando o que lhe parecia óbvio em um país

miscigenado como o Brasil: que todos eram bodes, ou seja, miscigenados, iguais. Como se

pode observar, aqui há uma pretensão de estabelecer a igualdade entre brancos, negros e

mestiços, não existindo, sob esse aspecto, ninguém melhor nem pior. Todos iguais.

Absolutamente iguais! Essa é a imagem ressignificada do negro, que emerge da interpretação

do poema bodarrada.

Vale ressaltar, ainda, que, além de abrir caminho para Lima Barreto, Cruz Sousa e

outros escritores de carapinha, nos poemas Meus Amores, A Cativa e Lá vai verso, Luiz

Gama, mais uma vez desvela um absoluto ineditismo: trata-se da primeira voz literária

brasileira a desconstruir os critérios de estética para a beleza feminina e incluir a mulher negra

nos padrões de beleza a ser cultuados por aquela sociedade. “Gama sugeriu uma estética negra

altiva, orgulhosa, bela e sedutora, presente de corpo e alma. Uma opção que, claro, também

ressaltou os atributos da mulher negra” (SANTOS, 2010, p. 60). O poeta, dessa forma,

desconstroi o padrão único e desafia os racistas e os valores estéticos criados por eles, que

revezavam-se em achincalhar a mulher negra ou ignorá-la enquanto deusas de ébano. No

poema A Cativa, enaltecendo a sua mãe, o poeta coloca, de maneira absolutamente inédita, a

mulher negra na condição de soberana, de rainha, ou seja, de igualdade com a mulher branca:

Como era linda, meu Deus!

Não tinha da neve a cor,

Mas no moreno semblante

Brilhavam raios de amor.

(...) Não te afastes, lhe suplico,

És do meu peito rainha;

Não te afastes, n’este peito

Tens um trono mulatinha!...

(GAMA, 2011, p. 136-137).

Neste verso da escrita de Luiz Gama notamos a desconstrução, o desmonte da lógica

dominante e a ressignificação da estética negra. Trata-se de uma linguagem que, ao

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desconstruir uma ideia, um estereótipo, contribui para construir um novo conceito. Sendo

“[...] imagens prontas” (CUTI, 2010, p. 66), “[...] máscaras que camuflam” (BERND, 1988, p.

17) a realidade, os estereótipos raciais criados pela sociedade brasileira para a mulher negra

sucumbem diante da poesia de Gama. A imagem que emerge desta escrita promove o

empoderamento dessa mulher, elevada à condição de “linda” e “rainha”. Percebe-se que “[...]

o poeta inverte sua simbologia, elevando à categoria de símbolos positivos o que antes era

carregado de conotações negativas” (BERND, 1988, p. 88).

Brookshaw (1983, p. 10) afirma que “[...] o jogo de estereótipos é um jogo de

oposições. Implícito na mente de quem estereotipa está o estereótipo que ele faz de si mesmo

e de sua categoria”. Note-se que, na linguagem da Bodarrada, para desconstruir o discurso

racista, Luiz Gama parte do próprio estereótipo criado por integrantes das elites brasileiras

para elas próprias: brancas. Contudo, na sua representação da “[...[ melindrosa presunção das

cores humanas” (FERREIRA, 2011, p. 200), diante de tamanha miscigenação, poucos no

Brasil poderiam ser assim considerados, pois nesse país todos “em Guiné tem parentes

enterrados” (GAMA, 2011, p. 21), é o que sustenta a sua poesia.

No poema A cativa, o intelectual diaspórico traduz a mulher negra com a mesma

formosura que o cânone faz em relação à suposta beleza da mulher branca. Assim, também

nesse quesito da estética feminina, trata-se da desconstrução do discurso da desigualdade e da

inferioridade, em uma imagem de positivação e empoderamento da mulher de tez negra.

Nota-se, além da beleza da mulher “cor de azeviche”, o realce que o poeta diaspórico

dá ao poder dessa beleza, capaz de silenciar poderosos de tez branca, na metáfora que ele faz

usando a figura do leão, que o senso comum tem confundido como o rei da selva, conforme se

observa desse verso do poema “Lá vai verso”:

[...]

Oh! Musa de Guiné, cor de azeviche,

Estátua de granito denegrido,

Ante quem o Leão se põe rendido,

Despido de atroz braveza

(GAMA, 2011, p.14)

Retornando ao poema “Bodarrada”, ao usar a retórica de metáforas que associavam

negro ao bode, em jargões da época e apresentando-se como o poeta de cabelos crespos, o

Orfeu Negro trouxe ao país o que alguns autores chamam de literatura marginal ou menor.

Zilá Bernd se opõe a esses termos por entender que, apesar de não serem pejorativos, eles

podem induzir a critérios depreciativos (BERND, 1988, p. 42). Para essa autora, o termo

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contraliteratura seria mais adequado para designar o tipo de ação literária inaugurada por Luiz

Gama.

Dessa forma, a história contada sob a ótica do negro brasileiro, alterando o papel

atribuído a esse pelos grupos hegemônicos, cria a vertente literária na qual ele, de “objeto do

discurso” passa a ser “sujeito de discurso”, narrador da sua própria epopeia. Por essa razão,

segundo Cuti (2010, p.66), a poesia de Luiz Gama se constitui em um marco na história da

literatura brasileira, sendo ele o primeiro precursor da Literatura Negro-Brasileira: seria o

divisor de águas na dicção negra, configurando o “eu” lírico negro, antes mesmo da poesia de

Castro Alves.

A partir de então, ao lado da literatura que discursava sobre o negro, colocando-o na

terceira pessoa, que representa o negro na figura do outro, a literatura brasileira viu o véu

rasgar-se para apresentar, em alto e bom som, um “Se negro sou...” (GAMA, 2011, p. 118). E,

como vimos, indo ao encontro de Cuti (2010), Zilá Bernd (1988) afirma que é este assumir-se

outro – que vai determinar toda uma mudança na literatura brasileira – que se constitui no

novo e que irá funcionar como um divisor de águas para a conceituação de uma literatura

negra.

Essa mesma autora, que, como vimos, usa o termo literatura negra, afirmando que

Luiz Gama é o seu precursor, assevera que “[...] a poesia negra vai se nutrir, portanto, da ideia

de desconstrução, de demolição de ‘verdades’ que negam o negro, buscando substituí-las por

outras que, ao contrário, afirmam e exaltam sua condição humana” (BERND, 1988, p.86).

Assim construía Luiz Gama a sua trajetória na arena racista, denunciando

sarcasticamente o racismo e desmontando as representações que a sociedade brasileira fazia

de uma suposta superioridade branca. Com o seu exemplo e trajetória de intelectual, ele se

insurgiu contra os estereótipos em sua obra literária, deixando evidente que o negro poderia

desempenhar qualquer atividade de cunho não-braçal. Note-se que, além de ser um exemplo

de vida, ele usa o domínio da palavra também para atuar como intelectual orgânico, militante,

ao qual faz referência Stuart Hall. Inspirando-se nas lições de Gramsci, Hall (2003, p. 194)

esse representante dos estudos culturais vê o intelectual na dupla função de pensador e

cidadão engajado com as causas humanas.

Em Prótase, o primeiro poema das Trovas, o seu autor, ao afirmar que “o que estou

vendo/vou escrevendo”, mostra ser um crítico assaz da sua época e ter uma postura de

comprometimento com as causas negras. Ao que parece tal texto faz menção àqueles anos que

se seguiram ao “grande medo”, logo: “o que vou vivendo/vou escrevendo”, afirma. A sua

escrita poética é “escrevivência”, autoficção: literatura cuja “[...] matéria prima é a vivência”

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(BERND, 1988, p. 87) e que se traduz em uma forma de escrever a própria existência,

misturando aspectos da vida com ficcção. Trata-se da escrita de alguém que sabe do seu lugar

de fala: a contestação, a denúncia e proposição sem desconsiderar suas vivências. O termo

“escrevivência”, pesquisado por estudiosos da literatura, história e antropologia, foi cunhado

na literatura brasileira pela escritora negra Conceição Evaristo, que assim se expressa quanto

à sua escrita, confundida com a sua experiência de vida:

Quando crio um texto em que falo do outro como alteridade é de mim, na verdade,

que estou falando, porque eu experimento aquele lugar de alteridade. Toda a minha

escrita, seja ficção, seja no âmbito teórico e acadêmico, é contaminada pela minha

condição de mulher negra na sociedade brasileira. É uma história compartilhada por

muitas e muitas mulheres. Da África à diáspora (REVISTA MUITO, 2015, p. 8).

Eduardo de Assis Duarte assevera que “[...] a poesia de Conceição Evaristo enfatiza a

abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa

sociedade que os exclui” (DUARTE apud PORTAL LITERAFRO p. 2). Observa-se que mais

de cem anos separam Conceição Evaristo de Luiz Gama, mas, como se percebe das leituras

das escrevivências de ambos, os dilemas ainda são muito parecidos.

As escrevivências do autodidata da diáspora afro-baiana que, desejoso de instruir-se,

inicialmente se intitulava “[...] um soldado de pele negra” (MENNUCCI, 1938, p. 137)

deixam patente uma pertença negra, a começar pela referência sempre presente da sua mãe,

homenageada como patronesse onomástica de uma praça na Freguesia do Ó, na capital

paulista. Na sua carta autobiográfica ele a descreve:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de

nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.

Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem

lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e

vingativa.

Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na

Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de

escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade (FERREIRA, 2011, p.

199).

Nessa e em outras escritas de si, o poeta discorre sobre a sua mãe com a maior

proximidade e identidade, como alguém que tem orgulho da sua ascendência materna negra.

A ressignificação identitária dá a tônica à sua linguagem, fazendo “[...] despertar no leitor a

reflexão sobre a consciência negra e o racismo” (AZEVEDO, 2005, p. 28). Laboriosa, dotada

de atividade e de consciência construtora de história, é assim que o poeta diaspórico

ressignifica a mulher negra cujo ventre o trouxe ao planeta. Tanto em escritos pessoais –

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como o colacionado acima –, como nos seus textos poéticos, “[...] introduzir o orgulho de

uma ancestralidade africana” (BERND, 1988, p. 55) vai no mesmo compasso: ele desconstrói

o ser negro enquanto construto do homem branco (BERND, 1988, p. 21) e o reinventa,

contribuindo para o empoderamento negro dos séculos seguintes.

3.3 O PALCO RACIAL E NOVAS DESMONTAGENS

Como foi evidenciado anteriormente, essas semelhanças (etnicorraciais, de gênero

etc.) existentes em determinado segmento minoritário social, quando são percebidas por seus

membros, podem levar a uma aproximação por identificação e/ou interesses, conduzindo-os à

identidade por gênero, sexo, raça, cor, etnia, situação econômica. No caso da arena racial

brasileira, por exemplo, não se pode desprezar a possibilidade de uma construção identitária

étnica forjada em uma coletiva experiência escravizada, também vivida por Luiz Gama.

Todavia,

se por um lado podem-se resgatar alguns elementos constitutivos dessa identidade

africana encontrada nas Trovas na própria experiência de Luiz Gama, não se pode,

contudo, imaginar que sua motivação ao construí-la tivesse sido a mesma que

informava os escravos e libertos dos ambientes estudados por João José Reis e

Robert Slenes. Para estes, como os próprios autores deixam claro, ela surgia de uma

necessidade de se organizar laços de solidariedade que fossem capazes de alguma

forma de amenizar os sofrimentos da escravidão (AZEVEDO, 2005, p. 75).

A fundação (ou refundação) da África no Brasil, na linguagem de Gama é um traço

delineador de uma identidade negra. Entretanto, é inegável que esses laços de solidariedade

também podem pressupor a enunciação de um nós negros, em função de situações

vivenciadas coletivamente na arena racial brasileira.

