Unicom 2012, n°. 01

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 17 nº 1/MAIO 2012

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Edição do primeiro semestre de 2012 do Unicom, jornal-laboratório da Unisc.

Transcript of Unicom 2012, n°. 01

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Juliana EichwaldEditora dE FotograFia

E rEpórtEr

A rápida tradução revela: Ei-chwald, em alemão, significa “floresta legal”. Mas nem só

de deutsches o sobrenome so-brevive. Russos, americanos e britânicos também carregam

consigo esta descendência.

daiana StockEy carpESdiagramadora E rEpórtEr

Durante a Guerra das Duas Rosas (Inglaterra), um cida-

dão foge para a Alemanha. Em sua homenagem, um bairro

alemão recebe o seu sobreno-me. Este inglês foi o fundador

da família alemã Stockey. Após a I Guerra Mundial, Karl

busca no Brasil a paz.

lEticia pErEiraEditora multimídia E EpórtEr

Sobrenome toponímico: vêm do local de origem. A quinta de Pereira, em

Portugal, é a raiz da família, de onde as folhas de Pêra migraram para

terras brasileiras.

lucaS SilvarEpórtEr

De origem portuguesa, Silva, o meu sobrenome

é o mais popular do Brasil. Ficou notabili-zado em figuras como, o ex-presidente Lula, e

Ayrton Senna

vanESSa ShulErrEpórtEr

Vindos da Alemanha du-rante a Segunda Guerra

Mundial, os Schuler perde-ram a trema do nome, mas

fizeram brotar raízes de um povo germânico no Rio

Grande do Sul.

UNISC - Universidade de

Santa Cruz do Sul

Av. Independência, 2293

Bairro Universitário

Santa Cruz do Sul - RS

CEP 96815-900

Curso de Comunicação

Social - Jornalismo

Bloco 15 - Sala 1506

Telefone: 51 3717-7383

Coordenador do Curso:

Demétrio Soster

Tiragem: 1000 exemplares

Impressão: Grafocem

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA

Ilustrações: Viviane Herr-

mann, Amanda Mendonça

e Whellinton Rocha

Expediente

Nosso diálogo é em alemão. Dos “Müller, Möl-

ler” só restaram os “ll”. Em busca de solos férteis,

familiares vieram da “Colônia”, para explorar

terras no RS.

gabriEla mEllErrEviSora E rEpórtEr

Este jornal foi produzido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, ministrada

pelo professor Demétrio de Azeredo Soster.

Fabrício goulartEditor E rEpórtEr

Sobrenome de origem francesa que possivelmen-te se refere a uma alcunha ou característica do porta-dor inicial. A procedência

é bastante discutida e possui variações.

vanESSa kaEmpFrEpórtEr

Segundo antiga tradição oral, morávamos em Schweidnitz, na Silésia, onde prestávamos

serviços militares. Éramos entre oito irmãos quando, em 1857, um deles emigrou para o

Brasil e se fixou em Picada Mor-ro Pelado, Agudo, onde casou e

teve 12 filhos.

De Portugal para o Brasil. Os Guedes, um dos sobrenomes mais antigos da nobreza portuguesa, se espalharam, criaram raízes e fizem a história

por todos os cantos.

ingrid guEdESrEpórtEr

daianE holdEFErprodutora E rEpórtEr

Em busca de uma vida melhor, os Holdefer desem-barcaram no Brasil, vindos

da Alemanha. Primeiro estabeleceram-se em Ivoti

e hoje estão espalhados pelo país.

vanESSa coStarEviSora E rEpórtEr

Somos portugueses, espa-nhois e italianos. Nasce-mos na Europa, em uma nobre família medieval.

No Brasil, viemos da Costa Litorânea e por isso somos poucos em Minas Gerais.

caSSianE rodriguESSubEditora dE vídEo E

rEpórtEr

Não temos uma descen-dência, um sobrenome

português que surgiu de “Rodrigo”. Somos brancos, negros, com olho puxado e samba no pé. Somos prín-

cipes, somos plebeus.

maurício bESkowrEpórtEr

A partir de 1850, carregan-do a esperança em suas

malas de uma nova vida, os Beskow, da Prússia

Oriental e da Pomerânea, se estabelecem em São João da Cachoeira, atual municí-

pio de Agudo.

João JunquEiraprodutor dE Áudio

O sobrenome Junqueira é de origem portuguesa. Primeiro, os imigrantes alocaram-se na Re-gião Sudeste do Brasil e depois vieram para o Sul. Essa família com raízes no campo também

sabe fazer bonito na cidade.

Editorial

Quando falamos de memória, abordamos algo muito mais com-plexo do que lembranças de um tempo ou coisas. Discorremos, sobretudo, a respeito do que nós pensamos ter sido o passado. São reminiscências, fatos, pessoas e impressões de uma época.

A primeira edição do Unicom de 2012 foi desafiadora para toda a equipe. Além de nos preocuparmos com a qualidade do jornal, que deveria ser preservada (e honrada), nos deparamos com o com-promisso de dar unidade a um tema bastante amplo.

