UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary...
-
Upload
trinhkhanh -
Category
Documents
-
view
212 -
download
0
Transcript of UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary...
![Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/1.jpg)
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CRÍTICA CULTURAL
PÓSCRITICA / DEDC II ALAGOINHAS
ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS
IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA
Jair Cardoso dos Santos
Orientadora: Profa. Dra Maria Anória de Jesus Oliveira
ALAGOINHAS – BAHIA
2016
![Page 2: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/2.jpg)
Jair Cardoso dos Santos
ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS
IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Crítica Cultural Poscrítica/DEDC II Alagoinhas, Departamento
de Educação, Universidade do Estado da Bahia, como requisito
para obtenção do grau de mestre.
Área de concentração: Crítica Cultural.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Anória de Jesus Oliveira
ALAGOINHAS – BAHIA
2016
![Page 3: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/3.jpg)
Jair Cardoso dos Santos
ENTRE AS LEIS E AS LETRAS: ESCREVIVÊNCIAS
IDENTITÁRIAS NEGRAS DE LUIZ GAMA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Crítica Cultural Poscrítica/DEDC II Alagoinhas, Departamento
de Educação, Universidade do Estado da Bahia, como requisito
para obtenção do grau de mestre.
Banca Examinadora
Profa. Dra. Maria Anória de Jesus Oliveira - UNEB
Profa. Dra. Fábia Barbosa Ribeiro - UNILAB
Prof. Dr Osmar Moreira dos Santos - UNEB
Suplentes
Prof. Dr. Eduardo de Assis Duarte - UFMG
Prof. Dr. Roberto Henrique Seidel - UNEB
![Page 4: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/4.jpg)
RESUMO
A pesquisa multidisciplinar em tela estuda parte da produção poética e jurídica de Luiz
Gama, através da qual busca-se identificar se prevalece a ressignificação identitária
negra, considerando sua acirrada luta em prol da igualdade racial de direitos em um
complexo contexto escravagista do Brasil oitocentista. Esse filho da diáspora africana,
ao pensar e construir a sua luta contra os grupos hegemônicos vigentes, ganhou
notoriedade e projeção social e, mesmo após tanto embate em uma terra injusta e
excludente, fez o som da sua voz ecoar até os dias atuais, sendo a palavra a principal
arma de combate ante as amarras racistas. Reconhecido por sua trajetória de vida e pela
produção escrita, há diversas faces a serem vislumbradas. Destacamos, entre estas, a de
um pensador de vanguarda no Brasil, fato que evidencia a sua importância histórico-
social, dentro do contexto de implementação da história e cultura afro-brasileira na
Educação Básica. No trilhar desses estudos, realizamos a pesquisa qualitativa nos seus
aspectos documentais e bibliográficos; no que tange à fundamentação crítica e teórica, a
presente pesquisa respalda-se nos campos da critica cultural, literatura, história e direito.
Esperamos, por fim, contribuir para ampliar mais suportes teóricos e críticos na área em
questão, primando-se pela valorização e ressignificação da história e cultura afro-
brasileira e africana no ensino brasileiro.
Palavras-chave: Luiz Gama, ressignificação, identidade negra, literatura negra, estado
de exceção.
![Page 5: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/5.jpg)
ABSTRACT
The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic
production, whereby it has been pursued the knowledge whether black identity
reframing prevails, considering his hard struggle in favor of racial equality of rights
within a complex slavery context in Brazil during the nineteenth century. This son of
the African Diaspora, for thinking and building his struggle against the prevailing
hegemonic groups, gained notoriety and social projection and, even after so much
struggle in an unfair and exclusionary land, made the sound of his voice echoed to the
present day, the word being the main weapon to fight against racist moorings.
Renowned for his life story and writing production, there are several faces to be
glimpsed. It stands out, for instance, that one of a vanguard thinker in Brazil, fact that
reflects his historical and social importance, within the context of implementation of
history and African-Brazilian culture in Basic Education. Along the path on those
studies, it was accomplished the qualitative research in its bibliographical and
documental aspects; regarding the critical and theoretical background, the present
research draws upon the fields of cultural criticism, literature, history and law. It has
been expected, at last, it may contribute to enlarge more theoretical and critical support
in the area on focus, giving priority for appreciation and reframing to history and
african-brazilian and african culture in brazilian education.
Keywords: Luiz Gama, reframing, black identity, black literature, regime of exception.
![Page 6: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/6.jpg)
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
07
2 AS LEIS E AS LETRAS NO BRASIL OITOCENTISTA E O
LEGADO DE LUIZ GAMA
19
2.1 TRAFEGANDO NA CONTRAMÃO: TRAJETÓRIAS E
TRAVESSIAS DE LUIZ GAMA
23
2.2 VIVÊNCIAS IDENTITÁRIAS DE “UM SOLDADO DE PELE
NEGRA”
30
2.3 LITERATURA UN PASSANT E “MEDO BRANCO” 35
3 IGUALDADE E O STATUS QUO EM QUESTÃO
44
3.1 A PRODUÇÃO POÉTICA DE LUIZ GAMA:
CONTEXTUALIZAÇÃO
46
3.2 LITERATURA NEGRA E RESSIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA
57
3.3 O PALCO RACIAL E NOVAS DESMONTAGENS
66
4 ESTADO DE EXCEÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO E
RESISTÊNCIAS NEGRAS
71
5 CONCLUSÃO 94
REFERÊNCIAS 98
ANEXOS 103
![Page 7: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/7.jpg)
7
1 INTRODUÇÃO
Quem adentra o Cemitério da Consolação, na cosmopolita cidade de São Paulo, talvez
não tenha a exata ideia do número de mortais considerados pouco comuns, cujos restos estão
ali depositados. Nas suas quadras, a profusão de túmulos com nomes famosos salta aos olhos
dos visitantes, assim como a inscrição de sobrenomes portugueses, italianos, libaneses,
japoneses e de diversas outras nacionalidades nos mausoléus, expondo todos eles a um teatral
espetáculo da igualdade que só a morte permite. O seu endereço mais visitado por integrantes
de movimentos negros fica logo na primeira entrada à direita: é o Terreno 17, da Rua 12. Lá
tem um modesto túmulo, em cuja parte frontal da lápide está insculpido:
“Abolicionista Luiz Gama
Luiz Gonzaga Pinto da Gama
* 21.06.1830
+ 24.08.1882”1
O motivo da visita a este palmo medido da Rua 12, como se pode perceber logo à
primeira visita, não são as esculturas de Luigi Brizzolara e Brecheret ou a arte gótica,
românica e neoclássica que abundam em imponentes túmulos das ruas do cemitério
inaugurado no ano de 1858. Ainda que tenham de passar pela vizinha Maria Domitila de
Castro Canto e Melo, também não é o túmulo da Marquesa de Santos que atrai a visita dessas
pessoas que se declaram negros ou afrodescendentes em São Paulo. Trata-se da visita ao
túmulo do baiano Luiz Gama, filho da revolucionária negra Luíza Mahin (FERREIRA, 2011,
p. 199), fruto da diáspora africana e oriundo, portanto, das margens do tecido social brasileiro.
Em 17 de março de 1882, três meses antes do seu último sopro de vida carnal e, dentro
das prerrogativas que as leis do Império do Brasil lhe conferiam, ele, que um dia, fora também
escravizado, em um ato que alguns podem entender como quebra de hierarquia, assinava mais
uma ação dirigida ao Tribunal da Relação da Província de São Paulo.
A quem o empoderado advogado enfrentava como parte ex adversa naquela ação? O
poderoso Barão da Palmeira, da rica cidade de Pindamonhangaba, localizada naquela
província. O que pretendia? Libertar e, consequentemente, propiciar a concretização do
1 Construído como um tributo da Loja Maçônica América (segundo o seu ex-venerável e atual tesoureiro,
Wagner Ricardo Odri, por nós entrevistado na capital paulista, em 21/01/2015). Ao lado do seu túmulo está o de
Benedicto Graccho Pinto da Gama, seu único filho, nascido em 20/07/1859 e falecido em 20/04/1910, aos 51
anos de idade.
![Page 8: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/8.jpg)
8
sonho da igualdade jurídica a oito pessoas escravizadas: Braz, Theotonio, Gregorio, Antonio,
Manuel, Agostinho, Mathias e Joanna, litigantes da Ação de Habeas Corpus tombada sob nº
84/18822 no citado tribunal provincial.
Fatos como esse, cuja pretensão era tirar da subalternização oito cidadams negros,
ajudam a explicar o porquê das constantes reverências à memória do cidadão brasileiro
sepultado no Terreno 17, da Rua 12, da Consolação; e, no lado oposto, dentro do contexto das
relações de poder existentes no Brasil dos anos oitocentos, ajudam a entender o porquê da
taxação de subversivo atribuída a esse que, além de poeta, advogado e conhecido líder
abolicionista, foi também jornalista, líder maçônico e um dos primeiros republicanos
brasileiros (MENNUCCI, 1938, p. 157). Apesar de o seu nome não ter sido vencido pelo
túmulo – como tais reverências atestam –, depois da sua morte, o líder negro foi silenciado
pelo cânone cultural, ficando o seu nome nas margens.
Aliás, o silêncio imposto pelo cânone foi uma das justificativas da pesquisa –
contribuir para dar mais visibilidade a Luiz Gonzaga Pinto da Gama. Ao ler o impressionante
relato post mortem, do coração dilacerado de Raul Pompéia, publicado na Gazeta de Notícias,
sob o título “Última página da vida de um grande homem” 3
, infere-se porque o seu
sepultamento causou tanta comoção e preocupação entre a população negra da cidade de São
Paulo. Eis uma passagem desse relato do referido escritor de O Ateneu:
[...] não sei que grandeza admirava naquele advogado, a receber constantemente em
casa um mundo de gente faminta de liberdade, uns escravos humildes, esfarrapados,
implorando libertação, como quem pede esmola; outros, mostrando as mãos
inflamadas e sangrentas das pancadas que lhes dera um bárbaro senhor (FERREIRA,
2011, p. 227)
O relato transportou o autor do presente trabalho para cenas da vida de inúmeras
pessoas sedentas de justiça, que batem na porta da sua casa ou de seu escritório de advocacia
na cidade negra de Candeias, localizada no Recôncavo da Bahia. A identificação do
pesquisador com o seu pesquisado passara a ser imediata e, claro, ao guardar as devidas (e
diferentes!) proporções das cenas vivenciadas, o primeiro foi tomado da mais absoluta
surpresa ao se deparar com a grandeza do segundo – trata-se de uma biografia, no exemplo da
qual os operadores do direito devem se espelhar. E não só eles. Todo o país.
Conhecer o vulto desse cidadão que se autoinventou poderá ter o condão de evocar em
2 Estes autos localizam-se no Arquivo Público do Estado de São Paulo, com a seguinte numeração, para efeitos
de pesquisa: 9000107850022.
3 Fragmento constante do relato publicado (na íntegra) no livro de Lígia Fonseca Ferreira (2011, p. 227).
![Page 9: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/9.jpg)
9
negros e não negros elevação da autoestima, sentimentos de cidadania e desejos de construção
da dignidade humana.
Assim, não conhecer a biografia e o pensamento do poeta e advogado diaspórico Luiz
Gama empobrece a ideia de nação democrática, plural, enquanto abstração jurídica que
pretende englobar representações de todos os segmentos étnicos do país; e esse fato da
grandeza moral do pesquisado traduz-se em uma das justificativas para a pesquisa, em uma
época de poucos exemplos nos quais possamos nos espelhar.
Essa pesquisa interdisciplinar tem, portanto, como contribuição e diferencial
possibilitar ao leitor – à luz dos estudos culturais, da literatura, do direito e da história – uma
re/leitura de alguns textos poéticos e de um texto jurídico de Luiz Gama, com o propósito de
identificar a ressignificação identitária negra considerando-se, para esse fim, o atual contexto
de implementação (não a contento), da lei Federal 10.639/03 e demais documentos oficiais
atinentes à mesma. Esperamos, por meio do presente estudo, contribuir para ampliar mais
suportes teóricos e críticos favoráveis à demanda atual, primando-se pela valorização e
ressignificação da história e cultura afro-brasileira e africana no ensino brasileiro.
Vale ressaltar que a leitura de alguns textos do aludido autor abrangerá o complexo
contexto do Brasil da segunda metade do século XIX, gerido sob as rígidas normas da
sociedade escravocrata, cujos setores privilegiados faziam o jogo da dissimulação e do
conluio, quando o assunto era a escravização e o trabalho compulsório de humanos de cor
negra vindos d’África ou nascidos no próprio país.
Dentre os estudos realizados sobre a vida e a obra de Luiz Gama, embora procedentes
de diversas áreas do conhecimento, dos quais destacamos o campo da história, da literatura,
do direito, crítica cultural e jornalismo, constatamos grande reconhecimento em relação à sua
trajetória de lutas, conquistas e produções nessas áreas. Nessa linha de pensamento, Maria
Eugenia Paulino (2010, p. 9), acertadamente, intitula a introdução da sua dissertação,
referindo-se ao insigne autor como “Uma vida além do seu tempo”. Partindo dessa premissa,
nos debruçamos sobre alguns textos do referido autor, considerando a relevância e atualização
da sua obra para os dias atuais. Interessa saber, portanto, em que consiste a ressignificação
identitária nas escrevivências de Luiz Gama? Essa é a nossa questão central.
Assim, outra justificativa para o presente estudo encontra-se, mais especificamente, no
campo do ensino formal, pois é notório que as elitistas políticas educacionais brasileiras
institucionalizaram o racismo no país. O silêncio, a invisibilidade e a desqualificação,
impostos como política de Estado ao papel desempenhado por lideranças negras na
construção da história do Brasil, fazem parte do racismo institucional, o qual “[...] implica
![Page 10: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/10.jpg)
10
práticas discriminatórias sistemáticas fomentadas pelo estado ou com o seu apoio indireto”
(GOMES, 2005, p. 53). Entende-se por “estado” todas as instituições que constituem o corpo
da administração pública federal, estadual e municipal. Assim, um ato discriminatório de um
policial estadual ou federal contra a dignidade de uma pessoa negra configura-se como prática
desse racismo. No campo do direito penal pratica-se crime por ação ou omissão e, no caso do
racismo institucional, o Estado o pratica também quando silencia sobre questões que deveria
fomentar.
Na primeira década do presente século, através da introdução da lei 10.639/03
(ampliada posteriormente pela lei 11.645/08) e da lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade
Racial), o Estado brasileiro, enfim, reconheceu que praticou o racismo institucional e
estabeleceu (por decreto!) a necessidade de fazer conhecidas (e reconhecidas) pelo país alguns
importantes vultos de tez negra.
Conforme consta do artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(alterada por força das leis 10.639/03 e 11.645/08), incluiu-se entre os conteúdos
programáticos a serem trabalhados por docentes em sala de aula “[...] a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na
formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica
e política pertinentes à história do Brasil” (VIEIRA, 2012, p. 34).
Assim, estatuído pela lei federal, essa necessidade de visibilizar mais as lideranças
negras tornou necessária a edição, pelo Ministério da Educação, das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana que, cujo Plano de Implementação faz menção às valiosas
vozes negras subalternizadas pelo sistema racista no passado (e no presente), propositalmente,
recusadas pelo cânone cultural. Entre essas vozes diaspóricas está a de Luiz Gama, ao lado de
Zumbi dos Palmares, Luíza Mahin, Aleijadinho, Cruz e Sousa, João Cândido, Solano
Trindade, Milton Santos e Abdias do Nascimento, dentre outros que, apesar de terem
contribuído para a construção histórica do país, passaram por um processo de inferiorização e
invisibilização quanto a esta contribuição (BRASIL, 2013, p. 96). A própria expressão
“negro”, foi criada por esse sistema racial para designar pejorativamente essas vozes, sendo
tal expressão depois ressignificada pelos movimentos negros (BRASIL, 2013, p. 89). Sabe-se,
entretanto, que poucos esforços vêm sendo envidados pelo Estado brasileiro, para, de fato,
garantir eficácia a essas diretrizes curriculares para a educação étnico-racial e o currículo
escolar continua a ser de raiz marcadamente europeia, apesar de órgãos estatísticos, a exemplo
do IBGE, afirmarem que o Brasil tem maioria negra e “parda”.
![Page 11: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/11.jpg)
11
Por outro lado, depois de uma década de muitas discussões, arquivamentos e reveses,
no ano de 2010, entrou em vigor o Estatuto da Igualdade Racial, que dedicou os artigos 9 a 20
à questão da Educação (CURIA E OUTROS, 2013, p. 1052-53), ratificando as prerrogativas
negras das leis que o antecederam e instituindo nas escolas de ensino fundamental e médio a
disciplina História Geral da África e do Negro no Brasil.
O retrocitado documento do Ministério da Educação (BRASIL, 2013, p. 96) delega
aos sistemas federal, estadual e municipal de ensino, bem como às unidades escolares,
inclusive de nível superior, o papel de viabilização do registro da história não contada dos
negros brasileiros e inclusão de lideranças negras em materiais pedagógicos a serem
trabalhados junto aos corpos discentes.
Sendo a busca do chamado estado democrático de direito – que enfatiza a cidadania e
a dignidade da pessoa humana – um dos princípios fundamentais estatuídos pela constituição
vigente (CURIA E OUTROS, 2013, p.7), torna-se necessário que o sistema educacional passe
por um processo de democratização quanto aos seus conteúdos, valorizando-se a riqueza da
diversidade étnico-racial do país, promovendo-se a ressignificação do “ser negro”,
contribuindo para a assunção da pertença étnico-racial e para a elevação da autoestima dos
estudantes negros. Trazendo no seu bojo o objetivo de resgatar “[...] historicamente a
contribuição dos negros na construção e formação da sociedade brasileira” (BRASIL, 2004,
p.8), a Lei 10.639/03 traz, também, a necessidade de pesquisas que ajudem a desconstruir as
imagens negativas produzidas sobre os africanos e sua descendência pela sociedade brasileira
ao longo dos intermináveis anos de escravização do ser humano e no pós-abolição.
Ressignificar o “ser negro” significa dar um novo sentido àquele conjunto de ideias racistas
que foram cruelmente formatadas pela ideologia do branqueamento, tornando-se “verdades”
para parte da população, inclusive para parcelas da população de tez negra que, influenciadas
por essa ideologia, passaram a se inferiorizar e decair em sua autoestima. Ressignificar exige
perspicácia e esforço de todos os movimentos sociais, a exemplo do que fez e faz o
Movimento Negro, conforme lembrado nas citadas Diretrizes:
[...] o termo negro começou a ser usado pelos [supostos] senhores para designar
pejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavra se estende até
hoje. Contudo, o Movimento Negro ressignificou esse termo dando-lhe um sentido
político e positivo. Lembremos os motes muito utilizados no final dos anos 1970 e
no decorrer dos anos 1980, 1990: Negro é lindo! Negra, cor da raça brasileira!
(BRASIL, 2004, p. 15-16).
![Page 12: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/12.jpg)
12
Vale ressaltar que o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2013), publicado após as Diretrizes (BRASIL, 2004),
deu o norte às práticas pedagógicas para as instituições de ensino do país, com a finalidade de
ser reconhecida a importância dos afro-brasileiros no processo de formação nacional, nesse
propósito de republicanização da escola brasileira.
O referido plano busca implementar uma instituição escolar democrática, plural,
traçando caminhos para uma educação das relações étnico-raciais. Ele define seus próprios
eixos fundamentais, dando ênfase à necessidade de fortalecimento da Lei 10.639/03 em todas
as unidades da federação e estabelecendo as políticas de formação (inicial e continuada) para
profissionais da educação e de materiais didáticos como as suas principais ações operacionais;
ele estabelece, também, as atribuições dos sistemas de ensino, conselhos de educação, grupos
colegiados, núcleos de estudo e instituições de ensino, além de traçar ações para os diversos
níveis e modalidades do ensino.
Enfatizando que há uma estrita correlação entre pertencimento etnicorracial e sucesso
escolar (BRASIL, 2013), o citado plano advoga a necessidade do empenho do sistema
educacional brasileiro no sentido de valorizar a diversidade cultural no ambiente escolar.
Dessa maneira, trazer à cena atual a importante trajetória de Luiz Gama como
referência para a afirmação identitária negra, pode favorecer outros estudos e imersões em
face da sua rica e variada produção poética, jornalística e jurídica, indo ao encontro das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino da História e Cultura Africana e Afro-
brasileira e demais documentos oficiais (o Plano e o Estatuto, por exemplo).
A hipótese que aqui se aventa é de que a trajetória e a obra de Luiz Gama podem
favorecer a afirmação e a ressignificação identitária negra. Iremos, portanto, adentrar parte da
sua produção, a fim de identificar em que consiste a aludida ressignificação.
Quanto à sua linguagem jurídica, observe-se, a título de exemplo, que a ideia esboçada
por esse advogado sobre a legítima defesa, afirmando ser legítimo ao escravizado assassinar o
seu senhor (AZEVEDO, 1987, p. 192), como em ato de autodefesa. Tal pensamento inovador
subverte a ordem legal no contexto escravocrata do Brasil oitocentista. Vale ressaltar que o
cânone jurídico daquela época não admitia a existência de personalidade jurídica ao
escravizado, considerando esse como não portador de direitos.
Saliente-se, ainda, que vários escritos jornalísticos e discursos orais de Luiz Gama
também reforçam a possibilidade de uma construção de igualdade racial de direitos. Alguns
contemporâneos seus informam que, quando Luiz Gama falava sobre a igualdade, “[...] já não
![Page 13: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/13.jpg)
13
era um homem que falava, era um princípio que falava... digo mal, não era um princípio, era
uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia!...” (MENNUCCI, 1938, p. 160).
No que diz respeito à metodologia, no trilhar desses estudos, predomina a pesquisa
qualitativa nos seus aspectos documentais. Nessa trajetória de estudos procedeu-se à análise
de alguns versos de poesias da única obra de cunho poético escrita por Luiz Gama: as
Primeiras trovas burlescas de Getulino, publicadas pelo próprio autor em duas edições – a
primeira, em 1859, em São Paulo, e a outra, em 1861, na capital do império brasileiro. Alguns
versos de dez poemas seus foram selecionados para o presente estudo: No cemitério de São
Benedito, Prótase, No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral, Lá vai verso, Quem sou
eu?, A cativa, Minha mãe, Epístola familiar, Sortimento de Gorras e Que mundo é este?
Tais versos possibilitam uma re/leitura da linguagem de Luiz Gama em suas
abordagens igualitárias e identitárias. A publicação, em 2011, de uma edição das Trovas pelo
governo do Estado da Bahia, através da Fundação Pedro Calmon e a edição do trabalho Com
a palavra, Luiz Gama, de Lígia Fonseca Ferreira (2011), trouxeram a lume essas importantes
fontes primárias apropriadas para o estudo em tela.
Dentre os processos judiciais que tivemos acesso, entre os dias 11 e 30 de janeiro de
2015, no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo, figuram alguns autos intitulados de ações de liberdade, habeas corpus e autos de
indagação, todos subscritos pelo rábula baiano.
Dessas citadas postulações negras e não negras, selecionamos para análise do estudo: a
petição inicial do Habeas Corpus impetrado no Tribunal da Relação de São Paulo, tombado
sob o nº 26/18774, no qual os supostos negros fugidos Felipe e João Ricardo são litigantes.
Escolhemos esse libelo por diversos motivos: pelo teor dos argumentos do advogado
diaspórico, que denotam laços identitários na linguagem do seu autor, pela atualidade do tema
que ele traz, enfocando o racismo institucional praticado pela polícia e pelo fato de os autores
desta ação serem considerados “negros fugidos”, evidenciando a presença do constante e
ininterrupto estado de exceção, sobre o qual estuda o filósofo italiano Giorgio Agamben, um
dos principais referenciais teóricos do presente estudo.
Outros documentos históricos que o presente estudo coletou na cidade de São Paulo
foram as atas da Loja Maçônica América, da qual Luiz Gama foi venerável. Foram analisadas
4 Localizamos os autos desse processo no lote 2010.0700.0616 do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
![Page 14: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/14.jpg)
14
as atas de reuniões5 realizadas entre os dias 26 de agosto de 1874 e 29 de julho de 1881,
principalmente aquelas referentes a reuniões presididas pelo líder maçônico.
Ainda em São Paulo, foram entrevistados o Sr. Benemar França, tataraneto de Luiz
Gama (CÂMARA, 2010, p. 304), o Sr. Wagner Ricardo Odri, tesoureiro da Loja Maçônica
América (da qual Gama foi venerável) e o escritor Nelson Câmara, um dos seus biógrafos. Na
capital paulistana a pesquisa fez incursões no Cemitério da Consolação (local do
sepultamento do pesquisado) e na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP),,
instituição que o teria rejeitado como aluno e que, enfim, entronou o seu retrato pintado a óleo
na Sala Visconde de São Leopoldo, em um ato de desagravo. No desejo de constatar a
presença do poeta e advogado diaspórico em sítios da cidade que o viu nascer e se erigir
através do uso da palavra, visitamos, também, a Rua Luiz Gama, no Cambuci, a Praça Luiza
Mahim, na Freguesia do Ó e o Largo do Arouche (onde fora colocada a sua herma, em uma
“homenagem dos pretos do Brazil”, em 1930).
Desde as primeiras décadas do século XX, pesquisas realizadas por diversos
estudiosos vêm mostrando importantes análises sobre Luiz Gama. Uma das mais antigas é O
precursor do abolicionismo no Brasil – Luiz Gama, de Sud Mennucci, lançado no ano de
1938. Ao ocupar a cadeira de nº 15 da Academia Paulista de Letras – que tem o poeta negro
como patrono –, o autor desta obra, no afã de escrever sobre o patrono da cadeira que iria
ocupar, além de fartar-se das fontes da tradição oral, trouxe à lume escritos de autores que
conviveram com Luiz Gama, os quais contribuem para um estudo acerca da sua obra.
Ao lado desse trabalho de Sud Mennucci, uma das obras mais ecléticas sobre a vida e
produção do intelectual baiano é o trabalho intitulado Com a palavra, Luiz Gama, da profa.
Lígia Fonseca Ferreira (2011), que traz algumas das suas mais significativas poesias e
diversos artigos publicados em jornais paulistas, nos quais Luiz Gama ridiculariza as
instituições e seus representantes, os quais sustentavam a escravidão e o racismo: a justiça, o
clero católico, os senhores escravocratas e a monarquia, escancarando as suas contradições,
tudo às claras e sem subterfúgios. São textos que expõem a nu debates jurídicos públicos entre
o rábula baiano e os grupos dominantes do conluio escravocrata.
O livro dessa pesquisadora traz, logo no seu início, um lacônico e bem escrito artigo
do jurista Fábio Konder Comparato, cujo título é: Luiz Gama, contemptor de nossas falsas
elites, no qual se afirma que o advogado baiano colocou em prática as ideias de Cícero,
importante jurista romano. Este trabalho da profa. Lígia Ferreira elenca várias cartas escritas e
5 Essas atas foram gentilmente colocadas à nossa disposição, no dia 21/01/15, conquanto não fossem
fotografadas, digitalizadas ou de outra forma reproduzida para além do templo maçônico.
![Page 15: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/15.jpg)
15
assinadas por Luiz Gama, como a que foi dirigida ao filho, Benedicto Gracho e a sua
autobiografia escrita a pedido do amigo Lúcio de Mendonça. O livro traz, ainda, máximas
ditas por Gama e diversos escritos sobre a sua morte, além de cinco depoimentos sobre ele,
escritos por seus contemporâneos.
Além do imprescindível trabalho de Lígia Ferreira, outra publicação da área de letras,
cuja apropriação do conceito de literatura negra se dá nesta pesquisa é Introdução à literatura
negra, de Zilá Bernd (1988), ao analisar diversas obras literárias de autores negros e colocar o
Orfeu de Carapinha como um marco, no nascedouro dessa literatura negra, ao produzir
afirmativas poéticas da sua pertença étnico-racial.
Ainda da área literária, o livro Literatura negro-brasileira, de Cuti (2010), além da
discussão do conceito de literatura negra, também possibilita ao leitor visualizar a poesia de
Luiz Gama como um marco na história da literatura brasileira, uma vez que esse autor o
coloca como o precursor da literatura negro-brasileira.
O professor Eduardo de Assis Duarte (2009), autor, dentre outras publicações, de
Machado de Assis afro-descendente: estratégias de caramujo, seleciona, organiza e comenta
a produção machadiana (romances, crônicas, contos, poesias e textos de crítica teatral),
através da qual pode-se estabelecer paralelos com a produção do assumido poeta de
carapinha.
Dois trabalhos publicados por Elciene Azevedo trouxeram importantes contribuições
para os estudos sobre Luiz Gama e, naturalmente, para esta pesquisa: Orfeu de carapinha: a
trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo (2005) e O direito dos escravos
(2010). No primeiro trabalho, a autora dá relevo ao poeta da assunção negra – conforme o
próprio título da obra denuncia – e enfatiza o perfil do “rábula da liberdade”, debruçando-se
sobre alguns processos nos quais ele atuou e mostrando, ainda, a figura radical, ímpar, do
republicano e abolicionista. Trata-se de uma biografia do Orfeu de Carapinha. No segundo
trabalho, a autora interpreta as atuações de Luiz Gama e do seu discípulo e sucessor Antonio
Bento, questionando se as mesmas representam fases do abolicionismo paulista,
respectivamente, “legalista” e “radical”. E, ao contrário de ver o negro como um agente
passivo do processo de abolição da escravidão, a presente abordagem o coloca também como
ator do teatro social, cujas aspirações foram abraçadas por Luiz Gama, sendo essa a temática
do segundo capítulo do livro, que mais nos interessa.
As pesquisas sobre Luiz Gama contam, também, com três trabalhos do advogado
Nelson Câmara. Ele escreveu O advogado dos escravos – Luiz Gama (2010) e Escravidão
nunca mais! Um tributo a Luiz Gama (2009), sendo que no primeiro trabalho o autor traça a
![Page 16: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/16.jpg)
16
trajetória do negro baiano, desde o seu nascimento até a sua morte, destacando os seus
variados perfis nas áreas nas quais atuou; no final dessa obra, relata as homenagens post
mortem ao tribuno baiano; no segundo trabalho há apenas um capítulo dedicado ao Orfeu de
Carapinha: Luiz Gama, paladino da abolição, no qual o autor acrescenta alguns dados da
presença gamista nas arenas abolicionistas da província de São Paulo e a sua árvore
genealógica. A camélia branca: 1882, romance histórico ambientado na São Paulo da década
de 1880, época em que Luiz Gama morreu, também é da autoria do citado escritor, porém, tal
trabalho não é citado nesta pesquisa.
O trabalho de Célia Maria Marinho de Azevedo (1987), “Onda negra, medo branco”
remete o leitor àquelas personagens defendidas por Luiz Gama e que tanto medo provocava
nos senhores: os negros, aos quais o advogado pretendia dar o status de igualdade jurídica. Ao
publicar esse trabalho, Célia Azevedo, impressionada com a ousadia e a inovação jurídica do
rábula, ao defender o direito ao instituto da legítima defesa, sugere aos estudiosos do Brasil a
pesquisar as ideias desse tribuno negro.
Da editora Expressão popular, pouco conhecida nos meios acadêmicos e que edita
biografias de personagens que ficaram nas margens da história, Mouzar Benedito (2006)
apresenta o seu opúsculo Luiz Gama: o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luíza
Mahin, no qual faz o traçado, em linguagem coloquial e de forma bastante resumida, dos
vários perfis do negro baiano.
Acrescente-se, ainda, que, para compreender algumas questões relativas à justiça
brasileira do século XIX, foram estudados três capítulos da coletânea Direitos e justiças no
Brasil, organizada por Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (2006):
Reescravização, direitos e justiças no Brasil do século XIX, de Keila Grimberb; O direito de
ser africano livre: Os escravos e as interpretações da lei de 1831, de Beatriz Galloti
Mamigonian; e Para além dos Tribunais: advogados e escravos no movimento abolicionista
em São Paulo, de Elciene Azevedo. Esses artigos apresentam uma maneira de tratar a história
do direito e da justiça, intrinsecamente ligada à história social.