Salientar-se-á nos textos do referido escritor, que os laços identitários negros estão

presentes, a começar pela constante referência de sua genitora. Em diversos escritos seus, ele

cunhara várias expresões para definir a sua mãe, que afirmam a sua ascendência negra,

realçando essa como um patrimônio, uma herança da qual muito se orgulha. Ao contrário do

pai português que o vendera, e a quem o Orfeu de carapinha disse “[...] poupar à sua infeliz

memória uma injúria dolorosa” (FERREIRA, 2011, p. 200), ocultando o seu nome. Contudo,

por Luíza Mahin, ele nutria sentimentos de amor, admiração e orgulho, como se evidencia da

leitura do verso abaixo, do poema “Minha mãe”:

Era mui bela e formosa,

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Era a mais linda pretinha,

Da adusta Líbia Rainha,

E no Brasil pobre escrava!

Oh, que saudades que eu tenho.

Dos seus mimosos carinhos.

(GAMA, 2011, p. 152).

Segundo Elciene Azevedo:

A identidade que Luiz Gama cria é, portanto, algo mais abrangente que uma

procedência direta de terras africanas. Engloba pessoas que, distantes destas raízes e

clareadas pelas gerações, não se considerariam negras. Isto nos ajuda a entender a

dimensão política desta construção. A identidade proposta por Luiz Gama implica a

superação das diferenças dentro de raça, da união através do apelo – e da criação –

de uma tradição comum (AZEVEDO, 2005, p. 67).

Essa tradição comum, na concepção da autora, não se assentaria em regiões

específicas da África citadas por Gama em seus poemas, como Guiné, Líbia e Angola –

regiões muito diferentes entre si –, mas ultrapassaria as fronteiras étnicas e se constituiria sob

uma única identidade africana.

A propósito ainda dessa identidade negra, os seus versos se caracterizam, também,

pelo uso de uma estética e de uma escrita com um léxico33

afro ou afro-brasileiro,

desmarginalizando africanismos, conforme acentua Zilá Bernd:

A poesia de Luís Gama é contrastante por desmarginalizar africanismos, como

urucungo, candimba, cayumbas e outros; por introduzir o orgulho de uma

ancestralidade africana (“os netos de Ginga meus parentes”) e por irromper no

cenário da literatura brasileira como “canto paralelo”, alternativo (BERND, 1988, p.

55).

Observe-se que “o poeta se apresenta como um ‘Orfeu de carapinha’ que substititui

sem cerimônia os símbolos da poesia ocidental pelos equivalentes de origem africana”

(FERREIRA, 2011, p. 40).

Nesse sentido, saliente-se, ainda, que no seu trabalho poético encontram-se diversas

palavras que estão entre aquelas que Yeda Pessoa de Castro (2005) pesquisou e atribuiu

significados no seu trabalho intitulado Falares africanos na Bahia: um Vocabulário Afro-

Brasileiro, tais como: banza, bumba, catinga, marimba, quenga, e zabumba34

. Fica patente

que, “[...] ao afirmar a participação negra, pelo uso de uma estética que privilegia o ser negro,

e pela inserção de sua poesia de um significante acervo do léxico afro-brasileiro”

33

Vocábulos do dicionário usados por um autor ou por uma escola literária, segundo o dicionário Aurélio

Buarque de Holanda Ferreira.

34

Ver Castro (2015, p. 169, 180, 206, 277, 320, 354).

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(AZEVEDO, 2005, p. 76), Gama confirma os laços de identidade etnicorracial, inovando, em

uma “[...] construção literária que não era comum naquela época” (PAULINO, 2010, p. 129).

O próprio título do seu livro, a expressão “Getulino deriva de ‘Getúlia’, território da antiga

África do Norte, correspondente a parte da atual Argélia, no passado chamada Numídia, e da

Mauritânia” (FERREIRA, 2011, p. 39).

Vale ressaltar que, além dos fatores identitários citados acima, não se pode negar que

Luiz Gama estabeleceu no seu dia-a-dia estreitas relações com muitas outras pessoas que se

encontravam na mesma condição que a sua. Seja na própria convivência nos anos iniciais de

sua vida em Salvador, a “Babel africana” (QUERINO, 2014, p. 33), na jornada da capital da

Bahia até São Paulo, nos serviços e perambulações de rua, nos dias de folga, ou mesmo no

convívio com outros escravizados dentro da casa de seu “senhor” (AZEVEDO, 2005, p. 72).

Saliente-se, ainda, que, quando já era um advogado, a sua residência era frequentada

por negros (SANTOS, 2010, p. 79) que diuturnamente saíam de suas cidades em busca de

alforria (ele colocava anúncios nos jornais, oferecendo-se gratuitamente para promover ações

judiciais de liberdade, como veremos no capítulo seguinte), de algum trocado, de um

conselho, de uma palavra amiga ou até mesmo para protegê-lo, oferecendo-se como guardas.

Havia uma relação mais profunda, próxima, militante, de alteridade, que ultrapassava a

relação profissional advogado-cliente, sendo esse mais um fato denotador de uma identidade

com os milhares de negros escravizados ou livres. Segundo Adam Kuper, a identidade

Precisa ser vivida no mundo, num diálogo com outros. Segundo os construcionistas,

é nesse diálogo que a identidade é formada. Mas não é dessa maneira que ela é

vivenciada. De um ponto de vista subjetivo, a identidade é descoberta dentro da

própria pessoa, e implica identidade com outros. O eu interior descobre seu lugar no

mundo ao participar da identidade de uma coletividade (KUPER, 2002, p. 298).

Essa identidade que surge com as vivências e diálogos com outros possibilitou um

caráter libertário e igualitário nas escrevivências de Gama. Nelson Câmara afirma que ele

“[...] sempre sustentou a igualdade humana, independentemente da cor da pele ou etnia,

afirmação óbvia nos dias de hoje. Mas era um contexto no qual alguns ‘intelectuais’

defendiam que o negro não tinha alma...” (CÂMARA, 2010, p. 101).

É exatamente essa identidade formatada por sentimentos de alteridade e laços de

solidariedade que aproxima Luiz Gama da população negra, já que são considerados pelo país

como “sem alma” e, portanto, iguais. Em meio às diferenças, esses laços de semelhanças vão

estar no pano de fundo dessas desconstruções dos discursos de desigualdade.

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Do lugar de fala do intelectual diaspórico, percebe-se, prima facie35

, qual é o lugar do

seu campo literário-linguístico, pois ele demonstra ter uma contundente posicionalidade

negra. A escravidão a que fora submetido, o racismo, o discurso segregador que desigualizava

negros e brancos o fez perceber-se como negro. Assim, sabendo-se “diferente” e disputando

espaços do poder que a palavra confere a alguém que domina o seu uso, ele desconstrói os

padrões culturais estabelecidos, jogando luzes para um posterior empoderamento da

população negra.

Apesar de na carta autobiográfica escrita a pedido do amigo Lúcio de Mendonça,

Gama limitar-se a dizer: “Fiz versos” (FERREIRA, 2011, p. 203), sem, contudo, dar relevo à

sua atuação, enquanto poeta, sua linguagem literária ainda ecoa em todos os cantos desse país

de visíveis mãos racistas: justiça! O seu trabalho literário em muito contribui para se repensar

as relações raciais no país onde o jogo da dissimulação e do conluio aparece nos dias atuais

sob o manto do racismo velado. Como se pode perceber, o jogo da dissimulaçao ganhou

novas formas, contornos e roupagens.

Por ser diferente do padrão estatuído, o poeta de carapinha tinha consciência de qual

era o lugar que o racismo havia reservado para ele. Foi enfrentando-o que ensaiou em grande

estilo o discurso da igualdade racial em terras brasileiras. E, dessa forma, com originalidade e

autenticidade, o Orfeu Negro ia desafiando o destino que lhe fora imposto, construindo o seu

nome e insculpindo o seu lugar nas margens da literatura brasileira.

Sabe-se que é na memória da escravidão moderna, na experiência do racismo e do

conflito estabelecido pelo terror racial que se funda politicamente a identidade cultural dos

negros no Ocidente. É relevante ressaltar uma constatação de Zilá Bernd (1988, p. 54) quanto

à importância do pensamento de Luiz Gama não apenas para a história do Brasil, mas para a

história da diáspora em todo o mundo, pois ele se antecipou aos movimentos de tomada de

consciência de ser negro em países do Atlântico Negro, como os Estados Unidos, por

exemplo. Sendo a sua trajetória construída no século XIX e essa consciência somente tendo

aflorado nos Estados Unidos e nas Caraíbas com o despontar do seculo XX, teria o brasileiro

um lugar histórico privilegiado da diáspora nas Américas no que diz respeito ao pensar e se

posicionar de um lugar de fala negro.

A sua poesia engajada, enunciando vários eus líricos negros, denunciando, ironizando,

desmontando a lógica das relações de poder e dominação, além de criar laços identitários,

possui o condão de colocar o negro como agente, em condição de igualdade, como pessoa

35

À primeira vista, expressão latina.

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com capacidade cognitiva e mesmo com uma história intelectual. Apesar (e por causa) das

duras e conflituosas condições de relações de poder impostas pelo sistema escravista

brasileiro, das suas próprias entranhas e margens, surgiu o discurso identitário e paritário de

Luiz Gama, a sua reação e de tantos outros seus iguais. A abolição da escravidão será também

obra deles, ao contrário do que pensam alguns, que a veem como obra apenas de brancos.

E a epopéia do Orfeu de carapinha não acaba no campo da literatura, que lhe serviu de

“[...] passaporte para os círculos sociais mais altos” (CÂMARA, 2010, p. 89). Ele, sempre

usando da linguagem para se constituir como sujeito e agente da História, continuará a

construir a sua trajetória na Província de São Paulo e sua fama chegará aos ouvidos de toda a

elite escravocrata em todos os rincões do Império Brasileiro. O motivo: o pretinho da Costa,

apagado e silenciado como poeta pelo cânone cultural, além de atacar o poder do imperador e

a Santa Igreja Católica, pregando de forma escancarada a ideia republicana e a abolição da

escravidão, resolveu afrontar as elites de vez, chegando agora ao cúmulo de defender a

absolvição do escravizado que mata o seu senhor, caracterizando tal fato como legítima

defesa.

Tratava-se de mais uma desconstrução da desigualdade entre as raças e cujo objetivo

era promover a própria igualdade racial. Como aquela sociedade da dissimulação e do conluio

teria entendido tamanha pretensão?

E ele, Luiz Gama, que emergiu das margens do tecido social como uma fênix,

triunfando sobre a História, além de poeta, líder maçônico, agora advogado peticionando na

justiça e escrevendo para diversos jornais, prepara-se para novas tessituras que colocarão em

xeque lógicas e desmontarão outras construções. Não apenas os saraus literários, mas os

espaços do poder judiciário, dos comícios de rua e todos os espaços constituir-se-ão em arenas

do tenso jogo das relações raciais, para fazer ecoar e potencializar a força da sua voz que

clamava e exigia justiça. Afinal, se trata de um homem que possui várias faces, mas um só

discurso: o da igualdade jurídica entre negros e brancos.

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4 ESTADO DE EXCEÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS NEGRAS

Para melhor pautar a ressignificação identitária negra em alguns textos de Luiz Gama,

contextualizaremos o estado de exceção vigente em sua época tomando como exemplo, a

princípio, alguns documentos históricos, por meio dos quais é possível identificar a sua

intervenção diante das injustiças praticadas contra dois homens negros, ilegalmente presos.

Vale destacar que o referido advogado não só constatou como, também, denunciou a

existência, no Brasil, de um tribunal de exceção na segunda metade do século XIX36

. Pagou,

por isso, um preço muito caro.

Além de dar-nos a percepção de resistência da população negra pela via judicial e de

como Luiz Gama, enquanto operador do direito, atribuía um novo significado jurídico e

político à pessoa do negro, esses documentos mostram, também, que, para este, “[...] a cor de

sua pele o colocava sob suspeição” (LARA, 2007, p. 146), razão pela qual a liberdade de

negros e “pardos” alforriados estava sempre precária, por um fio (CHALHOUB, 2012, p. 28).

