Universalidade do Poeta Brasileiro Jorge de Lima

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Universalidade do Poeta Brasileiro Jorge de Lima Author(s): Cesar Leal Source: Journal of Inter-American Studies, Vol. 6, No. 2 (Apr., 1964), pp. 157-172 Published by: Center for Latin American Studies at the University of Miami Stable URL: http://www.jstor.org/stable/165295 . Accessed: 09/05/2014 16:24 Your use of the JSTOR archive indicates your acceptance of the Terms & Conditions of Use, available at . http://www.jstor.org/page/info/about/policies/terms.jsp . JSTOR is a not-for-profit service that helps scholars, researchers, and students discover, use, and build upon a wide range of content in a trusted digital archive. We use information technology and tools to increase productivity and facilitate new forms of scholarship. For more information about JSTOR, please contact [email protected]. . Center for Latin American Studies at the University of Miami is collaborating with JSTOR to digitize, preserve and extend access to Journal of Inter-American Studies. http://www.jstor.org This content downloaded from 169.229.32.138 on Fri, 9 May 2014 16:24:49 PM All use subject to JSTOR Terms and Conditions

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Universalidade do Poeta Brasileiro Jorge de LimaAuthor(s): Cesar LealSource: Journal of Inter-American Studies, Vol. 6, No. 2 (Apr., 1964), pp. 157-172Published by: Center for Latin American Studies at the University of MiamiStable URL: http://www.jstor.org/stable/165295 .

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UNIVERSALIDADE DO POETA BRASILEIRO JORGE DE LIMA

Cesar Leal

0 poeta e a critica

Se alguem me indagasse qual seria o poeta mais representativo da moderna poesia brasileira, creio que mencionaria primeiro Carlos Drum- mond de Andrade, ainda que Manuel Bandeira tambem o seja, ao lado de outros como Cassiano Ricardo, Emilio Moura, Murilo Mendes, Ledo Ivo, Mauro Mota, Joao Cabral de Melo Neto e Joaquim Cardozo. Mas a expressao poetica, em nenhum desses autores, alcanga uma dimensao intelectual de fronteiras tao extensas quando em Jorge de Lima. Creio que sua poesia, sob certos aspectos, e mais importante do que a de Fer- nando Pessoa; e, entre os poetas de lingua portuguesa, talvez s6 encontre rival em Camoes.

Os criticos brasileiros tem sido responsaveis pelo pouco interesse que a obra poetica de Jorge de Lima desperta entre as novas gera96es. Nossa critica mais preparada para uma abordagem estrat6gica da obra de arte

poetica esta intensamente comprometida com o processo de desenvolvi- mento economico e social do pals. Seu interesse se desloca para aqueles autores cuja obra reflete uma "participacao" mais aguda nessa tomada de posigao condicionada pela perigosa entrada do mundo na era tecnica. Ela considera a atual situagao do Brasil uma situagao de transito, da qual deverao forgosamente participar os nossos escritores. Tal critica, que vem usando uma terminologia marxista tipica, para-marxista ou marxis- tencialista, pretende chamar a si o papel de guia dos intelectuais. Mas, como afirma Goethe nos Anos de Aprendizagem de Guilherme Meister, e uma sensagao pavorosa a do homem culto e dotado de consciencia, que se encontra na conting6ncia de que o instruam acerca de si mesmo. "Todos os transitos sao crises - diz Goethe - mas uma crise nao 6 uma enfermidade". Dai porque se impoe uma reagao urgente contra essa critica que atua s6bre a arte como um corrosivo, confundindo alguns valores e obrigando outros a uma retirada para as trevas.

Assim, nao se pode culpar os mais jovens poetas pela escolha de modelos que nem sempre sao os melhores; tais modelos estao sendo pre- parados por uma teorizagao estetica que pretende reduzir a poesia a um subproduto da inteligencia, criando modelos aparentemente com-

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plexos mas faceis de serem imitados. Seria, pois, justo desculpar os criticos, ainda que se possa demonstrar ser a critica mais nova um dos

generos literarios dos quais pouco se ter a dizer no Brasil? Creio que nao. Jorge de Lima e um poeta cujas faculdades criadoras nao encon- tram limites na mente; elas se dilatam por um processo que eu chama- ria de "desintegragao de consciencia", alcan9ando a intuigao e a sensi- bilidade do leitor, atraindo-as para o seu nuicleo expressivo, nem sempre envolto naquela atmosfera de sombra que caracteriza algumas das me- Ihores passagens de Invenido de Orfeu. Assir, nele o poema nao surge como uma "construgao", como o resultado de uma fe nos idolos do mundo contemporaneo - a ciencia, a geometria, o esteticismo, o culto da morte - mas como "criacao" do esplrito, o trabalho de um homem

perdeu a fe nos valores transcendentes e possui dos valores do passado uma consciencia hist6rica que o situa acima de qualquer outro poeta brasileiro de seu tempo.

Mas, cor raras exce9ces, os jovens poetas brasileiros nao sao grandes leitores de Jorge de Lima. Talvez tenham razao, pois, como assinalou certa vez, T. S. Eliot, num de seus ensaios, os grandes poetas, aqueles que dificilmente podem ser ultrapassados, sao vistos cor desconfian9a

pelos jovens. O interesse de quem se agarra a um modelo - consciente ou inconscientemente - e supera-lo. Mas se isso importa numa tarefa demasiado dificil, entao a admira9ao inicial se transforma en antipatia; mas esse e um problema que ja pertence mais ao campo da psiquiatria social do que da critica.