Para dar coesão à temática escolhida pela turma, procuramos compreender o funcionamento da memória, buscar referências em locais marcantes e também falar com pessoas que tinham algo importante para falar de

seu passado.Estamos cientes de que muito poderia ser dito

ainda. Mas também podemos comemorar aqui-lo que foi alcançado: um jornal rico em sua di-versidade que, todavia, não deixa de ter um elo muito forte entre suas várias partes.

Estaremos, sem dúvidas, amadurecidos para a próxima edição. É o que o Unicom tem demons-

Para lembrarmos...

trado com suas duas edições semes-trais: a cada novo trabalho, a equipe

consegue se desenvolver e não perder o foco do tra-balho que, afinal, é feito com muitas mãos.

Nesta publicação, não podemos deixar de fazer alguns agradecimentos

especiais: ao casal Jéssica Camargo e Rafael Roved-der, que posou para as lentes de nossa edito-ra de fotogra-fia, o que deu origem à capa;

ao Espaço Camarim por gentilmente ter nos emprestado as roupas de época; e à Casa das Artes Reginas Simonis, por nos disponibilizar seu acervo foto-gráfico, dando forma à capa.

Para nós, estas páginas representam, além de suas histórias, boas recorda-ções: de conhecimento, construção e companheirismo. Algo que, esperamos, possamos levar para o futuro e nossa vida profissional.

Uma boa leitura a todos.

Jonara raminEllirEpórtEr

Raminelli tem origem na região do Veneto na Itália.

Apelido do original Raminello significa medida de grãos, já

que os antepassados italianos eram donos de moinhos. Sou

da 4ª geração de um imigrante italiano que constituiu família

na região Centro-Serra.

Juliana SpilimbErgoprodutora E rEpórtEr

Em Friuli, os Spilimbergo estão no Elenco Oficial

da Nobreza Italiana. Em terras tupiniquins, os

títulos perderam valor e a nobreza remanescente é a

do coração.

Na Alemanha, morávamos em Mutterschied. No Brasil,

qualquer lugar. Nunca tivemos nada de nobre, mas carregamos muita história

numa simples caixa. Kist ou Kiste significa caixa...

débora kiStSubEditora E rEpórtEr

dEmétrio dE azErEdo SoStEr

Editor-chEFE

Há 1,2 mil anos, Soster era Schumacher, sapateiro de

alguma posse. Depois, trans-forma-se em Schuster, ainda

um artífice, só que mais pobre. A transformação se dá quando

imigram do sul da Áustria para o norte da Itália: italianos pronunciam “souster” no lugar

de Schuster.

Quando o navio Conte Grande, da Companhia de Navegação Gênova, atracou no porto de Dakar, na África, os olhos de Angelo Bello, então com 15 anos, viram pela primeira vez pessoas de pele escura. O espanto daquele mo-mento mostrava ao pequeno imigrante que a vida simples nos verdes vales da Tortorella, província Salerno, na Itália, ficara um oceano para trás.

Pelo menos 852 metros de altitu-de afastavam Angelo, mais conhecido como Bello, a mãe, Maria, e os sete ir-mãos, do resto do mundo. Do pai, Giova-ni Bello, que morreu em combate na 2ª Guerra Mundial (1939 -1945), Angelo não lembra nada, herdou apenas o gos-to pela caça. Nascido em 8 de novem-bro de 1943, penúltimo dos irmãos, as únicas preocupações da infância eram andar de bicicleta, matar passarinho e puxar o cabelo das meninas na escola.

A família vivia do que produzia. O milho virava polenta, a farinha de trigo virava massa e havia ainda parreiras a perder de vista. As mãos de ferro da mãe Maria trabalhavam de servente de pedreiro para garantir um sustento ex-tra. Em casa, Bello e os irmãos recebiam os cuidados da irmã mais velha, Giuse-ppina. Era ela quem cortava o pão em fatias iguais no café da manhã, prepa-rava a polenta no almoço e o minestrone (sopa da mistura de arroz, feijão, massa, pão velho e orelha de porco) no jantar.

Mas os tempos de guerra trouxe-ram consigo a fome e a miséria. A opor-

tunidade de mudar de vida chegou em forma de carta. Um amigo da família, Giuseppe Tancredi, convidava Maria e os filhos a partirem para uma tal Porto Alegre, onde a mão-de-obra era valorizada. Com esperança e poucas malas, Maria e quatro filhos partiram em 1959 em direção à terra prometida. Foi a última carona dos italianos como imigrantes para o Brasil.

Já no nível do mar, em Napoli, em-barcaram na terceira classe do Conte Grande. Seguiram até Cannes, na Fran-ça, e, em Dakar, na África, abasteceram o navio antes de atravessar o Atlântico. Dos 16 dias em alto mar, Bello quase não tem lembranças. “Eu nem sabia onde andava”, afirma ele.

A paisagem de uma terra maravi-lhosa acolheu os novos imigrantes. Ao pisar em terra firme no Rio de Janeiro, logo embarcaram em um trem que ru-mou para Santos, em São Paulo. Che-gando lá, o Brasil mostrou não ser tão generoso com os recém-chegados.