Esta foi a clara sensação que teve o ingênuo37

Manuel da Silva, filho de um casal alforriado,

que, no ano de 1791, saindo da Vila de Cachoeira, em suas viagens pelo Recôncavo da Bahia

para tratar de seus negócios, foi preso na Vila de Cairu, sob o “[...] pretexto de ser escravo e

andar fugido” (LARA, 2007, p. 145). Segundo Silvia Hunold Lara:

Não eram extraordinários os casos de pardos e negros forros ou livres presos sob

suspeita de serem escravos. Muitos libertos tinham dificuldade para provar sua

liberdade e alguns casos chegaram a dar origem a processos [judiciais] de

justificação (LARA, 2007, p. 144).

O estado permanente de exceção fazia com que o negro pudesse ser preso

simplesmente “[...] por estar na rua à noite” (MATTOS, 2013, p. 190). Havia, também, “[...]

prisões sem motivo declarado” (MATTOS, 2013, p. 189). Essas prisões ocorriam ao arrepio

da própria lei do estado de exceção monarquista. A justificativa para tais ações era a

prevenção de crimes que poderiam acontecer. Ou seja, recorria-se a pressupostos

epistemológicos e racistas da criminologia brasileira, sob a ótica da Antropologia Criminal

(ESTEVAM, 2016, p. 45).

Trata-se, na realidade, do racismo científico, atualizado em solo brasileiro, tendo como

36

Estado de exceção é utilizado, aqui, sob a ótica de Agamben (2014, p. 14) que, inclusive, assevera: “[...] o

direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão”.

37

A expressão era atribuída aos filhos de escravizados ou de ex-escravizados, nascidos livres no Brasil

(AZEVEDO, 1987, p.182)

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um dos principais fundadores, o italiano Cesare Lombroso, em suas visões racistas, ao

conceber que indivíduos de perfis africanóides eram criminosos natos (SUMARIVA, 2015, p.

38). Em terras brasileiras, essa ideia encontrou eco entre os professores e estudiosos das

escolas médicas, sobretudo da Faculdade de Medicina da Bahia, onde Raymundo Nina

Rodrigues, conhecido como o “Lombroso dos trópicos” (SUMARIVA, 2015, p. 40) teria

fundado a primeira escola de Medicina Legal do país (CROCE, 2012, p. 36).

Assim, a adoção, por intelectuais brasileiros de teorias raciais inspiradas nessas ideias

e no pensamento de Charles Darwin e Arthur de Gobineau, davam foros de ciência ao racismo

no Brasil (SCHWARCZ, 2015, p. 85) e impregnavam instituições em geral, as produções

culturais e, dentre estas, a literatura, o campo jornalístico, jurídico, entre outros. Enquanto os

representantes da sciencia discutiam e propagavam suas ideias, a poesia oitocentista de Luiz

Gama denunciava: “[...] a ciência é de encomenda” (GAMA, 2012, p. 131), desqualificando-

a. Até porque Gama percebia que essa ciência com forte viés racista era um dos dispositivos

usados para ajudar a propiciar o ambiente ideal para a atuação de delegados de polícia e

juízes, que efetuavam e chancelavam as prisões daquele considerado “criminoso nato”, ou

seja, o negro.

Naquele contexto escravagista e racista, até mesmo integrantes negros do próprio

aparato policial poderiam ser presos por seus colegas de profissão. Um desses casos implicou

habeas corpus requerido em 1881 por Luiz Gama no Tribunal da Relação de São Paulo38

:

Francisco Sant’Anna dos Santos, “[...] ex-praça do Corpo Policial Permanente, transferido

para a Companhia-Militar de Guardas-Urbanos” (CÂMARA, 2010, p. 273), por ser negro,

fora “[...] aprisionado sob argumento de ser cativo e fugitivo, embora alforriado licitamente”

(CÂMARA, 2010, p. 271). O advogado do policial negro usou como fundamento jurídico do

habeas corpus impetrado em sua defesa, o Alvará nº 5, de 10 de março de 168239

(que

vigorava nos tempos da colônia). Ao argumentar que esse alvará português estabelecia o

direito processual do prazo decadencial de 5 anos para “[...] eventual proprietário reclamar

seu direito sobre o escravo” (CÂMARA, 2010, p. 273) e invocar a própria jurisprudência

paulista que aceitou essa “Lei Pátria” no deferimento de um outro habeas corpus no ano de

1877, Gama conseguiu a soltura do seu cliente.

Entretanto, essas vitórias judiciais nem sempre aconteciam no labor do advogado

38

Pesquisa realizada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no dia 30 de janeiro de 2015, nos autos de nº

74/1881

39

Entre os anos de 1808 e 1888, esse alvará foi citado como argumento jurídico em 22 processos cíveis de

liberdade em recursos impetrados junto à Corte de Apelação no Rio de Janeiro (LARA, 2006, p. 109).

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diaspórico, até porque muitos juízes eram, também, senhores de escravos. Além do mais, o

direito brasileiro reservava certas particularidades, dentre as quais, servir apenas aos

interesses de determinados setores da sociedade. Sobre certas particularidades do sistema

jurídico brasileiro, por ocasião da solenidade de criação da Medalha Luiz Gonzaga Pinto da

Gama, em 2009, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Fábio Konder Comparato

discorreu sobre a distinção entre o direito oficial e o direito não oficial, no país da lei “para

inglês ver” (SANTOS, 2010, p. 36):

O direito oficial é o que se apresenta como ordenamento civilizado, a ser exibido

com orgulho aos estrangeiros e venerado liturgicamente por doutores e magistrados.

Já o direito não oficial, embora sub-reptício, é o efetivamente aplicado, porque

conforme aos costumes tradicionais e ao quadro de valores das classes dominantes

(COMPARATO, 2010, p. 9).

Luiz Gama enfrentou e denunciou esse direito não oficial, suas instâncias e seus

juízes. Ainda em 1859, ao lançar as Trovas, se referiu a estes, em um verso do poema

Sortimento de Gorras:

[...]

Se a justiça, por ter olhos vendados,

É vendida, por certos Magistrados,

Que o pudor aferrando na gaveta,

Sustentam – que o Direito é pura peta [...]

(GAMA, 2012, p. 24).

O direito não oficial brasileiro, ou da “pura peta”, da mentira, como o traduz Luiz

Gama, fazia de diversas leis que contrariavam os interesses das classes dominantes letra

morta, a exemplo da lei de 7 de novembro de 183140

, criada por pressão inglesa

(CHALHOUB, 2012, p. 46) e que proibia o comércio de carne humana da África para o

Brasil. Inobstante a força do conluio jurídico, que o colocava em constantes choques com

juízes e curadores de escravizados, o advogado da diáspora baiana fazia publicar anúncios nos

jornais, oferecendo-se para defender gratuitamente as causas de liberdade, como se observa

no anúncio:

São Paulo

LUIZ G. P. DA GAMA, continua a tratar cauzas de liberdade.

Outro sim, responde consultas para fóra da capital, tudo sem retribuição alguma

40

Essa lei, de tão pouco aceita e ignorada pelas elites e pelo Judiciário, teria sido a responsável pela expressão

“lei para inglês ver”, ainda em voga nos tempos atuais. Entretanto, ela constituiu-se em um dispositivo

largamente utilizado por Luiz Gama nas suas ações de liberdade em foros paulistas

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(FERREIRA, 2011, p. 132)

No final dos anos 1860, o novel advogado, pobre e desempregado, passou a fazer da

sua própria residência na hoje conhecida e popular Rua 25 de Março, o seu escritório, e ali

atendia a clientes de “qualquer causa” (FERREIRA, 2011, p. 132). Entretanto, chama a

atenção o fato de, mesmo antes de obter o título de advogado provisionado, o causídico já

estar publicando anúncios em jornais nos quais se oferece para advogar gratuitamente nas

ações de libertação de escravizados, conforme denuncia esse anúncio acima, publicado no

jornal Correio Paulistano, em 26 de novembro de 186941

.

Essas centenas de ações de liberdade propositadas em comarcas paulistas pelo

advogado diaspórico, individuais ou plúrimas, tinham como instrumento jurídico principal o

habeas corpus, atualmente insculpido no inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.

Esse instituto jurídico surgiu no Brasil através do Código Criminal de 1830 (CÂMARA,

2010, p. 180). Entretanto, ele somente passou a ser utilizado na justiça brasileira depois da

edição da sua norma processual: o Código de Processo Criminal, de 29 de novembro de 1832,

cujo artigo 340, diz: “Todo o cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou

constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em

seu favor” (CÂMARA, 2010, p. 181). Observe-se que os advogados, a exemplo de Luiz

Gama, ao utilizarem a ação do habeas corpus como instrumento para auferir liberdade a

pessoas escravizadas, estavam ressignificando o ser negro, pois o incluía na esfera do

“cidadão” ao qual faz referência o citado artigo, ou seja, o incluía no rol dos portadores de

direitos.

Salientar-se-á, entretanto, que “[...] a lei falava em ‘cidadão’, e o escravo por certo não

era considerado cidadão, mas sim res ou coisa tal qual um objeto móvel ou semovente”

(CÂMARA, 2010, p. 181). Essa era a concepção do direito positivo brasileiro e muitos juízes

de direito negavam essas ações de habeas corpus usando esse argumento, a exemplo do

magistrado Xavier Brito, que negou a soltura de seis africanos. Esse juiz:

Ao negar a soltura dos presos, reafirmava em sua sentença que foram recolhidos à

cadeia na condição de escravos fugidos e, como tal, não tinham o direito de usar o

recurso de habeas corpus, só permitido ao cidadão, “que é aquele que tem líquida a

sua condição de liberdade”. Para alcançar essa condição, explicava o juiz de direito,

não bastava simplesmente se entenderem livres por serem africanos, vivendo fora do

domínio de seus senhores (AZEVEDO, 2010, p. 131-132).

41

Luiz Gama requereu a sua provisão para advogar em 20 de dezembro de 1869, sendo tal pedido deferido sete

dias depois, conforme se observa da análise dos autos 28/1869, que estão na caixa 322, lote 20.100.70000.98, do

Arquivo Público do Estado de São Paulo.

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Além de Nelson Câmara, vários outros autores salientam que, do ponto de vista

jurídico, o escravizado não possuía personalidade e o apontam como um “semovente”, o que

corresponde a um bem econômico. Não seria um bem imóvel, como uma fazenda, nem um

bem móvel, como uma carroça, por exemplo. Seria um bem semovente, um bem que se move

por si mesmo, a exemplo do gado e do equino. Compartilha dessa ideia a pesquisadora

Elciene Azevedo, para a qual o escravizado “[...] era considerado um bem semovente, um

objeto de propriedade, era-lhe negado qualquer direito político ou civil” (AZEVEDO, 2010,

p. 42). Lilia Moritz Schwarcz, em Retrato em branco e negro, no qual estuda a imprensa e o

mundo de escravos e cidadãos no século XIX em São Paulo, assevera que “[...] grande parte

dos anúncios que ocupavam os periódicos da época referiam-se a escravos” (SCHWARCZ,

2001, p. 134), vinculando-os a vários tipos de transações econômicas. Em outro trabalho da

mesma autora, intitulado Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil, ela

afirma que:

Como um bem pessoal, o escravo podia ser alugado, leiloado, penhorado,

hipotecado, assim como as demais posses de seu proprietário. Nos inventários,

apareciam sem distinção ao lado dos animais, ambos classificados sob a rubrica bens

semoventes, que se distinguiam dos bens móveis e dos imóveis (SCHWARCZ, 1996,

p. 12)

Sud Mennucci, um dos principais biógrafos de Luiz Gama, além de analisar a forma

pela qual o sistema jurídico concebia o escravizado, adentra no mérito de como a sociedade

brasileira o representava juridicamente:

A sociedade brasileira em peso considerava o negro como não sendo gente [...]. A

classificação de fôlego-vivo que se lhe dava nos engenhos, respondia cabalmente ao

conceito fundamental de que os negros não se diferenciavam em nada dos demais

semoventes que a propriedade comportava (MENNUCCI, 1938, p. 114).