Frequentemente se dize que a poesia de Jorge de Lima e muito dificil; que seus poemas sao revestidos de uma simbologia estranha, envolta por uma atmosfera de metaforas e imagens de significagao bastante com-

plicada, impenetravel ate. Discordo dos que o julgam assim; dos que o comparam a G6ngora, ainda que Gongora seja para mim um grande poeta. Discordo do critico portugues Joao Gaspar Simoes, em prefacio que escreveu para o livro mais importante de Jorge de Lima - Invenfao de Orfeu - quando diz que "os poetas, confiados na intelig6ncia dos criticos, abandonam-se, voluntariamente, a obscuridade inerente a todo o genuino ato poetico". Acredito que nao 6 essa a razao que leva um

poeta a certas regi6es de sombras inerentes ao seu oficio: julgo mesmo

que somente os poetas menores se abandonam assim tao confiadamente a inteligencia dos pesquisadores de simbolos e de imagens, de figuras de dic~ao e ate de leituras que teriam formado a cultura filos6fica e literaria de um autor. Naturalmente, nao se pode negar que existem

poetas muito preocupados em escrever de acordo cor os padroes da

critica; tais poetas visam sempre um exito imediato; um prestigio social que a nossa epoca de pragmatismos freqiientemente estimula. Se o canon critico e severo, por exemplo, o de um John Crowe Ransom, pode

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apresentar como resultado um poeta da grandeza de Robert Lowell; mas se a padrao apenas uma pretensa participagao, ou penetragio na rea- lidade aparente, nao devemos esperar senao alguns "liricos" e magros poemas s6bre temas de interesse social: a reforma agraria, a expoliagao dos trabalhadores urbanos, os perigos que cercam os operarios da cons- tru9ao civil. Ou entao deriva para um formalismo experimental, onde um certo setor desse criticismo se encontra a vontade, ao lado de E. Husserl e seus discipulos, passando por M. Scheler, Heidegger e Sartre.

Mas Jorge de Lima tinha confianga na missao que impusera ao seu

espirito; para ele a poesia nao era nem um instrumento de agao politica nem uma diversao metafisica, mas uma desdobrada visao da realidade. Certos criticos, limitados por suas pr6prias teorias esteticas, que na ver- dade sao menos esteticas do que sociologicas e politicas, tem procurado orientar seus estudos no sentido de valorizar poetas que eles julgam participar da luta pela nossa "desalienagao" cultural. Ainda que me considere politicamente um revolucionario, um socialista ao meu modo, contradit6rio ate, nao concordo com estes criticos; tampouco com os seus conceitos de "alienagao", aplicados k interpretagao de nossa literatura. Creio que tais interpretes nao leem sem fadigas um poeta como Jorge de Lima; alguns ate o acusaram de nao compreender a missao social do escritor. Mas o que faltava (e falta ainda) a muito desses criticos era aquela desdobrada visao da realidade, a que se refere Jorge de Lima num dos ultimos poemas de Mira-Celi:

Os grandes poemas comepam corn a nossa visao desdobrada Aqui jd nao sofremos a contingnncia de escrev--los, e notamos que a mais alta significaQao da poesia quase nunca pode ascender da terra.

Entre os que escreveram s6bre Invenfao de Orfeu, pareceme que o

poeta Murilo Mendes foi o que teve uma compreensao mais ampla s6bre a significa,ao desse poema:

Jorge de Lima realizou o milagre de fundir os tempos. O poeta tern a consciencia viva de estar situado no tempo, mas sente a necessidade de transcende-lo. Nao julgo, entretanto, que se trate de uma evasao da reali- dade: trata-se antes de uma penetragao nos dois mundos, o do tempo fisico e do tempo espiritual.

Essa 6 uma observagao muito aguda; das mais inteligentes que ja li s6bre Jorge de Lima. Efetivamente, se pode dizer que Jorge de Lima e um homem profundamente situado dentro de seu poema. Aqui as

generalidades abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo se fundem numa obra que representa a uniao daqueles dois universos heterogeneos: o mundo fisico e o mundo espiritual. A observaiao de Murilo Mendes corresponde ao significado da proposiqao hegeliana de

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que levar "a consciencia os supremos interesses do espirito, tal seria a missao da arte".

O espirito nao tern nada mais pr6ximo a ele do que ele mesmo. As coisas do espirito Ihe interessam mais que os objetos exteriores em sua aparencia sensivel. O circulo inteiro da natureza nao entra, pois, no dominio da poesia senao enquanto o espirito encontra nele para si mesmo uma exci- tagao ou os materiais de sua atividade; enquanto considera o mundo como o teatro da atividade humana, como seu mundo exterior, que somente tem valor essencial por sua relacao com o mundo interior de sua consciencia, longe de poder aspirar a dignidade de ser por si mesmo o objeto exclusivo da poesia. O objeto verdadeiro desta e, pelo contrario, o imperio infinito do espirito [Hegel].

Contudo, poucos poetas escrevem hoje poesia de modo a que o seu conteuido venha a atender aqueles "supremos interesses". Na era tec- nica o artista ja nao cria; apenas constroi ou compoe. Isso foi ampla- mente demonstrado pelo prof. Hans Sedlmayr, da Universidade de

Munique, em seu livro Der Revolution der Modernen Kunst (A revolu- fdo da arte moderna), ao tratar da lei Muller-Armack, que explica a

transforma9ao do conteudo de crengas nos seculos XIX e XX.