O menino, acostumado com a pe-quena comunidade em que vivia, agora dividia um salão com duas mil pessoas. No local, camas enfileiradas e um ba-nheiro foram o lar de Bello por cinco dias. A refeição era única: um prato de arroz, feijão e alface. Pela primeira vez, o imigrante acostumado com a fartu-ra da cozinha italiana, comia banana. “Em todas as esquinas havia carrinhos vendendo a fruta. Era bom, barato e forrava o estômago”, lembra ele.

Uma vez por semana, o trem par-tia para Porto Alegre, no Sul do país, a terra prometida. Os cinco dias e cinco noites nos vagões insalubres da loco-motiva não são a melhor memória que Bello guarda na vida. “Não tinha ba-nheiro, não tinha cama para dormir e comida só comprando.” O que restou da viagem de fome e frio foram as cinzas das roupas. “A caldeira queimava o que vestíamos”, conta.

Aos olhos do Guaíba, um novo rumo. A primeira tarefa dada ao imigrante adolescente foi varrer o chão de uma fábrica de joias. Com o passar do tempo, ele aprendeu o ofício de relojoeiro. Em 1978, aos 35 anos, quando sentiu que precisava de uma companheira, Bello retornou à Itália. Namorou Gemma, mas o destino fez com que a terra que lhe deu emprego e moradia também lhe rendesse um grande amor.

Foram as caçadas com o sócio em Cachoeira do Sul, no interior do Estado, que marcaram o encontro de Bello com sua eterna parceira de dança, Dione. A união ocorreu em um Centro de Tradi-ções Gaúchas (CTG). No cardápio, ao in-vés de massa, churrasco.

Hoje, aos 68 anos, Angelo Bello visita Tortorella quando aperta o play do DVD para ver imagens da última viagem à Itália, em 2008, que mais do que simples paisagens, são as memórias carregadas de sentimento de um imigrante dividi-do entre a saudade das terras italianas e o aconchego dos pampas.

A última caronaAngelo Bello

atravessou o mar há 53 anos, mas a Itália

não ficou para trás

Aos cinco anos, quando andava de triciclo pela Rua Aparício Borges, em Cachoeira do Sul, não imaginava que as memó-rias do vizinho Bello se mistu-rariam com as minhas.

JULIANA SPILIMBERGOREPORTAGEM

Angelo Bello Angelo e o irmão Antônio Bello Angelo e a esposa Dione Antônio Bello, a mãe, Maria, e Angelo Bello

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Passado negro

Moradoras da zona rural, negras

quilombolas guardam a história de uma

comunidade

Eis a delícia de ser repór-ter. De ver com o coração e de se emocionar com os relatos. De contar histórias de pesso-as que, mesmo sofrendo, não cansam de sorrir.

Ela tem nome de flor. Mas, ao con-trário da flor, que é branca, ela é ne-gra. Negra como o chão da casa onde vive com os cinco filhos, nas terras distantes do quilombo Quadra da Palma, em Encruzilhada do Sul. Há anos, negros remanescentes de es-cravos procuraram refúgio no lo-cal, que hoje abriga quatro famílias. Dentre os que ali chegaram, estava a mãe dela.

Nascida e criada na terra negra do quilombo, Margarida Machado Castilhos, 76 anos, não conheceu o pai. Com um sorriso banguela, suas gargalhadas abafam as lembranças tristes da infância e cicatrizam as feridas da época em que andava de uma casa para outra lavando, var-rendo, cozinhando. “Trabalhei desde criança fazendo faxina nas casas, para ajudar a minha mãe. Quase não brinquei.”

Ela, que foi conhecer as letras do alfabeto depois de velha. Queria ser pediatra. “Desejava ser médica para cuidar das crianças”, conta. Da solei-ra da janela, a quilombola descobre que o tempo passou rápido demais. De repente ficou adulta, casou, teve filhos e continuou lá, na mesma casa de chão batido. A vida inteira no mesmo local.

Margarida perdeu o marido quando a filha caçula Nalzira ainda era bebê. Sem a companhia do pai das crianças, ela precisou trabalhar ainda mais. Foram anos respigando arroz nas lavouras. “Como era longe o trabalho, eu chegava só de noite em

casa. Tinha que deixar as crianças na casa de alguém”. Ao pé do fogão à lenha vermelho, a negra lembra-se do prato preferido da infância, a canjica.

Diante de sua casa, a sorridente Margarida viu quase todo o povo do quilombo ir embora. Há muito ela só vê os sobrinhos pelos retratos que fi-cam na mesinha de madeira, ao lado do fogão. Mas a quilombola resistiu e ficou, assim como a energia elétrica resistiu, mas chegou. Lá se vão quase três anos que o candeeiro e as velas foram abandonados de vez.

As mãos da negra, que tanto deu lucros ao patrão, hoje descansam. Afinal, já estão calejadas demais. Margarida gosta mesmo é de re-mendar as lembranças, de costurar o tempo com retalhos de saudade. Tempo em que os filhos eram crian-ças e ela mesma fazia as roupas que vestiam. “Aproveitava os pedaços de pano e costurava as camisas que elas usavam no colégio”, diz orgulhosa.