Considerado, portanto, como um bem econômico e confundido com animais, por seu

turno, a Constituição “liberal” de 1824, que vigorou até o final do império, em 1889, o

ignorava: não há, em todo o texto constitucional composto por 179 artigos, sequer uma

palavra ou referência ao sistema escravista ou ao escravizado (CAMPANHOLE, 1989).

Assim, o escravizado não existe na Constituição do império. O único dispositivo

constitucional que lança indícios da existência da escravidão no país é o artigo 6º, que diz, no

seu caput e inciso I: “São Cidadãos Brazileiros [...] os que no Brazil tiverem nascido, quer

sejam ingênuos ou libertos” (CAMPANHOLE, 1989, p. 749). Ao fazer referência a pessoas

libertas nascidas em terras tupiniquins, infere-se, naturalmente, a existência de pessoas

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nascidas sob o estatuto do cativeiro. Provavelmente por dessas características elitistas e

excludentes da lei fundamental do país, o causídico Luiz Gama a tenha desprezado, não

fazendo qualquer menção direta aos seus dispositivos nos processos nos quais atuou e aos

quais a presente pesquisa teve acesso. É o poeta que, bem à maneira do seu habitual sarcasmo,

faz uso de uma corruptela da palavra Constituição para, sem nenhuma reverência, referir-se à

chamada lei maior, na poesia Sortimento de gorras:

[...]

Se a Lei Fundamental – Constipação,

Faz o papel de falaz camaleão,

E surgindo no tempo de eleições,

Aos patetas ilude, aos toleirões [...]

(GAMA, 2011, p. 24)

Observe-se que, através de um trocadilho, o poeta substitui a palavra “Constituição”

pela palavra “Constipação”, para equipará-la à doença de prisão de ventre, profanando a lei

que os juristas têm como sagrada e intocável e caracterizando-a como uma norma que ilude o

povo e cuja interpretação muda ao bel prazer dos interesses políticos.

Se, por um lado, o texto constitucional do império ignora o escravizado, a propriedade

é sacralizada pelo mesmo, sendo garantido o seu direito “[...] em toda a sua plenitude”

(CAMPANHOLE, 1989, p. 769), segundo diz o seu artigo 179, inciso XXII. Incluir-se-ia aí,

na expressão “em toda a sua plenitude”, o direito de estendê-la, além de bens, também às

pessoas? Se considerarmos apenas as ações de liberdade que subiram à Corte de Apelação na

capital imperial nos anos que entremeiam a chegada da corte até o final da escravidão,

certamente que sim. Esse artigo 179, por versar sobre um suposto direito sagrado e intocável à

propriedade, foi o mais citado nas alegações jurídicas dos advogados dos mercadores de carne

humana, nesses processos enviados à última instância do Rio de Janeiro (LARA, 2006, p.

109). Para eles, garantir a posse sobre a vida de pessoas era um direito constitucional,

sagrado.

Assim, dentro desse contexto que juridicamente representa a pessoa humana

equiparando-a a animais e na condição de “bem que se move”, infere-se a importância do

pensamento e da atuação do advogado Luiz Gama e desses outros operadores do direito que

ingressavam com estas postulações negras, cuja admissibilidade em juízo implicava

tacitamente em ressignificação dessa condição. Além da atribuição de um novo significado

jurídico ao “ser negro”, esses profissionais do direito, “ao atuarem em ações de liberdade

impetradas pelos escravos contra seus senhores, contribuíram para desestruturar a política de

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domínio senhorial, minando as bases da ideologia que sustentava a escravidão” (AZEVEDO,

2010, p. 93). É de bom alvitre lembrar que essas vozes dos tribunais terminavam por ecoar

nas ruas, fomentando a campanha abolicionista, da qual Luiz Gama teria sido um dos

precursores (MENNUCCI, 1938, p. 131).

Ignorado na chamada Carta Magna e considerado um bem semovente no direito civil,

é no Código Criminal que o escravizado aparece como sujeito, para ser criminalizado, o que

evidencia uma flagrante contradição da legislação brasileira:

Se perante o direito civil o escravo era considerado um bem semovente, portanto

sem nenhum direito ou obrigações jurídicas, perante a lei penal não só era

plenamente responsabilizado por seus crimes como deveria responder a processo e ir

a julgamento (AZEVEDO, 2010, p. 65).

Essa contradição também é percebida por Hedio Silva, no trabalho Direito de

Igualdade Racial, quando este autor observa que, para efeitos civis, o negro não era

considerado pessoa, pois, até mesmo quando era mutilado por terceiros estranhos ao seu

senhorio, tratava-se de mero dano (ao seu senhor), instituto ligado ao direito civil, no capítulo

da propriedade. Da mesma forma, se sofresse sequestro, estaria no campo do direito civil.

Entretanto, para efeitos da persecução penal, sendo acusado, ele era humano, considerado

pessoa. Era penalmente responsável, imputável e, naturalmente, respondia por seus atos

(SILVA, 2002, p. 8).

Estabelecendo dispositivos criminais que diziam respeito apenas aos escravizados (a

exemplo de tipificar como crime de insurreição a aglomeração de vinte ou mais pessoas que

tentassem alcançar a liberdade pela força), o direito penal do estado de exceção monarquista

os colocava como pessoas plenamente responsáveis por seus atos, capazes de arcar com suas

responsabilidades, logo, como um cidadão comum. Não sendo um ser de direitos, o negro

escravizado era o “vivente” que, ignorado pelo dispositivo constitucional, era incluído pelas

leis civis e criminais no sistema político e jurídico.

Apesar da existência de dispositivos jurídicos e políticos que impunham a

subalternização, a resistência de mulheres e homens negros a esse constante estado de sítio

sempre se fez presente ao longo da história brasileira. Provas desta resistência são as

insurreições, fugas, abortos, feitiços, suicídios e homicídios contra senhores escravocratas,

como assinala João André Antonil, em Cultura e opulência do Brasil (ANTONIL, 1982, p.

91), livro publicado em Lisboa, no ano de 1711, depois de passar por vários censores e

inquisidores, até o Santo Oficio autorizar a sua publicação. No século anterior à publicação

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desse livro, no trabalho intitulado História do Brasil (1500-1627), Frei Vicente do Salvador

registra a informação ao governador geral do Brasil de “[...] um mocambo ou magote de

negros de Guiné fugidos, que estavam nos palmares do rio Itapicuru” (SALVADOR, 2013, p.

318). Em alguns momentos históricos a resistência negra se tornou tão ameaçadora ao estado

de exceção que as instituições governamentais criavam o estado de exceção no próprio estado

de exceção. Veja-se, por exemplo, o Levante dos Malês, em Salvador, no ano de 1835 (do

qual teria participado Luíza Mahin, mãe de Luiz Gama). Esse ato de resistência:

“[...] tomou proporções tais que necessário foi, por lei nº 1 da Assembléia

Provincial, de 28 de março de 1835, suspender, por trinta dias, as garantias

constitucionais, para o efeito de se darem buscas em todas as casas e prevenir novas

conflagrações por parte dos africanos” (QUERINO, 2014, p. 97).

Assim, a história construída pela população negra desterritorializada no Brasil

evidencia variadas formas de reação à escravidão, visto que muitas mulheres e homens

negros, desafiando os seus supostos senhores e as instituições do estado de exceção,

procuravam o advogado Luiz Gama com o propósito de ter assegurada a sua liberdade,

evidenciando um protagonismo histórico na arena racial brasileira, exatamente em um dos

seus campos mais minados: a justiça, cujos operadores eram formados bacharéis em

instituições cuja cartilha preconizava a animalidade ou a inferioridade do negro como verdade

absoluta.

Quem eram os clientes do advogado Luiz Gama? Imigrantes que buscavam melhores

oportunidades de vida na já próspera Província de São Paulo, como o italiano Antonio

Ribeiro, dono do “[...] pequeno comércio na ‘praça do mercado’, na hoje famosa 25 de

março” (CÂMARA, 2010, p. 229), paciente42

do Habeas Corpus 22/187743

; os espanhóis

Lourenço Gonzales e Santiago Vilarinho, presos em 29 de junho de 1882, por lesões corporais

provocadas em um guarda urbano. A petição inicial desse habeas corpus de nº 92/1882 foi

propositada em 04 de agosto de 188244

e, quatro dias após, logo depois da oitiva dos réus o

42

Na justiça brasileira, até os dias atuais, as pessoas para as quais são propositadas as ações de habeas corpus são

chamadas de pacientes

43

A presente pesquisa teve acesso a este processo oriundo do Tribunal de Justiça paulista no Arquivo Público do

Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2015. Os autos encontram-se na caixa 2010.07000.545

44

Petição que Luiz Gama protocolou 20 dias antes da sua morte. Esse fato mostra que, quando faleceu de

diabetes, aos 52 anos de idade, o advogado estava em plena atividade

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acórdão determinou as suas solturas, pelo fato de não ter havido prisão em flagrante45

.

No rol de clientes de Luiz Gama figuravam brasileiros livres, a exemplo do fazendeiro

João Franco, preso por supostamente ter dito que iria matar o coletor Bernardino Veloso, e do

tenente Elizeu Dantas, “[...] ilegalmente detido num quartel da capital” (CÂMARA, 2010, p.

209), cujos processos de habeas corpus foram tombados, respectivamente, sob os números

47/1874 e 88/188246

.

Entretanto, o maior número de processos nos quais advogou o causídico diaspórico,

por nós localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Tribunal de

Justiça do Estado de São Paulo, foi de autores escravizados ou alforriados negros,

evidenciando a relação de alteridade e proximidade desse advogado com os infortúnios e

angústias daqueles que ele de alguma forma considerava serem os seus pares.

O processo da africana Luíza é uma das primeiras causas aceitas por ele, depois da

concessão da sua provisão. Esse processo conta a história de uma africana boçal47

que “[...]

entre os anos de 1843 a 1846 foi importada”48

, contrariando a lei de 7 de novembro 1831,

sendo este, aliás, um dos maiores fundamentos jurídicos das ações de liberdade impetradas

por Gama.

Uma causa do advogado, que não apenas evidencia alteridade, mas contribui também

para dar um novo significado à condição jurídica do negro é o processo do Menor Luiz49

, de

14 anos de idade. Em petição de habeas corpus assinada e protocolada no Tribunal da Relação

de São Paulo, em 29 de julho de 1880, Luiz Gama informa que, mesmo alforriado, o seu

cliente fora penhorado pelo credor do seu ex-senhor. Para garantir a execução processual, o

menor foi posto na cadeia a título de depósito, mas Luiz Gama conseguiu fazer com que o juiz

da causa o transformasse em terceiro embargante. O próprio Luiz Gama faz registrar, na

petição escrita àquela época à mão, a importância do ato judicial daquele tribunal de segunda

instância, no sentido da ressignificação jurídica do adolescente negro, “[...] porque a simples 45

Pesquisa realizada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2015, os autos estão na

caixa 2010.0700.0545, juntos com outros três processos judiciais de habeas corpus, todos de autoria de Luiz

Gama

46

Os autos desses dois processos, também oriundos do Tribunal de Justiça paulista encontram-se na caixa

2010.07000.510 do Arquivo Público do Estado de São Paulo

47

A expressão boçal servia para designar o africano que não falava o português (SCHWARCZ, 1996, p. 12)

48

Página 1 dos autos 71/1870, cuja petição inicial é de 15 de fevereiro de 1870. A pesquisa neste processo

localizado no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ocorreu em 12 de janeiro de 2015

49

Pesquisa realizada no dia 19 de janeiro de 2015 no arquivo do Estado de São Paulo nos autos de nº 60/1880,

caixa 252, com a seguinte numeração: 20100.600.4029.