Para Alfred Muller-Armack, a morte da fe nao constitui um proble- ma puramente teologico. 6 antes um fen6meno concreto, com reper- cussSes profundas e enormes conseqiiencias espirituais e sociais. 1g

pelo morte da fe que se explica por que o artista moderno se transformou em "construtor", quando devia ser um criador. Creio que a poesia de

Jorge de Lima esta destinada a desempenhar um papel historico da maior relevancia no futuro; ela representa a tomada de posigao de um artista diante do repto langado ao homem pelo desenvolvimento quase ilimitado da ciencia e da tecnica; uma ciencia e uma tecnica que criaram novos objetos de adoragao: o foguete balistico, a bomba nuclear, as

capsulas espaciais, os cerebros eletronicos, o foguete global. T6da a crise da arte contemporanea deriva do culto do homem aos novos be- zerros de ouro criados pela tecnica; a fe nesses idolos leva o homem ao abandono de habitos que implicam nos reflexos operativos da mente, a negagao de Deus, liberdade e imortalidade.

Mas Jorge de Lima, que possuia uma elevada consciencia artistica e etica, nao se deixou seduzir por tais idolos. Por isso, Invenfao de Orfeu, seu maior e mais bem realizado poema, termina corn estes versos, sur-

preendentes pela clareza e subita mudanga do pensamento idiomatico em pensamento logico, demonstrando sua confianga no futuro da arte, contra cujos desvios nao apresentou uma simples "desculpa humanistica":

No momento de crer, criando

contra as f6r9as da morte, a fe.

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No momento de prece, orando

pela fe que perderam os outros.

No mornmento de fe crivado

corn umas setas de amor, as maos

e os pes e o lado esquerdo.

Universalidade e misterio artistico

Mas antes de iniciar o meu assalto tatico (nao direi estrat6gico) a estrutura de algumas passagens de Invengao de Orfeu, desejo referir-me a duas observa96es que, possivelmente, irao relacionar-se com o que irei dizer mais adiante. A primeira e de Mario de Andrade, publicada em

1939, por ocasiao do langamento de A tunica inconsutil; a segunda e de Gilberto Freyre, no prefacio que escreveu para Poemas Negros, onde

Jorge de Lima parece haver feito a captura daquilo a que Gilberto

Freyre chamou de contacto por vezes "democratizante de brancos e

degradante de pretos". Diz Mario de Andrade:

A significacao de Jorge de Lima, a personalidade deste grande poeta brasi- leiro talvez nunca tenha estado tao misteriosa como depois da publicacao de seu iultimo livro de poesia, A tinica inconsitil. Eis um artista que nao podera ser perfeitamente compreendido, ou pelo menos explicado, sem uma exegese bastante pormenorizada. Jorge de Lima e um mundo de contradicoes por explicar e de dificuldades a resolver. E sua pr6pria posigao que poderiamos dizer social, dentro da poesia contemporanea, ja demonstra bem o atraente misterio artistico de Jorge de Lima.

A observagao de Gilberto Freyre e a seguinte:

1Csse poeta alagoano, em quem hoje a America inteira sente um poeta lar- gamente seu pela cordialidade criola e pelo lirismo cristao franciscano, fra- ternal, disp6e de recursos de tecnica, dos quais poderia viver vida facil de gl6ria literaria, admirado e festejado por seus feitos e talentos de artifice; alheio as raizes regionais de sua experiencia de homem por muito tempo menino e as necessidades e aspira6ces de gente cuja pobreza conheceu pequeno e mesmo depois de grande; medico de provincia, cuja miseria observou, cujo sofrimento sentiu corn o poder da empatia que o anima com relagao a sua gente, do mesmo modo que sentiu suas alegrias, suas espe- rangas, seus deleites doentios de comedores de barro, seus medos de almas do outro mundo.

Tais observagoes me parecem de grande importancia porque foram feitas mais de uma dezena de anos antes do aparecimento de Invenq~o de Orfeu. A de Mario de Andrade confirma aquilo que ele pressentira em 1939: a estranha complexidade do poeta; seu atraente misterio artis- tico. A segunda observagao revela a aguda intuigao critica de Gilberto

Freyre, ao reconhecer-lhe pericia tenica e experiencia humana para al-

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cangar o universal atraves do regional e, embora paradoxalmente, al- cangar o regional atraves do universal, como e o caso de certos ritmos negros, tipicamente nordestinos, que surgem de subito em alguns cantos deste poema, que eu considera ao mais universal da poesia moderna de lingua portuguesa.

PresenQa de Dante

Os poemas de Jorge de Lima estao povoados daquela consciencia

religiosa que permitiu a Dante conhecer Deus em sua essencia intima. "Sedes divinas vieram me beber a mim a diagonal de luz esqualida". Ou ainda: "E este vacuo no vento tao avo, tao primeiro nos triangulos e ceus, tao cinco dedos, quase nebulosas, como esperma celeste entre alvoradas". A divinizagao de imagens sexuais e er6ticas e frequente em Invenfao de

Orfeu. Elejo aqui um exemplo do Canto IV, quase todo inspirado na Divina Comedia:

0 presente libidia, vulva em frente aos possessos de Deus reincarnado que te entreabres cor visgos e corolas e agiologios de vidas escarlates c Francesca continua agonizada, companheira de infdncia, tatuada, como as sereias da cintura abaixo, desses mares de fldres hibernadas. Urna febril dos sdres solitarios, treva sem lei em que as papoulas nascem e os santos do deserto suam mijos. Mas indelevel mae que marca os filhos cor os beiios fundos que jamais se apagam corn a santa baba corn que salga o mundo.