As lembranças e a saudade estão espalhadas pelo quintal, onde cis-cam galinhas e pintinhos. Todo dia, ao acordar, Margarida joga milho aos animais e recorda que adora vi-ver ali, na casa simples, onde criou os cinco filhos. O desejo dela é morrer na terra negra do quilombo, que lhe acolheu quando criança.

Aos 70 anos, Elza Barbosa, única irmã viva de Margarida, mora sozi-nha em uma casa de dois cômodos, também no quilombo Quadra da Pal-ma. Viúva, mãe de uma filha e avó de

três netos, toma chimarrão todos os dias, sempre às 10 horas. Uma cerca de arame e algumas árvores sepa-ram as casas das duas irmãs. Elza, uma mulher de riso fácil, acorda bem cedinho, pela manhã, para cui-dar da plantação de mandioca. Des-de criança trabalhou na roça. Corta-va trigo, respigava arroz e milho. “Eu trabalhava para ganhar dinheiro, graxa e um saco de arroz. Uma pa-troa minha, dona Roni, essa pagava bem”, conta.

Elza lembra que as brincadeiras, na infância, eram improvisadas. Como não tinham dinheiro para comprar brinquedos, as roupas vira-vam bonecas. “A gente enrolava uma blusa, dava um nó ali, outro aqui e surgia o corpo de uma boneca. Aí a gente brincava assim.” Foi no colé-gio, mas não conseguiu aprender a escrever sequer o próprio nome. O que importava mesmo era trabalhar, e foi isso que ela fez. Trabalhou nas lavouras igual homem, ou até mais. Durona, não perde para qualquer um na enxada. “Hoje em dia a negra-da nova fica falando que faz isso, faz aquilo, mas eu dou uma surra neles no serviço”, afirma.

Assim como Margarida, Elza nasceu e se criou nas terras do qui-lombo. Com uma vida sofrida, o que mais temeu foi não ter saúde para trabalhar. Há pouco largou o cigar-ro porque andava muito magra. Fi-cou com medo de morrer e deixar as terras distantes do quilombo que tanto ama.

Para Margarida, a casa guarda o passado, o presente e o futuro da

família

DAIANE HOLDEFER

REPORTAGEM

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DAIANE HOLDEFER

Eram aproximadamente 15 horas de uma quarta-feira de 2011. Um dia de inverno normal. A dona de casa Neueli Ribeiro, 69 anos, estava lavando roupa em sua casa, localizada no Bairro Oli-veira. A artesã Lucimar Rodrigues, 47 anos, moradora do Bairro Ponche Ver-de, decorava 50 potes pequenos de “pa-pinha” de bebê para lembrança de um ano do sobrinho. O frio daquela tarde não fez o aposentado Derli Moises, 71 anos, do Bairro Noêmia, ficar embaixo das cobertas. Durante o dia ele trocou uma parte do telhado de sua casa. Já Elisa Molinari, 48 anos, moradora do Bairro Drews, conversava com sua vi-zinha.

Essas pessoas ouviram uma explo-são ao longe que identificaram de vá-rias formas. “Achei que fosse um boti-jão de gás”, diz Derli. “Era semelhante a uma bomba”, lembra Lucimar. “Achei que um caminhão estivesse tombado”, comenta Neueli. “Parecia ser de algum equipamento que caiu aqui da fábrica ao lado”, acreditava Elisa. Nada do que essas pessoas comentaram aconteceu. O estrondo era em um cofre na empre-sa Marino Hertz Implementos Agríco-las, no Bairro Otaviano, distante 5 km desses bairros.

A curiosidade de adolescentes le-vou os irmãos Jorni, 17 anos, e Felipe 13, a se aproximarem de um antigo cofre que estava há cerca de 10 anos abandonado na empresa do pai. Para arrombar o cofre eles usaram uma esmerilhadeira, que provocou uma fa-gulha em contato com a pólvora que es-tava dentro do compartimento. Nesse instante ocorreu uma explosão. “Algo ruim aconteceu”, disse Jorni Hertz, pai dos meninos, que estava no local no

momento do acidente. Os funcionários da empresa correram para ver o que havia acontecido e as pessoas que mo-ram perto se aglomeraram em frente à empresa em busca de respostas.

O socorro e a reação inicial foram rápidos, mas não o suficiente para apa-gar a tragédia que viria a acontecer. A notícia não foi boa. O dia 27 de julho marcou para sempre a vida da família Hertz Vargas. Os meninos foram sur-preendidos. Queimados, eles foram socorridos imediatamente pela Samu e levados ao Hospital de Caridade e Beneficência (HCB) de Cachoeira do Sul. Os dois foram atendidos numa sala de emergência, lado a lado. Felipe teve 88% do corpo queimado. Mesmo com fortes dores, Felipe permaneceu acor-dado por algumas horas. Ele conta que via em seu irmão uma grande luz que iluminava seu rosto.