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acceitação dos embargos é causa de implícito reconhecimento de pessoalidade jurídica, do

Embargante [..]” (CÂMARA, 2010, p. 238). Ao aceitar-lhe como embargante, o tribunal ad

quem50

reconheceu personalidade jurídica ao menor e determinou a sua libertação até o

julgamento da ação principal.

Localizamos em arquivos paulistas muitos outros autos processuais nos quais atuou

Luiz Gama, quer seja como advogado – a exemplo do processo 63/1880, do Preto João

Carpinteiro –, ou como curador51

– a exemplo do processo 324/1877, do Escravo Pardo.

Existem muitas histórias jurídicas de protagonismos, de resistências negras contadas

em publicações de autores que estudam a vida e obra de Luiz Gama, a exemplo de Sud

Mennucci, Nelson Câmara, Elciene Azevedo e outros.

Por várias razões escolhemos para este estudo a história da prisão dos negros Felipe e

João Ricardo, enquadrados pelas polícias paulistas como suspeitos de serem escravizados

fugidos, pois esta história, além de dar vazão à linguagem jurídica de positivação do negro,

por seu advogado, não figura entre as histórias contadas na bibliografia pesquisada pelo

presente estudo. Assim, sob esse olhar a mesma tratar-se-ia de uma contribuição a mais nos

estudos gamistas, oferecida por esta pesquisa.

Em 11 de junho de 1877, Luiz Gama ingressa na segunda instância criminal paulista

com a seguinte petição de habeas corpus, tombada por aquele juízo sob o número 26/1877 e

hoje arquivada na caixa 482 (registro 29.2010.0700.616) do Arquivo Público do Estado de

São Paulo:

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE SÃO PAULO

Senhor:

Luiz Gama, com o devido respeito, e nos termos da Lei, vem impetrar á V. M. Imperial ordem de

habeas-corpus em favor de Philippe, e de Joam Ricardo, vulgo – Militão – livres perante o direito, e illegalmente

detidos no calabouço da Casa-de-correcção d’esta cidade, por suspeita de serem escravos fugidos!...

O primeiro está preso desde o dia 20 de Janeiro de 1874, á ordem e disposição da Delegacia de Polícia

da Capital, por mandado do Dr. Chefe de Policia!...

O segundo está preso desde o dia 16 de Dezembro de 1875, á ordem e disposição da Subdelegacia-de-

Policia de Sancta Ephigenia.

50

Tribunal ou juiz de instância superior para onde se encaminha o processo para um novo julgamento. 51

A figura do curador ainda existe no processo civil brasileiro, para os casos de representação jurídica de

maiores incapazes, como loucos de todo gênero, pródigos, “índios não aculturados”. No período em questão,

como os escravizados não possuíam personalidade jurídica, exigia-se a presença do curador na sua representação

processual.

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Ordenamento incluso é prova inconcussa do enorme attentado, de que sam victimas os pacientes: presos

em face da Lei N. 2033 – de 20 de Settembro de 1871; e do Decreto N. 4924 – de 22 de Novembro, do mesmo

anno, Cap. 3º Secção 1ª, - para averiguaçoens policiaes, sobre serem escravos fugitivos, em rasão de mera

desconfiança das Autoridades, que decretaram esta barbara violencia – há tres annos!!!

É, pois, motivo e fundamento da detenção, único, e despido de outra rasão qualquer, a desconfiança da

autoridade; e, assim temos, de modo patente, fóra de toda contestação, que a simples desconfiança da autoridade

revogou de plano, e de chofre, a Ordenação do Liv 4 Tit. 42, que declara o captiveiro contrario á natureza, de

onde decorre o principio de direito civil – que todo o homem se presume livre, até que o contrario se prove, nos

expressos termos da Lei; principio este, que jamais poderá ser contrariado pela autoridade-legal, por mais

suspeitas que ser possam as suas policiaes desconfianças; e a Lei de 1º de Abril de 1680, que manda receitar,

como mais fortes, por serem mais racionais, e conformes ao direito-natural, as rasões em favor da liberdade, por

serem preferiveis ás que podem fazer justo o captiveiro.

E quando mesmo se pretendesse manter, si bem que sem menor cabo da Lei, as desconfianças policiaes,

e as indagaçõens perpetuas, para descobrimento do mais extravagante dos suppostos captiveiros, considerando-

se, por simples hypothese, escravo, quem abertamente se-declara livre, e nam é obrigado a provar esta condição,

que é intuitiva, e a propria Lei manda respeitar, e assim, ainda que absurdamente, se-houvesse por escravos, e

constituindo bens-do-evento, aos pacientes, como seriam elles vendidos em hasta-publica, sem exhibição da

matricula especial? – (Decr. N. 4835 – 1º Dezembro 1871 Cap. 7 art. 45)

Como se dará a Fazenda Nacional, na segunda hipothese, por proprietaria ou dona de escravos, aliás

sem donos, e abandonados pelos senhores, em favor do artigo 6º da Lei N. 2040 – de 28 de Settembro de 1871?

Como allegará o dominio em frente do artigo 73 do Decreto N. 5135 – de 13 de Novembro de 1872?

Como se-harmonisará tudo isto com o parecer do Exmo. Procurador da Côroa e Soberania Nacional?

Parece que a autoridade-policial resolveu o problema, arvorando a suspeita em fundamento legal, e

estatuindo o systhema das indagaçoens perpetuas, para garantia do direito dominical.

Senhor!

O impetrante jura, nos termos da Lei, a verdade da prezente allegação, e

P. deferimento da justiça.

São Paulo, 11 de junho de 1877.

Luiz Gama.

A peça processual em apreço é um libelo de denúncias das ações da polícia brasileira

contra a população negra e ela reflete o lugar de fala do seu autor – um ex-escravizado, que

ressignificou a sua própria existência tornando-se advogado, e que usa a linguagem jurídica, o

talento profissional e sua militância como instrumentos de ressignificação da imagem de

outros tantos negros escravizados e livres. A história que ela conta parece ter um eco de

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infinitas proporções: ultrapassando as barreiras de tempo e de espaço, milhões de negros

espalhados pelo Brasil se vêem nela porque provavelmente já passaram pela mesma situação

de insegurança jurídica porque passaram João Ricardo e Felipe.

A indignação e perplexidade do advogado Luiz Gama, que escreve a ação de habeas

corpus, é percebida, de imediato, através dos pontos de exclamação que insculpe exatamente

nas linhas em que expõe sobre o autor da prisão, o motivo e o tempo da sua duração. Segundo

o causídico diaspórico, os seus clientes João Ricardo e Felipe estavam presos há três anos em

um ato de “bárbara violência” da polícia paulista pelo simples fato de serem negros e,

portanto, suspeitos de terem fugido do cativeiro. Eles foram presos para “averiguações

policiais”, em um país onde a Constituição, em seu artigo 179, inciso VIII, dizia que

“ninguém poderá ser preso sem culpa formada [...]” (CAMPANHOLE, 1989, p. 768) e cujo

artigo 148 do Código de Processo Criminal dizia que “a formação da culpa não excederá o

termo de oito dias, depois da entrada na prisão” (CÂMARA, 2010, p. 190).

Provavelmente essas vítimas do racismo institucional ficariam ad infinitum no cárcere

e teriam morrido na cadeia, se não fosse a ação libertária do advogado. O artigo 353 do

mesmo estatuto jurídico processual, por sua vez, previa ser ilegal a prisão “quando o réu

esteja na cadeia sem ser processado por mais tempo do que marca a lei” (CÂMARA, 2010, p.

191), razão pela qual o advogado negro, estupefato com a duração de três anos de prisão,

informa a sua ilegalidade. Segundo Lilia Moritz Schwarcz (2015, p. 155), “por ‘suspeito de

ser escravo’ não foram poucos os libertos que, ao vagarem pelas ruas, foram presos e

reconduzidos ao cativeiro”.

Quais eram os critérios da suspeição? Lilia Moritz Schwarcz (2001, p. 172), afirma

que o negro era o suspeito número 1. A referida pesquisadora constata que nos anúncios de

fugas estampados nos jornais, muitas vezes os senhores “[...] preferiam descrevê-los por suas

cicatrizes e marcas” (SCHWARCZ, 1996, p. 17). Ou seja, ser negro e ter cicatrizes de

castigos, ao que tudo indica, foi a senha para a polícia ver no cliente de Luiz Gama de

prenome João um negro fugido, conforme se percebe às fls. 14 dos autos, logo no início das

informações prestadas ao tribunal pelo chefe de polícia de São Paulo, Elias Antonio Pacheco e

Chaves, em 19 de junho de 1877:

Em officio de 8 de Dezembro de 1875, participou a Delegacia de Policia da Cidade

de São José dos Campos que mandária recolher à prisão um homem de côr preta,

que vagava naquelle Termo sem saber de donde vinha e para onde ia, parecendo ser

captivo, em vista dos signaes que mostrava o corpo, desde os hombros até as

nadegas, alem de um signal em forma de S, sobre o lado direito das costas, feito a

ferro e fogo.

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Através do documento acima, notamos que dois dias após a polícia ter visto o “homem

de cor preta” e com sinais de tortura, o recambiou para a capital paulista, onde ele não teria

apresentado “[...] documento algum que abonasse seo estado livre, seo meio honesto de vida”.

Observe-se que o estado de exceção via o negro na condição de escravizado fugido ou

criminoso, por isso exigia dele não apenas a carta de alforria provando que era livre, mas

também prova de que não era ladrão, levando-nos a inferir que a polícia partia do pressuposto

que “[...] qualquer elemento negro era considerado potencialmente perigoso [...]”, conforme

constatado por Schwarcz (2001, p. 190).

Saliente-se que, da leitura dos autos percebe-se que os presos não foram ouvidos em

nenhum momento do processo judicial e os julgadores apenas lêem o que o advogado, a

polícia e o juiz de primeira instância dizem sobre eles. Assim, nas linhas seguintes do

relatório da Secretaria de Polícia de São Paulo, o chefe da corporação, Elias Antonio Pacheco

e Chaves passa a informar o que teria dito o cliente de Luiz Gama em seu interrogatório na

polícia:

[...]

aquelle preto disse em São José dos Campos , ao Delegado, chamava-se Militão

João de Mello, trocou seo nome n’esta cidade, respondendo ser seo nome João

Ricardo de (ilegível). Disse ter vindo para esta Capital durante a guerra do Paraguay,

e trabalhado na estrada de ferro de (ilegível), Itu e Sorocaba.

Segundo alguns autores, não era comportamento incomum entre aqueles que fugiam

do cativeiro em São Paulo identificar-se com outro nome para dificultar a sua real identidade

cativa (SCHWARCZ, 2001, p. 140-141), mas no caso em tela não há provas nos autos que

esse fato teria mesmo acontecido. E, quanto a referência à Guerra do Paraguai (1865-1870),

apesar de não ficar claro nos autos se o cliente de Luiz Gama teria sido alforriado por ter

participado da guerra, Pierre Verger informa que essa era uma possibilidade, pois “[...] alguns

escravos eram libertados por pessoas que não queriam ir para a guerra e os enviavam em seu

lugar” (VERGER, 1987, p. 516).

Vale salientar que o chefe de polícia que presta essas informações sobre as prisões dos

clientes de Luiz Gama ficou conhecido na historiografia brasileira, pelo fato de no relatório

referente a 1876 (e, portanto, meses antes da propositura desse habeas corpus de João e

Felipe), ele ter dito que uma das causas do aumento do crime nas propriedades agrícolas da

província de São Paulo era a presença do “escravo mau vindo do Norte”, conforme o registro

feito por Célia Maria Marinho de Azevedo (1987, p. 190), ao pontuar que:

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Segundo Pacheco e Chaves, devido à crise econômica das regiões do norte do

Império, bem como aos altos preços pagos pelos compradores de escravos no Sul,

estavam convergindo para São Paulo “o que há de pior na escravatura”, indivíduos

“relapsos” e “criminosos” (AZEVEDO, 1987, p. 190).