Vale acrescentar, ainda, o trabalho Direito de igualdade racial: aspectos
constitucionais, civis e penais, de Hédio Silva Jr. (2002), trazendo a lume questões de ordem
histórica e jurídica sobre a condição jurídica da pessoa escravizada no Brasil.
Constituições do Brasil, de Eduardo Campanhole (1989), integra o elenco das obras
jurídicas consultadas na produção dessa dissertação ao trazer, na íntegra, a primeira
constituição brasileira com suas concepções excludentes de igualdade, liberdade e
propriedade vigentes na época em que Luiz Gama viveu e atuou na literatura, na imprensa e
![Page 17: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/17.jpg)
17
nos foros.
Nilma Lino Gomes (2005) traz no artigo Alguns termos e conceitos presentes no
debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão, importantes reflexões a
respeito de conceitos como raça, identidade negra e etnia e, assim como o trabalho de Adam
Kuper (2002) intitulado Cultura – a visão dos antropólogos, serve como esteio para o debate
das questões que envolvem uma identidade negra em Luiz Gama. Salientar-se-á, entretanto,
que nem a obra, nem a vida de Gama são objetos de reflexão nestes dois textos.
Para entrelaçar os fios teóricos com as fontes primárias utilizadas para a leitura do
pensamento de Luiz Gama, além dos já citados livros e artigos, também serviram de
importantes esteios para este trabalho de pesquisa, os conceitos e noções de dispositivo,
estado de exceção e profanação, formulados por Giorgio Agamben, nos seguintes trabalhos de
sua autoria, respectivamente: O que é contemporâneo? (2009) Estado de exceção (2014) e
Profanações (2015).
Quanto ao entrelace dos fios teóricos, acrescente-se, ainda, a apropriação dos
conceitos de desconstrução formulado por Jacques Derrida (2001), de literatura negra
formulado por Zilá Bernd (1988), de escrevivências sugerido por Conceição Evaristo (2015) e
de militância intelectual apropriado por Stuart Hall (2003).
Este estudo também abeberou-se nos seus entrelaces teóricos e críticos, em pesquisas
de autoria da historiadora Lília Moritz Schwarcz: Negras imagens (1996), O espetáculo das
raças (2015) e Retrato em branco e negro (2001); e do historiador Sidney Chalhoub: Visões
da liberdade (2009) e A força da escravidão (2012).
Dividimos o presente trabalho em três capítulos, precedidos da introdução, através da
qual situamos a presente pesquisa, apresentamos a questão central, a delimitação temática, os
objetivos, a revisão bibliográfica, e esboçamos, de modo geral, as visões dos respectivos
estudiosos em relação ao autor em questão, à sua produção poética, jornalística e/ou jurídica,
conforme recorte de cada pesquisador/a e a relevância das suas ideias para o nosso percurso.
No primeiro capítulo expandimos as ideias, procurando contribuir para que o leitor
perceba a importância histórica da militância, atuação profissional e pensamento de Luiz
Gama, em seus vários perfis e único fio de linguagem. Recorremos, nessa perspectiva, aos
estudos sobre a arena racial: o Brasil dos anos oitocentos, mostrando como intelectuais,
políticos e religiosos se comportavam frente à questão da escravização de pessoas negras,
configurando um jogo imoral de dissimulação e conluio.
No segundo capítulo, nos detemos sobre alguns textos poéticos de Luiz Gama, através
dos quais tentamos identificar a sua crítica em relação às imagens da suposta superioridade
![Page 18: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/18.jpg)
18
racial branca sem, contudo, incorrer nas ciladas de inferiorizar o segmento negro. Nessa
produção priorizamos o seu olhar em relação à origem de procedência africana, também, à
crítica social e à imagem da mulher negra, por ele delineada.
No terceiro capítulo focalizamos a luta do advogado diaspórico Luiz Gama nos foros
contra o brutal espetáculo da arena racista, oferecendo, através de anúncios em jornais, os
seus serviços advocatícios, denunciando o racismo institucional da polícia do estado de
exceção monarquista e defendendo o direito à legítima defesa do escravizado contra o seu
senhor. Observaremos o poder da sua palavra para fazer valer a justiça nesta terra socialmente
injusta que é o Brasil oitocentista; e, por fim, que os fios que tecem a sua linguagem
ressignicadora de advogado (que ecoa nos fóruns), são os mesmos fios da linguagem do poeta
e do jornalista que ecoam na imprensa e nas ruas.
Na conclusão, além de desvelarmos a importância do autodidata que se erigiu como
sujeito através da linguagem, buscamos mostrar o papel dessa linguagem na atribuição de um
sentido positivo do negro; e, também, que depois da sua morte, o nome de Luiz Gama passou
a ser uma referência para pessoas negras espalhadas pelo Brasil.
![Page 19: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/19.jpg)
19
2 AS LEIS E AS LETRAS NO BRASIL OITOCENTISTA E O LEGADO DE LUIZ
GAMA
Os anos setecentistas, chamados por alguns historiadores de “Século das Luzes”,
foram os anos em que a dupla Revolução Burguesa – Industrial e Francesa – derrubou os
tronos, balançou os altares e passou a afinar o discurso de afirmação do Ocidente e da
burguesia; o século XIX, no qual atuou Luiz Gama, constituiu-se em anos de contestação
dessa nova ordem (HOBSBAWM, 1986, p. 332). Veja-se, por exemplo, a publicação do
Manifesto Comunista, em 1848, da obra O Capital, de Karl Marx e a ocorrência das Ondas
Revolucionárias de 1820, 1830, 1848 e da Comuna de Paris, em 1871. Essa época e cenário
europeu conhecem, ainda, diversas ideologias que se opõem à história única6 imposta pelo
sistema capitalista burguês, sendo o socialismo e o anarquismo as principais delas.
Nesse mesmo século de contestação, Boas (2004, p. 47) cria a ideia esboçada para um
tema atualíssimo e que influencia os estudos culturais, que é o etnocentrismo, levando os
pesquisadores das várias áreas das ciências sociais a estudar cada cultura singularmente, por
seus próprios termos. Contrapondo-se ao evolucionismo dominante, o antropólogo teuto-
americano inaugura a expressão culturas, no plural, através do particularismo histórico, por
meio do qual considera-se que cada cultura (e cada pessoa) tem sua própria história,
contribuindo para a derrocada da hierarquia que considera povos e pessoas de maneira
binária, tatuando-os como superiores e inferiores. Segundo Nilma Lino Gomes, “[..] o
etnocentrismo é um termo que designa o sentimento de superioridade que uma cultura tem em
relação a outras” (GOMES, 2005, p. 53), podendo a exacerbação de tal sentimento
transformar-se em racismo, na hipótese de este passar a considerar os diferentes como
inferiores (GOMES, 2005, p. 54).
Em um dos vieses de interpretação sociológica, esse binarismo superior x inferior no
Brasil do século XIX traduziu-se nas relações de poder e de dominação estabelecidas não
apenas entre livres e escravizados, mas também entre brancos e negros, não importando a
condição jurídica desses últimos. Prova desse fato é que nessa época as diversas
representações da imagem de uma suposta superioridade racial recaem sobre os brancos,
independente da sua condição social ou econômica. Em sentido inverso, as representações da
imagem de uma suposta inferioridade recaem sobre as pessoas de cor negra,
6 Termo utilizado por Chimamandia Adichie para alertar quanto ao perigo que representa para os povos
oprimidos do planeta a imposição de verdades absolutas pelas potências capitalistas do Ocidente (ADICHIE,
2009, p. 5).
![Page 20: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/20.jpg)
20
independentemente de elas serem escravizadas ou livres, endinheiradas ou pauperizadas,
cultas ou não cultas.
O texto poético de Luiz Gama constituir-se-á em uma oposição a essas representações
criadas pelo discurso colonialista de inferioridade do negro, em uma contestação da hierarquia
binária que desigualiza pessoas no Brasil oitocentista. E não apenas pelo teor da linguagem,
mas também pelo lugar de fala de quem discursa: um ex-escravizado que, sendo filho de um
homem branco e de uma mulher negra e, por essa razão, podendo vestir uma roupagem
embranquiçada de mestiço – já que o discurso predominante era o do embranquecimento
(SCHWARCZ, 2015, p 203) da pele – assumiu a sua negritude, a princípio através da
expressão em que se autodenominava “um soldado de pele negra”, afirmando que “[...]
consigo levava ignorância e vontade inabalável de instruir-se” (MENNUCCI, 1938, p. 137).
Através de informações biográficas de Gama, percebe-se uma imagem positiva do negro, que
se ressignifica enquanto trabalhador livre, operoso e que busca o conhecimento, apesar das
condições adversas estabelecidas pelo tenso jogo das relações raciais.
Quanto ao contexto do século XIX, no qual atuou Luiz Gama, sabe-se que o final
desse século de contestação foi crucial para as diversas desmontagens, ocorrendo nele,
também, a virada linguística: com a descoberta dos signos, a linguística desfere sério golpe no
positivismo matemático, que reinava desde o século XVI, passando a entrar em campo a
ciência engajada, militante, comprometida com a práxis, com a transformação social.
Como herdeiros que são dessa ciência comprometida e em sintonia com as ideias de
Stuart Hall (2003) sobre militância e engajamento intelectual, pensadores dos estudos
culturais vêm buscando tirar das margens os silenciados da história, intervindo,
desmascarando e combatendo o cânone hegemônico, dedicando-se, para tanto, à discussão
transformadora de diversas temáticas:
Belas artes, literatura e conhecimento, as matérias regulares das ciências humanas,
mas abrange também as artes negras da mídia e a esfera vagamente demarcada da
cultura popular (um misto do que costumava ser chamado de folclore e arte
proletária, mais os esportes). Essas formas de cultura são valorizadas de maneira
bastante distinta. (KUPER, 2002. p. 290)
Em diversos campos do conhecimento, os estudos culturais promovem essa
continuidade da “virada” que desmonta, ressignifica, desconstrói, posto que todos os
conceitos são historicamente construídos.
Distante mais de um século do surgimento dos estudos culturais (e por ter sido
relegado às margens pelo cânone, estudado por seus pesquisadores), a linguagem de Luiz
![Page 21: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/21.jpg)
21
Gama vai ao seu encontro no sentido pleno da concepção que afirma que as ideias construídas
podem (e devem) ser desconstruídas.
Assim como alguns pensadores da doutrina jurídica buscam no texto constitucional – à
margem do cânone jurídico – verbos afirmativos, tais como: promover, erradicar, construir
(CURIA, CESPEDES, NICOLETTI, 2013, p. 7) que contribuam para o sonho jacobino da
igualdade, incluindo juridicamente os excluídos, assim agem os críticos culturais, à margem
do cânone cultural, trazendo as vozes silenciadas ao longo da história. Assim também age
Luiz Gama, conforme veremos mais adiante. Segundo Osmar Moreira (2012):
Como em Auschwitz (AGAMBEM, 2008), em que milhões de judeus
desapareceram sem poder testemunhar, ou assombrando os modos do testemunho,
assim são as legiões de pobres e subalternos, cujas memórias foram
sistematicamente apagadas sob a força daquelas ordens de despejo linguístico,
cultural, territorial e ontológico (MOREIRA, apud OLIVEIRA, FRANÇA,
OLIVEIRA, 2012, p. 93).
Como se pode perceber através da afirmação de Osmar Moreira (2012), os despejos
impostos a alguns setores sociais trazem consequências nefastas às suas vítimas,
desterritorializando-as e empurrando-as para as margens. No Brasil, as principais vítimas
desses despejos foram os africanos, arrancados das suas famílias e comunidades para, logo a
seguir, serem submetidos ao regime de trabalho escravo, sendo que alguns deles sofreram
uma dupla desterritorialização, a exemplo dos agudás. Esses, depois da forçada e violenta
vinda para o Brasil, ao voltarem para a África, por força da lei de 7 de novembro de 18317,
não se reconheciam mais nas suas comunidades; e também não eram mais reconhecidos como
dela, passando a ser vistos como “brasileiros” nessas antigas comunidades (CUNHA, 2012, p.
10).
Assim, observa-se que a crítica cultural tem o propósito de deslegitimizar as
“escolhas” feitas pelo cânone hegemônico, ao arrepio dessas massas sociais excluídas que,
naturalmente, também têm suas construções históricas e culturais.
A cultura oficial resulta da imposição de uma história única, que despreza e silencia
segmentos da população, sendo mais um reforço às relações de poder estabelecidas pelas
classes dominantes, razões pelas quais esse padrão cultural estatuído pelo cânone hegemônico
precisa ser contestado. Segundo Jacques Derrida (2001), desconstruir invertendo as
hierarquias é a ordem para desestabilizar e desmontar a ordem:
7 Esta lei, aprovada por pressão inglesa, proibia a entrada de escravizados no Brasil, determinado o seu retorno
para a África. Ela foi o principal instrumental jurídico usado por Luiz Gama para promover a libertação de
africanos.
![Page 22: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/22.jpg)
22
Em uma oposição filosófica clássica, nós não estamos lidando com uma coexistência
pacífica de um face a face, mas com uma hierarquia violenta. Um dos termos
comanda (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar mais alto. Desconstruir
a oposição significa, primeiramente, em um momento dado, inverter a hierarquia
(DERRIDA, 2001, p. 48)
No Brasil, desde os anos iniciais da colonização, o estabelecimento da escravidão
impôs relações sociais rigidamente estratificadas e, por consequência, produziu tensas e
perversas relações de poder e dominação. Dessa forma, os anos que assistiram o pensador
Luiz Gama lidar com essa coexistência nada pacífica, assistiu a bestiais cenas de tortura e
sangue, razão pela qual a sua linguagem – respondendo à altura da violenta hierarquia
estabelecida entre brancos e negros, foi percebida como subversiva e o seu autor foi taxado de
radical e perigoso (BENEDITO, 2006, p. 35).
Assim, nesse contexto de afirmação do mundo burguês e, ao mesmo tempo, de
contestação, deslegitimação e desmontagem dessa ordem que caracterizam a segunda metade
do século XIX na Europa; e de afirmação do poder das classes aristocráticas no Brasil
escravista, Luiz Gonzaga Pinto da Gama, um profanador das instituições racistas e
desconstrutor de discursos, vem desmascarar a dissimulação e o conluio escravocrata.
Analisando a entrada desse ator na cena social brasileira, Lígia Ferreira (2011) afirma:
A partir dos dezessete anos, graças à “transgressão” de um estudante residente na
casa de seu senhor que o ensina a ler e escrever, Luiz Gama, qual Prometeu,
empreende sua prodigiosa conquista do saber e da palavra que lhe devolvem a
liberdade e constroem o improvável destino de um ex-escravo, no Segundo Reinado:
o destino de um homem “letrado” cuja voz se fez ouvir na sua cidade, na sua
província e na sua nação (FERREIRA, 2011, p. 17).
Depois de alfabetizar-se, a conquista do poder da palavra o fez abrir os grilhões da
escravidão, obtendo provas da sua condição de pessoa livre (MENNUCCI, 1938, p. 48),
passando a reinventar-se, erigindo o seu próprio edifício humano e ressignificando totalmente
a sua existência de ex-escravo, de negro. Mais do que ressignificar a sua existência através da
sua própria trajetória e discursos, a linguagem de Gama contesta o sentido negativo atribuído
aos escravizados, além de questionar as leis então vigentes, utilizadas para subjugá-los.
Foi usando desse mesmo poder que o instrumental da palavra confere a alguém, que
ele se tornou um desconstrutor de ideias que desigualam pessoas, um poeta e pensador
jurídico avançado para a sua época. Logo, além de disseminar ideias, colocou a sua militância
para ajudar a construir a possibilidade jurídica que ele mais acreditava: a igualdade formal
entre negros e brancos no Brasil. Entretanto, naqueles idos das décadas de 1850 a 1880, a
![Page 23: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/23.jpg)
23
materialização desse ideal somente seria possível com a abolição da escravidão, razão pela
qual dedicou toda a sua vida à concretização desse mister.
2.1 TRAFEGANDO NA CONTRAMÃO: TRAJETÓRIAS E TRAVESSIAS DE LUIZ
GAMA
Um fato surpreendeu um diplomata francês na sala de ex-votos de uma igreja católica
de Salvador: um quadro do ano de 1847, no qual havia a alegoria de um navio chamado de
negreiro, entrando no porto da cidade (MENUCCI, 1938, p. 117-118) e através do qual o
pagador de promessa agradecia a um santo católico pela graça da chegada de sua mercadoria
constituída por carne humana. O quadro fora colocado ali 16 anos após a lei de 7 de
novembro de 1831, editada pelo Império do Brasil, proibindo o tráfico de pessoas
escravizadas para o país.
O fato, a princípio, chama a atenção por dois fatores – um de ordem religiosa, pois se
espera que da leitura dos textos bíblicos, cristãos de qualquer parte do mundo repudiem atos
atentatórios à dignidade humana, como a escravidão; outro, de ordem jurídica: mesmo
proibido, o tráfico em massa de pessoas da África para o Brasil ocorria corriqueiramente,
sendo o seu sucesso celebrado pública, solene e religiosamente, nesse caso sem qualquer
disfarce, sem qualquer ato dissimulador. Se para o estrangeiro, de nacionalidade francesa, o
fato causou surpresa, para a maioria do povo brasileiro ele era visto com indisfarçável
naturalidade. A hipocrisia daqueles que usavam a religião e os santos católicos para atender a
seus interesses escravistas era tamanha que, até Santo Antonio “[...] era solicitado a propiciar
diversas e numerosas pretensões [como] dar conta de escravos fugidos” (QUERINO, 2014, p.
39).
Nesse ano de 1847, ocasião em que se alfabetizou com a ajuda de um amigo, Luiz
Gama era um adolescente escravizado de 17 anos. Esse filho da alforriada Luíza Mahin
(REIS, 2003, p. 301), depois de nascer e viver livre os primeiros dez anos de sua vida na
capital baiana com os seus genitores, foi vendido como escravo pelo pai, conduzido no
Patacho Saraiva pelos mares da criminalidade (CÂMARA, 2010, p. 30) para a Corte no Rio
de Janeiro e, logo após, para São Paulo, sendo recusado em ambas províncias, por ser baiano8.
8 A Bahia colacionou um grande número de insurreições negras nas primeiras décadas do século XIX,
culminando com a mais importante delas: a Revolução dos Malês, em 1835, e da qual participou a mãe de Luiz
Gama, a costa mina forra Luíza Mahin. A partir desse importante fato, em várias províncias do império, “ser
baiano”, (ou seja: negro procedente da Bahia) passou a ser sinônimo de revolucionário e insubordinado,
originando-se daí a recusa dos mercadores de carne humana em comprar Luiz Gama.
![Page 24: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/24.jpg)
24
Dos 18 aos 24 anos de idade, quando ocupou o seu primeiro trabalho assalariado, na
função de soldado, Luiz Gama, após ser julgado, condenado e preso por ato de suposta
insubordinação, abandona a carreira militar, passando a servir como amanuense da Secretaria
de Polícia de São Paulo. Depois de doze anos de serviço nessa função, no ano de 1869, se
deparou com mais um conluio dos “homens da lei” contra um escravizado africano de
prenome Jacinto, partindo em defesa deste e se chocando frontalmente com os despachos e
decisões do juiz Rego Freitas, “a quem chamara de ‘incompetente’” (FERREIRA, 2011, p.
27) e com as determinações do chefe de polícia, Furtado de Mendonça, sendo, por isso,
demitido do serviço público, “por turbulento e sedicioso” (FERREIRA, 2011, p. 27).
Interessante o fato de ser um servidor público negro, sem diploma, sem verniz e ex-
escravizado, o subversor do status quo naquele momento, o autor de um ato que afrontava
aqueles que ostentavam anéis de brilhante nos dedos. Até porque, ao fazê-lo, o ex-escravizado
colocou em risco iminente o único bem econômico que possuía: o seu emprego, que garantia,
além do respeito, o seu sustento, de sua esposa Claudina Fortunata Sampaio e de seu filho,
Benedito Graco Pinto da Gama9.
Diversas publicações sustentam a tese de que poucas vozes se levantavam contra as
injustiças praticadas em desfavor de pessoas traficadas da África para realizar o trabalho
escravo no Brasil naqueles idos que entremeiam as décadas de 1850 a 1870, alguns
afirmando, nas entrelinhas, que havia um conluio da sociedade brasileira para legitimar e
sustentar tal trabalho (MENNUCCI, 1938, p. 161), mesmo existindo leis proibitivas a ele.
Enquanto dissimuladamente grande parte da população do país fingia que essas leis não
existiam, Luiz Gama (depois de combater a escravidão e o racismo no campo das Letras, com
a sua poesia), articula usar o Direito para tornar tais leis instrumentos da liberdade e da
igualdade jurídica.
Em finais do ano de 1869, ele, depois de ser vítima do racismo, sendo recusado como
colega pelos alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na capital paulista
(MENNUCCI, 1938, p. 140), ingressa com o pedido de Provisão para advogar10
, no Tribunal
da Relação de São Paulo, sendo esse pedido deferido sete dias após:
9 Saliente-se que, até o fim da sua vida, Luiz Gama continuou pobre: o seu próprio túmulo foi construído pela
Loja Maçônica América, da qual foi venerável por quatro períodos.
10
Diante da carência de advogados com diploma universitário, até a década de 1970, perdurou a figura do
advogado provisionado, popularmente conhecido como rábula. Na Bahia, Cosme de Farias, falecido em 1972,
foi um dos rábulas mais conhecidos.
![Page 25: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/25.jpg)
25
Luiz Gonzaga Pinto da Gama, desejando solicitar no fôro d’esta cidade,
interinamente, vem requerer a V. E. que, satisfeitos os requisitos legais, manda
passar-lhe a provisão respectiva; e
P. a V. benigno deferimento
São Paulo, 20/12/1869 11
.
A partir de 1870, quando Luiz Gama passou a exercer a sua profissão de advogado
provisionado e defender nas duas primeiras instâncias da Justiça clientes como a africana
Luíza12
, o conluio escravocrata encontrou na intelligentsia brasileira um importante suporte
para que, sob o manto da ciência, fossem reconhecidas diferenças e se determinassem
inferioridades contra mulheres e homens negros e mestiços (SCHWARCZ, 2015, p. 38).
Para manter a escravização no Brasil e, logo após a abolição, manter a hierarquia, as
distinções sociais e a negação da cidadania e da igualdade à população negra, os “homens de
sciencia” adotaram, produziram e divulgaram ideias racistas já em descrédito na Europa, mas
que serviam aos interesses dos escravocratas. Sob a chancela da ciência, da suposta verdade
única, as principais instituições formadoras de intelectuais do país – as faculdades de Direito
de São Paulo e Recife, de Medicina da Bahia e Rio de Janeiro –, os institutos históricos e
geográficos e os museus etnográficos fortaleceram a trama escravocrata. “Teorias
formalmente excludentes, racismo e liberalismo conviveram no país [inclusive] em finais do
século XIX, merecendo locais distintos de atuação” (SCHWARCZ, 2015, p. 321). Sobre o
papel dessas teorias no século XIX, Lilia Moritz Schwarcz afirma:
Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravidão, e
pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se
apresentavam enquanto modelo teórico viável na justificação do complicado jogo de
interesses que se montava. Para além dos problemas mais prementes relativos à
substituição da mão de obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social
bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania
(SCHWARCZ, 2015, p. 24).
Assim, como se pode perceber, o projeto de nação que vinha sendo construído pelas
elites intelectuais e econômicas excluía o negro. Do ponto de vista étnico-racial, o Brasil
afirmar-se-ia como branco ou índio. A própria igualdade jurídica formal que seria conquistada
mediante a luta política dos escravizados (AZEVEDO, 2010, p. 29) e do movimento civil
abolicionista, do qual Luiz Gama teria sido um precursor (MENNUCCI, 1938, p. 131) já
estava previamente ameaçada com o projeto de exclusão gestado pelas elites do país. O poeta
11
Esse processo foi tombado sob o nº 28/1869 (lote 201007000098, caixa 322) e encontra-se no Arquivo Público
do Estado de São Paulo.
12
Autos tombados sob o nº 71/1870, encontram-se na caixa 7, no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo.
![Page 26: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/26.jpg)
26
diaspórico baiano que se autointitula Orfeu de carapinha – como se verá mais adiante – surge,
portanto, “[...] num campo de disputas políticas de afirmação de uma identidade” (SANTOS,
2015, p. 714) étnico-racial.
Muito antes de as ideias contra o povo negro ganhar foros de ciência no Brasil,
reforçando os interesses escravocratas, emblemático é o papel da Igreja Católica nos
aproximados 350 anos de vigência dessa maquinação atentatória à dignidade de milhões de
africanos e seus descendentes nascidos no país.
Desde os primórdios da invasão portuguesa, no século XVI, várias ordens religiosas
recebiam sesmarias (SANTOS, 2008, p. 45) e dedicavam-se às atividades econômicas de
plantio da cana de açúcar e produção do ouro branco, auferindo lucros à custa da mão de obra
escravizada. O centro e alguns bairros da cidade baiana de Candeias, por exemplo, viu o seu
núcleo populacional inicial surgir em uma dessas sesmarias doadas aos padres jesuítas, onde a
Companhia de Jesus foi proprietária de um engenho entre os séculos XVII e XVIII (LEITE,
1945, p. 256). O Convento de Santa Clara do Desterro, em Salvador, em meados do século
XVIII, possuía 400 mulheres escravizadas à disposição de 75 religiosas (COMPARATO13
apud FERREIRA, 2011), o que equivale a mais de cinco pessoas em cativeiro servindo a cada
freira católica. Tal fato continuava a ocorrer no seio da Igreja no século XIX, quer fosse nas
suas atividades religiosas de reclusão quer nas suas atividades econômicas, a exemplo do que
testemunhou o norte-americano Thomas Ewbank, que visitou o Brasil em meados desse
século:
Num “grande estabelecimento” que a ordem beneditina possuía na Ilha do
Governador, no Rio, “numerosas gerações de rapazes e moças de cor são criadas até
terem idade suficiente para serem enviadas ao trabalho nas propriedades do interior”
(COMPARATO14
, apud FERREIRA, 2011).
Sem pudor, elementos do clero defendiam a escravidão e dela auferiam vantagens
econômicas, razão pela qual Luiz Gama teve sérios embates públicos com padres e bispos,
chegando a questionar em uma das suas máximas publicadas no jornal “O Polichinelo”, de 20
de agosto de 1876, que “se tão horroroso é o Diabo pintado pelos padres, o que seria dos
padres se os pintasse o Diabo” (FERREIRA, 2011, p. 291).
13
Fábio Konder Comparato, em página não numerada da apresentação do trabalho Com a palavra, Luiz Gama,
de Lígia Fonseca Ferreira.
14
Idem, nota anterior.
![Page 27: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/27.jpg)
27
Observa-se dessa afirmação que o seu autor põe em xeque as ideias construídas pela
Igreja sobre sacerdotes católicos, que os apresentava como “homens de Deus”, os quais
cometiam barbaridades com seus semelhantes, sendo capazes de transformá-los em peças de
mercancia. Diante disso, não podiam ser considerados sacerdotes do Deus que faz dualidade
com o demônio, ou seja, não tinham autoridade moral para descrever e repudiar as forças do
mal, representadas pelo diabo, na representação que Gama faz dos homens de batina. Nessa
afirmação, Luiz Gama, ao dessacralizar os sacerdotes de Roma, profana a religião oficial e
única instituída pelo estado de exceção monarquista (CAMPANHOLE, 1989, p. 749).
Quanto aos homens de sciencia, aos doutores burregos (GAMA, p. 23), que do alto
dos seus pedestais nas faculdades de direito ou nos tribunais, conspiravam contra a
possibilidade de igualdade jurídica da população negra, quer sustentando teorias racistas quer
dando sucessivas sentenças em desfavor da sua liberdade, o pensador diaspórico usa a poesia
para lhes dar várias alfinetadas, como se observa desses versos do poema Sortimento de
gorras:
[...] Se temos majestosas faculdades,
Onde imperam egrégias potestades,
E, apesar das luzes dos mentores,
Os burregos saem Doutores;
Se a justiça, por ter olhos vendados,
É vendida, por certos Magistrados,
Que o pudor aferrando na gaveta,
Sustentam – que o direito é pura peta [...]
(GAMA, 2011, p. 23 e 24).
Como se percebe através do excerto acima, considerando, também, essa poesia como
um todo, prevalece nela a crítica aos grupos hegemônicos; no caso da “justiça” e das
faculdades de direito, a crítica aos “Doutores”. O texto poético tira essas instituições do lugar
sagrado em que foram colocadas, profanando-as e desafiando o cânone jurídico. Profanação é
“[...] um termo que provém da esfera do direito e da religião” (AGAMBEM, 2009, p. 44) e
segundo o seu autor, profanar é devolver ao humano aquilo que foi sacralizado (AGAMBEN,
2015, p. 71), quer seja na esfera da religião, da economia ou do direito.
Partindo do texto acima citado, é possível inferir que, ao dessacralizar essas
importantes instituições imperiais, Luiz Gama pretende começar a atingir o propósito de
desativar os dispositivos de poder para possibilitar o surgimento de uma nova ordem política,
social e econômica, em um novo país “[...] sem reis e sem escravos” (FERREIRA, 2011, p.
193).
![Page 28: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/28.jpg)
28
O filósofo italiano Giorgio Agambem busca no pensamento de Foucault uma
explicação para o termo dispositivo (AGAMBEM, 2009, p. 27) e o descreve como um
conjunto heterogêneo, que inclui discursos, instituições, leis, medidas de polícia, cuja função
“[...] se inscreve sempre numa relação de poder [...] e resulta do cruzamento de relações de
poder e de relações de saber” (AGAMBEN, 2009, p. 29). Sendo o dispositivo um termo que
“[...] nomeia aquilo em que e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo sem
fundamento no Ser” (BATISTA, 2015, p. 25), a profanação seria um contradispositivo, uma
operação para desativar esses dispositivos. Conforme assinala Giorgio Agamben, “[...] a
profanação implica, por sua vez, uma neutralização daquilo que profana. Depois de ter sido
profanado, o que estava indisponível e separado perde a sua aura” (AGAMBEN, 2015, p. 68).
Assim, a profanação empreendida por Luiz Gama pode ser entendida como tentativa
de desativar os dispositivos do poder, pois, “[...] a criação de um novo uso só é possível ao
homem se ele desativar o velho uso, tornando-o inoperante” (AGAMBEN, 2015, p. 75). A
sátira gamista possui essa função de desmontagem dos discursos racistas e da ordem
escravocrata. Além de profanar o “sagrado econômico” (leia-se: a propriedade privada sobre a
pessoa escravizada) declarando “guerra de morte aos salteadores da liberdade” (MENNUCCI,
1938, p. 137), Gama ia além, profanando a própria coluna mestra da organização: o estado
monarquista, em uma tentativa de desmonte do sistema político vigente, que sustentava a
escravidão com o seu aparato de exceção (MENNUCCI, 1938, p. 158). Em uma máxima
publicada n’O Polichinelo, no dia 12 de novembro de 1876, Gama afirma que: “A felicidade
dos povos depende da supressão das coroas” (FERREIRA, 2011, p. 296). Alguns autores
sustentam que ele foi um dos mais ferrenhos antimonarquistas e um dos primeiros a somar
fileiras entre os republicanos do país (MENNUCCI, 1938, p. 157), tendo, inclusive, subscrito
o Manifesto Republicano de 1870 (CÂMARA, 2009, p. 207).