Eis um soneto aparentemente simples, mas grande pela riqueza de

sugestoes e compreensao intelectual de Dante. Invenqao de Orfeu e um extenso poema coral, um coral onde se ouvem as vozes de todos os

grandes poetas antigos e modernos. Pode parecer complexo, mas nao 6 um poema cabalistico. Certas passagens talvez sejam obscuras; creio mesmo que sao de fato obscuras. Exigem um conhecimento das litera- turas do Ocidente bem acima do nivel comum dos leitores. Tudo indica

que se trata de uma dessas obras - como diz Eliot - que ao, entrarem numa literatura, modificam a ordem existente, impondo reajuste de va- lores, matizes e proporgoes. Entretanto, como ocorre em Ovidio e Dante, Lucano e Shakespeare, o poema de Jorge de Lima deixa tao a desco- berto as fontes de suas vis6es, de sua genese fabuladora, de seus oraculos

que nao se pode admiti-lo senao como a cria9ao de um poeta para quem a poesia nao e apenas inven9ao, mas antes uma agao recriadora, uma sintese do processo tecnico universal da expressao poetica de que, se-

gundo Curtius, o mais sugestivo exemplo e o Fausto. Assim, Jorge de

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Lima e um homem que trabalho dentro de seu tempo, com a tradi9ao atras de si; o cosmos metafisico de Dante amplia constantemente o seu

campo simbolico:

Reverto-me no limbo original, entre dois olhos entre duas orbitas; dentro da nevoa antes respirada, dentro das coisas possuidas antes; encolho-me no ventre anterior e ermo vejo-me as plantas, babo os meus calcdneos, sugo os leites vindouros ndo jorrados ....

Para Dante, o saber nao se alcanga senao atraves de longo estudo. Ao encontrar-se com Virgilio, simbolo da sabedoria moral metafisica, ele exclama:

0 de li altri poeti onore e lume vagliami il lungo studio e 'I grande amore che m' fatto cercar lo tuo volume.

Em sua obra escrita entre 1303 e 1304 - De vulgare eloquentia diz ele que somente o anjos prescindem da linguagem como processo espi- ritual, porque possuem eles uma reciproca "intui?ao dos pr6prios pen- samentos"; o homem precisa da linguagem como expressao de uma atividade do espirito que pressupoe o pensamento. Os animais nao necessitam de uma linguagem espiritual; possuem o instito e isso 6 o bastante; mas o homem quer a linguagem; a linguagem Ihe 6 necessaria, como um "signum" intelectual e sensivel ao mesmo tempo, servindo para comunicar aos demais sua vida interior ("ratio") e fazer surgir nos demais homens uma atividade de pensamento semelhante; assim "aquele que escuta deve pensar o que pensa a inteligencia do que fala".

Nao sei se esse pensamento de Dante teria influido na afirmaSao do 'new critic" norte-americano John Crowe Ransom, quando escreve

que a unica poesia que Ihe interessa "nao deve ser o ato de uma crian9a, ou daquela eterna juventude das mulheres, mas o ato de uma mente adulta caida". Jorge de Lima e um poeta maior. Creio que sua poesia tem muito daquela sabedoria moral metafisica simbolizada em Virgilio, na Divina Comedia. Invenqao de Orfeu e, ainda, como declara Ransom: o ato de u'a mente adulta caida.

Conversando cor um jovem poeta, dizia-me ele que Jorge de Lima era "insuportvel", um "verboso", que se enredaba com frequencia em

palavras vazias de sentido. E mostrou-me, como exemplo, aquele trecho do Canto IV, capitulo XIX:

Amo-te Dante, e as rosas que tu viste - naquele que, formosa rosa branca, a divina milicia tinha a vista, de corola coral que entoa a gloria

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da face das pessoas trinitdrias; a rosa imensa que aos teus olhos era um exame de abelhas luminosas, que na flora de Deus se dessedenta.

Mostrei-lhe que esses versos estavam plenos de sentido l6gico, ainda

que Jorge de Lima se expresse sempre numa linguagem idiomatica, co- mo deve ser a verdadeira linguagem po6tica. Disse-lhe que ele achava

incompreensivel tais versos porque desconhecia Dante; a rosa luminosa, a rosa branca, a divina milicia eram os doze espiritos dos doutores da

Igreja. No Paraiso, Canto X, Dante descreve como ao chegar ao Sol, esses sabios vieram ao seu encontro, formando um circulo em cujo centro ficaram ele e Beatriz. Irradiando uma luz mais intensa do que a das estrelas, um deles se dirige a Dante:

Questi che m' e a destra piu vicino, frate e maestro fummi, ed esso Alberto e di Cologna, e io Thomas d'Aquino.