A conjuntura brasileira desse período corresponde ao auge do tráfico interprovincial

de carne humana das antigas regiões produtoras de açúcar do Nordeste para o Sudeste, que se

afirmava economicamente com a produção cafeeira. Segundo Sidney Chalhoub, esse auge

“[...] ocorreu entre 1873 e 1881, quando 90 mil negros, numa média de 10 mil por ano,

entraram na região, principalmente através dos portos do Rio de Janeiro e de Santos”

(CHALHOUB, 2009, p. 43). Os assassinatos cometidos em São Paulo contra feitores,

fazendeiros escravocratas e suas famílias por estes “negros maus vindos do Norte” (que

figuram no tópico “Crimes praticados por escravos”, do relatório do chefe de polícia Elias

Antonio Pacheco e Chaves, referente ao ano de 1876), levaram pânico aos escravocratas e as

suas notícias agitavam a imprensa e a Assembleia Legislativa Provincial (AZEVEDO, 1987,

p. 190). Segundo alguns estudiosos, essa onda de escravizados negros causou medo na elite

branca e, assim, em muito contribuiu para o fim da escravidão no Brasil, como podemos

observar através de Chalhoub (2009, p. 59):

O volumoso tráfico interprovincial de escravos é uma mostra de vitalidade da

escravidão cerca de uma década antes de seu final, só que os “negros maus vindos

do Norte” trouxeram com eles o sentimento de que direitos seus haviam sido

ignorados, e ajudaram decididamente a cavar a sepultura da instituição.

Provavelmente aqueles homens defendidos por Luiz Gama seriam, na representação

do chefe de polícia, alguns desses “negros maus vindos do Norte”, que “[...] revoltam-se por

qualquer ato de disciplina, tornam-se delinqüentes [...]” (AZEVEDO, 1987, p. 190).

Se parte do relatório policial escrito pelo chefe Elias Antonio, acima exposto,

indignava o advogado Luiz Gama, não menos repugnante deveria ser a leitura das

informações prestadas no dia 18 de junho de 187752

, nos autos pelo juiz de primeira instância,

Bellarmino Peregrino da Gama, explicando o porquê das prisões e afirmando estar amparado

legalmente em um regulamento provincial de 20 de julho de 1856:

[...] são arrecadados, como bens do evento pelas autoridades judiciárias os escravos

e animaes, cujos donos não apparecem á reclamal-os dentro do prazo dos annuncios,

52

Fls. 22 e 23 dos referidos autos.

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mandados fazer pela Policia; e arrematados se no decurso de 60 dias dos editaes para

a arrematação, não se apresenta alguem que justifique serem seus esses bens, assim

arrecadados, que quando escravos, são recolhidos á cadeia [..].

Chama a atenção do leitor a representação do negro no discurso do magistrado, que o

vê sem dignidade, desprovido de humanidade, cujo tratamento é o mesmo dado aos animais,

no momento em que discorre sobre os procedimentos de recolhê-lo das ruas e mandá-lo às

prisões. Contudo, a ignorância sobre a existência dos artigos da Lei do Ventre Livre, editada

em 1871 e que, por ser uma lei de abrangência nacional derrogaria qualquer norma provincial,

o coloca em igual desconforto, quer seja por desconhecimento desta lei ou por parcialidade

nas suas decisões.

Estando o advogado Luiz Gama e os representantes do estado de exceção em lugares

de fala diametralmente opostos, percebe-se a representação humanizada dos negros presos na

linguagem do causídico: tidos como bárbaros e violentos pela sociedade imperial

(SCHWARCZ, 2001, p. 121), são exatamente eles as vítimas do “enorme atentado” da

polícia, em uma inversão da lógica. Na voz e na pena do advogado, os sentimentos daquelas

pessoas podiam ser expressados com alguma fidelidade pelo simples lugar de fala de ambos:

de negros, de ex-escravizados.

Interessante é perceber como os argumentos do defensor de João Ricardo e Felipe

ressignificam a sua condição de bens semoventes, ao usar a expressão “homem” e ao referir-

se a eles invocando o direito natural à liberdade que tem todo ser humano, pois “todo o

homem se presume livre”. Obviamente que durante o período que permeia os aproximados

350 anos de escravidão no Brasil, muitas pessoas escravizadas fugiam do jugo imposto, em

uma prova de resistência, como atestam os inúmeros anúncios de jornais, a exemplo deste,

publicado em 25 de abril de 1878, no Jornal Província de São Paulo: “Desde quinta-feira anda

fugido o escravo Silvestre, natural do Ceará, levou calça embranquecida. Costuma dar-se por

livre, mudar de nome e alugar-se para qualquer serviço [...]” (SCHWARCZ, 2001, p. 140-

141).

João Ricardo e Felipe poderiam até ser escravizados fugidos e ter mudado de nomes,

como percebe-se nas sustentações do delegado de polícia, até porque estes fatos tornaram-se,

na segunda metade do século XIX, “[...] cada vez mais constantes” (SCHWARCZ, 2001, p.

189), todavia, Luiz Gama informa no habeas corpus que eles são “livres perante o direito” e

estão “illegalmente presos”. Mas livres perante qual direito? Quais são os fundamentos

jurídicos dessa alegação? Se fossem realmente negros fugidos, não haveria, para a pretensão

deles, amparo no ordenamento jurídico brasileiro. Provavelmente o advogado tinha uma

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ampla estratégia em sua argumentação a favor do direito à liberdade de seus clientes. Caso

não ficasse provado que eles eram fugidos, até porque o advogado invoca a presunção de

inocência, seriam postos em liberdade. E também por que, a quem caberia provar as razões da

prisão de alguém, ao próprio preso ou a quem o prende em nome do dispositivo jurídico?

Obviamente que à autoridade autora da prisão, à qual Luiz Gama, em um sarcasmo – também

presente na sua linguagem jurídica – diz que “resolveu o problema, arvorando a suspeita em

fundamento legal, e estatuindo o systhema das indagaçoens perpetuas” para uma suposta

garantia do direito.

A uma polícia que exigia a apresentação da carta de alforria à pessoa negra presa, Luiz

Gama informa e cobra a inversão do ônus da prova. Observe-se que esse profissional do

direito alega que ninguém “[...] é obrigado a provar essa condição [de livre], que é intuitiva”,

logo, cabe ao órgão policial provar a condição de não livre. Como durante três anos (!), este

não tinha conseguido provar tal condição, pretendendo indagar e aprisionar ad eternum

aqueles dois homens negros, o advogado exigia as suas solturas.

Saindo das razões de fato para as suas razões de direito, o advogado negro exibe uma

linguagem didática e uma lucidez jurídica, inclusive grifando e colocando as ideias mais

relevantes em flagrante evidência, para chamar a atenção dos julgadores da causa.

Partindo da hipótese de que o Tribunal da Relação entendesse que João Ricardo e

Felipe fossem escravizados não procurados por seus donos e que pudessem ser colocados em

leilão, o habilidoso advogado pergunta: “como seriam elles vendidos em hasta-publica, sem

exhibição da matricula especial?” Logo em seguida ele articula nova interrogação ao Juízo:

“como se dará a Fazenda Nacional, na segunda hipothese, por proprietaria ou dona de

escravos, aliás sem donos, e abandonados pelos senhores, em favor do artigo 6º da Lei N.

2040 – de 28 de Settembro de 1871?”

Nesse questionamento o advogado está a referir-se à lei do Ventre Livre e após ela a

matrícula de escravizados passou a ser obrigatória. Tal dispositivo legal reclamou a edição

desse decreto regulamentar de número 4835, citado por Luiz Gama (CÂMARA, 2010, p.

189). Ora, se não existem provas nos autos sobre a possibilidade de João Ricardo e Felipe

serem negros fugidos, restaria a hipótese de terem sido abandonados pelos senhores, o que

ensejaria, também as suas solturas, à luz do parágrafo 2º do artigo 87 desse decreto citado

pelo advogado, que diz: “os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem

dados à matrícula até um ano depois do encerramento desta, serão por esse fato considerados

libertos” (CÂMARA, 2010, p. 189).

Eles não tinham matrícula (pelo menos a existência dela não foi citada nos autos) e,

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como a lei deu o prazo de um ano a partir de 1871, para os senhores matricularem seus

escravizados, sob pena de perder o senhorio, em tese, estando no ano de 1877, eram livres.

Colocá-los em leilão seria ir contra a lei, pois escravizados abandonados são livres.

Não podendo a Fazenda Nacional vendê-los porque eles, além de abandonados, não

tinham matrícula, Luiz Gama lança, nas linhas seguintes, novo questionamento sobre o poder

do governo em cuidar e manter o domínio de filhos de filhas de escravas, sendo este poder

reservado às associações, casas de expostos e particulares.

Em seguida, o advogado faz nova provocação aos julgadores, desta vez colocando a

saia justa que uma hipotética e contraditória decisão desfavorável aos seus clientes poderia

causar ao próprio governo: “Como se-harmonisará tudo isto com o parecer do Exmo.

Procurador da Corôa e Soberania Nacional?”. Ou seja: diante da falta absoluta de provas e de

tantos questionamentos jurídicos, os quais o tribunal não poderia responder, qual seria o

parecer do procurador sobre o caso em tela?

Com todas essas perguntas, Luiz Gama quer fazer perceber aos julgadores da segunda

instância paulista que, diante da falta de provas, não restará a eles outra alternativa a não ser

declarar ilegal a prisão de João Ricardo e Felipe e determinar as suas solturas.

Em outra estratégia de defesa, para a hipótese de, caso no curso do processo surgissem

provas, indícios ou presunções de que os seus clientes eram negros fugidos, quais alegações

teriam o condão de convencer os integrantes do Tribunal da Relação a dar-lhes a liberdade?

Para essa hipótese, Luiz Gama invoca um princípio do direito romano (que ele entendia ser

universal): o direito natural. A civilização romana, ao criar o direito – e, logo desde o seu

início, provar que direito e justiça não se confundem, pois, mesmo depois da criação do

direito mantiveram a escravidão em todos os seus domínios –, o dividiu em: jus civile (direito

civil, para os cidadãos romanos), jus gentium (direito das gentes, para os estrangeiros) e o jus

naturale (o direito natural, entendido como filosofia jurídica). Invocar essa criação do

contraditório império que criou o direito e procurou legitimar a escravidão, foi a solução

encontrada pelo advogado para conseguir a vitória do seu múnus advocatício. Como vimos,

apesar de o criador da Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen, entender que direito não é

filosofia jurídica, é norma (ROSS, 2003, p. 25), pergunta-se: e se a norma não for justa?

Implícito está esse questionamento na escrita jurídica de Luiz Gama, que lança o olhar

humano sobre a pessoa negra, possuidora do direito natural à vida e à liberdade, em uma

linguagem que a ressignifica naquele contexto desumano do Brasil oitocentista.

A defesa da teoria do direito natural não foi algo novo na vida de Luiz Gama, pois em

1859, quando ele lançou as Trovas, escreveu o seguinte verso no poema Que mundo é este?:

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[...]

Vejo-o livre feito escravo

Pelas leis da prepotência;

Vejo a riqueza em demência

Postergando a natureza [...]

(GAMA, 2011, p. 130).

Percebe-se na expressão “postergando a natureza”, a concepção do direito natural à

liberdade, que um dia viria, segundo o poeta. Infere-se, também, que Luiz Gama vê a

escravidão como um instituto criado por dispositivos tirânicos e que ninguém nasce escravo, é

tornado escravo pelo sistema opressor. Ao contrário do que alguns estudiosos afirmam, que

Luiz Gama aceitava a lei sem questioná-la, que “[...] conformou-se com a lei, aceitou-lhe os

ditames, os dispositivos draconianos [...]” (MENNUCCI, 1938, p. 141), ele faz críticas ao

direito, conforme se nota através da expressão “leis da prepotência”.