O autor do poema Sortimento de Gorras observa que os interesses escravocratas
cegavam a população brasileira de um modo geral, a ponto de os próprios homens da lei,
representantes do direito e da justiça verem a instituição servil como algo natural e como um
direito inalienável, que o ordenamento jurídico colocou no campo do direito da propriedade
privada (AZEVEDO, 2010, p. 26). Aliás, ser possuidor de pessoas escravizados era aspiração
de muitos e as cenas públicas retratadas pelo pintor francês Jean Baptiste Debret
(BANDEIRA, 2013, p. 122, 139, 146, 147, 175), de liteiras, nas quais escravizados
carregavam seus algozes nas ruas, eram desejadas por grande parte dessa população, inclusive
por setores das nascentes classes médias (MENNUCCI, 1938, p. 170-171).
![Page 29: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/29.jpg)
29
Dessa forma, representantes da ciência e da fé, fazendeiros, senhores de engenho,
comerciantes, juízes, políticos, advogados, médicos, professores e outros integrantes de
setores das camadas alta e média escravizavam pessoas e, naturalmente, como quem legisla
em causa própria, defendiam a instituição da escravidão: “Os interesses escravagistas, mais
fortes e mais convincentes que todas as convenções e convênios haviam se transformado em
pura fé púnica” (MENNUCCI, 1938, p. 142).
Quanto ao papel da imprensa nesse jogo de dissimulação de interesses, era comum, no
século XIX, jornais publicarem anúncios de escravizados fugidos, como o Jornal Tolerância,
de Salvador, que publicava, em 27 de junho de 1849: “Escravo fugido do Engenho Matoim,
do Barão de Passé. [Quem encontrar] entregar a Paulo Pereira Monteiro ou Inácio José
Jacobeiro” (SANTOS, 2008, p. 19). É interessante constatar que muitos dos jornais que se
diziam abolicionistas publicavam esses anúncios de escravos fugidos, em um flagrante da
falta de real compromisso de parte da imprensa brasileira com a causa abolicionista.
Salientar-se-á, para o mister do estudo aqui empreendido sobre o papel desempenhado
pelo subversivo Luiz Gama no desmonte que culminou na abolição da escravidão, que São
Paulo era “a província mais escravocrata do império” (MENNUCCI, 1938, p. 113) e, por ser a
que mais crescia economicamente, usava esse fato como justificava para a continuidade do
trabalho compulsório em sua lavoura cafeeira, não sendo poucos os que afirmavam que sem a
existência dessa instituição a província e o Brasil entrariam em bancarrota (CHALHOUB,
2009, p. 43).
Contra esse jogo escravocrata, o profanador Luiz Gama lança mão, a princípio, das
Letras, da poesia. Com muita propriedade, a respeito da sua obra poética, Antonio Candido
afirmou que ela “[...] trafega na contramão” (BERND, 1988, p. 39). Somente encetando uma
“viagem” ao Brasil escravocrata do século XIX, pode-se compreender tal afirmativa. Isso
porque é em oposição aos valores e dispositivos criados por aquela sociedade que atentava
contra a dignidade humana, que a resposta poética será dada, em um tom de contestação e
insubordinação. Essas foram as antíteses apresentadas pela contra linguagem de Gama.
Profanar era preciso.
E, posteriormente, ele, ao tornar-se advogado, usará o poder das Leis, também na
contramão. Apesar das atuações em searas distintas, percebe-se uma coerência identitária no
seu fio discursivo, evidenciada em diversos pontos de encontro entre a sua tessitura poética e
jurídica, conforme veremos mais adiante.
![Page 30: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/30.jpg)
30
2.2 VIVÊNCIAS IDENTITÁRIAS DE “UM SOLDADO DE PELE NEGRA”
Do ponto de vista histórico, raças são “[...] construções sociais, políticas e culturais
produzidas nas relações sociais e de poder” (GOMES, 2005, p. 49). A discussão sobre raça
passa por uma questão de ordem política, mas, enquanto conceito biológico, tornou-se
bastante ultrapassada, sobretudo depois do horror produzido pelo Holocausto nazista na
Segunda Guerra Mundial, fazendo o termo etnia ganhar força, enquanto “[...] conceito usado
para se referir ao pertencimento ancestral e étnico/racial dos negros e outros grupos em nossa
sociedade” (GOMES, 2005, p. 50).
Adam Kuper (2002, p. 303) questiona se a autenticidade da identidade de uma pessoa
dependeria do fato de ela ser fixada pela ascendência. No entendimento de Elciene Azevedo
(2005), Gama, ao afirmar na Bodarrada que “[...] todos são meus parentes” (antecedida pelo
fato de uns serem ricos e nobres, outros pobres), induz-nos a inferir que “[...] o pressuposto
desta afirmação está na ideia de que o ser branco ou negro não era apenas uma questão de
pigmentação ou ainda da condição social de cada um, mas sim de ascendência”, (AZEVEDO,
2005, p. 63), sendo que tal fato seria confirmado pela insistência de Luiz Gama em recuperar
uma origem africana.
A respeito dessas questões que envolvem raça, diferença e pertencimento étnico-racial,
digressão se faz necessária. Conceitos como raça e etnia no Brasil oitocentista são expressões
que em algumas situações possuem eco mais alto do que o próprio conceito de lutas de classes
elaborado pela teoria marxista. Consideramos que não se pode presumir que as relações entre
classes são a única base importante da dominação e subordinação nas sociedades modernas,
ou que elas são as mais importantes em qualquer circunstância (THOMPSON, 1998, p. 200).
No que se refere às questões que envolvem raça e identidade no Brasil do século XIX,
o fato de um indivíduo ser supostamente da mesma cor ou da mesma classe social que outros,
não possui o condão de torná-los iguais; hipoteticamente, a igualdade econômica poderia
levá-los a uma aproximação, à existência de uma identidade entre eles, mas tal identificação
não ocorre automaticamente, pois não se trata de um determinismo histórico.
A sociedade escravocrata brasileira do século XIX não aceitava as diferenças e negava
o negro: a sua cor, voz, religião, idioma, enfim, negava a sua cultura; e negava, também, o seu
direito de ser juridicamente igual. As diferenças econômicas e sociais são comuns durante
todo o processo histórico, sobretudo em tempos de globalização, nas sociedades que tomaram
o capitalismo “[...] como religião moderna por excelência, que se tornou o improfanável
absoluto” (ASSMANN apud AGAMBEN, p. 12). Quanto às diferenças entre as pessoas,
![Page 31: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/31.jpg)
31
Adam Kuper (2002) assinala que:
A questão não reside na existência de diferenças, mas sim no fato de elas serem
tratadas com desprezo, como desvios da norma. Uma cultura hegemônica (branco,
anglo-saxão, de classe média, homem, heterossexual) impõe suas regras a todos. O
restante da população é estigmatizada por ser diferente. Suas diferenças os definem:
eles não são brancos, não são anglo-saxões, não pertencem à classe média e não são
homens e heterossexuais. Sob um aspecto, o grupo dominante simplesmente impõe
suas próprias características ideais como normas definidoras e tacha qualquer um
que seja diferente como fora do padrão. (KUPER, 2002, p. 296).
Assim, segundo esse autor o problema não estaria nas diferenças entre as pessoas, mas
em determinados setores da população instituírem-se como hegemônicos, decidindo e agindo
sob o pretexto de representarem uma suposta vontade da maioria, decretando a tirania que,
muitas vezes vem travestida sob o rótulo de “democracia”. O problema estaria, enfim, em não
perceber ou não querer enxergar o outro em sua grandeza, em sua dignidade, em sua condição
humana.
Na sociedade brasileira oitocentista, que se esforçava para definir-se como branca e
que parte considerável da sua população negra-mestiça procurava “[..] fugir do estigma da
raça [pois] muitos ainda sofriam por terem origem africana” (TELLES, 2003, p. 45), pode-se
asseverar que o poeta Luiz Gama afirmou-se identitariamente como negro? Existem muitos
rastros dessa identidade. Além de possivelmente a mesma ter sido fixada por sua ascendência
africana, existem outros elementos a induzir que a cor da sua pele seja um fator de
aproximação e identificaçao com aquelas pessoas que com ele guardam similares
características fenotípicas.
Por outro lado, situações de conflito (como as formas de poder exercidas pelos brancos
portugueses e seus descendentes impondo o terror racial15
aos escravizados no processo de
colonização no Brasil [e depois dele]) podem se constituir em contextos que permitam essa
aproximação e ajudem a construir um perfil identitário tanto em brancos quanto em negros,
nesse caso em tela.
A consciência, quanto a uma mesma origem africana, e quanto à existência de
interesses comuns com os negros escravizados e livres, pautada na experiência do terror racial
pode ter contribuído para a assunção da identidade negra de Luiz Gama. Quando Franz Fanon
afirma, por exemplo, que “[...] o colonizado está sempre alerta” (1968, p. 28), por
extrapolação, pode-se entender que a expressão “colonizado” agrupa um número de pessoas
15
Essa expressão é usada por Franz Fanon (1968) no trabalho Os condenados da terra, para caracterizar e
exprimir o tom de tensões existentes nas relações entre colonizados e colonizadores.
![Page 32: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/32.jpg)
32
subordinadas que vivem no mesmo contexto e situação de conflito, e de hierarquia violenta,
que caracterizam o terror racial, favorecendo a uma posição de sentimento de igualdade, de
semelhanças entre elas, contribuindo para o surgimento ou fortalecimento de uma identidade
negra.
O coletivo nós (colonizados, negros, discriminados, nesse caso), comumente utilizado,
denota esse sentimento de igualdade em determinados grupos, sendo um indicativo da
formação de uma identidade. Interpretando a análise feita pela antropóloga Sílvia Novaes
sobre esse tema, Nilma Lino Gomes (2005, p. 41) enfatiza que, “[...] de acordo com essa
autora, esse nós se refere a uma identidade, no sentido de uma igualdade”. Esse sentimento de
igualdade entre os semelhantes pressupõe diálogo, interação entre eles, sendo elementos da
constituição de uma identidade negra, desde os tempos da colonização portuguesa no Brasil.
Ou, também, entender-se-ia que aqueles que se encontram na antagônica condição de
colonizadores pudessem desenvolver o mesmo tipo de sentimento de semelhanças e
desenvolvessem posterior identidade:
Se a ideia de raça era funcional para os brancos, afinal, agregando um racismo
comum às suas variadas escolhas políticas, ela desempenhou papel análogo para os
negros. Identidades raciais foram construídas também por eles (e não apenas contra
eles), aspecto muitas vezes negligenciado nas análises do tema (CUNHA, apud
ALBUQUERQUE, 2009, p. 22).
Alguns autores, entretanto, duvidam da existência de uma identidade definida para
determinado grupo de indivíduos. Afinal, os seres humanos representam o somatório de tantos
perfis – negro, rico, mulher, alto, magro, idoso, morador de periferia, letrado... Qual seria o
perfil identitário delineador?
Existem diversas concepções de identidade e Kuper (2002, p. 311), antes de concluir
que todos nós temos identidades múltiplas, também discorre sobre a possibilidade de um
indivíduo afirmar a sua pertença por uma questão de opção pessoal. Nessa linha de
pensamento mas, no caso, referindo-se a Luiz Gama, Azevedo (2005, p.28) pontua que:
Ao construir sua imagem como um homem orgulhoso de sua cor, coerente em seus
poemas ao valorizar o negro e ridicularizar o pretenso branco, este autor está
também construindo um exemplo para ser admirado e seguido, conseguindo através
dele despertar no leitor a reflexão sobre a consciência negra e o racismo
(AZEVEDO, 2005, p. 28).
Observe-se que a autora refere-se a Gama como um negro “orgulhoso de sua cor”,
fazendo-nos perceber, através do seu sentimento de orgulho, além da afirmação da sua
![Page 33: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/33.jpg)
33
pertença étnico-racial, a elevação da autestima, construindo uma imagem ressignificada do
“ser negro” e do “sentir-se negro”, contrária àquelas colocadas em voga pelo sistema racista.
A enunciação do eu lírico negro aparece em diversos poemas de Luiz Gama e os rastros de
identidade negra estão presentes em inúmeros outros documentos que servem de pano de
fundo para vários momentos de sua vida. Na obra intitulada Vozes Literárias de Escritoras
Negras, Ana Rita Santiago (2012) afirma que ele, além de ironizar os pretensos brancos, “[...]
procura criar para si uma identidade local com feições africanas – Orfeu de carapinha –, que
troca a lira pela marimba e pela cabaça de urucungo e é o Pretinho da costa” (SANTIAGO,
2012, p. 105). Em se tratando da ressignificação identitária de Luiz Gama e à sua produção
poética, Duarte (2011, p. 130) o reconhece como:
Satírico mordaz, [que] adentrou a cidade letrada do Segundo Império, nela
afirmando sua etnia e sua história de vida, como um efetivo precursor da consciência
negra. Preservou, em sua poesia, elementos orais da tradição africana e satirizou
valores hegemônicos eurocêntricos. Foi o primeiro escritor afro-brasileiro a resistir
ao ideal de embranquecimento da sociedade da época, não apenas afirmando seu
orgulho étnico, mas ainda zombando dos preconceitos raciais dos escravocratas com
pretensões de nobreza e “pureza” de sangue (DUARTE, 2011, p. 130).
Sendo filho de um homem branco, tendo cor mais clara que os africanos escravizados
no Brasil, Luiz Gama poderia se identificar com os mulatos, morenos e outros mestiços – até
mesmo para ser melhor aceito pela sociedade racista e afirmar-se como mestiço. Teria, nessa
hipótese, afirmado a sua pertença mulata por uma questão de opção, mas não o fez assim, pelo
contrário: segundo Duarte (2011), o poeta diaspórico disse não ao projeto de branqueamento
da nação proposto pelas elites e firmou o orgulho da sua pertença étnico-racial, o que
representa uma ressignificação, ao trazer o elemento da afirmação da autoestima, da altivez do
“ser negro” e do “sentir-se negro”, naqueles idos oitocentistas.
Identifica-se a afirmação identitária negra em alguns traços da linguagem poética de
Luiz Gama, a exemplo do observado em expressões por ele escritas, bem como em textos de
diversos autores que o estudam, tais como: filho da “mais linda pretinha” (GAMA, 2011, p.
152), “um soldado de pele negra” (MENNUCCI, 1938, p. 137), amanuense defensor do
africano Jacinto (FERREIRA, 2011, p. 27), rábula da liberdade (AZEVEDO, 2005, p. 189),
poeta que se enuncia de carapinha (SANTIAGO, 2012, p. 105), jornalista que se autointitula
“afro” (SANTOS apud A TARDE, 2014, p. 2) e abolicionista (CÂMARA, 2009, p. 220).
Também, nas suas atividades como presidente da Loja Maçônica América16
é possível
16
Compulsando, em 28/01/2015 as atas dessa loja maçônica localizada no bairro paulistano do Paraíso,
percebemos que Luiz Gama fora eleito seu venerável em seis mandatos, entre os anos de 1874 e 1881.
![Page 34: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/34.jpg)
34
identificar a afirmação identitária negra na vida de Luiz Gama. Levando-se em conta as suas
proposições naquela casa – consta em ata de uma das sessões dirigidas por ele, uma proposta
sua aos seus pares, de um pedido, a tronco de beneficiência17
, de “uma esmola de vinte mil
réis, á favor da liberdade de Umbelina, escrava da herança de Alexandrina C. de Carvalho”18
,
o que foi aprovado.
Percebe-se com esse exemplo, a identificação e preocupação para com o próximo ou
com os “seus iguais”, algo recorrente por parte do aludido escritor. Lilia Moritz Schwarcz
aponta o líder maçônico, aliás, como a figura mais representativa das lutas abolicionistas em
São Paulo: “Nesse sentido, Luiz Gama, ele próprio um ex-escravo, representava, enquanto
líder e advogado, a figura mais eminente no interior dessa causa, contando inclusive com o
apoio dos maçons da casa América” (SCHWARCZ, 1987, p. 80). Gama contava, inclusive,
com a admiração e o apoio dos maçons mais jovens dessa loja, como o poeta e conterrâneo
Castro Alves e Joaquim Nabuco, ambos estudantes de Direito da Faculdade do Largo São
Francisco. Estes se associaram a ele no seu projeto que “propunha que os maçons assumissem
o compromisso de libertar o ventre de suas escravas e que essa exigência fosse exigida para os
novos maçons” (MELANTONIO apud CÂMARA, 2009, p. 225). Esse projeto de Gama foi
sustentado por outro jovem baiano estudante de Direito: Ruy Barbosa, que contava com 19
anos de idade e também era abolicionista e integrante da Loja América.
A sintonia da ação de Ruy Barbosa, Luiz Gama e outros maçons com a Loja América
foi de extrema importância na ressignificação de negros e negras em São Paulo, como se
observa da criação de ações afirmativas em pleno século XIX:
“[...] com o apoio de Luiz Gama, Ruy apresentou outro projeto na Loja América, e
que foi aprovado por unanimidade, qual seja, o de arrecadar verbas para alforriar
escravos e promover a educação popular de crianças e adultos negros” (CÂMARA,
2009, p. 223).
Esses projetos tiveram repercussão até mesmo na Corte no Rio de Janeiro e dois meses
depois de aprovados “[...] a Loja Maçônica América instalou, na Rua 25 de Março, uma
escola gratuita para 25 crianças, também com aulas noturnas para 160 negros adultos, de
ambos os sexos, todos com material fornecido pela própria Loja” (CÂMARA, 2009, p. 226).
17
Segundo Benemar França, tataraneto de Luiz Gama (CÂMARA, 2010, P. 304), integrante e ex-venerável da
Loja Maçônica Luiz Gama, que fora por nós entrevistado em 29/01/2015, no bairro de Pompéia, na capital
paulista, até os dias atuais é comum no final de cada sessão os maçons levantarem valores que são destinados a
pessoas e instituições, respondendo esse ato pelo nome de tronco de beneficiência.
18
Ata do dia 23 de setembro de 1874.
![Page 35: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/35.jpg)
35
Essa ação traduz-se na adoção de ações afirmativas, que segundo Flavia Piovesan (2005, p.
39) são um poderoso instrumento de inclusão social e buscam “[...) remediar um passado
discriminatório, objetivam acelerar o processo de igualdade, com o alcance da igualdade
substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais [...]”
(PIOVESAN, 2005, p. 39).
A criação dessa escola levanta diversas hipóteses sobre o pensamento e ação de Luiz
Gama e seus confrades da maçonaria. Uma delas é que eles tenham se valido dessa estratégia
afirmativa como forma de empoderamento desses alunos negros frente à escravização, à
pobreza e ao racismo.
A igualdade substantiva, a qual faz referência Piovesan (2005), segundo Joaquim
Barbosa Gomes (2003) tenta evitar “[...] o aprofundamento e a perpetuação de desigualdades
engendradas pela própria sociedade (GOMES, 2003, p. 19). Partindo das leituras desses dois
autores acima, outra hipótese que se afigura reside na reflexão sobre a própria trajetória de
vida de Luiz Gama, pois, sendo ele fruto do conhecimento que ressignifica a vida, teria visto
na educação o viés que um dia conduziria o negro à igualdade substancial. Apesar de a
pesquisadora Lígia Ferreira (2011) ter se referido a Luiz Gama como professor (FERREIRA,
2011, p. 26), não sabemos qual teria sido o seu papel na manutenção e funcionamento dessas
escolas. Certo é que, a depender dos níveis dessa atuação, poder-se-ia considerá-lo um dos
artífices da busca prática pela igualdade de oportunidades pelo viés educacional. Tais fatos e
questionamentos evidenciam a necessidade de estudos que elucidem a forma como o negro é
representado em um pensamento de igualdade substancial de Luiz Gama.
Quer seja nas suas atividades à frente da loja maçônica, na sua atuação como
advogado e militante da causa abolicionista ou no teor dos seus escritos poéticos, jurídicos e
jornalísticos, trata-se de vivências e escrevivências identitárias de um sujeito étnico negro que
vai muito além daquele ao qual faz referência o escritor e poeta Cuti (2010, p. 22, 63). A
atuação e o pensamento de Luiz Gama o colocam, de fato, como “um soldado de pele negra”.
Assim se autointitulando: como de “pele negra”, afirma a sua pertença étnico-racial; e como
“soldado”, se posiciona para o combate na arena racial brasileira. Afirmar e ressignificar o ser
negro, infere-se ser esta a razão da sua luta.
2.3 LITERATURA UN PASSANT E “MEDO BRANCO”
Conforme o escritor Cuti (2010, p. 18), “[...] a antropologia brasileira nasce no Brasil
sob o signo do racismo. A sociologia segue os mesmos passos, a literatura e a história
![Page 36: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/36.jpg)
36
também”. Conforme o aludido poeta, a discriminação racial dava a tônica também nas linhas
e entrelinhas da literatura brasileira, a qual nasceu sob a égide do preconceito contra o negro.
No período em que Luiz Gama entra na cena poética, segundo David Brookshaw (1983) tal
cena não conhecera significativos avanços e isto “[...] fica patente na caracterização do negro
na literatura criativa a partir da segunda metade do século XIX, quando começou a ser
retratado com crescente freqüência em prosa e em verso” (BROOKSHAW, 1983, p. 16). A
literatura dos anos oitocentistas, portanto, continuou a retratá-lo “[...] sob o signo do racismo”
(CUTI, 2010, p. 18), pois não apenas nos primeiros escritos literários feitos em terras
tupiniquins, mas também nos séculos vindouros, a figura do negro, ou era invisibilizada ou
carregada de estereótipos, em representações negativadas, recheadas de preconceito.
Da leitura de algumas obras do século XIX, infere-se que os argumentos dos autores
que pregavam a abolição da escravatura não possuem um apelo fundado nas questões de
justiça, de direito natural, de posicionamento sobre a igualdade jurídica entre as pessoas.
Essas obras evidenciam atitudes de crueldade ou insensibilidade da sociedade brasileira para
com as agruras de africanos desterritorializados e seus descendentes nascidos no Brasil.
Atitudes essas que, quando não representam claramente o conluio, a dissimulação, a
indiferença, a negação da alteridade nesse jogo de subalternidade, na melhor das hipóteses
representam um posicionamento que sugeria uma abolição da escravidão negra para que esta
livrasse os brancos de possíveis atos de vingança dos escravizados contra eles. Observe-se, na
hipótese em questão, que não há a cobrança de territórios perdidos por africanos
desterritorializados, não há a exigência da restituição de um status quo ante19
que fizesse
triunfar os ideais de justiça entre os homens.
Segundo Brookshaw, “a literatura abolicionista partiu da premissa que a escravidão
era ruim para os donos de escravos porque os colocava em contato com degenerados morais”
(BROOKSHAW, 1983, p. 32). Seguindo, assim, essa linha de interpretação, o argumento que
parece ser preponderante é que a desigualdade formal determinada pela instituição da
escravidão é ruim não necessariamente porque é injusta ou desumana, mas porque ela põe a
vida do escravizador em risco iminente. É o que se infere a partir da leitura dos trabalhos
Onda negra, medo branco e O direito dos escravos. Nessa última publicação, a autora afirma:
Histórias de crimes violentos cometidos por escravos contra seus senhores e feitores
repercutiam nas páginas dos jornais paulistas da segunda metade do século XIX,
tirando o sono dos proprietários de escravos e seus familiares. “Cenas de sangue!”,
19
A situação anterior, expressão latina.
![Page 37: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/37.jpg)
37
título que usualmente aparecia em tais notícias, conferia o tom sensacionalista dos
jornais a esses episódios, muitas vezes descritos em minúcias para dar maior ênfase
à crueldade e barbárie das circunstâncias em que ocorriam (AZEVEDO, 2010, p.
37).
Obviamente que as cenas de sangue derramado de escravizados barbaramente
castigados até a morte não eram menos bárbaras do que as descritas nessas cenas acima.
Entretanto, o que realmente interessa para o nosso estudo é o fato de esses atos de resistência
terem produzido tamanho horror nas elites, a ponto de fazer com que parte delas passassem a
aceitar o fim da escravidão. Nos tribunais, ao darem seus depoimentos, a maioria dos
escravizados presos por assassinato de seus algozes – quer fossem seus supostos senhores ou
feitores – não mostrava arrependimento. José Mulato, o gaúcho de 25 anos escravizado em
Campinas e curatelado20
de Luiz Gama, por exemplo, depôs informando ao juízo que matou a
vítima porque ela tentara prendê-lo como “negro fugido’” (AZEVEDO, 2010, p. 76) e que
“havia fugido para ‘se ver livre’ dos maus tratos do feitor da roça” (AZEVEDO, 2010, p. 75).
Assim, essas sangrentas cenas de resistência protagonizadas por escravizados acabaram por
contribuir para o medo das elites e, consequentemente, para o próprio fim da escravidão.
No campo literário, com relação à indiferença da população brasileira à escravização
de pessoas, ressalte-se que, a princípio, a poesia condoreira de Castro Alves fora recebida sem
plateia nem aplausos. Uma indisfarçável indiferença foi a resposta inicial do público do país
(MENNUCCI, 1938, p. 132), denotando um total desinteresse da sociedade pelas questões
referentes a um possível fim da escravidão.
A literatura deixa patente, ainda, a cumplicidade da sociedade brasileira com a
escravidão e o escárnio e a crueldade contra escravizados, conforme se percebe da análise da
crônica “O caixão de Teresa”, na obra Memórias Inacabadas, de Humberto de Campos,
escrita na segunda metade do século XIX. A crônica conta a história de uma mulher
escravizada de prenome Teresa, que juntou vintém por vintém até comprar a sua alforria; e,
para pagar a Deus pela bênção da liberdade, adquirira um caixão de defunto enfeitado como o
dos brancos e o entregara à Igreja do Rosário para conduzir os escravizados mortos ao
cemitério para “[...] que eles tivessem, na morte, uma igualdade que não haviam conseguido
em vida. O caixão levá-los-ia a enterrar e voltaria para a igreja, à espera de outro viajante da
Eternidade”. (CAMPOS, 2009, p. 353-355). O seu autor revela que:
20
No julgamento de escravizados, a lei previa, além do advogado, a presença do curador de escravos, nomeado
pelo juiz. Nesse feito, o curador nomeado não compareceu e Luiz Gama manifestou interesse, sendo nomeado
curador.
![Page 38: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/38.jpg)
38
Ao passar o caixão de um branco, os transeuntes se calavam, compungidos,
murmurando um “Deus te leve!”, com a pena e o terror no coração. Se era, porém, o
caixão de Teresa que atravessava as ruas, aos ombros de quatro negros que levavam
a enterrar um companheiro, os brancos paravam pilheriando, e as senhoras corriam
para a janela, sorrindo, numa zombaria alegre da última vaidade daqueles homens de
cor (CAMPOS, p. 353-354).
Essa mesma igualdade requerida no ocaso da vida era cobrada pela Irmandade de São
Benedito do Convento de São Francisco, em Salvador, que relatava o transporte indigno de
escravizados mortos em um esquife ou padiola chamado de banguê, “[...] tão ludibrioso e
ridículo que serve de irrizão e galhofa pública aos rapazes” (REIS, 2012, p. 147). Observe-se
que, em ambos os casos relatados, as menores tentativas de equiparação dos negros aos
brancos, quer fossem em práticas da vida civil, quer nos atos mais sagrados e mais santos,
como a dos enterros, por exemplo, serviam de zombaria popular (MENNUCCI, 1938, p. 132).
Ao contrário dessa desumanização do escravizado, note-se, no verso abaixo, a
representação que Luiz Gama faz do direito à dignidade na morte, através da interpretação do
poema No cemitério de São Benedito:
Em lúgubre recinto escuro e frio,
Onde reina o silêncio aos mortos dado,
Entre quatro paredes descoradas,
Que o caprichoso luxo não adorna,
Jaz de terra coberto humano corpo,
Que escravo sucumbiu, livre nascendo!
Das hórridas cadeias desprendido,
Que só forjam sacrílegos tiranos,
Dorme o sono feliz da eternidade [...]
(GAMA, 2011, p. 156).
A princípio, o próprio nome do patrono onomástico do cemitério do poema, São
Benedito, santo católico negro muito popular entre as “pessoas de cor” (REIS, p. 54)21
, não
fora colocado à toa, ao nada e, de per si, remete-nos a uma identidade religiosa que se
formava entre os africanos e sua descendência no Brasil. Não consta naqueles idos de 1859
(ano em que a poesia foi lançada nas Trovas) a existência de um cemitério destinado a
escravizados na capital paulista com o nome de nenhum santo católico, muito menos com o
nome de São Benedito. O próprio cemitério paulistano da Consolação, onde os restos mortais
de Luiz Gama foram e estão sepultados, em uma exceção, no ano de 1858 recebera o corpo de
21
Em Salvador, por exemplo, o historiador João José Reis, no trabalho intitulado “A morte é uma festa” assinala
a existência, entre os anos de 1790 e 1830, das irmandades de São Benedito do Convento de São Francisco e São
Benedito da Igreja do Rosário das Portas do Carmo.
![Page 39: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/39.jpg)
39
um negro escravizado para que este ato pudesse marcar a inauguração22
do lúgubre espaço,
remetendo-nos à história da inauguração do cemitério da cidade de Sucupira, na obra O Bem –
Amado (GOMES, 2012).
Segundo Nelson Câmara (2010), essa poesia remete o leitor à ideia “[...] que o negro
tinha direito até à igualdade de sepultamento no cemitério” (CÂMARA, 2010, p. 101) e
segundo João José Reis (2012):
A morte era uma das poucas chances, e a última, de estabelecer simbolicamente a
igualdade entre brancos e negros, escravos e senhores, ricos e pobres. Viver mal,
mas morrer bem, seria o lema. O pobre que consumia economias ou entrava numa
irmandade para ser enterrado com dignidade talvez desejasse se igualar aos
poderosos pelo menos uma vez na vida (REIS, 2012, p. 159).
A condição de ser igual era o desejo do povo negro, mesmo que fosse depois do
desenlace carnal, segundo o autor acima. Na Bahia, não era raridade a existência de áreas
destinadas ao enterro de escravizados nas cidades e vilas brasileiras, para onde levavam,
inclusive (e às vezes, principalmente), escravizados que morriam durante a travessia dos
navios tumbeiros no Oceano Atlântico. A área que existiu entre os séculos XVIII e XIX, no
Campo da Pólvora, em Salvador, destinada aos escravos, indigentes, criminosos e suicidas,
por exemplo, sequer era chamada de cemitério pelas posturas da Câmara da cidade e “[...]
possuía valas comuns e superficiais, ficando os cadáveres à mercê de animais famintos”
(REIS, 2012, p.196).
Assim, como se pode perceber, essas áreas podem ser traduzidas mais como depósitos
de cadáveres do que cemitérios propriamente ditos, até porque “a preocupação em enterrá-los
bem não objetivava dar-lhes sepultura decente, mas evitar a disseminação de doenças” (REIS,
2012, p. 196). Aliás, vale salientar que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, as elites
brancas não apenas achavam desnecessários os cemitérios de negros como temiam “que
funerais africanos terminassem em revoltas escravas” (REIS, 2012 p. 162).
É óbvio que há exceções nessa falta de igualdade na morte, a exemplo da cidade de
Cachoeira: na mesma época em que Gama escreveu o poema ora analisado, essa localidade
baiana possuía, além de dois cemitérios para os brancos de origem portuguesa e um para os
alemães que exploravam a produção e comercialização de fumo, possuía, também, o
Cemitério dos Africanos (também chamado de Cemitério dos Escravos, dos Pretos e dos
Nagôs), onde eram sepultados babalorixás, yalorixás, ogãns, equedes e irmãs integrantes da
22
Informação fornecida em 16 de janeiro de 2015, por Francivaldo Almeida Gomes, o Popó, funcionário do
cemitério, durante visita guiada.
![Page 40: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/40.jpg)
40
Irmandade da Boa Morte. Aliás, o poema gamista que reclama aos escravizados uma
“igualdade que não tiveram em vida” evoca nas memórias de parte da população do
Recôncavo o esforço dessas mulheres de santo para darem uma morte digna às suas
confrades, assim como o desejo da personagem negra alforriada Teresa, criada por Humberto
de Campos e que foi alvo de análise no primeiro capítulo dessa dissertação.