Depois de apresentar Alberto Magno, Sao Thomas diz a Dante que se ele deseja conhecer os outros dez, basta que siga com o olhar, a me- dida em que ele vai anunciando os nomes, aquele clrculo que all se encontra em forma de uma coroa luminosa. Sao eles: Graciano, Pedro

Lombardo, Salomao, Dionisio Aeropagita, Paulo Or6sio, Severino Boecio, Santo Isidoro, Arcebispo de Sevilha, Beda - o Veneravel, Ricardo de San Victor e Sigiero de Courtray, professor em Paris.

No Canto seguinte, Dante ouve de Sao Thomas a hist6ria da vida de Sao Francisco e de Sao Domingos. No Canto XII, logo que sao Thomis acaba de pronunciar o seu discurso, surge outra coroa de espiritos mais

resplendentes do que o Sol, e circunda a primeira; no Canto XIII Dante assiste a danga dos espiritos divinos. Essas passagens, Jorge de Lima

interpreta numa forma recriativa que se nao e tao bela como em Dante, e, apesar de tudo, muito bela:

Sao comparsas de farsas ou capelos ou danSarinos loucos e obstinados. Inda dez voltas ndo haviam feito outra legido em circulo a encerrava. Em voz acordes todos e em concerto quedarem vi cor carrilhoes mais altos; cor mil arcos de f6gos mensageiros curvam-se iguais, de luz sempre crivados.

A coreia girava pelejada quando a milicia que o Senhor louvava, dez sois p6s a girar precipitada.

E tais coisas nao hda quer as defina; enrosca-se pequena a humana lingua pois eram sois a procurar destinos.

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Reflexao tecnica

Invendao de Orfeu, sendo do ponto de vista tecnico, uma sintese do

processo universal da poesia, nao pode nem deve ter a unidade formal

que apresentam livros como a Divina Comedia ou o Paraiso Perdido; tampouco cor as epopeias her6icas virgilianas, como os Lusiadas ou o Orlando Furioso. No livro de Jorge de Lima, acham-se todas as formas estroficas: o verso emparelhado, a terga rima, a oitava rima de Ariosto, a sextina; a ode; o soneto; quanto as formas metricas, encontram-se t6das, predominando, a redondilha maior, o decassilabo, o alexandrino. Os versos em oito silabas tambem frequentes. Eles aparecem quando o

poeta explica o pr6prio poema: "composigao desordenada", "poema una- nime abrange os seres e quantas patrias". Sua "proporgao e desme- dida" / "Poema-Queda jamais finado" / eu seu her6i matei um Deus" / genitus non factum Memento":

Ndo sou a Luz mas fui mandado para testemunhar a Luz que flui d6ste poema alheio.

Tambem nao devem ser consideradas simples influencias a presenga de tantos autores neste livro. Trata-se, como disse antes, de uma sin- tese universal do processo poetico. Quanto ao tema, acredito, como observou Murilo Mendes, que se trata da Queda, "vista no piano da natureza criada, que e o piano da analogia e da semelhanga". Ao con- trario do que tem afirmado alguns criticos, a "Ilha", que aparece no Canto I, corresponde ao nosso planeta, ao Purgat6rio, de Dante, simbo- lizado pela Terra que emerge do fundo das aguas, por ocasiao da queda de Lucifer. "Esta ilha simboliza a materia como possibilidade real do ser", conforme a interpretagao que o prof. Mario Casella, da Universi- dade de Florenga, da ao Purgat6rio, na Divina Comedia. Sendo ela u'a montanha alta e escarpada, somente aqueles que se elevam pela li- berdade e virtudes morals ate o seu cume merecem a gloria de alcan9ar o Paraiso.

O perigo dos que interpretam Jorge de Lima ao pe da letra, e tomar a sua poesia como o resultado de uma posiCao essencialmente espiritual, e como conseqiiencia inteiramente desligada da realidade concreta do mundo. Fsse erro e freqiiente entre alguns int6rpretes de Dante. Mas Inferno, Purgatorio, Paraiso nao sao mais do que simbolos da realidade. A Divina Comedia nao e um poema metaf6rico; em Dante, ao contrario de Shakespeare, predominam os espa9os simbolicos-aleg6ricos multiplos, os mais amplos entre os grandes poemas universais. Assim, a grande metafora da Divina Comedia e o poema em si mesmo: um universo artistico concebido a semelhanga do universo criado: "um microcosmos

analogo, por semelhanga de propro9oes, ao macrocosmos".

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Creio que essas explicag6es sao necessarias para desarmar os criticos inclinados a interpretar o significado das palavras ao pe da letra; in-

capazes, portanto, de ver outra realidade que nao seja aquela que se encontra imediatamente sob o campo de sua visao. Creio mesmo que essa e uma das raz6es que tem levado alguns interpretes de Jorge de Lima a considera-lo um mistico, imbuido de um espiritualismo sem sentido para a nossa epoca e que, justamente por essa razao, nao teria

compreendido a missao social do escritor.

Em Invengao de Orfeu a consciencia social de Jorge de Lima 6 muito

avangada. Ali ha protestos contra os que procuram subjugar o homem, sacrificando-lhe os direitos humanos e o livre arbitrio. Protestando con- tra a tirania hitlerista, escreve:

Julgam-se unicos, rava preclara, sangue de demiurgos, lobo dos antros, Lucifer de novo, e tudo contra Aqu6le. Eis os tambores! Falta-me esfor9o; e os pes nao tem mem6ria dos caminhos doridos, nus de vida: ri de mim rsse rosto colossal. A noite e de borrasca e um ar demente cobre as formas do mundo, cobre os dias, por detrds das vidrapas choram olhos.