A invocação de argumentos fundamentados em uma suposta lei natural na linguagem

jurídica de Gama evidencia, além de um novo sentido de positivação da população negra,

também um curioso esforço jurídico do advogado, no sentido de invocar algum parâmetro

filosófico ou legal que servisse de esteio para dar guarida à sua causa, em suas várias

estratégias de defesa. Prova disso é, também, o que se observa no 5º parágrafo do seu libelo

em defesa dos suplicantes: a despeito de ter decorrido mais de meio século da independência

do Brasil e da criação do seu sistema político-jurídico, até mesmo um dispositivo editado em

1680 pela antiga metrópole – e, portanto, peça fora do ordenamento jurídico do país – fora

utilizado para convencer o tribunal de que são “[...] mais fortes, por serem mais racionais, e

conformes ao direito-natural, as rasões em favor da liberdade” (sic).

Por fim, em 19 de junho de 1877, em um rito sumário que durou oito dias, da sua

propositura até a sua decisão final, às fls. 25 dos autos o Tribunal da Relação exarou o seu

acórdão, determinando a soltura de João Ricardo e Felipe: “Accordão em Relação que vistas

as informações [ilegível) concedem a soltura requerida, visto não haver justa cauza para

continuarem os pacientes na prizão em que se achão”. No mesmo dia os autos foram

entregues ao cartório “e feitas as diligências ordenadas” pelo tribunal.

Vale salientar que muito do discurso dos advogados se perde no vento, não se

perpetua. São palavras ditas nos recintos das instâncias do poder judiciário e que não ficam

consignadas nos autos, sobretudo nos anos oitocentos, quando não havia formas de captação

rápida e registro desses arquivos. O autor de O precursor do abolicionismo no Brasil, Sud

Mennucci, lamenta esse fato, se referindo à produção da linguagem jurídica de Luiz Gama e

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ao seu conhecido talento como orador (MENNUCCI, 1938, p. 162-163), aplaudido

principalmente pelos jovens estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco

(CÂMARA, 2010, p. 152), instituição cujos estudantes outrora o recusaram, conforme

publicou Raul Pompéia, o futuro autor de O Ateneu, em 1884, na Gazeta de Notícias, do Rio

de Janeiro:

Em princípio de sua carreira, tentou cursar a Faculdade Jurídica de São Paulo. A

generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as

aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o suplício de Santo Estevão e as

apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama exclui-se revoltado, da

companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos (MENNUCCI,

1938, p. 140).

Execrado por uma geração de estudantes da faculdade de direito paulista e admirado

por outra, Gama se notabilizou também como grande orador em reuniões, comícios e no

Tribunal do Júri (MENNUCCI, 1938, p. 162). Se grande parte da sua produção oral se perdeu

no vento, poder-se-ia dizer, também, que os seus escritos judiciais são de autoria incerta, uma

vez que parte significativa da produção escrita dos advogados nas peças processuais não pode

ser atribuída a eles, pois é comum a repetição de discursos produzidos nesses instrumentos

jurídicos? No afã do desejo de ganhar a causa, muitas vezes copia-se argumentos de colegas

de profissão insculpidos nas mais variadas ações anteriormente ajuizadas, razão pela qual nem

sempre o que está nos autos representa o pensamento do seu autor. Todavia, o discurso

jurídico de Gama no tocante aos novos significados do ser negro, não se encontra apenas nos

autos processuais, mas também na produção da sua linguagem poética e jornalística,

evidenciando uma única linguagem no tocante a essa ruptura, a esse quesito que se refere à

positivação do negro.

A constatação dessa linguagem de ruptura que ressignifica possui o seu clímax não se

sabe exatamente quando, porque conforme fora anteriormente assinalado, as palavras ditas ao

vento (sobretudo por quem os cânones não dão a devida importância), nem sempre se

perpetuam. Mas diversos autores dão realce a esse momento histórico, no qual um ex-escravo,

ressignificado na figura de homem da lei defende o instituto da legítima defesa do escravizado

contra aquele que se apropriou da sua vida, arvorando-se a um suposto direito/poder de

propriedade sobre o outro.

Sud Mennucci, que realizou pesquisas com fontes escritas e orais na década de 1930

sobre a vida, obra e legado de Luiz Gama, informa que encontrou na oralidade quem “[...]

afirmasse que o caso se passou no Tribunal do Júri da cidade paulista de Araraquara, tendo a

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frase produzido tamanha tempestade que o presidente se viu obrigado a suspender a sessão”

(MENNUCCI, 1938, p. 153).

Célia Marinho Azevedo, por sua vez, alerta para o fato de que “formulações como

esta, que atestavam o direito à violência pelo escravo, não eram comuns entre os

abolicionistas” (AZEVEDO, 1987, p. 193), salientando que o real papel desempenhado por

Luiz Gama permanece ainda desconhecido, sugerindo nas entre linhas da sua pesquisa, mais

estudos sobre esse advogado diaspórico. A autora registra que:

Causou grande polêmica a frase dita pelo advogado abolicionista, o ex-escravo Luiz

Gama, durante o julgamento de um escravo que matara seu senhor: “O escravo que

mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”.

Também ao denunciar o linchamento de escravos, Gama defendeu estes últimos sem

hesitar (AZEVEDO, 1987, p. 192-193).

Alguns autores silenciam sobre esse possível ato de ousadia e ruptura do advogado

negro no Tribunal do Júri da cidade de Araraquara. Entretanto, sobre essa mesma ideia

jurídica e também sobre esse linchamento de quatro escravos que mataram o filho do seu

senhor, ao qual faz referência Célia Azevedo, o próprio Luiz Gama os registra em um único

documento escrito: uma carta endereçada ao seu amigo e jornalista Ferreira de Menezes, que

fora publicada na edição do Jornal Província de São Paulo, em 18 de dezembro de 1880, na

qual ele afirma:

[...]

Acabo de ler na Gazeta do Povo53

, o martirológio sublime dos quatro Espártacos que

mataram o infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale. [...] o escravo que

mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo

indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.

Eu, que invejo com profundo sentimento estes quatro apóstolos do dever, morreria

de nojo, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificável de assassinos

(FERREIRA, 2011, p. 153-154).

Em qual ato estaria o crime, na concepção de Gama? No primeiro, do escravizado que

mata para se livrar do seu algoz que o escraviza e o oprime ou no ato de assassinato cometido

pela multidão? A esse respeito, Elciene Azevedo sustenta que Gama faz uma diferenciação

para considerar os assassinatos, sem deixar dúvidas de que lado estava: “o primeiro era

legitimado pelo direito natural e tido como virtude, o segundo sim seria um crime, por não ter

reconhecido este direito aos escravos” (AZEVEDO, 2005, p. 269).

53

Essa notícia da invasão da cadeia por 300 pessoas que lincharam os quatro escravizados presos por terem

matado o filho do seu senhor fora publicada primeiro na Gazeta do Povo, em 13 de dezembro de 1880

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Já Benedito Mouzar, para avaliar a importância dessa linguagem igualitária que

ressignifica o negro escravizado, remete-nos ao Brasil dos anos oitocentos para afirmar que:

A violência do senhor contra o escravo era “normal”, ninguém ligava, mas uma

eventual violência do escravo contra o senhor era inadmissível, uma coisa a ser

punida com mais violência ainda, um horror! Os “homens de bem”, que não viam

problema algum na violência contra os escravos, se horrorizavam nessas ocasiões

(BENEDITO, 2006, p. 49-50).

Vale salientar que, apesar de o Código Criminal de 1830 ter trazido a possibilidade de

a legítima defesa ser justificável, o estatuto da escravidão continuava a representar o

escravizado apenas como um “bem que se move”, desprovido de quaisquer direitos. O artigo

14 desse código informa que a ação da legítima defesa não terá punição nas hipóteses de o

assassino ter tirado a vida de alguém para evitar o mal maior (ou seja, a sua própria morte ou

de alguém de sua família), mas esse dispositivo não valia para o escravizado. A lei de 10 de

junho de 1835, que vigorou até o ano de 1886, dispunha que:

[...]

praticado um crime por escravo, contra homem livre (brancos, pardos e pretos

livres), reunia-se imediatamente o júri do termo em que o mesmo ocorrera,

proferindo sentença, após breve processo, a qual ainda que fosse de condenação à

morte, seria executada sem recurso (NORONHA, 1991, p. 57).

Gama, através da ideia do direito de legítima defesa ao escravizado, reclamava a

igualdade perante a lei penal para este. Os quatro escravizados que mataram o filho do seu

senhor, aos quais Gama se refere na carta publicada no jornal A Província de São Paulo,

teriam agido “por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento

soberano do instinto revoltado” (FERREIRA, 2011, p. 154). O belo escrito jornalístico no

qual Gama expõe a polêmica ideia é um verdadeiro libelo da liberdade e da igualdade. No

final, ele conclui:

Esses quatro negros, espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres não eram

quatro homens, eram quatro ideias, quatro luzes, quatro astros; em uma convulsão

sidérea desfizeram-se, pulverizaram-se, formaram-se uma nebulosa.

Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos do futuro hão de notá-los entre

os planetas: os sóis produzem mundos (FERREIRA, 2011, p. 156).

Se alguns autores atribuem a Luiz Gama uma invejável oratória (MENNUCCI, 1938,

p. 162), outros afirmam que ele era bom na pena, na escrita (CÂMARA, 2009, p. 229), como

se percebe, aliás, da leitura dos seus escritos jurídicos e jornalísticos. Escrevendo artigos para

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jornais, poesias ou em processos judiciais, o seu lugar de fala é sempre o do negro. E,

respondendo à altura do sistema opressor que vigorava no Brasil, por vezes esse lugar de fala

é o do negro radical, como o vêem alguns autores, a exemplo de Raymundo Faoro, para quem

Luiz Gama era um dos que, “[...] perturbando a sociedade hierárquica com as ideias de

igualdade” (FAORO, 1985, p. 453), sonhava “[...] com um regime igualitário que aniquilaria

os preconceitos de raça, superioridade social e de fortuna” (FAORO, 1985, p. 453). Gama é

visto por esse autor como um dos precursores dos jacobinos54

brasileiros, que de forma

ruidosa se alvoroçavam na campanha abolicionista.

Radical também foi como os fazendeiros e senhores de engenho de norte a sul do país

passaram a vê-lo depois de o mesmo externar o seu pensamento jurídico sobre o direito à

legítima defesa, conforme assinala o pesquisador e advogado paulista Nelson Câmara55

: “Essa

afirmação extremada de Luiz Gama ecoou como vendaval por todo o País e sacudiu de temor

os senhores de escravos ao visualizarem o avanço do radicalismo pela liberdade” (CÂMARA,

2010, p. 144).

Se a linguagem radical foi motivo de repulsa para os mercadores de carne humana, a

palavra dita não volta e encontrou eco nos mais variados setores da sociedade paulista,

influenciando e inspirando as lutas pela abolição da escravidão naquela província, que

segundo Raul Pompéia era “a mais escravocrata do império” (MENNUCCI, 1938, p. 113).

Inclusive sensibilizando setores das elites conservadoras, como os “[...] estudantes da

Faculdade de Direito que, espelhando-se em Luiz Gama, defenderiam em seus jornais [...] o

direito do escravo de matar seu senhor para recuperar o direito natural à sua liberdade”

(AZEVEDO, 2010, p. 146).

A proposição da radical e inovadora ideia coloca Luiz Gama como um pensador de

vanguarda. A admiração do advogado diaspórico por jovens oriundos das elites brancas

evidenciava uma forma de ressignificação da imagem do negro no imaginário de parte dessas

elites. Luiz Gama surgia como o advogado empoderado, cuja trajetória de vida, ideias e

atuação militante eram aplaudidas por muitos. Espelhar-se no negro oriundo da diáspora

africana, ser um advogado altivo como ele, passou a ser o desejo de muitos jovens brancos.