Como foi afirmado anteriormente, ao invés de o escravizado aparecer nas
representações de Luiz Gama desprovido da sua condição humana, o poeta, ao admiti-lo
sendo sepultado em um cemitério o representa na condição de igualdade com os brancos, que
possuíam cemitérios próprios para seus sepultamentos, além de usarem o interior das igrejas
para essa mesma finalidade (REIS, 2012, p. 171). O significado da expressão “humano corpo”
usada no poema para referir-se ao escravizado morto iguala este a todos no momento em que
se é vencido pela paralisia do corpo e do cérebro.
A concepção segundo a qual a morte seria um alívio diante da tortura vivenciada
(“Dorme o sono feliz da eternidade”) representa o desencarne como algo desejado, conforme
se percebe do adjetivo “feliz” usado pelo poeta diaspórico. Observe-se que a liberdade do
escravizado aparece no poema em duas situações, pois o poeta faz a ressalva à sua condição
de liberdade antes de sucumbir “às garras do crime” e também representa a morte como uma
forma de liberdade, de desprendimento do corpo “das hórridas cadeias”, o que seria garantia
para um repouso e uma felicidade que não tivera em vida.
Ainda encetando incursões nos escritos que exibem uma posicionalidade dos homens
de letras quanto à escravização de pessoas, em artigo intitulado “Escravistas versus
emancipacionistas na prosa romântica: as representações senhoriais no romance a escrava
Isaura”, o seu autor, Kleberson da Silva Alves (2010) analisa três diferentes estratégias das
quais se serviram alguns autores consagrados pelo restrito círculo canônico das décadas de
1860 a 1880 para convencer o público leitor à causa abolicionista (ALVES, 2010, p. 01-02).
Alguns dos autores estudados neste trabalho teriam apelado para a sensibilidade com os
sofrimentos dos escravizados e outros para mostrar a inviabilidade econômica da escravidão,
sendo que o escritor Bernardo Guimarães teria usado os dois argumentos no seu romance
Escrava Isaura. Uma terceira forma de convencimento do público leitor para a causa
abolicionista seria “[...] a possibilidade de esses [escravizados] agirem violentamente, como
recurso para justificar a necessidade da extinção da escravidão” (ALVES, 2010, p. 01).
![Page 41: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/41.jpg)
41
Diante das cenas de sangue protagonizadas pela “onda negra”, gerando “medo branco”
(AZEVEDO, 1987)23
, expostas como vísceras de um sistema carcomido e opressor, ao que
tudo indica, teria sido essa última alternativa a mais provável a “sensibilizar” parte das elites
econômicas e políticas do império no propósito do desfazimento – tardio, diga-se de
passagem – do jogo da dissimulação e do conluio escravocrata.
Nessa última linha de posicionamento está Joaquim Manoel de Macedo, que, em 1869
(ano de intensa atividade de Luiz Gama, no final do qual ele começou a advogar) publicou As
vítimas algozes: quadros da escravidão. É indício flagrante desse medo e dessa necessidade
de abolição urgente a seguinte passagem:
Os ódios, os ferozes instintos do escravo, inimigo natural e rancoroso do seu senhor,
os miasmas, deixem-nos dizer assim, a sífilis moral da escravidão infeccionando a
casa, a fazenda, a família dos senhores, e a sua raiva concentrada, mas sempre em
conspiração latente atentando contra a fortuna, a vida e a honra dos seus incônscios
opressores. É o quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes
involuntária e irrefletidamente ao senhor (MACEDO, 2010, p. 19).
Observe-se que o seu autor coloca o escravizado como um “inimigo natural e
rancoroso do seu senhor”. Macedo (2010, p. 19) sustenta que o feroz instinto do escravizado –
comparado a uma grave doença – infeccionaria ou destruiria a família do senhor e poria um
fim às suas riquezas. Assim, a escravidão não era um mal em si, mas para evitar o mal [contra
os seus senhores] melhor aboli-la, é a leitura óbvia que se faz. Nesse sentido, David
Brookshaw enfatiza que a mensagem é clara: “[...] os escravos eram uma segura ameaça a
seus senhores e, acima de tudo, à família de seus senhores” (BROOKSHAW, 1983, p. 33),
logo, o medo deveria ser o elemento motivador do processo abolicionista.
Outra obra de autores emergidos, reconhecidos e consagrados pelo cânone, como a
comédia do ano de 1857, intitulada Demônio familiar, de José de Alencar, figuraria entre os
que defendem essa tese do “medo branco”, para evitar os perigos das cenas de sangue
protagonizadas por escravizados contra seus algozes.
Essa comédia mostra as ações do jovem escravizado Pedro que, “bem cuidado” por
seus senhores, no afã de deixar de ser pajem e tornar-se cocheiro, inventa artimanhas que
possuiriam o condão de desestruturar, quiçá destruir as relações familiares do seu suposto
senhorio. Moral da história: a ter de enfrentar os perigos de uma “onda negra”, representada
23
Nesse trabalho intitulado Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das elites – século XIX, Celia
Azevedo Marinho aborda a ação autônoma e violenta protagonizada por escravizados contra seus supostos
senhores, gerando medo nas elites e, dessa forma, forçando o próprio fim da escravidão.
![Page 42: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/42.jpg)
42
pela presença de “demônios” dentro das residências senhoriais, infere-se a existência de um
“medo branco”, cuja ação mais sensata seria a libertação de todos os escravizados.
O enredo que envolve a personagem Pedro, criado por José de Alencar deixa patente,
aliás, mais um ato dissimulador das elites: ser “bem cuidado” por seu algoz representava mais
um artifício usado por alguns senhores para justificar a sua posse sobre pessoas, o que, em
tese, anularia ou minimizaria os efeitos danosos da escravidão. Esse enredo remete-nos a uma
das passagens da vida de Luiz Gama, quando advogado:
Um dia Luiz Gama estava em seu escritório e entrou um negro que tinha o dinheiro
para comprar sua liberdade, e pediu que ele o alforriasse. Em seguida, entrou no
escritório o próprio senhor do escravo. Surpresa! Ele era um amigo de Luiz Gama.
Não era uma má pessoa, era considerado um bom homem e estava inquieto, triste e
abatido, pois tratava bem o escravo. Conforme dizia, e o escravo não negava, ele o
tratava mais como um pai, sempre foi bom, e não sabia porque o homem queria
abandoná-lo. Argumentou inclusive que o escravo vivia muito bem com ele e
sozinho poderia ser infeliz, poderia não viver bem. O escravo não respondia e ele
não se conformava. Perguntou ao cativo o que lhe faltava em sua casa, insistia em
perguntar o motivo para abandoná-lo. Foi Luiz Gama quem respondeu no lugar do
escravo: “Falta-lhe o direito de ser infeliz onde, quando e como queira”. E procedeu
à libertação do negro (BENEDITO, 2006, p. 49).
Em uma ligeira reflexão sobre a linguagem de Luiz Gama nota-se uma diferença
colossal de posicionamentos vistos até aqui quanto às questões envolvendo a escravidão e o
direito à liberdade e à igualdade de todos perante a lei. Essa prerrogativa de ser livre faculta
ao indivíduo inclusive o direito de ser feliz ou infeliz, conforme ele queira ou não. Observe-se
na linguagem de Gama que o vocábulo “direito” – traduzido em liberdade, igualdade e
autodeterminação como prerrogativa, faculdade de todas as pessoas – é introduzido pelo
advogado na ordem do dia daquela sociedade desigual por excelência, ao contrário dos
discursos literários e jurídicos proferidos até então no cenário brasileiro. Os vocábulos
“onde”, “quando” e “como”, além de darem o tom à autodeterminação do indivíduo livre, dão
a dimensão do significado da palavra liberdade na linguagem de Luiz Gama. Note-se que o
texto remete o leitor a uma imagem autônoma do negro escravizado, dando um novo
significado ao “ser negro” naquele contexto.
Inobstante o fato de existirem literatos brancos nos anos 1850 a 1870 que buscavam
sensibilizar os seus iguais à libertação da população escravizada, ainda que suas letras sejam
discursos carregados de preconceitos; e da existência de reduzidíssimo número de “homens de
cor” na seara literária, imbuídos desse mesmo desejo, questiona-se qual o lugar de do campo
literário-linguístico desses autores e se há uma discursividade negra nesses lugares de fala.
![Page 43: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/43.jpg)
43
Também se esses autores reclamam, de fato, uma condição de igualdade jurídica entre negros
e brancos na sociedade brasileira.
Preconceitos de cor e sutilezas à parte, o que se observa da análise de algumas obras
de escritores brasileiros desse período é, na melhor das hipóteses, o papel de un passant. Em
que medida teriam elas o poder real de convencer a sociedade da dissimulação e do conluio
escravocrata para o fim da instituição servil, poderia se constituir em um viés deste estudo.
Mas o que se pretende mostrar é o lugar de fala e o teor da linguagem de Luiz Gama
nesse contexto. Trata-se da voz e da pena de alguém que percebe a realidade sócio-histórica
brasileira a partir de uma dupla consciência: social e racial, 24
“[...] forjada na experiência e na
memória da diáspora e na escravidão” (SANTOS, 2015, p. 718). Ao contrário desses
posicionamentos acima vistos na literatura – que por vezes reforçavam o preconceito e a
existência de estereótipos racistas –, ele usa uma linguagem pautada na sua própria
experiência de negro e ex-escravizado: ela é direta, dura, intransigente e, por isso, Coelho
Neto disse que “[...] seu verso é leve como a flecha; silva, vai direto ao alvo, crava-se e fica
vibrando” (BERND, 1988, p. 51). E é nessa vibração que o poder da palavra confere, que sua
linguagem é usada na desconstrução de discursos de subalternidade e na construção de um
sentido positivo para o negro.
24
A dupla consciência é um conceito formulado por W. E. B. Du Bois, considerado o pai do pan-africanismo,
conforme se observa através das reflexões de Kabengele Munanga (1986, p. 36).
![Page 44: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/44.jpg)
44
3 IGUALDADE E O STATUS QUO EM QUESTÃO
A subversão na obra do poeta diaspórico Luiz Gama dá o tom ao seu discurso, que é um
só: a desconstrução da ordem política, jurídica, social e econômica estabelecida que,
subalternizando, desigualava a população negra, na qual ele se inclui e com a qual ele
publicamente se identifica. Nesse sentido, aliás, não apenas o seu discurso poético é crítico e
contestador. Em todos os campos do conhecimento que atua, percebe-se luta para fazer valer a
justiça, conforme se infere da leitura de poemas, escritos jornalísticos e de petições iniciais
colacionadas aos autos de processos da justiça da Província de São Paulo.
Vale pontuar que os temas da igualdade, liberdade e justiça muitas vezes se
confundem na produção da sua linguagem antiescravista, sendo palavras sinônimas no seu
vocábulo. No entanto, é importante ressaltar que o termo igualdade é de difícil conceituação
(SILVA, 2003, p. 34), e desde os tempos do domínio das cidades-estados gregas e do império
romano, na antiguidade, tem sido discutida por filósofos e juristas.
O grego Aristóteles, por exemplo, ao desenvolver a noção de desigualdades inatas,
afirmava que os escravizados tinham por natureza ser comandados (SILVA, 2002, p. 19) e um
dos maiores expoentes da própria civilização que criou o direito, o romano Cícero, não
admitia a igualdade entre as pessoas (VILAS-BOAS, 2003, p. 6). Apesar das discussões que
giravam (e giram) em torno da exigência da justiça (ou seja, do direito natural à vida e à
liberdade) no direito positivo, segundo Hans Kelsen, criador da teoria pura do direito, este não
é filosofia moral nem teoria social: é teoria dogmática, é norma (ROSS, 2003, p. 25). A
existência da escravidão no império dos césares constitui-se em prova cabal de que desde o
seu início, direito não se confunde com justiça, podendo ser, inclusive, dois dispositivos
bastante antagônicos, como, aliás, denunciava Luiz Gama no escravocrata Brasil oitocentista.
Segundo Alf Ross: “Se a igualdade é tomada num sentido absoluto, significa que todos,
quaisquer que sejam as circunstâncias, deverão encontrar-se exatamente na mesma posição
que os demais” (ROSS, 2003, p. 314), mas o próprio autor de Direito e justiça conclui que
isso não é o que se entende por justiça. Inexiste ordenamento jurídico que iguale as pessoas na
mesma posição e, mesmo a tão propalada igualdade cuja expressão jurídica remonta ao
ideário da Revolução Francesa, pode ser considerada uma farsa, “[...] não passa de mera
ficção” (GOMES, 2013, p. 18) que servia aos interesses de classe da burguesia:
As exigências do burguês foram delineadas na famosa Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 1789. Este documento é um manifesto contra a sociedade
hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade
![Page 45: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/45.jpg)
45
democrática e igualitária (HOBSBAWM, 1986, p. 77).
O autor refere-se às conquistas burguesas da Revolução Francesa, sendo a igualdade
formal, ou seja, a igualdade de todos perante a lei, uma delas. Trazendo uma “[...] concepção
clássica que se funda num elemento puramente formal e abstrato: a generalidade das leis”
(SILVA, 1992, p. 108), essa vertente que se traduz em conceito de igualdade formal não se
mostrava revolucionária para as populações “livres” oprimidas da Europa setecentista, razão
pela qual ela foi tema recorrente em todo o explosivo século XIX, como se observa das
Jornadas Revolucionárias europeias de 1820, 1830 e 1848 (HOBSBAWN, 1986, p. 332), e da
Comuna de Paris, em 1871. Em todos os casos, tratava-se de tentativas de desmontagem da
lógica dominante imposta pela burguesia para o significado dessa palavra, como bem expressa
a obra artística “A liberdade guiando o povo”, do pintor francês Eugène Delacroix. Ficou
evidenciado que para os interesses de classe da burguesia interessava, sobremaneira, a
liberdade, sendo a igualdade colocada de lado (SILVA, 1992, p. 193).
Entretanto, para a conjuntura do Brasil na época em que viveu Luiz Gama, onde
predominava o sistema escravista nas relações e no modo de produção, a igualdade formal, ou
seja, a igualdade de todos perante a lei, possui um componente revolucionário, pois
representava o fim da escravidão. Segundo Joaquim Barbosa Gomes, esse “[...] princípio da
igualdade perante a lei foi tido, durante muito tempo, como a garantia da concretização da
liberdade” (GOMES apud SANTOS, 2003, p. 18) e, em razão desse fato, a forma mais
presente de igualdade nos escritos do poeta, advogado e jornalista da diáspora africana é
exatamente essa, de liberdade que se confunde com igualdade formal. A Constituição de 1824
declarava a igualdade de todos perante a lei, excluindo da definição de cidadão a população
negra escravizada (SILVA, 2002, p. 7), sendo a abolição da escravatura conditio sine qua non
para a concretização da igualdade formal dessa população.
Dos textos poéticos e jurídicos de Luiz Gama, nos interessa identificar a imagem que
emerge acerca da noção de igualdade e identidade. Saliente-se que, dentro do contexto da
escravidão, qualquer possibilidade de igualdade para os negros, já representaria algum
lampejo de ressignificação. Há rastros, nas suas obras, da exigência do direito confundir-se
com justiça (direito natural), noções e ideias de igualdade racial no mercado de trabalho, no
direito penal, e até mesmo vestígios de igualdade material, cujo conceito está na base das
ações afirmativas, que podem ser definidas como: “Medidas temporárias e especiais, tomadas
ou determinadas pelo Estado, de forma compulsória ou espontânea, com o propósito
![Page 46: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/46.jpg)
46
específico de eliminar as desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da
sociedade” (VILAS-BÔAS, 2003, p. 29).
Entretanto, convenhamos que no século XIX, mesmo nos Estados Unidos e na Europa
ainda não havia lampejos da affirmative action ou da discriminacion positive. A concepção
que existia, mesmo nas primeiras décadas do século XX, era a da igualdade formal (GOMES,
2003, p. 18), formato parecido com o que se apresenta na obra escrita de Luiz Gama, cuja voz
libertária, antes de ecoar na imprensa, nos fóruns e nas tribunas, já se fazia ouvir na área
literária.
3.1 A PRODUÇÃO POÉTICA DE LUIZ GAMA: CONTEXTUALIZAÇÃO
No ano de 1859, o poeta diaspórico publicou o livro Primeiras Trovas Burlescas de
Getulino, com trinta e nove poesias (lançando a segunda edição na capital do império, em
1861), e posteriormente publicou mais treze poemas em jornais paulistanos, perfazendo um
total de cinquenta e duas poesias. Interessante perceber que neste mesmo ano de 1859, a
autora negra Maria Firmina dos Reis publicou Úrsula, primeiro romance de autoria negra
feminina em terras brasileiras (LOBO, apud DUARTE, 2011, p. 111).
O próprio Luiz Gama financiou a publicação da sua obra, fato repetido por outros
importantes autores negros que o sucederam, como Cruz e Sousa e Lima Barreto, igualmente
recusados pelo cânone literário em suas épocas25
. Na atualidade, Conceição Evaristo, que
desde os anos 1970, participa dos Cadernos Negros (MUITO, 2015, p. 8), também afirma
enfrentar dificuldade em encontrar editoras interessadas na publicação de suas obras, o que se
traduz em tentativas de silenciar a autoria negra, gerando o desabafo da criadora do conceito
de escrevivências: “Eu e outros autores negros estamos sempre publicando por editoras
menores, e isso se reflete em dificuldades de promoção e distribuição dos nossos livros”
(EVARISTO, 2015, p. 6).
Salientar-se-á que a publicação das Trovas Burlescas no ano de 1859, reveste-se de
especiais e distintos significados, sendo um deles o fato de tratar-se de um feito absolutamente
inédito na cena cultural brasileira, pois o país conhece nesse ano o primeiro trabalho
publicado por um ex-escravizado. Vale ressaltar que o primeiro autor a publicar literariamente
25
Aliás, esse fato continua a ser um óbice para escritores e escritoras negras, a exemplo de Cuti (Luiz Silva) e
Hugo Ferreira, que criaram e patrocinaram, com seus próprios recursos, a publicação dos Cadernos Negros em
1978 (CUTI, p. 128)
![Page 47: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/47.jpg)
47
em São Paulo foi um representante das elites: José Bonifácio, em 1849, apenas dez anos antes
da publicação dos poemas de Luiz Gama (PAULINO, 2010, p. 19).
Entretanto, ao que tudo indica, o seu autor não teria mensurado o próprio feito histórico,
pois, ao traçar a sua autobiografia, a pedido do amigo Lucio de Mendonça (FERREIRA,
2011, p. 199-203), não faz menção direta à sua atuação enquanto poeta, autor de um livro,
fato, aliás, muito raro no cenário cultural brasileiro de então, que contava com uma margem
de pouquíssimos autores e reduzidíssimo número de leitores.
Na carta autobiográfica, o seu autor narra sobre questões pessoais e profissionais, os anos
de escravidão a que fora submetido, como aprendeu o conhecimento da palavra escrita, suas
atividades de advogado que arrancou das “garras do crime” mais de 500 pessoas, ilegalmente
e ilegitimamente escravizadas, concluindo, naqueles idos de 1880:
Agora chego ao período em que, meu caro Lúcio, nos encontramos no Ipiranga, à
rua do Carmo, tu, como tipógrafo, poeta, tradutor e como folhetinista principiante;
eu como simples aprendiz-compositor de onde saí para o foro e para a tribuna, onde
ganho o pão para mim e para os meus, que são todos os pobres, todos os infelizes; e
para os míseros escravos, que, em número superior a 500, tenho arrancado às garras
do crime (FERREIRA, 2011, p. 203).
Além do silêncio imposto pelo cânone literário, a sua própria narrativa e a sua intensa
e pública atuação como advogado abolicionista, teriam contribuído para ofuscar a sua atuação
e reconhecimento literários. Outras explicações, dadas por estudiosos da sua vida e obra,
afirmam que o poeta teria se servido da literatura como “[...] passaporte para os círculos
sociais mais altos” (CÂMARA, 2010, p. 89) e que este teria definitivamente abandonado o
campo da literatura, em um caso de “[...] renúncia voluntária e propositada” (MENNUCCI,
1938, p. 104). Entretanto, vale ressaltar que a edição das Trovas não representa o único ato de
produção poética de Luiz Gama, pois nas décadas seguintes, em meio às suas atividades de
jornalista e advogado, diversas poesias de sua autoria foram publicadas em jornais paulistanos
(FERREIRA, 2011, p. 41-42), conforme dito anteriormente.
Sílvio Roberto dos Santos Oliveira explica que “[...] os imaginários historiográficos,
literários e da negritude conduzidos pela morfologia da narrativa autobiográfica de Luiz
Gama e pela insuficiente leitura de seus poemas grifaram o mito abolicionista e abafaram o
poeta” (OLIVEIRA, 2004, p. 227). Segundo o estudioso (2004), essa leitura enviesada dos
poemas de Gama também teria contribuído para dar relevo à figura do abolicionista, em
detrimento do poeta, ofuscando-o. Tal leitura, muitas vezes, enviesada constitui-se em mais
uma mise en scène.
![Page 48: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/48.jpg)
48
Em História concisa da literatura brasileira (BOSI, 2015), trabalho conhecido nos
meios acadêmicos, o seu autor não reserva sequer uma linha à poesia de Luiz Gama. Em
trabalhos como A literatura no Brasil - era romântica, dirigido por Afrânio dos Santos
Coutinho, por exemplo, depois de colocar o gênero romântico como genuinamente brasileiro
e de fazer desfilar os nomes dos autores consagrados pelo cânone, Luiz Gama sequer é citado
entre eles. O seu autor afirma:
Em verdade, realizam os românticos a criação dos gêneros literários com feitio
brasileiro. Antes deles, a poesia reacendia a impregnações clássicas e portuguesas.
(...) O Romantismo quebrou tal submissão, introduzindo na literatura a maneira
brasileira de sentir e encarar o mundo, de traduzir os sentimentos e reações. (...) a
nova literatura adquiriu direito de cidadania, passando para o plano de igualdade,
graças ao esforço autonomista dos românticos (COUTINHO, 1997, p. 27).
Apesar de o autor afirmar que os românticos introduzem na literatura “[...] a maneira
brasileira de sentir e encarar o mundo, de traduzir os sentimentos e reações [...]”, nesse
trabalho, ele não vê Luiz Gama como um possível autor a traduzir a pulsação desses
sentimentos e reações do conflituoso jogo de interesses do Brasil oitocentista, como se a
realidade, envolvendo as conseqüências da condição de desigualdade jurídica imposta ao
negro, não fizesse parte da cena brasileira.
Luiz Carlos Santos (2010, p. 52) atribui o seu ofuscamento a uma clara punição do
cânone, devido à “[...] ousadia do negro que, com seus versos irônicos, denunciava as
entranhas da sociedade brasileira. Um dos preços que Gama pagou foi o descrédito da crítica
literária, que pouca atenção lhe deu”. Outra pesquisadora chega a afirmar que, do ponto de
vista da apreciação da crítica literária, o seu trabalho poético pode ser considerado não como
fortuna, mas como “infortúnio” crítico (PAULINO, 2010, p. 17). Alerta ao real papel
desempenhado pelo Orfeu de carapinha, Zilá Bernd (1988, p. 40), ao discorrer sobre as
instâncias legitimadoras que atuam condicionando a fortuna crítica de uma obra, explica que
não é o seu valor estético o determinante responsável por sua emergência, reconhecimento e
consagração. No entendimento dessa autora, uma obra como a de Luiz Gama pode ser banida,
jogada para as margens, pois
Quanto maior o potencial revolucionário e desagregador da ordem vigente que uma
obra contiver, tanto maior será o risco de que uma das instâncias acima mencionadas
venha obstaculizar seu percurso e sua conservação (BERND, 1988, p. 40-41).
O potencial revolucionário das ideias do intelectual diaspórico choca-se frontalmente
com os interesses econômicos das elites produtoras, sobretudo no que diz respeito à mudança
![Page 49: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/49.jpg)
49
nos modos e relações de produção e nas concepções de propriedade privada, que seria
acarretada com a abolição da escravidão; por outro lado, aceitar a disseminação de ideias de
liberdade e igualdade racial, capazes de propiciar o empoderamento da população negra, não
era o que queria aquela sociedade, cujas instituições acadêmicas defendiam abertamente as
concepções europeias do racismo científico, que “[...] foi, de certo modo, institucionalizado
com a fundação em Paris, em 1859, da Sociedade de Antropologia” (MUNANGA, 1986, p.
19). Uma vez adotadas, essas concepções libertárias e igualitárias poderiam ter o condão de
desagregar a ordem social e econômica, sendo tais fatos em grande parte responsáveis pelo
“infortúnio” crítico da obra do pensador da diáspora afro-baiana.
A despeito do silenciamento anterior, a posteridade, gradativamente, vem assistindo
outras leituras e outros julgamentos sobre a produção poética de Luiz Gama, pois, ao enunciar
o eu lírico negro na nossa grafia, o referido autor escreve seu nome na história da literatura
brasileira, podendo sua poesia estar na terceira geração do romantismo, na qual se inclui o seu
conterrâneo Castro Alves. Existem estudos que o colocam como o poeta que melhor
representa a sátira no romantismo brasileiro:
Heitor Martins fez um estudo sobre o poeta ressaltando a necessidade de se resgatar
a importância das Primeiras trovas burlescas de Getulino no movimento romântico
brasileiro. Afirmando ser Luiz Gama o mais “importante poeta satírico do
Romantismo” (AZEVEDO, 2005, p. 76).
Em artigo publicado em Literatura e afrodescendência no Brasil, Maria Consuelo
Campos registra que “Sílvio Romero incluio-o em sua História da literatura brasileira;
Manuel Bandeira, em sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica” (CAMPOS
apud DUARTE, 2011, p. 130). Vale salientar que, além do trabalho poético, o Orfeu de
carapinha publicou, também, diversos artigos e máximas26
em jornais paulistanos, verdadeiros
libelos da liberdade e da igualdade. Elciene Azevedo afirma:
As Trovas burlescas de Getulino revelam um ex-escravo lutando pelo direito dos
negros, dentro de uma organização social que os excluía. Certamente é por isso que
seus versos ganharam tanta força na posteridade, contribuindo decisivamente para a
afirmação de sua legenda (AZEVEDO, 2005, p. 77).
Ao propagar ideias antirracistas, evidenciando uma imagem positivada do negro ao
desconstruir as construções sociais que reforçavam as colossais desigualdades,
subalternizando e excluindo a população negra, o poeta diaspórico “[...] fez uso da sátira que,
26
As máximas são sentenças morais escritas em textos breves que convidam o leitor a uma reflexão. Elas
estiveram em desuso durante muitos anos, mas têm voltado à baila com o advento da internet.
![Page 50: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/50.jpg)
50
segundo a edição de 1813 do Dicionário de Língua Portuguesa de Antônio de Moraes Silva,
constituiu-se como um poema censório dos costumes e defeitos públicos ou de algum
particular” (SANTOS, 2015, p. 717). Traduzindo o pensamento hodierno, o dicionário
novíssimo Aulete, edição de 2011, define a sátira como uma composição poética jocosa de
intuito crítico, trazendo à tona as características do sarcasmo e da ironia, presentes na obra
poética de Gama. Mesmo não valorizada como gênero literário no século XIX (SANTOS,
2015, p. 717), segundo Elciene de Azevedo naquela época a sátira “[...] se popularizava e
ganhava força como instrumento de crítica, fosse ela política, de costumes ou social”
(AZEVEDO, 2005, p.44).
Luiz Gama usou também a linguagem da sátira em vários escritos no jornal Diabo
Coxo (dirigido e redigido por ele) e em outros periódicos, razão pela qual Elciene Azevedo
informa que: “Sua escolha por esta forma de literatura como meio de transmitir ao público
suas críticas à sociedade não se restringiu, portanto, à publicação das Trovas” (AZEVEDO,
2005, p. 44). A linguagem satírica de Gama traduz-se em uma escrita inédita em terras
brasileiras, desde a chegada do colonizador: tratava-se de uma nova representação do direito,
da condição de paridade, de isonomia entre a população negra e branca.
O discurso da igualdade, naquele momento histórico, lançava-se, principalmente sobre
a instituição da escravidão que desigualava grande parte da população e contra os seus
sustentáculos: as cabeças coroadas da monarquia, os integrantes do clero dissimulado que se
autointitulavam “representantes de Deus”, os ”barões da traficância” de carne humana, os que
faziam do direito “pura teta” (juízes, delegados, curadores) e os políticos corruptos. Além
desses alvos, os costumes da época foram também satirizados em suas Trovas.
Interpretando alguns versos de Prótase, o primeiro poema das Trovas Burlescas,
percebe-se, prima facie, a apresentação do seu autor, que saía do seu “cantinho/encolhidinho”
e entrava em cena na arena racial, encetando uma militância antiescravista que só pararia com
a sua morte; se observa, também, algumas características da sua poesia:
No meu cantinho
Encolhidinho
Mansinho e quedo
Banindo o medo,
Do torpe mundo
Tão furibundo,
Em fria prosa
Fastidiosa –
O que estou vendo
Vou descrevendo.
Se de um quadrado
Fizer um ovo
![Page 51: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/51.jpg)
51
Nisso dou provas
De escritor novo.
[...]
São folhas de adurente cansanção,
Remédio para os parvos d’excelência;
Que aos arroubos cedendo da loucura,
Aspiram do poleiro alta eminência.
E podem colocar-se à retaguarda
Os veteranos sábios de influência;
Que o trovista respeita submisso,
Honra, pátria, virtude, inteligência.
Só corta com vontade nos malandros,
Que fazem da Nação seu montepio:
No remisso empregado, sacripante,
No lorpa, no peralta, no vadio.
Á frente parvalhões, heróis Quixotes,
Borrachudos Barões da Traficância;
Quero ao templo levar do grão Sumano
Estas arcas pejadas de ignorância
(GAMA, 2011, p. 11 a 13).
Nas “folhas de adurente27
cansanção” escritas pelas mãos do poeta, “[...] há palavras
cruas que profanam o que parecia teoricamente sagrado” (ASSMANN apud AGAMBEN,
2015, p. 12), a exemplo da nobreza imperial, cujos títulos (barões, condes, marqueses,
duques), ao longo da história, tiraram a simplicidade e a igualdade nas relações entre as
pessoas, instituindo distinções nobiliárquicas e colocando essa “casta” em um lugar intocável,
sacralizado. A profanação lançada a efeito na linguagem do poeta diaspórico consiste em tirar
aquelas figuras ditas importantes do império do lugar sagrado da virtude e da honra, e lançá-
los no campo dos “que fazem da Nação seu montepio”.
Apesar de o poema Prótase ser apenas uma apresentação do que o leitor veria na obra
em seu conjunto, veja-se, por exemplo, a forma como o seu autor profana o clero católico e os
detentores de títulos nobiliárquicos, nas expressões “aspiram do poleiro alta eminência” e
“barões da traficância”. A pena de Gama vai direto àqueles que ele considera “parvos28
d’excelência”, ou seja, que ostentam cargos eclesiásticos, títulos de nobreza, funções públicas,
insígnias, distinções e privilégios, sem a devida autoridade moral e capacidade intelectual
para compreender os fenômenos da vida. O seu autor, nesse poema, critica a prática da
corrupção, também dirigida às figuras ditas importantes que saqueiam o erário, “[...] que
fazem da Nação seu montepio”.
27
Adurente, segundo o Dicionário Houaiss, é aquilo que provoca uma sensação abrasiva, de queimadura.
28
Segundo o dicionário Novíssimo Aulete, parvos são os tolos, pessoas com pouca capacidade ou inteligência.
![Page 52: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/52.jpg)
52
Trata-se da profanação das classes consideradas mais importantes do império, sendo
que os temidos e respeitados barões, condes, duques e marqueses (todos enriquecidos graças
ao trabalho do escravizado), estão corriqueiramente presentes no discurso profanador de Luiz
Gama.