Sobre a acusagao que costumam fazer de ser a sua poesia algumas vezes destituida de sentido, como se o poeta se abandonasse por "ca- sualidade" aos jogos de palavras e livres associa?6es da fantasia, eu

desejava demonstrar ao leitor que tais acusa9oes nao sao fundamen- tadas. Para isso escolhi algumas passagens de Invenqao de Orfeu, que embora nao sendo as melhores, servem, todavia, como um testemunho da elevada consciencia artistica deste grande poeta:

Maduro pelos dias, vi-me em ilha, porquanto, como conhecer as coisas senao sendo-as? Como conhecer o mar senao morando-o? As coisas Deus um dia recuou. Contemplo nuvens. Elas me rociam. Refletem-se em meu sangue: nuvens e aves. A sombra de meus pes reptam-se serpes.

Quantas selvas escondo. Sou cavalo, corro em minhas estepes, corro en mim, sinto os meus cascos, oufo o meu relincho, despenho-me nas dguas, sou manada de javalis; tambdm sou tigre e mato; e pdssaros, e v6o-me e vou perdido, pousando em mim, pousando em Deus e o diabo.

Acredito que nestes versos, pertencentes ao Canto VII, um dos mais estranhos de Invenqao de Orfeu, ha uma confissao da qual se pode

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retirar elementos para uma compreensao mais ampla de Jorge de Lima. Quanto aos aspectos puramente tecnicos, e interessante observar a reiteraqao dessa mistura de elementos divinos e diab6licos que assim prossegue ate o final do Canto:

Nas9o flaresta, grasso grandes pestes, porquanto,

jazo em mim mesmo, rejo-me, reflito-me. Sei dos passaros, sei dos hipopotamos, sei de metais, de cidades, acontego-me, embebo-me na chuva que d do ceu, abraso-me no fogo dos infernos.

Porquanto como conhecer as coisas senao sendo-as? Abrigo minhas musas, amam-me s6bre. Aflijo-me por elas, sofro nelas, encarno-me em poesia, morro em cruz, cravo-me, ressuscito-me, Petrus sum Sou ele mas traindo-me, mas em burro, corn 6stes cascos na terra, e ventas no ar, cheirando Flora; minhas quatro patas riman iguais, forradas, alforriadas, burro de Ramos, levo s6bre o dorso Alguem em flor, Alguem em dor, Alguem.

Embora eu nao seja inclinado as analises estruturais de poemas e, particularmente, de versos isolados, nao posso fugir a uma demonstragao do paralelismo ritmico do ultimo verso; chamo a atengao para as rimas internas, o movimento de depressao e eleva5ao dos acentos; para tudo, enfim, que me parece um milagre de "reflexao tecnica". Al- guem em flor, Alguem em dor, Alguem. Como se ve: trata-se de um verso cujo perlodo ritmico se distribui, exatamente, atraves de dez silabas. Mas o fato para o qual chamo a atencao e o seguinte: t6das as silabas deste verso rimam entre si, separadas por tr's silabas que por sua vez rimam tambem na mesma proporaio. Assim, as silabas em Al, aparecem na la, 5a e 9a; guem, surge exatamente na 2a, 6a e 10a; em, na 3a e 7a; as rimas em or (flor e dor) na 4a e na 8a; tal processo eu con- sidero um "milagre de reflexao tecnica", porque se resultasse de uma intui9ao, nao seria uma intuigao sensorial, mas intelectuais; entretanto, esse tipo de intuiCao somente se pode encontrar nos anjos. Creio que se trata de uma tecnica reflexiva, intencional, pois o Alguem sendo Deus, o poeta quis demonstrar com este virtuosismo tecnico o simbolo da per- feiaio. Parece-me que Jorge de Lima seguiu aqui o principio da com- posigao numerica, a que se refere Ernst Robert Curtius num de seus en- saios de Literatura Europeia e Idade Media Latina. A palavra "Alguem" aparece tres vezes neste verso; entre as silabas que riman internamente, ha exatamente tres silabas. Ora, o numero 3, segundo Curtius, esta coordenado corn a Trindade, como o modo ternario da muisica, as di- mensoes do tempo e motus ternarius da alma. O fato da ultima silaba

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deste verso ser acentuada, acabou por faze-lo um decassilabo perfeito, isto 6, con exatamente dez silabas. "O nuimero 10 6 plenitude sapientiae, pois 7 significa a Criagao e 3 a Trindade" (Curtius).

A extensao de InvenQao de Orfeu, a variedade de temas nele tratados, nao me permite dar ao leitor uma visao geral do conjunto neste ensaio. Creio que seria interessante analisar o processo das metamorfoses, mas limitar-me-ei agora a transmitir o prazer proporcionado ao leitor pela esplendida imagem visual desta rocha que se transforma em passaro:

Dias e dias fico assim como um rochedo criando 16do em meu queixo e caracois nos lados, sob as chuvas da Amdrica, eis-me de novo alado. Seguramente v6o pelos ramos, sem mddo

Artificios retoricos

0 desprezo em que se colocou a ret6rica nos estudos de literatura, ter levado grandes poetas a considera-la simples ornamento, incom-

pativel cor o espirito da poesia moderna. Creio que esse preconceito contra a retorica ter causado mais males do que beneflcios a poesia; porque sem a retorica a poesia fica privada de um de seus componentes vitais. Tais preconceitos sao mais da parte dos criticos do que dos

poetas; dal a sua influencia sobre os poetas dotados de menores re- cursos expressivos, e deficiente formagao intelectual enquanto os mais dotados se mantem infensos a tais conselhos. Creio que desprezem os artificios ret6ricos. Ate mesmo T. S. Eliot e um retorico moderado

quando escreve poemas, embora se insurja contra o abuso dos artificios retoricos, em seus ensaios s6bre poesia.