Felipe foi transferido para uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) móvel para o Hospital de Pronto Socorro (HPS) de Porto Alegre, onde começou uma batalha pela vida. To-dos os médicos confirmavam que ha-via 1% de chance de sobreviver. Nesse instante, o pai Jorni, a mãe Marildes e o irmão mais novo, Samuel, inconsola-dos, não sabiam que rumo tomar. Iam para Porto Alegre juntamente com Felipe ou permaneciam em Cachoeira do Sul com Jorni Júnior. Infelizmente, veio a notícia que Jorni havia falecido no HCB. “As horas se passavam e se tornaram confusas, cansativas, dolo-rosas e muito desgastantes para todos os envolvidos. Pensava no que fazer. Sepultar um filho em uma cidade e correr para Porto Alegre para estar ao lado de Felipe contando as horas e

os minutos, torcendo por sua recupe-ração. Muitas dúvidas povoaram em mim”, diz Marildes. A oração aliada à fé foram o carro forte para a família amenizar e superar a dor.

Felipe permaneceu por dois meses na UTI pediátrica e depois quatro me-ses na UTI de queimados. Passou por 20 cirurgias. “Ele chegou sem pele. Pri-meiro teve que curar as queimaduras da barriga para retirar pele do local para assim fazer enxertos em outros lugares comprometidos. Foram retira-das três vezes pele de sua barriga”, afir-ma Marildes.

Hoje, após um ano, a expressão do jovem é de perplexidade e aceitação. “Foi tudo muito rápido. Estávamos na empresa e resolvemos abrir o cofre.” Felipe queria voltar ao tempo para con-sertar tudo. Agora é tarde. “Infelizmen-te aconteceu, não tem volta.” Ele não pronuncia as palavras explosão, cofre, acidente. Fala apenas na sua recupera-ção, que ele e a família consideram um milagre. Apesar das inúmeras marcas pelo corpo, não se importa com elas. “É por Deus que estou aqui.”

As cicatrizes deixadas pelas quei-maduras e enxertos precisam de cui-dados especiais: pomadas, fisiotera-pia, massoterapia e remédios fazem parte de seu dia a dia. Felipe faz brin-cadeiras, navega na internet, escuta música, brinca com os amigos, anda a cavalo na chácara e vai à escola. “Es-sas coisas me distraem e me fazem esquecer o que aconteceu.” Se tragé-dia é a palavra que não diz, viver é a palavra que repete. Felipe está quase recuperado. Não cantou em praça pú-blica ou tirou 10 em matemática, mas teve uma segunda chance.

Recordações de uma tarde tristeFelipe Hertz Vargas

não deixou se intimidar pelo

tamanho de seus desafios

INGRID GUEDESREPORTAGEM

Família Hertz Os irmãos Felipe e Jorni Júnior Recuperação Felipe, Jorni, Marildes e Samuel

Afinal, o que aconteceu em julho de 2011? Foi essa inquietação que me levou até a matéria. Os veículos locais discutiam o por-quê da explosão, e eu queria sa-ber além disso.

INGRID GUEDES

INGRID GUEDESARQUIVO PESSOAL

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ARQUIVO PESSOAL ARQUIVO PESSOAL

O pai parou o carro em frente à loja. A mãe, Lúcia,

olhou o filho no banco de trás e, sem titubear, lançou:

- Suas roupas estão muito estranhas, são uns trapos. É hora de comprar coisas novas.

Entraram na conhecida loja no centro da cidade e foram para a se-ção feminina. Era hora de, digamos, Luiza, se desfazer das roupas andró-ginas, pouco masculinas, e comprar

algo mais adequado ao seu gosto. A garota de 17 anos já não conseguia

mais fingir ser um garoto.A formatura do Ensino Mé-

dio já havia ocorrido e, no passado, ficaram as lem-

branças de alguém que ten-tou ser por muito tempo. “Desde pequena quis ser mulher, mas no colégio tive que me adaptar, ti-nha que manter o cabe-lo curto, me vestir como queriam. As pessoas eram preconceituosas. Além de sofrer ofensas, tinha que cuidar para não apa-nhar.”

Luiza não mora mais em Santa Cruz do Sul, onde nasceu, mas cos-tuma visitar os pais com frequência. Ela sorri e agradece ao lem-

brar que eles sempre a apoiaram. Para trás, deixou a cidade e outra identida-de. Hoje, Luiza tem 24 anos e há dois fez uma cirurgia de troca de sexo. O nome também não é mais o mesmo nos docu-mentos. O atual acompanha sua devida aparência física.

O fato é que a Santa Cruz de Luiza é dura e repleta de recordações desagra-dáveis. “É sempre estranho visitar a ci-dade. Quando volto, as más lembranças retornam. Quando ando na rua, percebo pessoas que me conhecem tecendo co-mentários maliciosos e me olhando de forma estranha.”

A jovem estudou em colégio parti-cular, iniciou um curso de nível supe-rior também no município, mas hoje, por vocação, faz programas por todo o Brasil. Sim, vocação. A prostituição foi uma escolha de vida. “Estou me recu-perando de uma lipoescultura. Quan-do estiver bem, vou para Cuiabá”, con-ta, alegre. Apesar de ter passado por diversos questionamentos na infân-cia, ela diz que hoje sabe muito bem o que quer.