À primeira leitura de Prótase, a princípio, perguntar-se-ia se, confessando sair do seu
“cantinho/Escondidinho/Mansinho e quedo/Banindo o medo”, o poeta, nos anos iniciais da
sua juventude, teria tergiversado com medo de ser reescravizado, o que era comum aos negros
e mestiços livres naqueles idos da década de 1850, como assegura Sidney Chalhoub, em A
força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, quando o governo imperial
instituíra a obrigatoriedade dos registros de nascimento e de óbito e anunciava o
recenseamento geral do Império para aquele ano de 1852. O que se viu foram motins em
várias províncias, a ponto de o imperador recuar do seu propósito.
Diante da trama que dava à escravidão gigantesca força, havia o sentimento de negros,
mestiços e pobres, que a sua liberdade era precária, podendo estar por um fio, o que gerava
desconfianças dessas pessoas com o governo. Esse, aliás, apesar de editar leis proibitivas ao
tráfico de escravizados para atender a pressões externas (ALBUQUERQUE, 2009, p. 45), não
fazia cumpri-las. Pelo contrário, maquinava com as elites econômicas do país – fizera leis
para “inglês ver”, afinal, “[...] nas duas décadas seguintes à promulgação da lei [de 1831]29
,
mais de 750 mil negros foram introduzidos no território nacional por contrabando”
(CHALHOUB, 2012, p. 30).
Faltava legitimidade e autoridade moral às classes políticas do Império para que o
povo brasileiro acreditasse nas boas intenções das novas medidas, razão pela qual o medo de
reescravização era grande, e Luiz Gama, nascendo livre, conhecera a escravidão pelas mãos
do seu pai, um endividado fidalgo português que o vendera quando possuía apenas 10 anos
de idade. Sendo filho de uma revolucionária negra que, forçosamente fugira ao seu convívio,
traído pelo próprio pai na infância e, tendo sido julgado e preso por suposta insubordinação
em seu primeiro trabalho livre, desconfiança é, na melhor das hipóteses, a possível atitude
dele para com as pessoas e instituições do país, as quais são representadas no poema
“Prótase” através da expressão “torpe mundo/tão furibundo”.
O verso abaixo, do poema Epístola familiar, escrito e publicado por Luiz Gama no
jornal “O Polichinelo”, parece ir ao encontro dessa ideia:
29
Uma das leis que proibiam o tráfico humano para o Brasil.
![Page 53: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/53.jpg)
53
Sabes tu, bom Gedeão,
Como vive o cidadão
Que metido entre fidalgos,
Como lebre ao pé galgos,
Anda sempre amedrontado
(PAULINO, 2010, p. 12).
Vale salientar que “O Polichinelo” foi um jornal fundado por Luiz Gama, em1876,
exatamente para ser uma exceção à imprensa áulica, comprometida com os representantes do
poder (FERREIRA, 2011, p. 42) e, quanto ao verso do poema acima, sua linguagem induz-
nos a pensar que Luiz Gama escreve sobre a sua própria experiência diaspórica de ex-
escravizado e homem letrado que percebia a sua realidade por meio da dupla consciência
(SANTOS, 2015, p. 718), a qual nos referimos anteriormente.
Lígia Fonseca Ferreira, na sua obra intitulada Com a palavra, Luiz Gama, entretanto,
tributa a este um “falso retraimento”, asseverando que o poeta “[...] finca uma voz inaugural,
a do primeiro ‘autor’ negro que se enuncia enquanto tal, figura até então ausente da literatura
brasileira” (FERREIRA, 2011, p. 39).
Falso retraimento ou não, fato é que, desde os primórdios da violenta colonização
europeia nas Américas, nas primeiras décadas do século XVI – quando começaram a se
realizar as múltiplas e constantes desterritorializações de pessoas da África para o Brasil –, até
o último quartel do século XIX, a população negra em terras tupiniquins – não importava se
nascida n’África ou mesmo no Brasil – viveu subordinada a um estado que, para ela, era
contínua e ininterruptamente de exceção.
Analisando esse estado de exceção, Giorgio Agamben encontrou as origens dessa “[...
terra de ninguém” (AGAMBEN, 2014, p. 12) no império romano, quando o senado, usando
da prerrogativa da auctoritas, proclamava o iustitium, suspendendo o direito da pessoa
(AGAMBEN, 2014, p. 115), podendo transformá-la em hostis indicatus, caso essa “[...]
ameaçasse, através de conspiração ou traição, a segurança da república” (AGAMBEN, 2014,
p. 123). Declarando-a inimiga pública e colocando-a privada de todo estatuto jurídico, a
pessoa podia perder todos os seus bens e ser condenada à morte.
Para a população escravizada do Brasil, submetida a um estatuto jurídico que não a
considerava pessoa portadora de direitos, ficava clara a permanente existência de um tribunal
de exceção e, dessa forma, “[...] o estado de exceção [...] tornou-se a regra” (BENJAMIN,
apud AGAMBEN, 2014, P. 19) para essa população; e, até mesmo para os negros livres do
país esse estado de exceção era constante, como o foi a República de Weimar, governada
Adolf Hitler (AGAMBEN, 2014, p. 13). Mesmo alforriado, o negro podia ser pego nas ruas e
![Page 54: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/54.jpg)
54
preso ad infinitum pela polícia, como suspeito de ser “negro fugido”. O filósofo italiano
afirma que nesse estado “[...] o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria
suspensão” (AGAMBEM, 2014, p. 14), sendo esse o significado biopolítico do estado de
exceção. O trabalho poético e jurídico de Luiz Gama, nesse contexto, tem o intuito de “[...]
devolver o que está consagrado ao livre uso dos homens” (ASSMANN, apud AGAMBEN,
2014, p. 12), ou seja, o direito à liberdade, que um dia lhes fora tirado, sacralizando a
escravidão; e, também, de retirar da esfera jurídica a concepção “liberal” consagrada no
direito brasileiro quanto à propriedade se estender sobre pessoas.
Alguns versos da poesia No Álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral evidenciam
diversos vieses das temáticas aqui estudadas inclusive, o viés da denúncia do “peso do
cativeiro” imposto pelo estado de exceção ao negro escravizado. Era comum naquela época
pessoas requisitarem a poetas e famosos que escrevessem em seus álbuns. Veja-se:
[...] Vai para a tenda
Pegar na sovela,
Coser teus sapatos
Com linha amarela.
Mordendo na sola,
Empunha o martelo,
Não queiras, com brancos,
Meter-te a tarelo.
Que o branco é mordaz
Tem sangue azulado;
Se boles com ele
Estás embirado.
Não borres um livro,
Tão belo e tão fino;
Não sejas pateta,
Sandeu e mofino.
Ciências e Letras
Não são para ti[;]
Pretinho da Cost[a]
Não é gente aqui.
[...]
Não quero que digam
Que fui atrevido;
E que na ciência sou intrometido
Desculpa, meu caro amigo,
Eu nada te posso dar;
Na terra que rege o branco,
Nos privam té de pensar!...
Ao peso do cativeiro
Perdemos razão e tino,
![Page 55: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/55.jpg)
55
Sofrendo barbaridades,
Em nome do ser divino!!
E quando lá no horizonte
Despontar a liberdade;
Rompendo as férreas algemas
E proclamando a igualdade,
Do chocho bestunto
Cabeça farei;
Mimosas cantigas
Então te darei.
(GAMA, 2011, p. 34-36).
Usando o mesmo sarcasmo que lhe é peculiar, nesse poema Luiz Gama traz à cena um
problema social, ao denunciar a forma racista e preconceituosa como o negro livre era tratado
pela sociedade brasileira, que o inferiorizava, ignorava ou fazia chacota do seu talento.
Segundo Elciene Azevedo (2005):
Este jogo tenso entre afirmar uma suposta diferenciação, que sempre aparecia
marcada pela inferioridade, denunciar a lógica de domínio dos brancos ao tratar com
os negros e, ao mesmo tempo, registrar em um álbum sua amizade com uma pessoa
que fazia parte desta sociedade que estava criticando, perpassa todo o poema
(AZEVEDO, 2005, p. 56).
Pela lógica dominante da subalternização atividades intelectuais não estariam ao
alcance da população livre de cor negra, por suposta falta de competência técnica, seguindo o
modelo racista adotado pela intelligentsia brasileira, enclausurada nas instituições de ensino
superior (SCHWARCZ, 2015, p. 55) e nos órgãos públicos e privados. Tratava-se da mesma
visão eurocêntrica do velho colonialismo presente no país “novo”, reproduzindo a
racialização das relações de poder entre as novas identidades. Vale salientar que o arranjo da
independência feito pelas elites brancas no ano de 1822, não significou qualquer mudança
estrutural ou de mentalidades na sociedade brasileira e persistia essa visão da época colonial
que negava o negro e colocava-o em posição de inferioridade. Aliás, foi exatamente a partir
desse processo que se buscou a definição de uma identidade nacional, alijando o negro e
dando “[...] respaldo a hierarquias sociais já bastante cristalizadas” (SCHWARCZ, 2015, p.
55).
Portanto, ao construir a ideia de superioridade racial, as elites demarcavam territórios,
em uma clara demonstração de negação da cidadania, reservando ao negro os lugares das
piores tarefas, das profissões de menor recompensa salarial e mais desprestigiadas no mercado
de trabalho. A competência técnica seria mais do que um atributo da população de tez branca,
mas uma propriedade exclusiva dela. Contrapondo-se a essa suposição de uma exclusiva
![Page 56: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/56.jpg)
56
“competência branca” para atividades intelectuais, no poema Sortimento de Gorras, Gama
ironiza as “majestosas faculdades” ocupadas pelos brancos, onde “os burregos saem doutores”
(GAMA, 2011, p. 23).
Esse preconceito de não conceber a população negra em condição de igualdade com a
população branca possui o condão de fechar para aquela as portas mais importantes do
mercado de trabalho, agigantando as desigualdades, tornando-as colossais. Com o seu
exemplo e trajetória de intelectual, Luiz Gama insurge-se contra os fatos por ele próprio
denunciados em suas poesias e desmonta a estapafúrdia construção de inferioridade racial,
pois o seu próprio exemplo de vida é o de quem ocupa múltiplas atividades intelectuais.
A linguagem poética do autor de Trovas Burlescas no poema No Álbum do meu amigo
J. A. da Silva Sobral quebra as hierarquias, a princípio, pelo seu simples lugar de fala, onde o
negro exige ser ouvido e ser tratado em condição de igualdade com a população de origem
europeia. Outra característica presente nesse poema é a postura de atrevimento e de ousadia
que desafiam a violência racista (“não quero que digam/que fui atrevido/e que na ciência sou
intrometido”), o que evidencia a imagem do negro empoderado, ocupando posições e funções
em lugares até então de domínio exclusivo dos brancos.
Infere-se, nesse sujeito étnico (CUTI, 2010, p. 22) afirmando: “Ciências e letras/Não
são para ti/Pretinho da Cost[a]/Não é gente aqui” que no país a cor da escravidão é também a
cor da exclusão. Nesse verso há uma identidade negra que liga o seu autor à África – percebe-
se o seu sentimento de desterritorialização, pois mesmo tendo nascido no Brasil, se sente
excluído pelo estado de exceção monarquista; ele não tem parcimônia em satirizar a sua
exclusão e de tantos outros negros livres e escravizados. Nas suas representações, ele vê a
exclusão do negro, não o enxergando, fazendo parte da “terra que rege o branco”, o que se
traduz em denúncia contra o direito de exercer o seu talento literário, de produzir
conhecimento.
Ligia Fonseca Ferreira afirma que Luiz Gama, “[...] com perspicácia, ironiza, fingindo
endossar o pensamento e a crença de muitos brancos – ou pretensos brancos – de sua época,
convencidos da incapacidade congênita dos negros para a atividade do espírito” (FERREIRA,
2011, p. 41). Ainda que, de forma irônica, percebe-se que o poeta manifesta claramente o
desconforto em viver em uma sociedade racista, que ignorava, repudiava e zombava do
talento e do conhecimento do negro livre, filão no qual Luiz Gama se inclui.
Com sua ironia habitual, nesse poema, o seu autor não apenas denuncia o estado de
exceção controlado pelos brancos (traduzido aqui na expressão “o branco é mordaz”) e o
racismo no mercado de trabalho, mas escancara o papel do clero católico brasileiro na
![Page 57: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/57.jpg)
57
legitimação da desigualdade imposta pelo cativeiro, como se observa do verso “Ao peso do
cativeiro/Perdemos razão e tino/Sofrendo barbaridades/Em nome do ser divino”. Aliás, como
se pôde perceber anteriormente, o anticlericalismo é uma das marcas da linguagem de Luiz
Gama. Quanto a este mesmo poema, Cuti (2010), comparando a escrita de Nelson Rodrigues
com a de Luiz Gama, afirma que na escrita deste último a “[...] a identidade negra é mantida
até o final” (2010, p. 22). Note-se a alteridade de Luiz Gama ao afirmar que “na terra que
rege o branco/nos privam té de pensar” e “ao peso do cativeiro/perdemos razão e tino”. Como
conclui Cuti (2010), na construção imaginária do “eu” ou do “nós”, o sujeito enunciador é
étnico. Ele se assume como negro e assim se identifica.
Quanto à associação que Luiz Gama faz entre a escravidão e a desigualdade racial,
AZEVEDO (2005) observa: “Na origem das desigualdades e intolerâncias até então
constatadas em suas reflexões estava o ‘peso’ do cativeiro, que carregava em sua cor, e que o
impossibilitava de ser reconhecido pela sociedade como um homem de letras (AZEVEDO,
2005, p. 55).
Observe-se, no penúltimo verso desse poema (E quando lá no horizonte/Despontar a
liberdade;/Rompendo as férreas algemas/E proclamando a igualdade), que o “sujeito étnico”
sugere ser a abolição da escravidão a condição sine qua non para o estabelecimento do
princípio da igualdade formal no Brasil, por isso fez dela a grande causa da sua vida
(MENNUCCI, 1938, p. 12).
Luiz Gama enfatiza, no final desse poema, que somente valeria a pena fazer poesia
(“Desculpa, meu caro amigo/Eu nada posso te dar)” quando, enfim, a abolição da escravidão
conduzisse os negros à igualdade. Note-se a conclusão de Elciene Azevedo, nesta mesma
linha de análise: “[...] só seria viável escrever para seu amigo ‘mimosas cantigas’ quando,
abolida a escravidão, os negros recuperassem sua liberdade e pudessem ter acesso à almejada
condição em que se encontravam os brancos” (AZEVEDO, 2005, p. 56).
Azevedo (2005, p. 51) afirma que as Trovas “vão aos poucos revelando conflitos e
contradições que estavam sendo levantadas e forjadas na experiência de seu autor”.
3.2 LITERATURA NEGRA E RESSIGNIFICAÇÃO IDENTITÁRIA
Possuidor de uma linguagem satírica, o poeta é percebido como o primeiro
representante da literatura negra brasileira pelo seu discurso enunciador do “eu lírico”. O
conceito de literatura negra foi problematizado por diversos autores, a exemplo de Zilá Bernd,
que afirma:
![Page 58: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/58.jpg)
58
O conceito de literatura negra não se atrela nem à cor da pele do autor nem apenas à
temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidência textual cuja consistência
é dada pelo surgimento de um eu enunciador que se quer negro. Assumir a condição
negra e enunciar o discurso em primeira pessoa parece ser o aporte maior trazido por
essa literatura (BERND, 1988, p. 22).
A linguagem preocupada em abordar as memórias negras, o modo de ver e sentir o
mundo e essa desconstrução da criação do ser negro pelo branco, com a (re)nomeação do
mundo circundante e a reapropriação de territórios culturais perdidos, promovendo a
reterritorialização estariam a caracterizar o conceito de literatura negra, segundo Zilá Bernd.
O discurso de Gama seria, portanto, fundante desse conceito.
Luiz Gama é um autodidata que entrou no campo literário lançando mão de uma dupla
metáfora da cultura grega e da estética negra para afirmar a sua pertença etnicorracial no
poema Lá vai verso! Além de ironizar e denunciar o preconceito racial do cânone da época,
ele se apresenta, et urbi et orbi30
, como o Orfeu de Carapinha:
[...]
Quero que o mundo me encarando veja
Um retumbante Orfeu da carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta da Marimba augusta.
(GAMA, 2011, p. 15).
Entrando no teatro social e no mundo da poesia como o poeta de cabelos crespos, o
filho da “mais linda pretinha” (GAMA, 2011, p. 152), ao desejar igualar-se a Orfeu,
personagem da mitologia grega, também acrescenta a expressão “de carapinha”, “[...]
assumindo portanto em sua representação física uma característica própria dos negros”
(AZEVEDO, 2005, p. 59). Exigindo o estatuto da igualdade para o talento negro, o poeta
assume de forma pioneira uma pertença, uma identidade negra em terras brasileiras e, “[...] ao
desprezar a ‘lira’, por ser ‘mesquinha’, faz a crítica à literatura do branco por ser ela a
negação da alteridade” (CUTI, 2010, p. 67). Trata-se da desconstrução da própria lira
estatuída pelo cânone e da exigência, da tentativa de construção de uma outra literatura, na
qual o talento fosse aceito e prestigiado independente da cor da pele de quem a escreve.
No Brasil dos anos oitocentos a simples condição de ser negro era motivo para que
todas as portas se fechassem para este – do simples emprego aos mais altos postos de chefia
ou ao reconhecimento da academia. No país já havia a articulação e institucionalização do
30
Da expressão latina à cidade a ao mundo.
![Page 59: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/59.jpg)
59
racismo científico TELLES, 2003, p. 45), e não é novidade que há séculos repetia-se o
discurso ideológico da inferiorização do negro. Foi nesse país e nesse contexto que o poeta
diaspórico, de forma corajosa e irônica, colocou à fórceps o seu nome na literatura brasileira,
desafiando todos os seus cânones, ao afirmar de maneira pioneira a sua identidade negra.
A respeito dessa literatura igualitária e identitária, vale transcrever aqui alguns versos
do poema Quem sou eu?, poesia que “[...] se vulgarizou, com o nome de Bodarrada, pelo
Brasil inteiro”31
(MENNUCCI, 1938, p. 99), onde o poeta dirige a sua lança sarcástica contra
as elites brasileiras, supostamente brancas. Eis alguns dos seus versos:
Eis aqui o Getulino
Que do plectro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas
Tem brasões, não – das Calendas,
E, com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça,
– Faz a todos injustiça –
Com rigor deprime o pobre
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
E que os homens poderosos
Desta arenga receosos
Hão de chamar-me tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta,
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
31
O autor refere-se à vulgarização da Bodarrada em trabalho publicado no ano de 1938, mas não informa o
período da sua popularização. Como a terceira edição das Trovas foi publicada em 1904, supomos que tal fato
tenha ocorrido entre a primeira e a quarta década do século XX.
![Page 60: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/60.jpg)
60
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui n’esta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres, condes e duquesas,
Ricas damas e marquesas.
Gentes pobres, nobres gentes
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança –
Fulge e brilha alta bodança.
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, a matinada
Porque tudo é bodarrada! –
(GAMA, 2011, pág. 115 a 120).
A princípio, deve-se esclarecer que “[...] o nome ‘Bodarrada’ vem da palavra ‘bode’,
que, na gíria da época, significava mulato, negro” (CÂMARA, 2010, p. 90). Outros
estudiosos informam que essa palavra era aplicada “[...] aos mestiços de pele mais escura”
(FERREIRA, 2011, p. 40). Na maior parte das situações, o termo “bode” era um estereótipo
comumente usado para depreciar a população negra32
. Sendo o preconceito uma “quase
atitude” (com predisposição para a ação, “[...] o estereótipo seria uma imagem”(SILVA, 2002,
p. 23) e segundo David Brookshaw, “[...] pode ser inicialmente definido como sendo tanto a
causa quanto o efeito de um pré-julgamento de um indivíduo em relação a outro devido à
categoria a que ele ou ela pertence. Geralmente essa categoria é étnica” (BROOKSHAW,
1983, p. 9).
Na Bodarrada, ao afirmar que “Bodes há de toda a casta/ Pois que a espécie é muito
vasta”, o seu autor coloca todos os que se consideravam brancos como bodes, na mais
absoluta condição de igualdade com os negros.
A interpretação desse poema em versos como “Aqui n’esta boa terra/Marram todos,
tudo berra” ou “Em todos há meus parentes/Entre a brava militância/Fulge e brilha alta
bodança”, há também o discurso da equiparação étnica. Quanto à pretensão de Luiz Gama
nesse poema, que, naturalmente, não fazia a arte pela arte, Elciene Azevedo afirma que “[...] o
fim último dessa argumentação era defender uma origem comum que sustentasse seu ideal de
igualdade entre negros e brancos” (AZEVEDO, 2005, p. 63). Tal fato permite-nos afirmar que
o seu autor “[...] reverte o esquema tradicional, destronando as elites e abolindo a
32
O escritor Nelson Câmara, em entrevista realizada em 17 de janeiro de 2015, no seu escritório de advocacia,
na capital paulista, informou-nos que “bode” era também a forma como eram chamados os maçons em São
Paulo.
![Page 61: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/61.jpg)
61
desigualdade” (BERND, 1988 p. 53). O Orfeu de carapinha, ao tempo em que desconstrói
discursos racistas que desigualam as raças, faz emergir a figura do negro igualado, quiçá
empoderado, em oposição à ideia de inferiorização deste. O poeta diaspórico quebra as
hierarquias, por dessacralizar aqueles que o cânone tinha por superiores, como conclui a
autora abaixo:
Quem sou eu?” vai no contrafluxo das escolas literárias do século XIX por revogar,
no campo poético, o sistema de hierarquia social que exigia respeito e reverência a
nobreza e a outros representantes da classe dominante. Elimina-se toda a distância
entre os homens (BERND, 1988, p. 53).
O verso “Pois se todos têm rabicho/Para que tanto capricho?/Cesse, pois, a
matinada,/Porque tudo é bodarada!” também reforça o pensamento de igualdade racial, pois o
desmonte que ele provoca cria uma dubiedade, na qual a aplicação pejorativa da palavra
“bode” passa a ser aplicada a todos os extratos étnicos e (sociais) do país, em uma clara
proposta de nivelação. Analisando esse verso, Zilá Bernd afirma:
Neste discurso carnavalizado, caracterizado pela abolição da desigualdade entre os
homens, é recorrente a alusão ao elevado percentual de sangue negro existente na
composição étnica brasileira, o que deveria gerar um sentimento de igualdade”
(BERND, 1988, p. 54).
Fato é que o poeta diaspórico era percebido como mulato na sociedade brasileira.
Além de Brookshaw (1983, p. 153), que afirma: “[...] o mulato abolicionista Luiz Gama, autor
de uma poesia cáustica e satírica que expõe o preconceito de cor na sociedade brasileira”,
outros estudiosos, a exemplo de Edward Telles, o reconhecem nessa roupagem de mulato:
A mescla de raças chegara a todos os níveis da sociedade brasileira. No século XIX,
mulatos ocupavam posições importantes no Conselho de Estado, na Câmara dos
Deputados e no Senado e sobressaíam na literatura e nas artes, ou como figuras
proeminetes, tais como José do Patrocínio, Luiz Gama, Lima Barreto, André
Rebouças e Tobias Barreto. Mesmo o maior escritor do Brasil, Machado de Assis,
era mulato (TELLES, 2003, p. 44).
Vale destacar que, entre as últimas décadas do século XIX e as décadas iniciais do
século XX, havia um discurso que, a princípio representava o Brasil como um país de raças
degeneradas pela presença do negro (SCHWARCZ, 2015, p. 48). E, posteriormente, o
discurso das elites intelectuais do país passara a exaltar a mestiçagem brasileira, camuflando a
desigualdade e o racismo. Ambos os discursos eram formas de negação do negro enquanto
cidadão. Gilberto Freire, autor de Casa Grande e Senzala, “[...] via a profunda miscigenação
![Page 62: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/62.jpg)
62
da nossa sociedade como um motivo de orgulho do nosso caráter nacional, não considerando
que a mesma foi construída a partir da dominação, colonização e violência” (GOMES, 2005,
p. 58).
Veja-se que Edward Telles informa que no país acreditava-se que “[...] a miscigenação
acabaria por produzir indivíduos brancos” (TELLES, 2003, p. 46), sendo clara a proposta
eugenista de um país sem negros. Assim, mesmo podendo viver nos subterrâneos da
mestiçagem, ao invés de aceitar e tomar para si o discurso dominante do branqueamento e se
acomodar em uma suposta zona fronteiriça de conforto, Luiz Gama assumiu-se negro e optou
por desconstruir a lógica dominante, afirmando o que lhe parecia óbvio em um país
miscigenado como o Brasil: que todos eram bodes, ou seja, miscigenados, iguais. Como se
pode observar, aqui há uma pretensão de estabelecer a igualdade entre brancos, negros e
mestiços, não existindo, sob esse aspecto, ninguém melhor nem pior. Todos iguais.
Absolutamente iguais! Essa é a imagem ressignificada do negro, que emerge da interpretação
do poema bodarrada.
Vale ressaltar, ainda, que, além de abrir caminho para Lima Barreto, Cruz Sousa e
outros escritores de carapinha, nos poemas Meus Amores, A Cativa e Lá vai verso, Luiz
Gama, mais uma vez desvela um absoluto ineditismo: trata-se da primeira voz literária
brasileira a desconstruir os critérios de estética para a beleza feminina e incluir a mulher negra
nos padrões de beleza a ser cultuados por aquela sociedade. “Gama sugeriu uma estética negra
altiva, orgulhosa, bela e sedutora, presente de corpo e alma. Uma opção que, claro, também
ressaltou os atributos da mulher negra” (SANTOS, 2010, p. 60). O poeta, dessa forma,
desconstroi o padrão único e desafia os racistas e os valores estéticos criados por eles, que
revezavam-se em achincalhar a mulher negra ou ignorá-la enquanto deusas de ébano. No
poema A Cativa, enaltecendo a sua mãe, o poeta coloca, de maneira absolutamente inédita, a
mulher negra na condição de soberana, de rainha, ou seja, de igualdade com a mulher branca:
Como era linda, meu Deus!
Não tinha da neve a cor,
Mas no moreno semblante
Brilhavam raios de amor.
(...) Não te afastes, lhe suplico,
És do meu peito rainha;
Não te afastes, n’este peito
Tens um trono mulatinha!...
(GAMA, 2011, p. 136-137).
Neste verso da escrita de Luiz Gama notamos a desconstrução, o desmonte da lógica
dominante e a ressignificação da estética negra. Trata-se de uma linguagem que, ao
![Page 63: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/63.jpg)
63
desconstruir uma ideia, um estereótipo, contribui para construir um novo conceito. Sendo
“[...] imagens prontas” (CUTI, 2010, p. 66), “[...] máscaras que camuflam” (BERND, 1988, p.
17) a realidade, os estereótipos raciais criados pela sociedade brasileira para a mulher negra
sucumbem diante da poesia de Gama. A imagem que emerge desta escrita promove o
empoderamento dessa mulher, elevada à condição de “linda” e “rainha”. Percebe-se que “[...]
o poeta inverte sua simbologia, elevando à categoria de símbolos positivos o que antes era
carregado de conotações negativas” (BERND, 1988, p. 88).
Brookshaw (1983, p. 10) afirma que “[...] o jogo de estereótipos é um jogo de
oposições. Implícito na mente de quem estereotipa está o estereótipo que ele faz de si mesmo
e de sua categoria”. Note-se que, na linguagem da Bodarrada, para desconstruir o discurso
racista, Luiz Gama parte do próprio estereótipo criado por integrantes das elites brasileiras
para elas próprias: brancas. Contudo, na sua representação da “[...[ melindrosa presunção das
cores humanas” (FERREIRA, 2011, p. 200), diante de tamanha miscigenação, poucos no
Brasil poderiam ser assim considerados, pois nesse país todos “em Guiné tem parentes
enterrados” (GAMA, 2011, p. 21), é o que sustenta a sua poesia.
No poema A cativa, o intelectual diaspórico traduz a mulher negra com a mesma
formosura que o cânone faz em relação à suposta beleza da mulher branca. Assim, também
nesse quesito da estética feminina, trata-se da desconstrução do discurso da desigualdade e da
inferioridade, em uma imagem de positivação e empoderamento da mulher de tez negra.
Nota-se, além da beleza da mulher “cor de azeviche”, o realce que o poeta diaspórico
dá ao poder dessa beleza, capaz de silenciar poderosos de tez branca, na metáfora que ele faz
usando a figura do leão, que o senso comum tem confundido como o rei da selva, conforme se
observa desse verso do poema “Lá vai verso”:
[...]
Oh! Musa de Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido de atroz braveza
(GAMA, 2011, p.14)
Retornando ao poema “Bodarrada”, ao usar a retórica de metáforas que associavam
negro ao bode, em jargões da época e apresentando-se como o poeta de cabelos crespos, o
Orfeu Negro trouxe ao país o que alguns autores chamam de literatura marginal ou menor.
Zilá Bernd se opõe a esses termos por entender que, apesar de não serem pejorativos, eles
podem induzir a critérios depreciativos (BERND, 1988, p. 42). Para essa autora, o termo
![Page 64: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/64.jpg)
64
contraliteratura seria mais adequado para designar o tipo de ação literária inaugurada por Luiz
Gama.
Dessa forma, a história contada sob a ótica do negro brasileiro, alterando o papel
atribuído a esse pelos grupos hegemônicos, cria a vertente literária na qual ele, de “objeto do
discurso” passa a ser “sujeito de discurso”, narrador da sua própria epopeia. Por essa razão,
segundo Cuti (2010, p.66), a poesia de Luiz Gama se constitui em um marco na história da
literatura brasileira, sendo ele o primeiro precursor da Literatura Negro-Brasileira: seria o
divisor de águas na dicção negra, configurando o “eu” lírico negro, antes mesmo da poesia de
Castro Alves.
A partir de então, ao lado da literatura que discursava sobre o negro, colocando-o na
terceira pessoa, que representa o negro na figura do outro, a literatura brasileira viu o véu
rasgar-se para apresentar, em alto e bom som, um “Se negro sou...” (GAMA, 2011, p. 118). E,
como vimos, indo ao encontro de Cuti (2010), Zilá Bernd (1988) afirma que é este assumir-se
outro – que vai determinar toda uma mudança na literatura brasileira – que se constitui no
novo e que irá funcionar como um divisor de águas para a conceituação de uma literatura
negra.
Essa mesma autora, que, como vimos, usa o termo literatura negra, afirmando que
Luiz Gama é o seu precursor, assevera que “[...] a poesia negra vai se nutrir, portanto, da ideia
de desconstrução, de demolição de ‘verdades’ que negam o negro, buscando substituí-las por
outras que, ao contrário, afirmam e exaltam sua condição humana” (BERND, 1988, p.86).
Assim construía Luiz Gama a sua trajetória na arena racista, denunciando
sarcasticamente o racismo e desmontando as representações que a sociedade brasileira fazia
de uma suposta superioridade branca. Com o seu exemplo e trajetória de intelectual, ele se
insurgiu contra os estereótipos em sua obra literária, deixando evidente que o negro poderia
desempenhar qualquer atividade de cunho não-braçal. Note-se que, além de ser um exemplo
de vida, ele usa o domínio da palavra também para atuar como intelectual orgânico, militante,
ao qual faz referência Stuart Hall. Inspirando-se nas lições de Gramsci, Hall (2003, p. 194)
esse representante dos estudos culturais vê o intelectual na dupla função de pensador e
cidadão engajado com as causas humanas.