Assim, aquilo que pode parecer a certos criticos como defeito na

poesia de Jorge de Lima nao seria mais do que um conhecimento apro- fundado das artes poeticas. ile sabia que os grandes autores nao dis-

pensam a ret6rica; ela constitui um dos recursos expressivos mais fre-

quentes encontrados na poesia de Virgilio, Lucano, Ovidio, Estacio, Dante, Ariosto, Tasso, Camoes, Shakespeare e Goethe. Vejamos como

Jorge de Lima consegue, atraves de artificios ret6ricos, colocar em In-

ven(do de Orfeu uma estrofe que representa a fusao do grande estilo aos ritmos que Gilberto Freyre considera "mais harmonizados com a natureza do Norte do Brasil" onde a cadencia do batuque se funde ao sentido da linguagem idiomatica:

A soliddo e rara, quase um raio, menos que teu anseio, muito menos, menos que teu dificil, teu durante, teu momento de morte, teu sinal, teu chamado divino, teu achado, teu machado fendendo novas achas.

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UNIVERSALIDADE DO POETA BRASILEIRO JORGE DE LIMA

Bastaria que chamasse a atengao do leitor para essa sugestao ativa dos "teu", a rima interna, a serie sucessiva de anaforas, os conceitos, as comparagoes; mas prefiro que se medite um pouco s6bre a significagao dessa musica reiterativa. Aqui existe uma percussao continua de sons, capaz de nos colocar em um clima de extase lirico. Algo atua nessa estrofe como se fora um magico tambor subterraneo, cujo eco repercute internamente nos pr6prio verso, antes de reiniciar nova curva ondula- t6ria, atraves da qual, nuicleos explosivos vao intensificando, pela acu- mulagao de anaforas, os efeitos caracteristicos de uma danga de negros, o climax formidavel de um batuque. Isso aparece no Canto VIII, inti- tulado Biografia, irrompendo de subito, entre as demais estrofes, que nada tem de comum corn esta que passa pelos nossos ouvidos com a mesma rapidez com que demora em nossos olhos um relaimpago. Mas a impressao que se tem e de continuar-se ouvindo um longinquo rumor de danga.

Mas isso nao representa senao uma etapa superior da poesia de um homem que ja a domina inteiramente. Agora, ele pode planejar o poema e faze-lo como bem entenda, mas sempre como um artista criador; nao como um construtor. Antes, no Livro de sonetos, o poema surge corn tiranica independencia, pleno de inten9oes e artificios. A fantasia poe- tica alcanga aqui dimensoes quase sobrehumanas. Nele, a posse d6sse elemento tao valorizado pelos grandes poetas, e extremamente vigorosa. Eis uma ligao de poetica, que ele nos da cuando procurava ainda pas- sagem para o grande estilo de Invendao de Orfeu:

Vereis que o poema cresce independente e tirdnico. 6 irmdos, banhistas, brisas, algas e peixes lividos sem dentes, veleiros mortos, coisas imprecisas. coisas neutras de aspecto suficiente a evocar afogado, Lucias, Isas, Celidnias . . . Parai sombras e gentesI Que dste poema e poema sem balizas.

Mas que venham de v6s perplexidades, entre as noites e os dias, entre as vagas e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre.

Qualquer poema e talvez essas metades: essas indecisoes das coisas vagas que tudo isto Ihe nutre sangue e ventre.

Invenqdo de Orfeu e a critica para-marxista

Acredito que a critica atual que tanto se "preocupa" corn o transito do Brasil para uma fase superior de sua vida economica, social e politica, nao representara nenhum perigo para um poeta como Jorge de Lima. A aplica9ao de principios marxistas a interpretagao da literatura nao

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melhora nem a literatura nem a critica. Isso ja foi amplamente de- monstrado nos Estados Unidos, onde se desenvolveu na decada 1930-40 o maior surto de criticismo marxista da hist6ria cultural do Ocidente. Livros como os de Granville Hicks, V. F. Calverton e outros estao ai, e documentam tanto o brilho quanto a inocuidade da critica marxista norte-americana, em seu ataque quase furioso a literatura e a arte

burguesas. Tao completos eram esses criticos que nao ha hoje um s6 tema abordado pelos marxistas contemporaneos - sejam os partidArios do realismo socialista, mais fieis a orientagao tragada por Stalin e ainda valida, oficialmente, na Uniao Sovietica, sejam os adeptos do "roman- tismo revolucionario unido ao realismo", de Mao Tse-tung, sejam os

paradoxalmente chamados revisionistas, isto e os que mais se aproximam do pensamento de Marx e nao seguem a orientagao nem de Moscou nem de Pekim - nao ha um s6 tema - dizia eu - que nao tenha sido

esgotado em livros como The Liberation of American Literature, de

Calverton, The Great Tradition e Figures of Transition, de Hicks, ou ainda na introdugao de Joseph Freeman, ao Proletarian Literature in the United States.