Já quis outro emprego? No início, não tentou por medo de sofrer repressão. Com o tempo, contudo, foi descobrindo na prostituição algo com o que se iden-tificava. “A minha profissão me ajudou a me descobrir como mulher. Acho que por sair com diversos homens e eles não me verem como transexual, me tratarem com carinho.”

Ela recorda que a adaptação de troca de sexo não foi fácil. “Tenho a data ano-tada, mas não lembro. Não é algo tão im-portante, porque eu já me via como mu-lher.” As lembranças da operação estão nos dias subsequentes. Luiza precisou fazer uma nova cirurgia para dar forma ao canal vaginal. Sexo, só conseguiu de-pois de um ano de tratamento. “Foi uma fase complicada.”

Quando questionada sobre as ami-zades de infância, Luiza diz que poucas permaneceram. Na rua, ex-colegas di-ficilmente a cumprimentam. “Às vezes saio em Santa Cruz e alguém comenta que troquei de sexo. Já escutei dizerem que se soubessem, nem chegavam per-to. Como se eu fosse um monstro.”

A jovem se diz bem resolvida, mas afirma que, às vezes, mesmo contra a vontade, é preciso manter segredo quando conhece alguém. “Acabo sen-do uma mulher misteriosa para os ho-mens, pois não costumo falar do pas-sado. Tenho medo das reações, embora nunca tenha acontecido nada grave.”

Luiza percebe, quando vê o seu pas-sado e as modificações pelas quais pas-sou, que se tornou bonita e desejada. Ela sorri com a situação e complemen-ta: “Tem um lado de mim que gostaria de se mostrar, se revelar. Mas há outro que teme retaliações”. Luiza acredita que muitas pessoas ainda não estão preparadas para a mudança de sexo e a convivência com as diferenças.

Lembranças de um menino diferente

Luiza mudou de sexo e deixou no passado uma identidade estranha e desconhecida

As lembranças de minha en-trevistada fazem também parte de minhas memórias: as de uma época em que nada se falava sobre bullying e os efeitos em nossas vidas.

FABRÍCIO GOULART

REPORTAGEM

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Na década de 90, um menino fa-zia teste para ingressar nos juve-nis do Guarani de Venâncio Aires. Com um apito entre os dedos, um certo Mano Menezes se posiciona-va no meio de campo. Ele era o res-ponsável pelo peneirão dos garo-tos, que trilhavam o sonho de ser jogador de futebol. O estádio era o Alvi-Azul, do Cruzeiro, time atual-mente extinto.

- Tu arrebentou no treino de hoje como zagueiro, hein Rui?

- Pois é professor Mano (somente Mano na época), marquei direitinho né? E então, fui aprovado?

- E o lance aquele, teria que ter feito linha de impedimento, des-se jeito não vai conseguir correr o jogo inteiro.

- Pois é, mas não tem bandeiri-nha e o senhor não ia marcar nada. Ficaria fácil e o cara marcaria o gol. Mesmo assim, desarmei o atacante por duas vezes e saí jogando.

- É, foi bem. Mas acho que tu es-tás me enganando. Eu te conheço e tu não jogas tanto assim.

Dali, então, o garoto seguiu outro rumo e acabou se dedicando ao jor-nalismo, porém nunca abandonando a paixão pelo futebol. Atualmente escreve num blog e numa coluna do jornal Folha do Mate, onde prioriza os campeonatos em que o Índio da Capi-tal do Chimarrão disputa pelo Estado. Já Mano Menezes é hoje o técnico da Seleção Brasileira de futebol.

CrônicaRui Borgmann.

Paixão pelo futebol

“A democracia é a arte de administrar o circo através da jaula dos macacos.” “Decência, autocontrole, senso de justiça, coragem – essas virtudes pertencem a uma pequena minoria de homens.” “O governo ideal de qualquer ho-mem dado à reflexão é aquele que deixe o in-divíduo em paz.”

Essas frases revelam o estilo mordaz, de-bochado e explosivo com que o iconoclasta H. L. Mencken (1880-1956), o mais famoso e influente jornalis-ta norte-americano, “transtornou a cabeça” de seus contemporâne-os a respeito de todos os assuntos nas déca-das de 20, 30 e 40. Elas foram pinçadas de O Livro dos Insultos, um verdadeiro monumen-to já disponível nas li-vrarias.

A obra, organizada por Ruy Castro e lan-çada pela Companhia das Letras dentro da coleção Jornalismo Lite-rário, reúne alguns dos melhores artigos escri-tos por Mencken em mais de três décadas de trajetória.

Filho de um alemão vendedor de charu-tos, Henry Louis Mencken trabalhou prati-camente toda sua carreira no Evening Sun, jornal provinciano de sua cidade natal Bal-timore, no Estado de Maryland (“um lugar onde as pessoas trocam de camisa uma vez por dia e de preconceitos uma vez por ge-ração”, dizia ele). Ali montou seu front para atacar o status quo norte-americano das primeiras décadas do século XX. Trucidou por escrito de governantes (o ex-presidente Franklin Roosevelt foi um de seus alvos pre-feridos) a psicólogos, pintores a índios.