Em Prótase, o primeiro poema das Trovas, o seu autor, ao afirmar que “o que estou
vendo/vou escrevendo”, mostra ser um crítico assaz da sua época e ter uma postura de
comprometimento com as causas negras. Ao que parece tal texto faz menção àqueles anos que
se seguiram ao “grande medo”, logo: “o que vou vivendo/vou escrevendo”, afirma. A sua
escrita poética é “escrevivência”, autoficção: literatura cuja “[...] matéria prima é a vivência”
![Page 65: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/65.jpg)
65
(BERND, 1988, p. 87) e que se traduz em uma forma de escrever a própria existência,
misturando aspectos da vida com ficcção. Trata-se da escrita de alguém que sabe do seu lugar
de fala: a contestação, a denúncia e proposição sem desconsiderar suas vivências. O termo
“escrevivência”, pesquisado por estudiosos da literatura, história e antropologia, foi cunhado
na literatura brasileira pela escritora negra Conceição Evaristo, que assim se expressa quanto
à sua escrita, confundida com a sua experiência de vida:
Quando crio um texto em que falo do outro como alteridade é de mim, na verdade,
que estou falando, porque eu experimento aquele lugar de alteridade. Toda a minha
escrita, seja ficção, seja no âmbito teórico e acadêmico, é contaminada pela minha
condição de mulher negra na sociedade brasileira. É uma história compartilhada por
muitas e muitas mulheres. Da África à diáspora (REVISTA MUITO, 2015, p. 8).
Eduardo de Assis Duarte assevera que “[...] a poesia de Conceição Evaristo enfatiza a
abordagem dos dilemas identitários dos afro-descendentes em busca de afirmação numa
sociedade que os exclui” (DUARTE apud PORTAL LITERAFRO p. 2). Observa-se que mais
de cem anos separam Conceição Evaristo de Luiz Gama, mas, como se percebe das leituras
das escrevivências de ambos, os dilemas ainda são muito parecidos.
As escrevivências do autodidata da diáspora afro-baiana que, desejoso de instruir-se,
inicialmente se intitulava “[...] um soldado de pele negra” (MENNUCCI, 1938, p. 137)
deixam patente uma pertença negra, a começar pela referência sempre presente da sua mãe,
homenageada como patronesse onomástica de uma praça na Freguesia do Ó, na capital
paulista. Na sua carta autobiográfica ele a descreve:
Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de
nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã.
Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem
lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e
vingativa.
Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na
Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de
escravos, que não tiveram efeito. Era dotada de atividade (FERREIRA, 2011, p.
199).
Nessa e em outras escritas de si, o poeta discorre sobre a sua mãe com a maior
proximidade e identidade, como alguém que tem orgulho da sua ascendência materna negra.
A ressignificação identitária dá a tônica à sua linguagem, fazendo “[...] despertar no leitor a
reflexão sobre a consciência negra e o racismo” (AZEVEDO, 2005, p. 28). Laboriosa, dotada
de atividade e de consciência construtora de história, é assim que o poeta diaspórico
ressignifica a mulher negra cujo ventre o trouxe ao planeta. Tanto em escritos pessoais –
![Page 66: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/66.jpg)
66
como o colacionado acima –, como nos seus textos poéticos, “[...] introduzir o orgulho de
uma ancestralidade africana” (BERND, 1988, p. 55) vai no mesmo compasso: ele desconstrói
o ser negro enquanto construto do homem branco (BERND, 1988, p. 21) e o reinventa,
contribuindo para o empoderamento negro dos séculos seguintes.
3.3 O PALCO RACIAL E NOVAS DESMONTAGENS
Como foi evidenciado anteriormente, essas semelhanças (etnicorraciais, de gênero
etc.) existentes em determinado segmento minoritário social, quando são percebidas por seus
membros, podem levar a uma aproximação por identificação e/ou interesses, conduzindo-os à
identidade por gênero, sexo, raça, cor, etnia, situação econômica. No caso da arena racial
brasileira, por exemplo, não se pode desprezar a possibilidade de uma construção identitária
étnica forjada em uma coletiva experiência escravizada, também vivida por Luiz Gama.
Todavia,
se por um lado podem-se resgatar alguns elementos constitutivos dessa identidade
africana encontrada nas Trovas na própria experiência de Luiz Gama, não se pode,
contudo, imaginar que sua motivação ao construí-la tivesse sido a mesma que
informava os escravos e libertos dos ambientes estudados por João José Reis e
Robert Slenes. Para estes, como os próprios autores deixam claro, ela surgia de uma
necessidade de se organizar laços de solidariedade que fossem capazes de alguma
forma de amenizar os sofrimentos da escravidão (AZEVEDO, 2005, p. 75).
A fundação (ou refundação) da África no Brasil, na linguagem de Gama é um traço
delineador de uma identidade negra. Entretanto, é inegável que esses laços de solidariedade
também podem pressupor a enunciação de um nós negros, em função de situações
vivenciadas coletivamente na arena racial brasileira.
Salientar-se-á nos textos do referido escritor, que os laços identitários negros estão
presentes, a começar pela constante referência de sua genitora. Em diversos escritos seus, ele
cunhara várias expresões para definir a sua mãe, que afirmam a sua ascendência negra,
realçando essa como um patrimônio, uma herança da qual muito se orgulha. Ao contrário do
pai português que o vendera, e a quem o Orfeu de carapinha disse “[...] poupar à sua infeliz
memória uma injúria dolorosa” (FERREIRA, 2011, p. 200), ocultando o seu nome. Contudo,
por Luíza Mahin, ele nutria sentimentos de amor, admiração e orgulho, como se evidencia da
leitura do verso abaixo, do poema “Minha mãe”:
Era mui bela e formosa,
![Page 67: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/67.jpg)
67
Era a mais linda pretinha,
Da adusta Líbia Rainha,
E no Brasil pobre escrava!
Oh, que saudades que eu tenho.
Dos seus mimosos carinhos.
(GAMA, 2011, p. 152).
Segundo Elciene Azevedo:
A identidade que Luiz Gama cria é, portanto, algo mais abrangente que uma
procedência direta de terras africanas. Engloba pessoas que, distantes destas raízes e
clareadas pelas gerações, não se considerariam negras. Isto nos ajuda a entender a
dimensão política desta construção. A identidade proposta por Luiz Gama implica a
superação das diferenças dentro de raça, da união através do apelo – e da criação –
de uma tradição comum (AZEVEDO, 2005, p. 67).
Essa tradição comum, na concepção da autora, não se assentaria em regiões
específicas da África citadas por Gama em seus poemas, como Guiné, Líbia e Angola –
regiões muito diferentes entre si –, mas ultrapassaria as fronteiras étnicas e se constituiria sob
uma única identidade africana.
A propósito ainda dessa identidade negra, os seus versos se caracterizam, também,
pelo uso de uma estética e de uma escrita com um léxico33
afro ou afro-brasileiro,
desmarginalizando africanismos, conforme acentua Zilá Bernd:
A poesia de Luís Gama é contrastante por desmarginalizar africanismos, como
urucungo, candimba, cayumbas e outros; por introduzir o orgulho de uma
ancestralidade africana (“os netos de Ginga meus parentes”) e por irromper no
cenário da literatura brasileira como “canto paralelo”, alternativo (BERND, 1988, p.
55).
Observe-se que “o poeta se apresenta como um ‘Orfeu de carapinha’ que substititui
sem cerimônia os símbolos da poesia ocidental pelos equivalentes de origem africana”
(FERREIRA, 2011, p. 40).
Nesse sentido, saliente-se, ainda, que no seu trabalho poético encontram-se diversas
palavras que estão entre aquelas que Yeda Pessoa de Castro (2005) pesquisou e atribuiu
significados no seu trabalho intitulado Falares africanos na Bahia: um Vocabulário Afro-
Brasileiro, tais como: banza, bumba, catinga, marimba, quenga, e zabumba34
. Fica patente
que, “[...] ao afirmar a participação negra, pelo uso de uma estética que privilegia o ser negro,
e pela inserção de sua poesia de um significante acervo do léxico afro-brasileiro”
33
Vocábulos do dicionário usados por um autor ou por uma escola literária, segundo o dicionário Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira.
34
Ver Castro (2015, p. 169, 180, 206, 277, 320, 354).
![Page 68: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/68.jpg)
68
(AZEVEDO, 2005, p. 76), Gama confirma os laços de identidade etnicorracial, inovando, em
uma “[...] construção literária que não era comum naquela época” (PAULINO, 2010, p. 129).
O próprio título do seu livro, a expressão “Getulino deriva de ‘Getúlia’, território da antiga
África do Norte, correspondente a parte da atual Argélia, no passado chamada Numídia, e da
Mauritânia” (FERREIRA, 2011, p. 39).
Vale ressaltar que, além dos fatores identitários citados acima, não se pode negar que
Luiz Gama estabeleceu no seu dia-a-dia estreitas relações com muitas outras pessoas que se
encontravam na mesma condição que a sua. Seja na própria convivência nos anos iniciais de
sua vida em Salvador, a “Babel africana” (QUERINO, 2014, p. 33), na jornada da capital da
Bahia até São Paulo, nos serviços e perambulações de rua, nos dias de folga, ou mesmo no
convívio com outros escravizados dentro da casa de seu “senhor” (AZEVEDO, 2005, p. 72).
Saliente-se, ainda, que, quando já era um advogado, a sua residência era frequentada
por negros (SANTOS, 2010, p. 79) que diuturnamente saíam de suas cidades em busca de
alforria (ele colocava anúncios nos jornais, oferecendo-se gratuitamente para promover ações
judiciais de liberdade, como veremos no capítulo seguinte), de algum trocado, de um
conselho, de uma palavra amiga ou até mesmo para protegê-lo, oferecendo-se como guardas.
Havia uma relação mais profunda, próxima, militante, de alteridade, que ultrapassava a
relação profissional advogado-cliente, sendo esse mais um fato denotador de uma identidade
com os milhares de negros escravizados ou livres. Segundo Adam Kuper, a identidade
Precisa ser vivida no mundo, num diálogo com outros. Segundo os construcionistas,
é nesse diálogo que a identidade é formada. Mas não é dessa maneira que ela é
vivenciada. De um ponto de vista subjetivo, a identidade é descoberta dentro da
própria pessoa, e implica identidade com outros. O eu interior descobre seu lugar no
mundo ao participar da identidade de uma coletividade (KUPER, 2002, p. 298).
Essa identidade que surge com as vivências e diálogos com outros possibilitou um
caráter libertário e igualitário nas escrevivências de Gama. Nelson Câmara afirma que ele
“[...] sempre sustentou a igualdade humana, independentemente da cor da pele ou etnia,
afirmação óbvia nos dias de hoje. Mas era um contexto no qual alguns ‘intelectuais’
defendiam que o negro não tinha alma...” (CÂMARA, 2010, p. 101).
É exatamente essa identidade formatada por sentimentos de alteridade e laços de
solidariedade que aproxima Luiz Gama da população negra, já que são considerados pelo país
como “sem alma” e, portanto, iguais. Em meio às diferenças, esses laços de semelhanças vão
estar no pano de fundo dessas desconstruções dos discursos de desigualdade.
![Page 69: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/69.jpg)
69
Do lugar de fala do intelectual diaspórico, percebe-se, prima facie35
, qual é o lugar do
seu campo literário-linguístico, pois ele demonstra ter uma contundente posicionalidade
negra. A escravidão a que fora submetido, o racismo, o discurso segregador que desigualizava
negros e brancos o fez perceber-se como negro. Assim, sabendo-se “diferente” e disputando
espaços do poder que a palavra confere a alguém que domina o seu uso, ele desconstrói os
padrões culturais estabelecidos, jogando luzes para um posterior empoderamento da
população negra.
Apesar de na carta autobiográfica escrita a pedido do amigo Lúcio de Mendonça,
Gama limitar-se a dizer: “Fiz versos” (FERREIRA, 2011, p. 203), sem, contudo, dar relevo à
sua atuação, enquanto poeta, sua linguagem literária ainda ecoa em todos os cantos desse país
de visíveis mãos racistas: justiça! O seu trabalho literário em muito contribui para se repensar
as relações raciais no país onde o jogo da dissimulação e do conluio aparece nos dias atuais
sob o manto do racismo velado. Como se pode perceber, o jogo da dissimulaçao ganhou
novas formas, contornos e roupagens.
Por ser diferente do padrão estatuído, o poeta de carapinha tinha consciência de qual
era o lugar que o racismo havia reservado para ele. Foi enfrentando-o que ensaiou em grande
estilo o discurso da igualdade racial em terras brasileiras. E, dessa forma, com originalidade e
autenticidade, o Orfeu Negro ia desafiando o destino que lhe fora imposto, construindo o seu
nome e insculpindo o seu lugar nas margens da literatura brasileira.
Sabe-se que é na memória da escravidão moderna, na experiência do racismo e do
conflito estabelecido pelo terror racial que se funda politicamente a identidade cultural dos
negros no Ocidente. É relevante ressaltar uma constatação de Zilá Bernd (1988, p. 54) quanto
à importância do pensamento de Luiz Gama não apenas para a história do Brasil, mas para a
história da diáspora em todo o mundo, pois ele se antecipou aos movimentos de tomada de
consciência de ser negro em países do Atlântico Negro, como os Estados Unidos, por
exemplo. Sendo a sua trajetória construída no século XIX e essa consciência somente tendo
aflorado nos Estados Unidos e nas Caraíbas com o despontar do seculo XX, teria o brasileiro
um lugar histórico privilegiado da diáspora nas Américas no que diz respeito ao pensar e se
posicionar de um lugar de fala negro.
A sua poesia engajada, enunciando vários eus líricos negros, denunciando, ironizando,
desmontando a lógica das relações de poder e dominação, além de criar laços identitários,
possui o condão de colocar o negro como agente, em condição de igualdade, como pessoa
35
À primeira vista, expressão latina.
![Page 70: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/70.jpg)
70
com capacidade cognitiva e mesmo com uma história intelectual. Apesar (e por causa) das
duras e conflituosas condições de relações de poder impostas pelo sistema escravista
brasileiro, das suas próprias entranhas e margens, surgiu o discurso identitário e paritário de
Luiz Gama, a sua reação e de tantos outros seus iguais. A abolição da escravidão será também
obra deles, ao contrário do que pensam alguns, que a veem como obra apenas de brancos.
E a epopéia do Orfeu de carapinha não acaba no campo da literatura, que lhe serviu de
“[...] passaporte para os círculos sociais mais altos” (CÂMARA, 2010, p. 89). Ele, sempre
usando da linguagem para se constituir como sujeito e agente da História, continuará a
construir a sua trajetória na Província de São Paulo e sua fama chegará aos ouvidos de toda a
elite escravocrata em todos os rincões do Império Brasileiro. O motivo: o pretinho da Costa,
apagado e silenciado como poeta pelo cânone cultural, além de atacar o poder do imperador e
a Santa Igreja Católica, pregando de forma escancarada a ideia republicana e a abolição da
escravidão, resolveu afrontar as elites de vez, chegando agora ao cúmulo de defender a
absolvição do escravizado que mata o seu senhor, caracterizando tal fato como legítima
defesa.
Tratava-se de mais uma desconstrução da desigualdade entre as raças e cujo objetivo
era promover a própria igualdade racial. Como aquela sociedade da dissimulação e do conluio
teria entendido tamanha pretensão?
E ele, Luiz Gama, que emergiu das margens do tecido social como uma fênix,
triunfando sobre a História, além de poeta, líder maçônico, agora advogado peticionando na
justiça e escrevendo para diversos jornais, prepara-se para novas tessituras que colocarão em
xeque lógicas e desmontarão outras construções. Não apenas os saraus literários, mas os
espaços do poder judiciário, dos comícios de rua e todos os espaços constituir-se-ão em arenas
do tenso jogo das relações raciais, para fazer ecoar e potencializar a força da sua voz que
clamava e exigia justiça. Afinal, se trata de um homem que possui várias faces, mas um só
discurso: o da igualdade jurídica entre negros e brancos.
![Page 71: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/71.jpg)
71
4 ESTADO DE EXCEÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO E RESISTÊNCIAS NEGRAS
Para melhor pautar a ressignificação identitária negra em alguns textos de Luiz Gama,
contextualizaremos o estado de exceção vigente em sua época tomando como exemplo, a
princípio, alguns documentos históricos, por meio dos quais é possível identificar a sua
intervenção diante das injustiças praticadas contra dois homens negros, ilegalmente presos.
Vale destacar que o referido advogado não só constatou como, também, denunciou a
existência, no Brasil, de um tribunal de exceção na segunda metade do século XIX36
. Pagou,
por isso, um preço muito caro.
Além de dar-nos a percepção de resistência da população negra pela via judicial e de
como Luiz Gama, enquanto operador do direito, atribuía um novo significado jurídico e
político à pessoa do negro, esses documentos mostram, também, que, para este, “[...] a cor de
sua pele o colocava sob suspeição” (LARA, 2007, p. 146), razão pela qual a liberdade de
negros e “pardos” alforriados estava sempre precária, por um fio (CHALHOUB, 2012, p. 28).
Esta foi a clara sensação que teve o ingênuo37
Manuel da Silva, filho de um casal alforriado,
que, no ano de 1791, saindo da Vila de Cachoeira, em suas viagens pelo Recôncavo da Bahia
para tratar de seus negócios, foi preso na Vila de Cairu, sob o “[...] pretexto de ser escravo e
andar fugido” (LARA, 2007, p. 145). Segundo Silvia Hunold Lara:
Não eram extraordinários os casos de pardos e negros forros ou livres presos sob
suspeita de serem escravos. Muitos libertos tinham dificuldade para provar sua
liberdade e alguns casos chegaram a dar origem a processos [judiciais] de
justificação (LARA, 2007, p. 144).
O estado permanente de exceção fazia com que o negro pudesse ser preso
simplesmente “[...] por estar na rua à noite” (MATTOS, 2013, p. 190). Havia, também, “[...]
prisões sem motivo declarado” (MATTOS, 2013, p. 189). Essas prisões ocorriam ao arrepio
da própria lei do estado de exceção monarquista. A justificativa para tais ações era a
prevenção de crimes que poderiam acontecer. Ou seja, recorria-se a pressupostos
epistemológicos e racistas da criminologia brasileira, sob a ótica da Antropologia Criminal
(ESTEVAM, 2016, p. 45).
Trata-se, na realidade, do racismo científico, atualizado em solo brasileiro, tendo como
36
Estado de exceção é utilizado, aqui, sob a ótica de Agamben (2014, p. 14) que, inclusive, assevera: “[...] o
direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão”.
37
A expressão era atribuída aos filhos de escravizados ou de ex-escravizados, nascidos livres no Brasil
(AZEVEDO, 1987, p.182)
![Page 72: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/72.jpg)
72
um dos principais fundadores, o italiano Cesare Lombroso, em suas visões racistas, ao
conceber que indivíduos de perfis africanóides eram criminosos natos (SUMARIVA, 2015, p.
38). Em terras brasileiras, essa ideia encontrou eco entre os professores e estudiosos das
escolas médicas, sobretudo da Faculdade de Medicina da Bahia, onde Raymundo Nina
Rodrigues, conhecido como o “Lombroso dos trópicos” (SUMARIVA, 2015, p. 40) teria
fundado a primeira escola de Medicina Legal do país (CROCE, 2012, p. 36).
Assim, a adoção, por intelectuais brasileiros de teorias raciais inspiradas nessas ideias
e no pensamento de Charles Darwin e Arthur de Gobineau, davam foros de ciência ao racismo
no Brasil (SCHWARCZ, 2015, p. 85) e impregnavam instituições em geral, as produções
culturais e, dentre estas, a literatura, o campo jornalístico, jurídico, entre outros. Enquanto os
representantes da sciencia discutiam e propagavam suas ideias, a poesia oitocentista de Luiz
Gama denunciava: “[...] a ciência é de encomenda” (GAMA, 2012, p. 131), desqualificando-
a. Até porque Gama percebia que essa ciência com forte viés racista era um dos dispositivos
usados para ajudar a propiciar o ambiente ideal para a atuação de delegados de polícia e
juízes, que efetuavam e chancelavam as prisões daquele considerado “criminoso nato”, ou
seja, o negro.
Naquele contexto escravagista e racista, até mesmo integrantes negros do próprio
aparato policial poderiam ser presos por seus colegas de profissão. Um desses casos implicou
habeas corpus requerido em 1881 por Luiz Gama no Tribunal da Relação de São Paulo38
:
Francisco Sant’Anna dos Santos, “[...] ex-praça do Corpo Policial Permanente, transferido
para a Companhia-Militar de Guardas-Urbanos” (CÂMARA, 2010, p. 273), por ser negro,
fora “[...] aprisionado sob argumento de ser cativo e fugitivo, embora alforriado licitamente”
(CÂMARA, 2010, p. 271). O advogado do policial negro usou como fundamento jurídico do
habeas corpus impetrado em sua defesa, o Alvará nº 5, de 10 de março de 168239
(que
vigorava nos tempos da colônia). Ao argumentar que esse alvará português estabelecia o
direito processual do prazo decadencial de 5 anos para “[...] eventual proprietário reclamar
seu direito sobre o escravo” (CÂMARA, 2010, p. 273) e invocar a própria jurisprudência
paulista que aceitou essa “Lei Pátria” no deferimento de um outro habeas corpus no ano de
1877, Gama conseguiu a soltura do seu cliente.
Entretanto, essas vitórias judiciais nem sempre aconteciam no labor do advogado
38
Pesquisa realizada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no dia 30 de janeiro de 2015, nos autos de nº
74/1881
39
Entre os anos de 1808 e 1888, esse alvará foi citado como argumento jurídico em 22 processos cíveis de
liberdade em recursos impetrados junto à Corte de Apelação no Rio de Janeiro (LARA, 2006, p. 109).
![Page 73: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/73.jpg)
73
diaspórico, até porque muitos juízes eram, também, senhores de escravos. Além do mais, o
direito brasileiro reservava certas particularidades, dentre as quais, servir apenas aos
interesses de determinados setores da sociedade. Sobre certas particularidades do sistema
jurídico brasileiro, por ocasião da solenidade de criação da Medalha Luiz Gonzaga Pinto da
Gama, em 2009, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Fábio Konder Comparato
discorreu sobre a distinção entre o direito oficial e o direito não oficial, no país da lei “para
inglês ver” (SANTOS, 2010, p. 36):
O direito oficial é o que se apresenta como ordenamento civilizado, a ser exibido
com orgulho aos estrangeiros e venerado liturgicamente por doutores e magistrados.
Já o direito não oficial, embora sub-reptício, é o efetivamente aplicado, porque
conforme aos costumes tradicionais e ao quadro de valores das classes dominantes
(COMPARATO, 2010, p. 9).
Luiz Gama enfrentou e denunciou esse direito não oficial, suas instâncias e seus
juízes. Ainda em 1859, ao lançar as Trovas, se referiu a estes, em um verso do poema
Sortimento de Gorras:
[...]
Se a justiça, por ter olhos vendados,
É vendida, por certos Magistrados,
Que o pudor aferrando na gaveta,
Sustentam – que o Direito é pura peta [...]
(GAMA, 2012, p. 24).
O direito não oficial brasileiro, ou da “pura peta”, da mentira, como o traduz Luiz
Gama, fazia de diversas leis que contrariavam os interesses das classes dominantes letra
morta, a exemplo da lei de 7 de novembro de 183140
, criada por pressão inglesa
(CHALHOUB, 2012, p. 46) e que proibia o comércio de carne humana da África para o
Brasil. Inobstante a força do conluio jurídico, que o colocava em constantes choques com
juízes e curadores de escravizados, o advogado da diáspora baiana fazia publicar anúncios nos
jornais, oferecendo-se para defender gratuitamente as causas de liberdade, como se observa
no anúncio:
São Paulo
LUIZ G. P. DA GAMA, continua a tratar cauzas de liberdade.
Outro sim, responde consultas para fóra da capital, tudo sem retribuição alguma
40
Essa lei, de tão pouco aceita e ignorada pelas elites e pelo Judiciário, teria sido a responsável pela expressão
“lei para inglês ver”, ainda em voga nos tempos atuais. Entretanto, ela constituiu-se em um dispositivo
largamente utilizado por Luiz Gama nas suas ações de liberdade em foros paulistas
![Page 74: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/74.jpg)
74
(FERREIRA, 2011, p. 132)
No final dos anos 1860, o novel advogado, pobre e desempregado, passou a fazer da
sua própria residência na hoje conhecida e popular Rua 25 de Março, o seu escritório, e ali
atendia a clientes de “qualquer causa” (FERREIRA, 2011, p. 132). Entretanto, chama a
atenção o fato de, mesmo antes de obter o título de advogado provisionado, o causídico já
estar publicando anúncios em jornais nos quais se oferece para advogar gratuitamente nas
ações de libertação de escravizados, conforme denuncia esse anúncio acima, publicado no
jornal Correio Paulistano, em 26 de novembro de 186941
.
Essas centenas de ações de liberdade propositadas em comarcas paulistas pelo
advogado diaspórico, individuais ou plúrimas, tinham como instrumento jurídico principal o
habeas corpus, atualmente insculpido no inciso LXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.
Esse instituto jurídico surgiu no Brasil através do Código Criminal de 1830 (CÂMARA,
2010, p. 180). Entretanto, ele somente passou a ser utilizado na justiça brasileira depois da
edição da sua norma processual: o Código de Processo Criminal, de 29 de novembro de 1832,
cujo artigo 340, diz: “Todo o cidadão que entender que ele ou outrem sofre uma prisão ou
constrangimento ilegal em sua liberdade tem direito de pedir uma ordem de habeas corpus em
seu favor” (CÂMARA, 2010, p. 181). Observe-se que os advogados, a exemplo de Luiz
Gama, ao utilizarem a ação do habeas corpus como instrumento para auferir liberdade a
pessoas escravizadas, estavam ressignificando o ser negro, pois o incluía na esfera do
“cidadão” ao qual faz referência o citado artigo, ou seja, o incluía no rol dos portadores de
direitos.
Salientar-se-á, entretanto, que “[...] a lei falava em ‘cidadão’, e o escravo por certo não
era considerado cidadão, mas sim res ou coisa tal qual um objeto móvel ou semovente”
(CÂMARA, 2010, p. 181). Essa era a concepção do direito positivo brasileiro e muitos juízes
de direito negavam essas ações de habeas corpus usando esse argumento, a exemplo do
magistrado Xavier Brito, que negou a soltura de seis africanos. Esse juiz:
Ao negar a soltura dos presos, reafirmava em sua sentença que foram recolhidos à
cadeia na condição de escravos fugidos e, como tal, não tinham o direito de usar o
recurso de habeas corpus, só permitido ao cidadão, “que é aquele que tem líquida a
sua condição de liberdade”. Para alcançar essa condição, explicava o juiz de direito,
não bastava simplesmente se entenderem livres por serem africanos, vivendo fora do
domínio de seus senhores (AZEVEDO, 2010, p. 131-132).
41
Luiz Gama requereu a sua provisão para advogar em 20 de dezembro de 1869, sendo tal pedido deferido sete
dias depois, conforme se observa da análise dos autos 28/1869, que estão na caixa 322, lote 20.100.70000.98, do
Arquivo Público do Estado de São Paulo.
![Page 75: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/75.jpg)
75
Além de Nelson Câmara, vários outros autores salientam que, do ponto de vista
jurídico, o escravizado não possuía personalidade e o apontam como um “semovente”, o que
corresponde a um bem econômico. Não seria um bem imóvel, como uma fazenda, nem um
bem móvel, como uma carroça, por exemplo. Seria um bem semovente, um bem que se move
por si mesmo, a exemplo do gado e do equino. Compartilha dessa ideia a pesquisadora
Elciene Azevedo, para a qual o escravizado “[...] era considerado um bem semovente, um
objeto de propriedade, era-lhe negado qualquer direito político ou civil” (AZEVEDO, 2010,
p. 42). Lilia Moritz Schwarcz, em Retrato em branco e negro, no qual estuda a imprensa e o
mundo de escravos e cidadãos no século XIX em São Paulo, assevera que “[...] grande parte
dos anúncios que ocupavam os periódicos da época referiam-se a escravos” (SCHWARCZ,
2001, p. 134), vinculando-os a vários tipos de transações econômicas. Em outro trabalho da
mesma autora, intitulado Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil, ela
afirma que:
Como um bem pessoal, o escravo podia ser alugado, leiloado, penhorado,
hipotecado, assim como as demais posses de seu proprietário. Nos inventários,
apareciam sem distinção ao lado dos animais, ambos classificados sob a rubrica bens
semoventes, que se distinguiam dos bens móveis e dos imóveis (SCHWARCZ, 1996,
p. 12)
Sud Mennucci, um dos principais biógrafos de Luiz Gama, além de analisar a forma
pela qual o sistema jurídico concebia o escravizado, adentra no mérito de como a sociedade
brasileira o representava juridicamente:
A sociedade brasileira em peso considerava o negro como não sendo gente [...]. A
classificação de fôlego-vivo que se lhe dava nos engenhos, respondia cabalmente ao
conceito fundamental de que os negros não se diferenciavam em nada dos demais
semoventes que a propriedade comportava (MENNUCCI, 1938, p. 114).
Considerado, portanto, como um bem econômico e confundido com animais, por seu
turno, a Constituição “liberal” de 1824, que vigorou até o final do império, em 1889, o
ignorava: não há, em todo o texto constitucional composto por 179 artigos, sequer uma
palavra ou referência ao sistema escravista ou ao escravizado (CAMPANHOLE, 1989).
Assim, o escravizado não existe na Constituição do império. O único dispositivo
constitucional que lança indícios da existência da escravidão no país é o artigo 6º, que diz, no
seu caput e inciso I: “São Cidadãos Brazileiros [...] os que no Brazil tiverem nascido, quer
sejam ingênuos ou libertos” (CAMPANHOLE, 1989, p. 749). Ao fazer referência a pessoas
libertas nascidas em terras tupiniquins, infere-se, naturalmente, a existência de pessoas
![Page 76: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/76.jpg)
76
nascidas sob o estatuto do cativeiro. Provavelmente por dessas características elitistas e
excludentes da lei fundamental do país, o causídico Luiz Gama a tenha desprezado, não
fazendo qualquer menção direta aos seus dispositivos nos processos nos quais atuou e aos
quais a presente pesquisa teve acesso. É o poeta que, bem à maneira do seu habitual sarcasmo,
faz uso de uma corruptela da palavra Constituição para, sem nenhuma reverência, referir-se à
chamada lei maior, na poesia Sortimento de gorras:
[...]
Se a Lei Fundamental – Constipação,
Faz o papel de falaz camaleão,
E surgindo no tempo de eleições,
Aos patetas ilude, aos toleirões [...]
(GAMA, 2011, p. 24)
Observe-se que, através de um trocadilho, o poeta substitui a palavra “Constituição”
pela palavra “Constipação”, para equipará-la à doença de prisão de ventre, profanando a lei
que os juristas têm como sagrada e intocável e caracterizando-a como uma norma que ilude o
povo e cuja interpretação muda ao bel prazer dos interesses políticos.
Se, por um lado, o texto constitucional do império ignora o escravizado, a propriedade
é sacralizada pelo mesmo, sendo garantido o seu direito “[...] em toda a sua plenitude”
(CAMPANHOLE, 1989, p. 769), segundo diz o seu artigo 179, inciso XXII. Incluir-se-ia aí,
na expressão “em toda a sua plenitude”, o direito de estendê-la, além de bens, também às
pessoas? Se considerarmos apenas as ações de liberdade que subiram à Corte de Apelação na
capital imperial nos anos que entremeiam a chegada da corte até o final da escravidão,
certamente que sim. Esse artigo 179, por versar sobre um suposto direito sagrado e intocável à
propriedade, foi o mais citado nas alegações jurídicas dos advogados dos mercadores de carne
humana, nesses processos enviados à última instância do Rio de Janeiro (LARA, 2006, p.
109). Para eles, garantir a posse sobre a vida de pessoas era um direito constitucional,
sagrado.
Assim, dentro desse contexto que juridicamente representa a pessoa humana
equiparando-a a animais e na condição de “bem que se move”, infere-se a importância do
pensamento e da atuação do advogado Luiz Gama e desses outros operadores do direito que
ingressavam com estas postulações negras, cuja admissibilidade em juízo implicava
tacitamente em ressignificação dessa condição. Além da atribuição de um novo significado
jurídico ao “ser negro”, esses profissionais do direito, “ao atuarem em ações de liberdade
impetradas pelos escravos contra seus senhores, contribuíram para desestruturar a política de
![Page 77: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/77.jpg)
77
domínio senhorial, minando as bases da ideologia que sustentava a escravidão” (AZEVEDO,
2010, p. 93). É de bom alvitre lembrar que essas vozes dos tribunais terminavam por ecoar
nas ruas, fomentando a campanha abolicionista, da qual Luiz Gama teria sido um dos
precursores (MENNUCCI, 1938, p. 131).