Nesse aspecto, também, identificamos a ressignificação identitária, considerando o contexto

histórico brasileiro que era impregnado pelo racismo científico. O advogado, aqui, e não só o

54

Os jacobinos eram os mais radicais defensores da egalité na Revolução Francesa de 1789 e, liderados por

personagens como Robespierre, Marat e Danton, fizeram as reformas mais populares nesse processo

revolucionário burguês.

55

Entrevistamos o escritor Nelson Câmara no seu escritório de advocacia, situado na Rua Ramon Penharúbia, nº

130, bairro Paraíso, na capital paulista, na tarde do dia 20 de janeiro de 2015.

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poeta e o jornalista, fizeram e fazem até os dias atuais, a diferença, ao estilhaçar as máscaras

brancas com altivez e com uma linguagem impecável, na luta pelo direito dos negros

ilegalmente escravizados.

A linguagem de positivação do negro entoada em seu discurso jurídico era o outro

lado da moeda: se, de um lado, o advogado empoderado se afirma como negro (e se torna

respeitado) naquela sociedade que o negava e se esforçava para ser branca, as suas ideias e a

sua atuação militante também favorecem esse empoderamento da população negra

escravizada e livre. A sua atuação e a sua linguagem favorecem essa afirmação identitária

negra, pois aflora uma nova concepção que exalta o ser negro.

Note-se que os fios que tecem essa linguagem escrita nas páginas do jornal são os

mesmos da petição judicial de João Ricardo e Felipe que informam ser “o captiveiro contrario

á natureza” e, portanto, um obstáculo à cidadania negra. E são, também, os mesmos fios do

discurso exarado por sua verve poética, através da qual o Orfeu de Carapinha afirma: “Vejo a

riqueza em demência/Postergando a natureza [...]” (GAMA, 2011, p. 130).

Luiz Gama tem várias faces (advogado, poeta, jornalista, orador). Contudo, em sua

atuação em prol dos marginalizados escravizados e libertos evidenciam proximidade, no que

se refere à contundência discursiva, aos embates e debates sociais para afirmar, valorizar,

defender, humanizar, empoderar e, enfim, primar pela ressignificação identitária negra.

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5 CONCLUSÃO

O filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que “é na linguagem e através da

linguagem que o homem constitui-se como sujeito” (AGAMBEN, 2005, p. 56). Esse sujeito,

sob a ótica do escritor Cuti (2010, p. 22), é o sujeito étnico; ou seja, aquele que se reconhece e

se afirma identitariamente como negro através da linguagem, a exemplo da poética. É o caso

de Luiz Gama, conforme procuramos evidenciar no presente percurso. Ele o fez na condição

de escritor, jornalista, professor, orador, advogado, maçon, no decorrer da sua breve vida, já

que faleceu tão cedo.

A trajetória e a produção escrita de Luiz Gama são exemplos de como essa simbiose

entre a linguagem e a construção do ser se torna possível. Da sua vida de menino nascido livre

e vendido como escravo pelo próprio pai em Salvador, sendo levado pelos mares da

criminalidade para o Rio de Janeiro e, logo após para São Paulo; dos oito anos da sua infância

à adolescência roubados na escravidão até a conquista da palavra escrita, cujo poder lhe

conferiu a condição de provar a ilegalidade do seu cativeiro; do domínio pleno da linguagem

que o lançou no mundo das letras até o surgimento do empoderado advogado que peitou as

elites imperiais na arena racista, trata-se de alguém que fez da linguagem o instrumental para

constituir-se como sujeito construtor da história.

Esse sujeito étnico é negro quando apresenta-se como o Orfeu de carapinha (GAMA,

2011, p. 15) ou quando, em uma linguagem sarcástica, afirma que “[...] tudo é bodarada”

(BERND, 1988, p. 54), identificando-se com as pessoas marginalizadas, indo de encontro ao

pensamento dos grupos hegemônicos que se consideravam supostamente superiores, por

terem a cor da tez branca. Ele é, também, um sujeito étnico quando, na função de advogado e

usando do mesmo artifício linguístico do sarcasmo, desautoriza a ação do estado de exceção

policial que impede a cidadania negra.

Trafegando no contrafluxo de uma literatura carregada de estereótipos que

inferiorizavam ou animalizavam a população negra, através da sua linguagem poética Luiz

Gama não só ressignificou tal população como, também, atingiu os grupos hegemônicos,

atribuindo um novo significado ao negro brasileiro, potencializando-o, sem se deixar levar

pelas amarras do racismo científico em voga no país.

Através de uma linguagem crítica e contundente, indo na contramão dos discursos

instituídos, Luiz Gama exalta a beleza da sua raça e se orgulha da sua ancestralidade africana.

Afirmar é um dos meios de ressignificar, pois ao esvaziar certos signos linguísticos,

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desconstruindo sentidos negativos, a sua produção traz uma outra percepção que positiva o

negro brasileiro.

Na contramão, também, foi a sua luta no campo jurídico contra as instituições do

estado de exceção monarquista, que serviam a um país onde “[...] os interesses escravagistas,

mais fortes e mais convincentes que todas as convenções e convênios haviam se transformado

em pura fé púnica” (MENNUCCI, 1938, p. 142). Questionando o direito através de princípios

jusnaturalistas que humanizam mulheres e homens negros, tirando-os da esfera da

animalização semovente; ou advogando a legítima defesa para o escravizado e representando-

o na condição de igualdade com o seu suposto senhor, estava ele seguindo outros cursos da

história, algo inconcebível naquele contexto escravagista, monarquista e racista.

Foi, também, nas adversidades contra os interesses dos poderosos fazendeiros que ele

empreendeu uma luta que lhe rendeu ameaças de morte (AZEVEDO, 2005, p. 220) e na qual,

ultrapassando as fronteiras da sua profissão de advogado, adentrou o campo de uma militância

que propagava nos jornais e nas ruas a imediata abolição da escravidão. Prova dessa

militância foi a rede de contatos que organizou e com a sua ajuda propiciou a libertação pela

via judicial de mais de 500 pessoas, as quais ele próprio afirma ter “[...] arrancado às garras

do crime” (FERREIRA, 2011, p. 203). Interrogatórios policiais de apurações de casos de

negros fugidos surpreendem ao exibir eclético e numeroso grupo de escrivães, advogados,

juízes, curadores, depositários, avaliadores, médicos e jornalistas liderados por ele, cada um

com uma função específica para garantir a liberdade de pessoas escravizadas (AZEVEDO,

2005, p. 259).

Não era apenas o desejo de um profissional do direito que queria ganhar as causas dos

seus clientes, tratava-se de algo maior, muito maior. Por ocasião do Congresso do Partido

Republicano, no ano de 1873, na cidade paulista de Itu, o abolicionista mostrou-se

profundamente decepcionado e desiludido com a agremiação, cuja maioria conservadora

mostrava-se contrária à imediata abolição da escravidão. Segundo Lúcio de Mendonça

(testemunha ocular do referido congresso), quando Luiz Gama, indignado, tomou a palavra,

Não era já um homem que falava, era um princípio que falava... digo mal, não era

um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia! Ali

estava na tribuna, envergonhando os tímidos, verberando os prudentes, ali estava na

rude explosão da natureza primitiva, o neto da África, o filho de Luiza Mahin!

(MENNUCCI, 1938, p. 160).

Quando o assunto era a luta contra a escravidão, a grande causa da sua vida, que iria

possibiltar a realização da igualdade jurídica entre negros e brancos, a ação e o pensamento de

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Luiz Gama, além de uma sintonia e um mesmo fio discursivo que ressignifica o negro, era

movida por paixão absoluta.

Entrelaçando os fios da sua linguagem poética e jurídica, Luiz Gama atribui um novo

significado ao ser negro no Brasil. Essa resignificação, que passa pela reparação do

imaginário de negativação está explícito na lei 10.639/03 e em outros documentos, a exemplo

do Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-

Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que assegura ao povo

negro a garantia legal da valorização da sua identidade (Brasil, 2013, p. 83). Esse documento

resgata, ainda, outros verbos de ação afirmativa, ao pontuar que “reconhecer é também

valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados

pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes [...]” (BRASIL, 2013, p. 85),

dentre os quais se inclui o poeta e advogado diaspórico Luiz Gonzaga Pinto da Gama.

No final da entrevista por nós realizada na cidade de São Paulo ao tataraneto de Gama,

pedimos a Benemar França que traduzisse o seu ancestral em uma palavra, e ele, com

propriedade, respondeu: “superação”. Luiz Gama superou todas as adversidades que a vida

lhe ofereceu e, como o autodidata da obra do artista paraibano Miguel Guilherme dos Santos,

se esculpiu. Se erigiu realizando “[...] a mais inacreditável obra de cultura autodidática”

(MENNUCCI, 1938, p. 55) e vivendo alto, como a lua do poema para ser grande, de

Fernando Pessoa.

Essa imagem da superação e da ressignificação do escravizado que se tornou poeta,

advogado, jornalista, orador, abolicionista e líder maçônico perpassa os anos. Admirado por

uma gama imensa de negros e brancos, ao falecer, em 24 de agosto de 1882, os seus

contemporâneos externaram esse sentimento através das páginas dos jornais.

Raul Pompéia, estudante de Direito e um dos muitos jovens brancos que o admiravam,

dias depois das exéquias, estampou o marcante artigo “Última página da vida de um grande

homem”, escrito na Gazeta de Notícias, registrando que naquele sepultamento “todas as

classes estavam ali” (FERREIRA, 2011, p. 234), naquele que foi considerado como o maior

cortejo fúnebre até então ocorrido em São Paulo. Dias após, o jornal abolicionista Ça Ira! ,

repercutindo essa notícia, escrevia que “[...] tudo aquilo era imponente, majestoso como o

conjunto de uma apoteose” (FERREIRA, 2011, p. 239). Exatamente dois anos após o seu

falecimento, Raul Pompéia voltaria às páginas do jornal carioca Gazeta de Notícias,

relembrando que na passagem do primeiro ano da morte de Luiz Gama, “[...] um préstito

imenso encheu a rua” (FERREIRA, 2011, p. 246) para levar coroas de flores ao seu túmulo.

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Essa homenagem na data de sua morte se repetiu por muitos anos no Terreno 17 da

Rua 12 do Cemitério da Consolação, na capital paulista, onde, inclusive, ergueu-se, em 24 de

agosto de 1930, a sua herma no Largo do Arouche (CÂMARA, 2010, p. 296).

Ao tomar posse na presidência do Instituto dos Advogados, no Rio de Janeiro, em

1911, Ruy Barbosa afirmou: “Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama...

(aplausos repetidos). Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente

sua amizade, em lutas que nunca esquecerei” (CÂMARA, 2009, p. 273). E, logo depois se

referiu a ele como “[...] um espírito genial; uma torrente de eloquência, de dialética e de

graça” (CÂMARA, 2009, p. 273).

Como se pode observar, Luiz Gama passou a ser a própria imagem ressignificada do

negro, uma forte e positiva referência, uma legenda para pessoas de todo o país,

especialmente para negras e negros, a exemplo de Salustiano Pedro, de Salvador. Nos anos

que antecederam a abolição, ele contrariava um delegado de polícia da capital baiana,

confessando, “[...] sempre publicamente, sua ‘idolatria’ por [...] Luís Gama, que emprestou o

seu nome a um clube abolicionista fundado por ele” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 86). Na

herma do Arouche, na capital paulista, está escrito: “À Luiz Gama, por iniciativa do

progresso. Homenagem dos pretos do Brazil”.

J. Romão da Silva, em publicação editada em 1954, o define como “o homem que

triunfou sobre o destino” (CÂMARA, 2010, p. 307). Enfim, dificilmente teríamos tradução

melhor para esse poeta e advogado diaspórico que, de forma tão substancial, ressignificou a

sua própria vida e tantas outras existências...

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