A culpa desses desvios nao foi de Marx; foi de seus adeptos. Vejamos um caso muito discutido: o conceito de aliena9ao. Marx teve o cuidado de sempre evitar a sua aplicagao a interpretagao da literatura e da arte. Julgava ele - e nisso estava certo - que a literatura de grande for9a apresenta uma tendencia muito forte no sentido de desligar suas raizes da infra-estrutura em que se encontra situada. Se e facil, se-

gundo os seus principios, explicar a redugao das alienag6es como a9ao de um processo dialetico, creio que seria muito diflcil convencer o leitor de que todos los grandes artistas, em todas as epocas, foram homens de "consciencia alienada". Porque, de acordo com a aplica9ao de tal con-

ceito, creio que nao ha um s6, entre os grandes poetas, que nao possa ser julgado como um homem de consciencia transferida. Nem mesmo Lucrecio escaparia a uma tal interpretagao, pois ainda que haja sido um materialista, Lucrecio acreditava na existencia de um ser transcendente. Para que um artista seja considerado "alienado", basta sua crenga na existencia de Deus. A cren9a em Deus implima numa alienagao reli-

giosa, a primeira alienaSao, na ordem critica, contra a qual se volta Marx. A aplicagao de um tal conceito a literatura provaria, por exemplo, que toda a poesia epica e uma poesia "alienada", porque no poema epico o Eu-substancia e uma proje9ao ideal do Eu-sujeito; uma das caracteristicas do epico e a fusao do pr6prio poeta corn o seu assunto; para que isso ocorra ele tem que alienar a sua per- sonalidade. O mundo refletido pelas epopeias 6 um mundo plena- mente ideal. Tal mundo, um marxista dogmatico consideraria alienado. Mas "alienado" em que sentido? "Alienado" de acordo com sua inter-

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UNIVERSALIDADE DO POETA BRASILEIRO JORGE DE LIMA

pretagao, pois nao "encontrando" no poema o reflexo da realidade que ele busca, e incapaz de reconhece-la depois de transformada pela cria- cao artistica, nao resta ao critico marxista ortodoxo senao classificar o seu autor como um homem de consciencia transferida.

A critica marxista atual - como escreveu Alfred Kazin em seu livro On native grounds - e criagao de stalinistas e marxistas desorientados. "Marx e Engels propuseram leis gerais. Os marxistas que sao seus

adeptos procuram provar essas leis, aplica-las em campos diferentes, pelo estudo das 'peculiaridades'." Pois Marx - comenta Kazin - nao apresen- tou quase nenhuma teoria literaria como tal. Ambos homens profun- damente cultos, apenas apresentaram um exemplo de erudigao e de cultura e confiaram na cultura e no bom senso de seus adeptos. Diz Kazin:

Nao acreditavam, porem, que obras de arte aparecessem atraves da cau- sagao mecanica, nem tampouco antecipavam que, ao falar na cultura, como sendo a superstrutura acima do alicerce principal das relacoes eco- nomicas, sua imagen haveria de ser levada a significar que a literatura, por exemplo, nada e mais do que um subproduto da atividade material.

Penetragao na realidade consegue faze-lo todo grande escritor. Mas o realismo, como diz Yeats, foi criado para o vulgo, que o constituiu

sempre como um prazer caracteristico. A grande obra de arte poetica resulta da fusao entre as generalidades abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo. Vista apenas sob um d6sses aspectos nao chega a ser arte. A verdadeira poesia nao pode ser criada a partir de uma simples penetragao na realidade circundante; tal penetragao e 6bvia, mas a obra que dela resulta nao deve ser apenas um espelho cari- catural da realidade. T6da obra de arte possui um "mundo pr6prio", exclusivamente seu, e nao necessita de nenhuma relagao com outros mundos, ou coisas exteriores a ela. A verdadeira obra de arte, como diz Georg Lukacs, e uma unidade do absoluto e do relativo. Ela deve refletir "t6das as propriedades essenciais que determinam objetivamente a por9ao da vida configurada por ela". Entretanto, o reflexo da reali- dade da obra de arte e diferente do das ciencias. Diz Lukacs:

Isto nao significa que t6da obra de arte ha de propor-se como meta a refletir a totalidade objetiva, extensiva da vida. Ao contrario, a totalidade extensiva da realidade ultrapassa necessariamente os limites possiveis de t6da criagao. A realidade s6 pode ser reproduzida, teoricamente, pelo processo infinito da ciencia total, em aproximagao sempre crescente.

Acredito que t6da a obra de arte, especialmente o poema, deve refletir algo de transcendente em relagao ao mundo onde faz sua en- trada e ao mesmo tempo conservar-se imanente em relagao ao ser que Ihe deu origem. Se isso ocorre, o poema aparecera aos olhos de um stalinista, sempre inclinado a interpreta6ges demasiadamente ligeiras,

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como expressao de uma "consciencia transferida". Mas o artista, na epoca atual, nao devera temer que o chamem de "alienado". Se ele

deseja continuar sendo artista, devera dizer como Jorge de Lima:

Vereis: a fronte dorme e os membros e que sonham, pois que me visualizo aos olhos sem retina; ndo posso recusar convites para a noite Nem posso abrir as pdlpebras a pobres realidades.

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