Ignorado na chamada Carta Magna e considerado um bem semovente no direito civil,
é no Código Criminal que o escravizado aparece como sujeito, para ser criminalizado, o que
evidencia uma flagrante contradição da legislação brasileira:
Se perante o direito civil o escravo era considerado um bem semovente, portanto
sem nenhum direito ou obrigações jurídicas, perante a lei penal não só era
plenamente responsabilizado por seus crimes como deveria responder a processo e ir
a julgamento (AZEVEDO, 2010, p. 65).
Essa contradição também é percebida por Hedio Silva, no trabalho Direito de
Igualdade Racial, quando este autor observa que, para efeitos civis, o negro não era
considerado pessoa, pois, até mesmo quando era mutilado por terceiros estranhos ao seu
senhorio, tratava-se de mero dano (ao seu senhor), instituto ligado ao direito civil, no capítulo
da propriedade. Da mesma forma, se sofresse sequestro, estaria no campo do direito civil.
Entretanto, para efeitos da persecução penal, sendo acusado, ele era humano, considerado
pessoa. Era penalmente responsável, imputável e, naturalmente, respondia por seus atos
(SILVA, 2002, p. 8).
Estabelecendo dispositivos criminais que diziam respeito apenas aos escravizados (a
exemplo de tipificar como crime de insurreição a aglomeração de vinte ou mais pessoas que
tentassem alcançar a liberdade pela força), o direito penal do estado de exceção monarquista
os colocava como pessoas plenamente responsáveis por seus atos, capazes de arcar com suas
responsabilidades, logo, como um cidadão comum. Não sendo um ser de direitos, o negro
escravizado era o “vivente” que, ignorado pelo dispositivo constitucional, era incluído pelas
leis civis e criminais no sistema político e jurídico.
Apesar da existência de dispositivos jurídicos e políticos que impunham a
subalternização, a resistência de mulheres e homens negros a esse constante estado de sítio
sempre se fez presente ao longo da história brasileira. Provas desta resistência são as
insurreições, fugas, abortos, feitiços, suicídios e homicídios contra senhores escravocratas,
como assinala João André Antonil, em Cultura e opulência do Brasil (ANTONIL, 1982, p.
91), livro publicado em Lisboa, no ano de 1711, depois de passar por vários censores e
inquisidores, até o Santo Oficio autorizar a sua publicação. No século anterior à publicação
![Page 78: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/78.jpg)
78
desse livro, no trabalho intitulado História do Brasil (1500-1627), Frei Vicente do Salvador
registra a informação ao governador geral do Brasil de “[...] um mocambo ou magote de
negros de Guiné fugidos, que estavam nos palmares do rio Itapicuru” (SALVADOR, 2013, p.
318). Em alguns momentos históricos a resistência negra se tornou tão ameaçadora ao estado
de exceção que as instituições governamentais criavam o estado de exceção no próprio estado
de exceção. Veja-se, por exemplo, o Levante dos Malês, em Salvador, no ano de 1835 (do
qual teria participado Luíza Mahin, mãe de Luiz Gama). Esse ato de resistência:
“[...] tomou proporções tais que necessário foi, por lei nº 1 da Assembléia
Provincial, de 28 de março de 1835, suspender, por trinta dias, as garantias
constitucionais, para o efeito de se darem buscas em todas as casas e prevenir novas
conflagrações por parte dos africanos” (QUERINO, 2014, p. 97).
Assim, a história construída pela população negra desterritorializada no Brasil
evidencia variadas formas de reação à escravidão, visto que muitas mulheres e homens
negros, desafiando os seus supostos senhores e as instituições do estado de exceção,
procuravam o advogado Luiz Gama com o propósito de ter assegurada a sua liberdade,
evidenciando um protagonismo histórico na arena racial brasileira, exatamente em um dos
seus campos mais minados: a justiça, cujos operadores eram formados bacharéis em
instituições cuja cartilha preconizava a animalidade ou a inferioridade do negro como verdade
absoluta.
Quem eram os clientes do advogado Luiz Gama? Imigrantes que buscavam melhores
oportunidades de vida na já próspera Província de São Paulo, como o italiano Antonio
Ribeiro, dono do “[...] pequeno comércio na ‘praça do mercado’, na hoje famosa 25 de
março” (CÂMARA, 2010, p. 229), paciente42
do Habeas Corpus 22/187743
; os espanhóis
Lourenço Gonzales e Santiago Vilarinho, presos em 29 de junho de 1882, por lesões corporais
provocadas em um guarda urbano. A petição inicial desse habeas corpus de nº 92/1882 foi
propositada em 04 de agosto de 188244
e, quatro dias após, logo depois da oitiva dos réus o
42
Na justiça brasileira, até os dias atuais, as pessoas para as quais são propositadas as ações de habeas corpus são
chamadas de pacientes
43
A presente pesquisa teve acesso a este processo oriundo do Tribunal de Justiça paulista no Arquivo Público do
Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2015. Os autos encontram-se na caixa 2010.07000.545
44
Petição que Luiz Gama protocolou 20 dias antes da sua morte. Esse fato mostra que, quando faleceu de
diabetes, aos 52 anos de idade, o advogado estava em plena atividade
![Page 79: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/79.jpg)
79
acórdão determinou as suas solturas, pelo fato de não ter havido prisão em flagrante45
.
No rol de clientes de Luiz Gama figuravam brasileiros livres, a exemplo do fazendeiro
João Franco, preso por supostamente ter dito que iria matar o coletor Bernardino Veloso, e do
tenente Elizeu Dantas, “[...] ilegalmente detido num quartel da capital” (CÂMARA, 2010, p.
209), cujos processos de habeas corpus foram tombados, respectivamente, sob os números
47/1874 e 88/188246
.
Entretanto, o maior número de processos nos quais advogou o causídico diaspórico,
por nós localizados no Arquivo Público do Estado de São Paulo e no Arquivo do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo, foi de autores escravizados ou alforriados negros,
evidenciando a relação de alteridade e proximidade desse advogado com os infortúnios e
angústias daqueles que ele de alguma forma considerava serem os seus pares.
O processo da africana Luíza é uma das primeiras causas aceitas por ele, depois da
concessão da sua provisão. Esse processo conta a história de uma africana boçal47
que “[...]
entre os anos de 1843 a 1846 foi importada”48
, contrariando a lei de 7 de novembro 1831,
sendo este, aliás, um dos maiores fundamentos jurídicos das ações de liberdade impetradas
por Gama.
Uma causa do advogado, que não apenas evidencia alteridade, mas contribui também
para dar um novo significado à condição jurídica do negro é o processo do Menor Luiz49
, de
14 anos de idade. Em petição de habeas corpus assinada e protocolada no Tribunal da Relação
de São Paulo, em 29 de julho de 1880, Luiz Gama informa que, mesmo alforriado, o seu
cliente fora penhorado pelo credor do seu ex-senhor. Para garantir a execução processual, o
menor foi posto na cadeia a título de depósito, mas Luiz Gama conseguiu fazer com que o juiz
da causa o transformasse em terceiro embargante. O próprio Luiz Gama faz registrar, na
petição escrita àquela época à mão, a importância do ato judicial daquele tribunal de segunda
instância, no sentido da ressignificação jurídica do adolescente negro, “[...] porque a simples 45
Pesquisa realizada no Arquivo Público do Estado de São Paulo, em 23 de janeiro de 2015, os autos estão na
caixa 2010.0700.0545, juntos com outros três processos judiciais de habeas corpus, todos de autoria de Luiz
Gama
46
Os autos desses dois processos, também oriundos do Tribunal de Justiça paulista encontram-se na caixa
2010.07000.510 do Arquivo Público do Estado de São Paulo
47
A expressão boçal servia para designar o africano que não falava o português (SCHWARCZ, 1996, p. 12)
48
Página 1 dos autos 71/1870, cuja petição inicial é de 15 de fevereiro de 1870. A pesquisa neste processo
localizado no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ocorreu em 12 de janeiro de 2015
49
Pesquisa realizada no dia 19 de janeiro de 2015 no arquivo do Estado de São Paulo nos autos de nº 60/1880,
caixa 252, com a seguinte numeração: 20100.600.4029.
![Page 80: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/80.jpg)
80
acceitação dos embargos é causa de implícito reconhecimento de pessoalidade jurídica, do
Embargante [..]” (CÂMARA, 2010, p. 238). Ao aceitar-lhe como embargante, o tribunal ad
quem50
reconheceu personalidade jurídica ao menor e determinou a sua libertação até o
julgamento da ação principal.
Localizamos em arquivos paulistas muitos outros autos processuais nos quais atuou
Luiz Gama, quer seja como advogado – a exemplo do processo 63/1880, do Preto João
Carpinteiro –, ou como curador51
– a exemplo do processo 324/1877, do Escravo Pardo.
Existem muitas histórias jurídicas de protagonismos, de resistências negras contadas
em publicações de autores que estudam a vida e obra de Luiz Gama, a exemplo de Sud
Mennucci, Nelson Câmara, Elciene Azevedo e outros.
Por várias razões escolhemos para este estudo a história da prisão dos negros Felipe e
João Ricardo, enquadrados pelas polícias paulistas como suspeitos de serem escravizados
fugidos, pois esta história, além de dar vazão à linguagem jurídica de positivação do negro,
por seu advogado, não figura entre as histórias contadas na bibliografia pesquisada pelo
presente estudo. Assim, sob esse olhar a mesma tratar-se-ia de uma contribuição a mais nos
estudos gamistas, oferecida por esta pesquisa.
Em 11 de junho de 1877, Luiz Gama ingressa na segunda instância criminal paulista
com a seguinte petição de habeas corpus, tombada por aquele juízo sob o número 26/1877 e
hoje arquivada na caixa 482 (registro 29.2010.0700.616) do Arquivo Público do Estado de
São Paulo:
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE SÃO PAULO
Senhor:
Luiz Gama, com o devido respeito, e nos termos da Lei, vem impetrar á V. M. Imperial ordem de
habeas-corpus em favor de Philippe, e de Joam Ricardo, vulgo – Militão – livres perante o direito, e illegalmente
detidos no calabouço da Casa-de-correcção d’esta cidade, por suspeita de serem escravos fugidos!...
O primeiro está preso desde o dia 20 de Janeiro de 1874, á ordem e disposição da Delegacia de Polícia
da Capital, por mandado do Dr. Chefe de Policia!...
O segundo está preso desde o dia 16 de Dezembro de 1875, á ordem e disposição da Subdelegacia-de-
Policia de Sancta Ephigenia.
50
Tribunal ou juiz de instância superior para onde se encaminha o processo para um novo julgamento. 51
A figura do curador ainda existe no processo civil brasileiro, para os casos de representação jurídica de
maiores incapazes, como loucos de todo gênero, pródigos, “índios não aculturados”. No período em questão,
como os escravizados não possuíam personalidade jurídica, exigia-se a presença do curador na sua representação
processual.
![Page 81: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/81.jpg)
81
Ordenamento incluso é prova inconcussa do enorme attentado, de que sam victimas os pacientes: presos
em face da Lei N. 2033 – de 20 de Settembro de 1871; e do Decreto N. 4924 – de 22 de Novembro, do mesmo
anno, Cap. 3º Secção 1ª, - para averiguaçoens policiaes, sobre serem escravos fugitivos, em rasão de mera
desconfiança das Autoridades, que decretaram esta barbara violencia – há tres annos!!!
É, pois, motivo e fundamento da detenção, único, e despido de outra rasão qualquer, a desconfiança da
autoridade; e, assim temos, de modo patente, fóra de toda contestação, que a simples desconfiança da autoridade
revogou de plano, e de chofre, a Ordenação do Liv 4 Tit. 42, que declara o captiveiro contrario á natureza, de
onde decorre o principio de direito civil – que todo o homem se presume livre, até que o contrario se prove, nos
expressos termos da Lei; principio este, que jamais poderá ser contrariado pela autoridade-legal, por mais
suspeitas que ser possam as suas policiaes desconfianças; e a Lei de 1º de Abril de 1680, que manda receitar,
como mais fortes, por serem mais racionais, e conformes ao direito-natural, as rasões em favor da liberdade, por
serem preferiveis ás que podem fazer justo o captiveiro.
E quando mesmo se pretendesse manter, si bem que sem menor cabo da Lei, as desconfianças policiaes,
e as indagaçõens perpetuas, para descobrimento do mais extravagante dos suppostos captiveiros, considerando-
se, por simples hypothese, escravo, quem abertamente se-declara livre, e nam é obrigado a provar esta condição,
que é intuitiva, e a propria Lei manda respeitar, e assim, ainda que absurdamente, se-houvesse por escravos, e
constituindo bens-do-evento, aos pacientes, como seriam elles vendidos em hasta-publica, sem exhibição da
matricula especial? – (Decr. N. 4835 – 1º Dezembro 1871 Cap. 7 art. 45)
Como se dará a Fazenda Nacional, na segunda hipothese, por proprietaria ou dona de escravos, aliás
sem donos, e abandonados pelos senhores, em favor do artigo 6º da Lei N. 2040 – de 28 de Settembro de 1871?
Como allegará o dominio em frente do artigo 73 do Decreto N. 5135 – de 13 de Novembro de 1872?
Como se-harmonisará tudo isto com o parecer do Exmo. Procurador da Côroa e Soberania Nacional?
Parece que a autoridade-policial resolveu o problema, arvorando a suspeita em fundamento legal, e
estatuindo o systhema das indagaçoens perpetuas, para garantia do direito dominical.
Senhor!
O impetrante jura, nos termos da Lei, a verdade da prezente allegação, e
P. deferimento da justiça.
São Paulo, 11 de junho de 1877.
Luiz Gama.
A peça processual em apreço é um libelo de denúncias das ações da polícia brasileira
contra a população negra e ela reflete o lugar de fala do seu autor – um ex-escravizado, que
ressignificou a sua própria existência tornando-se advogado, e que usa a linguagem jurídica, o
talento profissional e sua militância como instrumentos de ressignificação da imagem de
outros tantos negros escravizados e livres. A história que ela conta parece ter um eco de
![Page 82: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/82.jpg)
82
infinitas proporções: ultrapassando as barreiras de tempo e de espaço, milhões de negros
espalhados pelo Brasil se vêem nela porque provavelmente já passaram pela mesma situação
de insegurança jurídica porque passaram João Ricardo e Felipe.
A indignação e perplexidade do advogado Luiz Gama, que escreve a ação de habeas
corpus, é percebida, de imediato, através dos pontos de exclamação que insculpe exatamente
nas linhas em que expõe sobre o autor da prisão, o motivo e o tempo da sua duração. Segundo
o causídico diaspórico, os seus clientes João Ricardo e Felipe estavam presos há três anos em
um ato de “bárbara violência” da polícia paulista pelo simples fato de serem negros e,
portanto, suspeitos de terem fugido do cativeiro. Eles foram presos para “averiguações
policiais”, em um país onde a Constituição, em seu artigo 179, inciso VIII, dizia que
“ninguém poderá ser preso sem culpa formada [...]” (CAMPANHOLE, 1989, p. 768) e cujo
artigo 148 do Código de Processo Criminal dizia que “a formação da culpa não excederá o
termo de oito dias, depois da entrada na prisão” (CÂMARA, 2010, p. 190).
Provavelmente essas vítimas do racismo institucional ficariam ad infinitum no cárcere
e teriam morrido na cadeia, se não fosse a ação libertária do advogado. O artigo 353 do
mesmo estatuto jurídico processual, por sua vez, previa ser ilegal a prisão “quando o réu
esteja na cadeia sem ser processado por mais tempo do que marca a lei” (CÂMARA, 2010, p.
191), razão pela qual o advogado negro, estupefato com a duração de três anos de prisão,
informa a sua ilegalidade. Segundo Lilia Moritz Schwarcz (2015, p. 155), “por ‘suspeito de
ser escravo’ não foram poucos os libertos que, ao vagarem pelas ruas, foram presos e
reconduzidos ao cativeiro”.
Quais eram os critérios da suspeição? Lilia Moritz Schwarcz (2001, p. 172), afirma
que o negro era o suspeito número 1. A referida pesquisadora constata que nos anúncios de
fugas estampados nos jornais, muitas vezes os senhores “[...] preferiam descrevê-los por suas
cicatrizes e marcas” (SCHWARCZ, 1996, p. 17). Ou seja, ser negro e ter cicatrizes de
castigos, ao que tudo indica, foi a senha para a polícia ver no cliente de Luiz Gama de
prenome João um negro fugido, conforme se percebe às fls. 14 dos autos, logo no início das
informações prestadas ao tribunal pelo chefe de polícia de São Paulo, Elias Antonio Pacheco e
Chaves, em 19 de junho de 1877:
Em officio de 8 de Dezembro de 1875, participou a Delegacia de Policia da Cidade
de São José dos Campos que mandária recolher à prisão um homem de côr preta,
que vagava naquelle Termo sem saber de donde vinha e para onde ia, parecendo ser
captivo, em vista dos signaes que mostrava o corpo, desde os hombros até as
nadegas, alem de um signal em forma de S, sobre o lado direito das costas, feito a
ferro e fogo.
![Page 83: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/83.jpg)
83
Através do documento acima, notamos que dois dias após a polícia ter visto o “homem
de cor preta” e com sinais de tortura, o recambiou para a capital paulista, onde ele não teria
apresentado “[...] documento algum que abonasse seo estado livre, seo meio honesto de vida”.
Observe-se que o estado de exceção via o negro na condição de escravizado fugido ou
criminoso, por isso exigia dele não apenas a carta de alforria provando que era livre, mas
também prova de que não era ladrão, levando-nos a inferir que a polícia partia do pressuposto
que “[...] qualquer elemento negro era considerado potencialmente perigoso [...]”, conforme
constatado por Schwarcz (2001, p. 190).
Saliente-se que, da leitura dos autos percebe-se que os presos não foram ouvidos em
nenhum momento do processo judicial e os julgadores apenas lêem o que o advogado, a
polícia e o juiz de primeira instância dizem sobre eles. Assim, nas linhas seguintes do
relatório da Secretaria de Polícia de São Paulo, o chefe da corporação, Elias Antonio Pacheco
e Chaves passa a informar o que teria dito o cliente de Luiz Gama em seu interrogatório na
polícia:
[...]
aquelle preto disse em São José dos Campos , ao Delegado, chamava-se Militão
João de Mello, trocou seo nome n’esta cidade, respondendo ser seo nome João
Ricardo de (ilegível). Disse ter vindo para esta Capital durante a guerra do Paraguay,
e trabalhado na estrada de ferro de (ilegível), Itu e Sorocaba.
Segundo alguns autores, não era comportamento incomum entre aqueles que fugiam
do cativeiro em São Paulo identificar-se com outro nome para dificultar a sua real identidade
cativa (SCHWARCZ, 2001, p. 140-141), mas no caso em tela não há provas nos autos que
esse fato teria mesmo acontecido. E, quanto a referência à Guerra do Paraguai (1865-1870),
apesar de não ficar claro nos autos se o cliente de Luiz Gama teria sido alforriado por ter
participado da guerra, Pierre Verger informa que essa era uma possibilidade, pois “[...] alguns
escravos eram libertados por pessoas que não queriam ir para a guerra e os enviavam em seu
lugar” (VERGER, 1987, p. 516).
Vale salientar que o chefe de polícia que presta essas informações sobre as prisões dos
clientes de Luiz Gama ficou conhecido na historiografia brasileira, pelo fato de no relatório
referente a 1876 (e, portanto, meses antes da propositura desse habeas corpus de João e
Felipe), ele ter dito que uma das causas do aumento do crime nas propriedades agrícolas da
província de São Paulo era a presença do “escravo mau vindo do Norte”, conforme o registro
feito por Célia Maria Marinho de Azevedo (1987, p. 190), ao pontuar que:
![Page 84: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/84.jpg)
84
Segundo Pacheco e Chaves, devido à crise econômica das regiões do norte do
Império, bem como aos altos preços pagos pelos compradores de escravos no Sul,
estavam convergindo para São Paulo “o que há de pior na escravatura”, indivíduos
“relapsos” e “criminosos” (AZEVEDO, 1987, p. 190).
A conjuntura brasileira desse período corresponde ao auge do tráfico interprovincial
de carne humana das antigas regiões produtoras de açúcar do Nordeste para o Sudeste, que se
afirmava economicamente com a produção cafeeira. Segundo Sidney Chalhoub, esse auge
“[...] ocorreu entre 1873 e 1881, quando 90 mil negros, numa média de 10 mil por ano,
entraram na região, principalmente através dos portos do Rio de Janeiro e de Santos”
(CHALHOUB, 2009, p. 43). Os assassinatos cometidos em São Paulo contra feitores,
fazendeiros escravocratas e suas famílias por estes “negros maus vindos do Norte” (que
figuram no tópico “Crimes praticados por escravos”, do relatório do chefe de polícia Elias
Antonio Pacheco e Chaves, referente ao ano de 1876), levaram pânico aos escravocratas e as
suas notícias agitavam a imprensa e a Assembleia Legislativa Provincial (AZEVEDO, 1987,
p. 190). Segundo alguns estudiosos, essa onda de escravizados negros causou medo na elite
branca e, assim, em muito contribuiu para o fim da escravidão no Brasil, como podemos
observar através de Chalhoub (2009, p. 59):
O volumoso tráfico interprovincial de escravos é uma mostra de vitalidade da
escravidão cerca de uma década antes de seu final, só que os “negros maus vindos
do Norte” trouxeram com eles o sentimento de que direitos seus haviam sido
ignorados, e ajudaram decididamente a cavar a sepultura da instituição.
Provavelmente aqueles homens defendidos por Luiz Gama seriam, na representação
do chefe de polícia, alguns desses “negros maus vindos do Norte”, que “[...] revoltam-se por
qualquer ato de disciplina, tornam-se delinqüentes [...]” (AZEVEDO, 1987, p. 190).
Se parte do relatório policial escrito pelo chefe Elias Antonio, acima exposto,
indignava o advogado Luiz Gama, não menos repugnante deveria ser a leitura das
informações prestadas no dia 18 de junho de 187752
, nos autos pelo juiz de primeira instância,
Bellarmino Peregrino da Gama, explicando o porquê das prisões e afirmando estar amparado
legalmente em um regulamento provincial de 20 de julho de 1856:
[...] são arrecadados, como bens do evento pelas autoridades judiciárias os escravos
e animaes, cujos donos não apparecem á reclamal-os dentro do prazo dos annuncios,
52
Fls. 22 e 23 dos referidos autos.
![Page 85: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/85.jpg)
85
mandados fazer pela Policia; e arrematados se no decurso de 60 dias dos editaes para
a arrematação, não se apresenta alguem que justifique serem seus esses bens, assim
arrecadados, que quando escravos, são recolhidos á cadeia [..].
Chama a atenção do leitor a representação do negro no discurso do magistrado, que o
vê sem dignidade, desprovido de humanidade, cujo tratamento é o mesmo dado aos animais,
no momento em que discorre sobre os procedimentos de recolhê-lo das ruas e mandá-lo às
prisões. Contudo, a ignorância sobre a existência dos artigos da Lei do Ventre Livre, editada
em 1871 e que, por ser uma lei de abrangência nacional derrogaria qualquer norma provincial,
o coloca em igual desconforto, quer seja por desconhecimento desta lei ou por parcialidade
nas suas decisões.
Estando o advogado Luiz Gama e os representantes do estado de exceção em lugares
de fala diametralmente opostos, percebe-se a representação humanizada dos negros presos na
linguagem do causídico: tidos como bárbaros e violentos pela sociedade imperial
(SCHWARCZ, 2001, p. 121), são exatamente eles as vítimas do “enorme atentado” da
polícia, em uma inversão da lógica. Na voz e na pena do advogado, os sentimentos daquelas
pessoas podiam ser expressados com alguma fidelidade pelo simples lugar de fala de ambos:
de negros, de ex-escravizados.
Interessante é perceber como os argumentos do defensor de João Ricardo e Felipe
ressignificam a sua condição de bens semoventes, ao usar a expressão “homem” e ao referir-
se a eles invocando o direito natural à liberdade que tem todo ser humano, pois “todo o
homem se presume livre”. Obviamente que durante o período que permeia os aproximados
350 anos de escravidão no Brasil, muitas pessoas escravizadas fugiam do jugo imposto, em
uma prova de resistência, como atestam os inúmeros anúncios de jornais, a exemplo deste,
publicado em 25 de abril de 1878, no Jornal Província de São Paulo: “Desde quinta-feira anda
fugido o escravo Silvestre, natural do Ceará, levou calça embranquecida. Costuma dar-se por
livre, mudar de nome e alugar-se para qualquer serviço [...]” (SCHWARCZ, 2001, p. 140-
141).
João Ricardo e Felipe poderiam até ser escravizados fugidos e ter mudado de nomes,
como percebe-se nas sustentações do delegado de polícia, até porque estes fatos tornaram-se,
na segunda metade do século XIX, “[...] cada vez mais constantes” (SCHWARCZ, 2001, p.
189), todavia, Luiz Gama informa no habeas corpus que eles são “livres perante o direito” e
estão “illegalmente presos”. Mas livres perante qual direito? Quais são os fundamentos
jurídicos dessa alegação? Se fossem realmente negros fugidos, não haveria, para a pretensão
deles, amparo no ordenamento jurídico brasileiro. Provavelmente o advogado tinha uma
![Page 86: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/86.jpg)
86
ampla estratégia em sua argumentação a favor do direito à liberdade de seus clientes. Caso
não ficasse provado que eles eram fugidos, até porque o advogado invoca a presunção de
inocência, seriam postos em liberdade. E também por que, a quem caberia provar as razões da
prisão de alguém, ao próprio preso ou a quem o prende em nome do dispositivo jurídico?
Obviamente que à autoridade autora da prisão, à qual Luiz Gama, em um sarcasmo – também
presente na sua linguagem jurídica – diz que “resolveu o problema, arvorando a suspeita em
fundamento legal, e estatuindo o systhema das indagaçoens perpetuas” para uma suposta
garantia do direito.
A uma polícia que exigia a apresentação da carta de alforria à pessoa negra presa, Luiz
Gama informa e cobra a inversão do ônus da prova. Observe-se que esse profissional do
direito alega que ninguém “[...] é obrigado a provar essa condição [de livre], que é intuitiva”,
logo, cabe ao órgão policial provar a condição de não livre. Como durante três anos (!), este
não tinha conseguido provar tal condição, pretendendo indagar e aprisionar ad eternum
aqueles dois homens negros, o advogado exigia as suas solturas.
Saindo das razões de fato para as suas razões de direito, o advogado negro exibe uma
linguagem didática e uma lucidez jurídica, inclusive grifando e colocando as ideias mais
relevantes em flagrante evidência, para chamar a atenção dos julgadores da causa.
Partindo da hipótese de que o Tribunal da Relação entendesse que João Ricardo e
Felipe fossem escravizados não procurados por seus donos e que pudessem ser colocados em
leilão, o habilidoso advogado pergunta: “como seriam elles vendidos em hasta-publica, sem
exhibição da matricula especial?” Logo em seguida ele articula nova interrogação ao Juízo:
“como se dará a Fazenda Nacional, na segunda hipothese, por proprietaria ou dona de
escravos, aliás sem donos, e abandonados pelos senhores, em favor do artigo 6º da Lei N.
2040 – de 28 de Settembro de 1871?”
Nesse questionamento o advogado está a referir-se à lei do Ventre Livre e após ela a
matrícula de escravizados passou a ser obrigatória. Tal dispositivo legal reclamou a edição
desse decreto regulamentar de número 4835, citado por Luiz Gama (CÂMARA, 2010, p.
189). Ora, se não existem provas nos autos sobre a possibilidade de João Ricardo e Felipe
serem negros fugidos, restaria a hipótese de terem sido abandonados pelos senhores, o que
ensejaria, também as suas solturas, à luz do parágrafo 2º do artigo 87 desse decreto citado
pelo advogado, que diz: “os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem
dados à matrícula até um ano depois do encerramento desta, serão por esse fato considerados
libertos” (CÂMARA, 2010, p. 189).
Eles não tinham matrícula (pelo menos a existência dela não foi citada nos autos) e,
![Page 87: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/87.jpg)
87
como a lei deu o prazo de um ano a partir de 1871, para os senhores matricularem seus
escravizados, sob pena de perder o senhorio, em tese, estando no ano de 1877, eram livres.
Colocá-los em leilão seria ir contra a lei, pois escravizados abandonados são livres.
Não podendo a Fazenda Nacional vendê-los porque eles, além de abandonados, não
tinham matrícula, Luiz Gama lança, nas linhas seguintes, novo questionamento sobre o poder
do governo em cuidar e manter o domínio de filhos de filhas de escravas, sendo este poder
reservado às associações, casas de expostos e particulares.
Em seguida, o advogado faz nova provocação aos julgadores, desta vez colocando a
saia justa que uma hipotética e contraditória decisão desfavorável aos seus clientes poderia
causar ao próprio governo: “Como se-harmonisará tudo isto com o parecer do Exmo.
Procurador da Corôa e Soberania Nacional?”. Ou seja: diante da falta absoluta de provas e de
tantos questionamentos jurídicos, os quais o tribunal não poderia responder, qual seria o
parecer do procurador sobre o caso em tela?
Com todas essas perguntas, Luiz Gama quer fazer perceber aos julgadores da segunda
instância paulista que, diante da falta de provas, não restará a eles outra alternativa a não ser
declarar ilegal a prisão de João Ricardo e Felipe e determinar as suas solturas.
Em outra estratégia de defesa, para a hipótese de, caso no curso do processo surgissem
provas, indícios ou presunções de que os seus clientes eram negros fugidos, quais alegações
teriam o condão de convencer os integrantes do Tribunal da Relação a dar-lhes a liberdade?
Para essa hipótese, Luiz Gama invoca um princípio do direito romano (que ele entendia ser
universal): o direito natural. A civilização romana, ao criar o direito – e, logo desde o seu
início, provar que direito e justiça não se confundem, pois, mesmo depois da criação do
direito mantiveram a escravidão em todos os seus domínios –, o dividiu em: jus civile (direito
civil, para os cidadãos romanos), jus gentium (direito das gentes, para os estrangeiros) e o jus
naturale (o direito natural, entendido como filosofia jurídica). Invocar essa criação do
contraditório império que criou o direito e procurou legitimar a escravidão, foi a solução
encontrada pelo advogado para conseguir a vitória do seu múnus advocatício. Como vimos,
apesar de o criador da Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen, entender que direito não é
filosofia jurídica, é norma (ROSS, 2003, p. 25), pergunta-se: e se a norma não for justa?
Implícito está esse questionamento na escrita jurídica de Luiz Gama, que lança o olhar
humano sobre a pessoa negra, possuidora do direito natural à vida e à liberdade, em uma
linguagem que a ressignifica naquele contexto desumano do Brasil oitocentista.
A defesa da teoria do direito natural não foi algo novo na vida de Luiz Gama, pois em
1859, quando ele lançou as Trovas, escreveu o seguinte verso no poema Que mundo é este?:
![Page 88: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/88.jpg)
88
[...]
Vejo-o livre feito escravo
Pelas leis da prepotência;
Vejo a riqueza em demência
Postergando a natureza [...]
(GAMA, 2011, p. 130).
Percebe-se na expressão “postergando a natureza”, a concepção do direito natural à
liberdade, que um dia viria, segundo o poeta. Infere-se, também, que Luiz Gama vê a
escravidão como um instituto criado por dispositivos tirânicos e que ninguém nasce escravo, é
tornado escravo pelo sistema opressor. Ao contrário do que alguns estudiosos afirmam, que
Luiz Gama aceitava a lei sem questioná-la, que “[...] conformou-se com a lei, aceitou-lhe os
ditames, os dispositivos draconianos [...]” (MENNUCCI, 1938, p. 141), ele faz críticas ao
direito, conforme se nota através da expressão “leis da prepotência”.