Pelo humor que impunha em suas colunas, um dos meios que utilizava para desconcertar seus detratores, Mencken recebeu o apelido de

“o W. C. Fields (famoso comediante) do jornalis-mo”.

“Mencken era um jornalista literário e um satírico por excelência. O espetáculo da estupi-dez humana ‘fazia o dia dele’,” escreveu o fale-cido jornalista Paulo Francis - cuja carreira foi notoriamente influenciada por Mencken – no

texto escrito para a orelha da primeira edição de O Livro dos Insultos, publi-cada pela Cia. das Letras em 1988.

Temido, mas lido por milhares, Mencken também foi proeminen-te na área cultural. Ao mesmo tempo em que escrevia para o Sun e colaborava com a “gran-de imprensa”, produzia artigos para as revistas Smart Set e American Mercury, que fundou com o crítico de teatro George Jean Nathan, e nas quais chamou a atenção para as obras de Joseph Conrad, Mark Twain, Bernard

Shaw, Henryk Ibsen, Te-nessee Williams e James Joyce. Nas publica-ções, ele também desancou ícones da litera-tura até então intocáveis, como Dostoiévski e Henry James.

“O mais importante de tudo é que Mencken conseguiu que suas ideias não fossem embru-lhadas com o peixe no dia seguinte”, enfatiza o escritor e jornalista Ruy Castro no posfácio de O Livro dos Insultos.

Considerado pelo The New York Times em 1926 “o mais poderoso cidadão privado na América”, H. L. Mencken morreu de enfarte na noite de 29 de janeiro de 1956 ouvindo uma sinfonia clássica transmitida pelo rádio. So-bre si mesmo, o jornalista deixou esta pérola: “A verdade é que eu não sou um homem justo e não quero ouvir os dois lados. Sobre todos os assuntos, da aviação a tocar xilofone, eu tenho ideias fixas e invariáveis”.

Moracidade por escrito

Livro reúne artigos de H. L. Mencken, o mais ferino jornalista norte-americano

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Valderi da Silva e os três filhos morreram pela enxurrada que levou a casa da família em 2003, na localidade de Cortado, Novo Cabrais. Mar-cia Müller fez a cobertura jornalística da queda da ponte da RSC-287, em Agudo, no ano de 2010. Ao mesmo tempo em que informava um dos mais trágicos incidentes da região, tinha de superar a dor por ter per-dido um amigo na ocasião. Dona Lila de Oliveira Moraes lembra dos de-sastres duma distante enchente ocorrida em 1941. Em comum, elas têm como palco o Rio Jacuí e a lembrança de momentos dolorosos.

Águas passam, momentos ficamAs histórias daqueles

que, de alguma forma, foram afetados pelas

cheias do Jacuí

Não é fácil falar de tragé-dias. Para esta reportagem precisei instigar as pessoas e resgatar uma memória que preferem manter es-condida para si mesmos.

CASSIANE RODRIGUES

REPORTAGEM

“Alagou ruas e praças. Invadiu casas, carregou carros, cachorros. Destruiu barracos, plantações. Destruiu sonhos e ilusões.” Este trecho é do livro de po-esias Horizontes, escrito por Valderi da Silva, como se fosse uma premonição, alguns meses antes de morrer junto com os três filhos.

Tudo aconteceu no dia 6 de março de 2003. No meio da tarde, começou uma chuva amena que muito rapidamente ganhou mais força. A casa de Valderi foi levada pela enxurrada que afetou Cortado, no interior de Novo Cabrais. O pai de família tinha 38 anos e estava em casa com os filhos Valdete, 16 anos; Vi-

nícius, 13; e a pequena Valéria, 5; quando a ponte que ligava a estrada a uma escola desabou com a força da água e destruiu a residência da família.

A esposa de Valderi e mãe das crianças, Odete da Silva, perdeu o marido, os três filhos, a casa e os registros de uma vida. A irmã, Irene Bertolini, conta que Odete poderia ter sido vítima da enxurrada junto com os familiares. Fazia pouco tempo que ela tinha saído de casa para visitar o pai, a poucos metros dali, de onde enxergou toda a tragédia. Restou a Odete e familiares apenas memórias de uma vida outrora tranquila.

Tragédia foi prevista em versos

VIVIANE MOURA

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O papel de jornalista aliado aos sentimentos de amiga. Esse foi o desafio da jornalista Mar-cia Muller, em janeiro de 2010, com a queda da ponte de Agu-do, que liga Santa Cruz do Sul a Santa Maria. A ponte desabou devido à enchente no Rio Jacuí. No dia 5 de janeiro de 2010, exa-tamente às 9h03, a Rádio Agu-do, por meio do repórter Márcio Nunes, relatou aos ouvintes de maneira emocionada e deses-perada que a ponte havia caído. “Amigos nossos estavam lá em cima, o vice-prefeito também, tem gente descendo pela água...” Com a queda da ponte, 15 pes-soas caíram; destas, 10 foram resgata-das. Entre os cinco mortos, um amigo da jornalista.