A invocação de argumentos fundamentados em uma suposta lei natural na linguagem
jurídica de Gama evidencia, além de um novo sentido de positivação da população negra,
também um curioso esforço jurídico do advogado, no sentido de invocar algum parâmetro
filosófico ou legal que servisse de esteio para dar guarida à sua causa, em suas várias
estratégias de defesa. Prova disso é, também, o que se observa no 5º parágrafo do seu libelo
em defesa dos suplicantes: a despeito de ter decorrido mais de meio século da independência
do Brasil e da criação do seu sistema político-jurídico, até mesmo um dispositivo editado em
1680 pela antiga metrópole – e, portanto, peça fora do ordenamento jurídico do país – fora
utilizado para convencer o tribunal de que são “[...] mais fortes, por serem mais racionais, e
conformes ao direito-natural, as rasões em favor da liberdade” (sic).
Por fim, em 19 de junho de 1877, em um rito sumário que durou oito dias, da sua
propositura até a sua decisão final, às fls. 25 dos autos o Tribunal da Relação exarou o seu
acórdão, determinando a soltura de João Ricardo e Felipe: “Accordão em Relação que vistas
as informações [ilegível) concedem a soltura requerida, visto não haver justa cauza para
continuarem os pacientes na prizão em que se achão”. No mesmo dia os autos foram
entregues ao cartório “e feitas as diligências ordenadas” pelo tribunal.
Vale salientar que muito do discurso dos advogados se perde no vento, não se
perpetua. São palavras ditas nos recintos das instâncias do poder judiciário e que não ficam
consignadas nos autos, sobretudo nos anos oitocentos, quando não havia formas de captação
rápida e registro desses arquivos. O autor de O precursor do abolicionismo no Brasil, Sud
Mennucci, lamenta esse fato, se referindo à produção da linguagem jurídica de Luiz Gama e
![Page 89: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/89.jpg)
89
ao seu conhecido talento como orador (MENNUCCI, 1938, p. 162-163), aplaudido
principalmente pelos jovens estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco
(CÂMARA, 2010, p. 152), instituição cujos estudantes outrora o recusaram, conforme
publicou Raul Pompéia, o futuro autor de O Ateneu, em 1884, na Gazeta de Notícias, do Rio
de Janeiro:
Em princípio de sua carreira, tentou cursar a Faculdade Jurídica de São Paulo. A
generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as
aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o suplício de Santo Estevão e as
apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama exclui-se revoltado, da
companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos (MENNUCCI,
1938, p. 140).
Execrado por uma geração de estudantes da faculdade de direito paulista e admirado
por outra, Gama se notabilizou também como grande orador em reuniões, comícios e no
Tribunal do Júri (MENNUCCI, 1938, p. 162). Se grande parte da sua produção oral se perdeu
no vento, poder-se-ia dizer, também, que os seus escritos judiciais são de autoria incerta, uma
vez que parte significativa da produção escrita dos advogados nas peças processuais não pode
ser atribuída a eles, pois é comum a repetição de discursos produzidos nesses instrumentos
jurídicos? No afã do desejo de ganhar a causa, muitas vezes copia-se argumentos de colegas
de profissão insculpidos nas mais variadas ações anteriormente ajuizadas, razão pela qual nem
sempre o que está nos autos representa o pensamento do seu autor. Todavia, o discurso
jurídico de Gama no tocante aos novos significados do ser negro, não se encontra apenas nos
autos processuais, mas também na produção da sua linguagem poética e jornalística,
evidenciando uma única linguagem no tocante a essa ruptura, a esse quesito que se refere à
positivação do negro.
A constatação dessa linguagem de ruptura que ressignifica possui o seu clímax não se
sabe exatamente quando, porque conforme fora anteriormente assinalado, as palavras ditas ao
vento (sobretudo por quem os cânones não dão a devida importância), nem sempre se
perpetuam. Mas diversos autores dão realce a esse momento histórico, no qual um ex-escravo,
ressignificado na figura de homem da lei defende o instituto da legítima defesa do escravizado
contra aquele que se apropriou da sua vida, arvorando-se a um suposto direito/poder de
propriedade sobre o outro.
Sud Mennucci, que realizou pesquisas com fontes escritas e orais na década de 1930
sobre a vida, obra e legado de Luiz Gama, informa que encontrou na oralidade quem “[...]
afirmasse que o caso se passou no Tribunal do Júri da cidade paulista de Araraquara, tendo a
![Page 90: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/90.jpg)
90
frase produzido tamanha tempestade que o presidente se viu obrigado a suspender a sessão”
(MENNUCCI, 1938, p. 153).
Célia Marinho Azevedo, por sua vez, alerta para o fato de que “formulações como
esta, que atestavam o direito à violência pelo escravo, não eram comuns entre os
abolicionistas” (AZEVEDO, 1987, p. 193), salientando que o real papel desempenhado por
Luiz Gama permanece ainda desconhecido, sugerindo nas entre linhas da sua pesquisa, mais
estudos sobre esse advogado diaspórico. A autora registra que:
Causou grande polêmica a frase dita pelo advogado abolicionista, o ex-escravo Luiz
Gama, durante o julgamento de um escravo que matara seu senhor: “O escravo que
mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”.
Também ao denunciar o linchamento de escravos, Gama defendeu estes últimos sem
hesitar (AZEVEDO, 1987, p. 192-193).
Alguns autores silenciam sobre esse possível ato de ousadia e ruptura do advogado
negro no Tribunal do Júri da cidade de Araraquara. Entretanto, sobre essa mesma ideia
jurídica e também sobre esse linchamento de quatro escravos que mataram o filho do seu
senhor, ao qual faz referência Célia Azevedo, o próprio Luiz Gama os registra em um único
documento escrito: uma carta endereçada ao seu amigo e jornalista Ferreira de Menezes, que
fora publicada na edição do Jornal Província de São Paulo, em 18 de dezembro de 1880, na
qual ele afirma:
[...]
Acabo de ler na Gazeta do Povo53
, o martirológio sublime dos quatro Espártacos que
mataram o infeliz filho do fazendeiro Valeriano José do Vale. [...] o escravo que
mata o senhor, que cumpre uma prescrição inevitável de direito natural, e o povo
indigno, que assassina heróis, jamais se confundirão.
Eu, que invejo com profundo sentimento estes quatro apóstolos do dever, morreria
de nojo, por torpeza, achar-me entre essa horda inqualificável de assassinos
(FERREIRA, 2011, p. 153-154).
Em qual ato estaria o crime, na concepção de Gama? No primeiro, do escravizado que
mata para se livrar do seu algoz que o escraviza e o oprime ou no ato de assassinato cometido
pela multidão? A esse respeito, Elciene Azevedo sustenta que Gama faz uma diferenciação
para considerar os assassinatos, sem deixar dúvidas de que lado estava: “o primeiro era
legitimado pelo direito natural e tido como virtude, o segundo sim seria um crime, por não ter
reconhecido este direito aos escravos” (AZEVEDO, 2005, p. 269).
53
Essa notícia da invasão da cadeia por 300 pessoas que lincharam os quatro escravizados presos por terem
matado o filho do seu senhor fora publicada primeiro na Gazeta do Povo, em 13 de dezembro de 1880
![Page 91: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/91.jpg)
91
Já Benedito Mouzar, para avaliar a importância dessa linguagem igualitária que
ressignifica o negro escravizado, remete-nos ao Brasil dos anos oitocentos para afirmar que:
A violência do senhor contra o escravo era “normal”, ninguém ligava, mas uma
eventual violência do escravo contra o senhor era inadmissível, uma coisa a ser
punida com mais violência ainda, um horror! Os “homens de bem”, que não viam
problema algum na violência contra os escravos, se horrorizavam nessas ocasiões
(BENEDITO, 2006, p. 49-50).
Vale salientar que, apesar de o Código Criminal de 1830 ter trazido a possibilidade de
a legítima defesa ser justificável, o estatuto da escravidão continuava a representar o
escravizado apenas como um “bem que se move”, desprovido de quaisquer direitos. O artigo
14 desse código informa que a ação da legítima defesa não terá punição nas hipóteses de o
assassino ter tirado a vida de alguém para evitar o mal maior (ou seja, a sua própria morte ou
de alguém de sua família), mas esse dispositivo não valia para o escravizado. A lei de 10 de
junho de 1835, que vigorou até o ano de 1886, dispunha que:
[...]
praticado um crime por escravo, contra homem livre (brancos, pardos e pretos
livres), reunia-se imediatamente o júri do termo em que o mesmo ocorrera,
proferindo sentença, após breve processo, a qual ainda que fosse de condenação à
morte, seria executada sem recurso (NORONHA, 1991, p. 57).
Gama, através da ideia do direito de legítima defesa ao escravizado, reclamava a
igualdade perante a lei penal para este. Os quatro escravizados que mataram o filho do seu
senhor, aos quais Gama se refere na carta publicada no jornal A Província de São Paulo,
teriam agido “por uma força invencível, por um ímpeto indomável, por um movimento
soberano do instinto revoltado” (FERREIRA, 2011, p. 154). O belo escrito jornalístico no
qual Gama expõe a polêmica ideia é um verdadeiro libelo da liberdade e da igualdade. No
final, ele conclui:
Esses quatro negros, espicaçados pelo povo, ou por uma aluvião de abutres não eram
quatro homens, eram quatro ideias, quatro luzes, quatro astros; em uma convulsão
sidérea desfizeram-se, pulverizaram-se, formaram-se uma nebulosa.
Nas épocas por vir, os sábios astrônomos, os Aragos do futuro hão de notá-los entre
os planetas: os sóis produzem mundos (FERREIRA, 2011, p. 156).
Se alguns autores atribuem a Luiz Gama uma invejável oratória (MENNUCCI, 1938,
p. 162), outros afirmam que ele era bom na pena, na escrita (CÂMARA, 2009, p. 229), como
se percebe, aliás, da leitura dos seus escritos jurídicos e jornalísticos. Escrevendo artigos para
![Page 92: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/92.jpg)
92
jornais, poesias ou em processos judiciais, o seu lugar de fala é sempre o do negro. E,
respondendo à altura do sistema opressor que vigorava no Brasil, por vezes esse lugar de fala
é o do negro radical, como o vêem alguns autores, a exemplo de Raymundo Faoro, para quem
Luiz Gama era um dos que, “[...] perturbando a sociedade hierárquica com as ideias de
igualdade” (FAORO, 1985, p. 453), sonhava “[...] com um regime igualitário que aniquilaria
os preconceitos de raça, superioridade social e de fortuna” (FAORO, 1985, p. 453). Gama é
visto por esse autor como um dos precursores dos jacobinos54
brasileiros, que de forma
ruidosa se alvoroçavam na campanha abolicionista.
Radical também foi como os fazendeiros e senhores de engenho de norte a sul do país
passaram a vê-lo depois de o mesmo externar o seu pensamento jurídico sobre o direito à
legítima defesa, conforme assinala o pesquisador e advogado paulista Nelson Câmara55
: “Essa
afirmação extremada de Luiz Gama ecoou como vendaval por todo o País e sacudiu de temor
os senhores de escravos ao visualizarem o avanço do radicalismo pela liberdade” (CÂMARA,
2010, p. 144).
Se a linguagem radical foi motivo de repulsa para os mercadores de carne humana, a
palavra dita não volta e encontrou eco nos mais variados setores da sociedade paulista,
influenciando e inspirando as lutas pela abolição da escravidão naquela província, que
segundo Raul Pompéia era “a mais escravocrata do império” (MENNUCCI, 1938, p. 113).
Inclusive sensibilizando setores das elites conservadoras, como os “[...] estudantes da
Faculdade de Direito que, espelhando-se em Luiz Gama, defenderiam em seus jornais [...] o
direito do escravo de matar seu senhor para recuperar o direito natural à sua liberdade”
(AZEVEDO, 2010, p. 146).
A proposição da radical e inovadora ideia coloca Luiz Gama como um pensador de
vanguarda. A admiração do advogado diaspórico por jovens oriundos das elites brancas
evidenciava uma forma de ressignificação da imagem do negro no imaginário de parte dessas
elites. Luiz Gama surgia como o advogado empoderado, cuja trajetória de vida, ideias e
atuação militante eram aplaudidas por muitos. Espelhar-se no negro oriundo da diáspora
africana, ser um advogado altivo como ele, passou a ser o desejo de muitos jovens brancos.
Nesse aspecto, também, identificamos a ressignificação identitária, considerando o contexto
histórico brasileiro que era impregnado pelo racismo científico. O advogado, aqui, e não só o
54
Os jacobinos eram os mais radicais defensores da egalité na Revolução Francesa de 1789 e, liderados por
personagens como Robespierre, Marat e Danton, fizeram as reformas mais populares nesse processo
revolucionário burguês.
55
Entrevistamos o escritor Nelson Câmara no seu escritório de advocacia, situado na Rua Ramon Penharúbia, nº
130, bairro Paraíso, na capital paulista, na tarde do dia 20 de janeiro de 2015.
![Page 93: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/93.jpg)
93
poeta e o jornalista, fizeram e fazem até os dias atuais, a diferença, ao estilhaçar as máscaras
brancas com altivez e com uma linguagem impecável, na luta pelo direito dos negros
ilegalmente escravizados.
A linguagem de positivação do negro entoada em seu discurso jurídico era o outro
lado da moeda: se, de um lado, o advogado empoderado se afirma como negro (e se torna
respeitado) naquela sociedade que o negava e se esforçava para ser branca, as suas ideias e a
sua atuação militante também favorecem esse empoderamento da população negra
escravizada e livre. A sua atuação e a sua linguagem favorecem essa afirmação identitária
negra, pois aflora uma nova concepção que exalta o ser negro.
Note-se que os fios que tecem essa linguagem escrita nas páginas do jornal são os
mesmos da petição judicial de João Ricardo e Felipe que informam ser “o captiveiro contrario
á natureza” e, portanto, um obstáculo à cidadania negra. E são, também, os mesmos fios do
discurso exarado por sua verve poética, através da qual o Orfeu de Carapinha afirma: “Vejo a
riqueza em demência/Postergando a natureza [...]” (GAMA, 2011, p. 130).
Luiz Gama tem várias faces (advogado, poeta, jornalista, orador). Contudo, em sua
atuação em prol dos marginalizados escravizados e libertos evidenciam proximidade, no que
se refere à contundência discursiva, aos embates e debates sociais para afirmar, valorizar,
defender, humanizar, empoderar e, enfim, primar pela ressignificação identitária negra.
![Page 94: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/94.jpg)
94
5 CONCLUSÃO
O filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que “é na linguagem e através da
linguagem que o homem constitui-se como sujeito” (AGAMBEN, 2005, p. 56). Esse sujeito,
sob a ótica do escritor Cuti (2010, p. 22), é o sujeito étnico; ou seja, aquele que se reconhece e
se afirma identitariamente como negro através da linguagem, a exemplo da poética. É o caso
de Luiz Gama, conforme procuramos evidenciar no presente percurso. Ele o fez na condição
de escritor, jornalista, professor, orador, advogado, maçon, no decorrer da sua breve vida, já
que faleceu tão cedo.
A trajetória e a produção escrita de Luiz Gama são exemplos de como essa simbiose
entre a linguagem e a construção do ser se torna possível. Da sua vida de menino nascido livre
e vendido como escravo pelo próprio pai em Salvador, sendo levado pelos mares da
criminalidade para o Rio de Janeiro e, logo após para São Paulo; dos oito anos da sua infância
à adolescência roubados na escravidão até a conquista da palavra escrita, cujo poder lhe
conferiu a condição de provar a ilegalidade do seu cativeiro; do domínio pleno da linguagem
que o lançou no mundo das letras até o surgimento do empoderado advogado que peitou as
elites imperiais na arena racista, trata-se de alguém que fez da linguagem o instrumental para
constituir-se como sujeito construtor da história.
Esse sujeito étnico é negro quando apresenta-se como o Orfeu de carapinha (GAMA,
2011, p. 15) ou quando, em uma linguagem sarcástica, afirma que “[...] tudo é bodarada”
(BERND, 1988, p. 54), identificando-se com as pessoas marginalizadas, indo de encontro ao
pensamento dos grupos hegemônicos que se consideravam supostamente superiores, por
terem a cor da tez branca. Ele é, também, um sujeito étnico quando, na função de advogado e
usando do mesmo artifício linguístico do sarcasmo, desautoriza a ação do estado de exceção
policial que impede a cidadania negra.
Trafegando no contrafluxo de uma literatura carregada de estereótipos que
inferiorizavam ou animalizavam a população negra, através da sua linguagem poética Luiz
Gama não só ressignificou tal população como, também, atingiu os grupos hegemônicos,
atribuindo um novo significado ao negro brasileiro, potencializando-o, sem se deixar levar
pelas amarras do racismo científico em voga no país.
Através de uma linguagem crítica e contundente, indo na contramão dos discursos
instituídos, Luiz Gama exalta a beleza da sua raça e se orgulha da sua ancestralidade africana.
Afirmar é um dos meios de ressignificar, pois ao esvaziar certos signos linguísticos,
![Page 95: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/95.jpg)
95
desconstruindo sentidos negativos, a sua produção traz uma outra percepção que positiva o
negro brasileiro.
Na contramão, também, foi a sua luta no campo jurídico contra as instituições do
estado de exceção monarquista, que serviam a um país onde “[...] os interesses escravagistas,
mais fortes e mais convincentes que todas as convenções e convênios haviam se transformado
em pura fé púnica” (MENNUCCI, 1938, p. 142). Questionando o direito através de princípios
jusnaturalistas que humanizam mulheres e homens negros, tirando-os da esfera da
animalização semovente; ou advogando a legítima defesa para o escravizado e representando-
o na condição de igualdade com o seu suposto senhor, estava ele seguindo outros cursos da
história, algo inconcebível naquele contexto escravagista, monarquista e racista.
Foi, também, nas adversidades contra os interesses dos poderosos fazendeiros que ele
empreendeu uma luta que lhe rendeu ameaças de morte (AZEVEDO, 2005, p. 220) e na qual,
ultrapassando as fronteiras da sua profissão de advogado, adentrou o campo de uma militância
que propagava nos jornais e nas ruas a imediata abolição da escravidão. Prova dessa
militância foi a rede de contatos que organizou e com a sua ajuda propiciou a libertação pela
via judicial de mais de 500 pessoas, as quais ele próprio afirma ter “[...] arrancado às garras
do crime” (FERREIRA, 2011, p. 203). Interrogatórios policiais de apurações de casos de
negros fugidos surpreendem ao exibir eclético e numeroso grupo de escrivães, advogados,
juízes, curadores, depositários, avaliadores, médicos e jornalistas liderados por ele, cada um
com uma função específica para garantir a liberdade de pessoas escravizadas (AZEVEDO,
2005, p. 259).
Não era apenas o desejo de um profissional do direito que queria ganhar as causas dos
seus clientes, tratava-se de algo maior, muito maior. Por ocasião do Congresso do Partido
Republicano, no ano de 1873, na cidade paulista de Itu, o abolicionista mostrou-se
profundamente decepcionado e desiludido com a agremiação, cuja maioria conservadora
mostrava-se contrária à imediata abolição da escravidão. Segundo Lúcio de Mendonça
(testemunha ocular do referido congresso), quando Luiz Gama, indignado, tomou a palavra,
Não era já um homem que falava, era um princípio que falava... digo mal, não era
um princípio, era uma paixão absoluta, era a paixão da igualdade que rugia! Ali
estava na tribuna, envergonhando os tímidos, verberando os prudentes, ali estava na
rude explosão da natureza primitiva, o neto da África, o filho de Luiza Mahin!
(MENNUCCI, 1938, p. 160).
Quando o assunto era a luta contra a escravidão, a grande causa da sua vida, que iria
possibiltar a realização da igualdade jurídica entre negros e brancos, a ação e o pensamento de
![Page 96: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/96.jpg)
96
Luiz Gama, além de uma sintonia e um mesmo fio discursivo que ressignifica o negro, era
movida por paixão absoluta.
Entrelaçando os fios da sua linguagem poética e jurídica, Luiz Gama atribui um novo
significado ao ser negro no Brasil. Essa resignificação, que passa pela reparação do
imaginário de negativação está explícito na lei 10.639/03 e em outros documentos, a exemplo
do Parecer das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que assegura ao povo
negro a garantia legal da valorização da sua identidade (Brasil, 2013, p. 83). Esse documento
resgata, ainda, outros verbos de ação afirmativa, ao pontuar que “reconhecer é também
valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados
pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes [...]” (BRASIL, 2013, p. 85),
dentre os quais se inclui o poeta e advogado diaspórico Luiz Gonzaga Pinto da Gama.
No final da entrevista por nós realizada na cidade de São Paulo ao tataraneto de Gama,
pedimos a Benemar França que traduzisse o seu ancestral em uma palavra, e ele, com
propriedade, respondeu: “superação”. Luiz Gama superou todas as adversidades que a vida
lhe ofereceu e, como o autodidata da obra do artista paraibano Miguel Guilherme dos Santos,
se esculpiu. Se erigiu realizando “[...] a mais inacreditável obra de cultura autodidática”
(MENNUCCI, 1938, p. 55) e vivendo alto, como a lua do poema para ser grande, de
Fernando Pessoa.
Essa imagem da superação e da ressignificação do escravizado que se tornou poeta,
advogado, jornalista, orador, abolicionista e líder maçônico perpassa os anos. Admirado por
uma gama imensa de negros e brancos, ao falecer, em 24 de agosto de 1882, os seus
contemporâneos externaram esse sentimento através das páginas dos jornais.
Raul Pompéia, estudante de Direito e um dos muitos jovens brancos que o admiravam,
dias depois das exéquias, estampou o marcante artigo “Última página da vida de um grande
homem”, escrito na Gazeta de Notícias, registrando que naquele sepultamento “todas as
classes estavam ali” (FERREIRA, 2011, p. 234), naquele que foi considerado como o maior
cortejo fúnebre até então ocorrido em São Paulo. Dias após, o jornal abolicionista Ça Ira! ,
repercutindo essa notícia, escrevia que “[...] tudo aquilo era imponente, majestoso como o
conjunto de uma apoteose” (FERREIRA, 2011, p. 239). Exatamente dois anos após o seu
falecimento, Raul Pompéia voltaria às páginas do jornal carioca Gazeta de Notícias,
relembrando que na passagem do primeiro ano da morte de Luiz Gama, “[...] um préstito
imenso encheu a rua” (FERREIRA, 2011, p. 246) para levar coroas de flores ao seu túmulo.
![Page 97: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/97.jpg)
97
Essa homenagem na data de sua morte se repetiu por muitos anos no Terreno 17 da
Rua 12 do Cemitério da Consolação, na capital paulista, onde, inclusive, ergueu-se, em 24 de
agosto de 1930, a sua herma no Largo do Arouche (CÂMARA, 2010, p. 296).
Ao tomar posse na presidência do Instituto dos Advogados, no Rio de Janeiro, em
1911, Ruy Barbosa afirmou: “Para não nomear vivos, lembrarei apenas Luiz Gama...
(aplausos repetidos). Uma das raras fortunas de minha vida é a de ter cultivado intimamente
sua amizade, em lutas que nunca esquecerei” (CÂMARA, 2009, p. 273). E, logo depois se
referiu a ele como “[...] um espírito genial; uma torrente de eloquência, de dialética e de
graça” (CÂMARA, 2009, p. 273).
Como se pode observar, Luiz Gama passou a ser a própria imagem ressignificada do
negro, uma forte e positiva referência, uma legenda para pessoas de todo o país,
especialmente para negras e negros, a exemplo de Salustiano Pedro, de Salvador. Nos anos
que antecederam a abolição, ele contrariava um delegado de polícia da capital baiana,
confessando, “[...] sempre publicamente, sua ‘idolatria’ por [...] Luís Gama, que emprestou o
seu nome a um clube abolicionista fundado por ele” (ALBUQUERQUE, 2009, p. 86). Na
herma do Arouche, na capital paulista, está escrito: “À Luiz Gama, por iniciativa do
progresso. Homenagem dos pretos do Brazil”.
J. Romão da Silva, em publicação editada em 1954, o define como “o homem que
triunfou sobre o destino” (CÂMARA, 2010, p. 307). Enfim, dificilmente teríamos tradução
melhor para esse poeta e advogado diaspórico que, de forma tão substancial, ressignificou a
sua própria vida e tantas outras existências...
![Page 98: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/98.jpg)
98
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamandia. O perigo de uma única história. Disponível em:
<www.ted.com/talks>. Acesso em xxxx.
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2015.
______. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2014.
______. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
______. Infância e História: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte:
UFMG, 2005.
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no
Brasil. São Paulo: Editora Schwarcz, 2009.
ALVES, Kleberson da Silva. Escravistas versus emancipacionistas na prosa romântica: as
representações senhoriais no romance a escrava Isaura. Salvador: Uneb, 2010.
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
1982.
A TARDE. Revista Muito. Salvador: 16 de agosto de 2015.
AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Onda negra, medo branco; o negro no imaginário das
elites – século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas abolicionistas na província de São Paulo.
Campinas: Editora Unicamp, 2010.
______. Orfeu de carapinha. Campinas: Editora Unicamp, 2005.
BANDEIRA, Julio e LAGO, Pedro Correia do. Debret e o Brasil: obra completa, 1816 –
1831. Rio de Janeiro: Capivara Editora Ltda, 2013.
BAPTISTA, Mauro Rocha. A profanação dos dispositivos em Giorgio Agamben.
Londrina: Revista Estação Literária, 2015.
BENEDITO, Mouzar. Luiz Gama: o libertador de escravos e sua mãe libertária Luíza Mahin.
São Paulo: Expressão popular, 2006.
BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2015.
BROOKSHAW, David. Raça & cor na literatura brasileira. Porto Alegre: Mercado
![Page 99: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/99.jpg)
99
Aberto, 1983.
BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2013.
______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais
e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004.
CÂMARA, Nelson. O advogado dos escravos: Luiz Gama. São Paulo: Lettera.doc, 2010.
______. Escravidão nunca mais!: um tributo a Luiz Gama. São Paulo: Lettera doc, 2009.
CAMPANHOLE, Adriano e outro. Constituições do Brasil. São Paulo: Editora Atlas, 1989.
CAMPOS, Humberto de. Memórias inacabadas. São Luís: Instituto Geia, 2009.
CAMPOS, Maria Consuelo Cunha. Luiz Gama. In: Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica. Org. Eduardo de Assis Duarte. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um Vocabulário Afro-Brasileiro.
Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2005.
CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
______. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo: companhia das letras, 2009.
COMPARATO, Fábio Konder. Luiz Gama, Advogado Emérito. In: Revista do Instituto dos
Advogados Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, nº 97.
COUTINHO, Afranio dos Santos. A literatura no Brasil: era romântica. São Paulo: Global
Editora, 1997.
CROCE, Delton. Manual de medicina legal. São Paulo: Saraiva, 2012.
CUNHA, Manuela Carneiro. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África.
São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CURIA, Luiz Roberto e outros. Vade Mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.
CUTI. Literatura Negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010.
DERRIDA, Jacques. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
DUARTE, Eduardo de Assis. Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo.
Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Pallas/Crisálida, 2009.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
![Page 100: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/100.jpg)
100
ESTEVAM, André. Direito Penal: volume 1. São Paulo: Saraiva, 2016.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Volume
2. Porto Alegre: Editora Globo, 1985.
FANON, Franz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas de Getulino. Salvador: P55 Edições, 2011.
GILROY, Paul. Uma história para não se levar adiante: a memória viva e o sublime
escravo. In: Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.
GOMES, Dias. O Bem-Amado. Rio de Janeiro: 2012.
GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre ações afirmativas. In: Ações
Afirmativas Políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A
EDITORA, 2003.
GOMES, Nilma Lino. Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03. Brasília: Secad/MEC, 2005.
HALL, Stuart. Estudos culturais e seu legado teórico. In: Da diáspora: identidades e
mediações culturais. Org. Liv Sovik. Trad. Adelaide La Guardiã Resende ... (Et al). Belo
Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
HOBSBAWM. Eric J. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
JR., Hédio Silva. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais:
doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.
KUPER, Adam. Cultura – a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002.
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América
portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LARA, Silvia Hunold e MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Direitos e justiças no Brasil:
ensaios de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil – Tomo V. Rio de Janeiro:
Instituto Nacional do Livro, 1945.
MACEDO, Joaquim Manoel de. As vítimas-algozes: quadros da escravidão. São Paulo:
Martin Claret, 2010.
MATTOS, Wilson Roberto. Negros contra a ordem: astúcias, resistências e liberdades
possíveis (Salvador, 1850-1888). Salvador: eduneb/edufba, 2013.
![Page 101: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/101.jpg)
101
MENNUCCI, Sud. O precursor do abolicionismo no Brasil: Luiz Gama. São Paulo: Editora
Nacional, 1938.
MOREIRA, Osmar. Comuna de Paris como cidade literária. In: O que pode um subalterno.
Organização André Luiz Oliveira, Rogério França e Wilton Oliveira. Salvador: Quarteto
Editora, 2012.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1986.
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Volume 1. São Paulo: Editora Saraiva, 1991.
OLIVEIRA, Silvio Roberto dos Santos. Gamacopeia: ficções sobre o poeta Luiz Gama (tese
de doutorado). Campinas, 2004.
PAULINO, Mara Regina. A estética do ser/estar no “entre lugares’: imagens do negro, do
mestiço, do mulato e do branco em Primeiras trovas burlescas de Getulino, de Luiz Gama.
São Paulo: USP, 2010.
PIOVESAN, Flavia. Ações afirmativas sob a perspectiva dos direitos humanos. In: Ações
afirmativas e combate ao racismo nas Américas. Brasília: MEC, 2005.
QUERINO, Manoel. A raça africana e os seus costumes na Bahia. Salvador: P55 Edições,
2014.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século
XIX. São Paulo: Editora Schwarcz, 2012.
ROSS, Alf. Direito e justiça. Bauru: Edipro, 2003.
SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil: 1500-1627. Salvador: P55Edições, 2013.
SANTIAGO, Ana Rita. Vozes Literárias de Escritoras Negras. Cruz das Almas/BA:
Editora UFRB, 2012.
SANTOS, Eduardo Antonio Estevam. Luiz Gama e a sátira racial como poesia de
transgressão: poéticas diaspóricas como contranarrativa à ideia de raça. Guarulhos:
Almanack, 2015.
SANTOS, Jair Cardoso. Candeias: história da terra do petróleo. Salvador: Gráfica Salesiano,
2008.
SANTOS, Jair Cardoso. Luís Gama e a consciência negra. Salvador: Jornal A Tarde, 2014,
página 2.
SANTOS, Luiz Carlos. Luiz Gama. São Paulo: Selo Negro, 2010.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Editora Schwarcz, 2015.
______. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do
![Page 102: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/102.jpg)
102
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______. Negras imagens: ensaios sobre cultura e escravidão no Brasil. São Paulo: Edusp,
1996.
SILVA, Fernanda Duarte Lopes Lucas. Princípio constitucional da igualdade. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros
editores, 1992.
SILVA, Jr., Hédio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais:
doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.
SUMARIVA, Paulo. Criminologia: teoria e prática. Niteroi, RJ: Impetus, 2015.
TELLES, Edward. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2003.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia
de Todos os Santos. Salvador: Editora Corrupio, 1987.
VIEIRA, Jair Lot. Lei de Diretrizes e bases da educação nacional e legislação
complementar. São Paulo: Edipro, 2012
VILAS-BÔAS. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: América
jurídica, 2003.
![Page 103: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE … · ABSTRACT The present multidisciplinary research studies a part of Luiz Gama’s legal and poetic production, whereby it has](https://reader031.fdocuments.in/reader031/viewer/2022031308/5bfe3a9109d3f23f5d8b8ceb/html5/thumbnails/103.jpg)
103
ANEXOS