A enchente de 2010 foi anunciada como a maior desde 1941. Marcia, juntamente com os colegas da rádio, produziu diversos boletins e enviou informações para a impren-sa regional e nacional. Aliado a tudo isso, teve de controlar o lado emocional. O pesadelo teve fim 11 dias depois do aci-dente, quando o último corpo foi encontrado. Foram dias de pânico, medo e total isola-mento na cidade de Agudo. “O medo bate na comunidade de Agudo toda vez que vem um dilúvio. Não tem como esque-cer, passa um filme na cabe-ça”, finaliza a jornalista.

A dor da perda aliada à responsabilidade profissional

CASSIANE RODRIGUES

“Aquela foi a maior enchente do Rio Grande do Sul”, con-ta dona Lila, de 83 anos. Lembra de ver as louças da casa de uma tia, em Porto Alegre, sendo levadas pela correnteza. Dona Lila de Oliveira Moraes mora hoje em Cachoeira do Sul, cidade que foi igualmente afetada pela enchente his-tórica de 1941 juntamente com grande parte do Estado. Ao contrário da capital, não houve grandes perdas em Cachoei-ra do Sul. Os maiores afetados foram os produtores de arroz.

Alguns meses antes, eles haviam comemorado a grande

safra do ano com a Festa do Arroz. Na época da festa, que ocorreu de 9 a 16 de março, um artista fez com areia a ima-gem de Jesus Cristo na praça central da cidade. Dona Lila conta que o povo dizia que a enchente havia sido castigo por terem feito a imagem com um material tão frágil. Cren-dices à parte, o fato é que alguns produtores de arroz per-deram 100% das plantações. Prova disso foi que a segunda edição da festa, que passou a ser chamada de feira, ocorreu somente 27 anos depois, em 1968.

A maior de todas as enchentes

AR

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IVO PESSO

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Durante as reviravoltas na nossa partida de xadrez, o escoteiro de 9 anos João Gabriel Rodrigues explica como utiliza seus car-rinhos da Hot Wheels em corridas de tirar o fôlego. Ele estuda das 13h30 às 17 horas, quando chega em casa, além de brincar com os carrinhos, também brinca com a sua fa-zendinha de peças em miniatura. Bois, cava-los, casas, cercas e peões fazem parte da es-tância. O líder da matilha Preta de lobinhos do grupo de escoteiros Ibiraiaras, também lidera sua fazenda como se fosse a peça prin-cipal do jogo. “Quando eu crescer quero ser do exército, ganhar bastante dinheiro, comprar uma fazenda e cuidar dos animais.” Enquan-to o sonho de comandar uma grande fazenda

não se torna realidade, João Gabriel segue liderando a pequena “propriedade”, que pos-sivelmente no futuro será lembrada com os elementos que formam a saudade.

O que Hiltor, Ariovaldo e Diogo possuem em comum com João Gabriel? Ambos vive-ram (ou vivem, no caso do pequeno escoteiro) suas infâncias da forma mais plena possível. Sejam os brinquedos que Hiltor construía, ou os modernos carrinhos da coleção Hot Whe-els de João Gabriel. Todos lembram (ou irão lembrar) suas infâncias a partir desses obje-tos, que ao longo do tempo se modificam, mas no fundo não perdem o sentido que possuem. Para Hiltor, Ariovaldo, Diogo e João, a sauda-de tem a forma de um brinquedo.

Quando a saudade tem a forma de um brinquedo

Em algumas pessoas a saudade surge das situações

vividas; em outras, ela vem na forma de um brinquedo

Anos 70

Anos 40

Anos 2000

Anos 90

JULIANA EICHWALDREPORTAGEM

Como sou muitíssi-ma apegada a objetos da minha infância, se-jam brinquedos, cader-nos ou fotos, a produção dessa matéria me fez relembrar e sentir sau-dade de tudo isso.

Enquanto as meninas do bairro brincam na rua de casinha, com bo-necas Barbie, Chiquititas, Baby Bar-riguinha e os bichinhos da coleção Parmalat, ou cuidam, zelosas, de seus Tamagotchis (brinquedo virtual em que se cria um animalzinho), Diogo Rutsatz e seus amigos preparam seus carrinhos para colocá-los em ação na pista do Posto do Gugu, também batem os Tazos da Looney Tunes, da Anima-niacs, da Master Tazos e do Máskara, que são adquiridos nos salgadinhos da Elma Chips. Ou até mesmo disputam partidas acirradas de futebol no Ro-

naldinho Soccer 98 no Videogame Nin-tendo e lutam para passar as fases e chegar ao castelo final do Super Mario World. Com 19 anos de idade, Diogo diz que relembrar esses momentos ainda não dói tanto. “É legal lembrar daquele tempo. A gente só pensava em brincar. Eu subia no sofá da sala, imaginava que ele era um ônibus, pegava as tampas da panela da mãe e usava como direção.” Por mais que ainda não sinta saudade dessas memórias, ele admite: “Quando eu ficar mais velho com certeza sentirei muita falta”.

Boné na cabeça, bolinhas de gude no bolso e a busca pelo terreno ideal se inicia. O menino magricelo, nem alto, nem baixo e com roupas de segunda li-nha, discute com os seus amigos sobre os pedregulhos no solo que empacam a brincadeira. “Pega aquele pedaço de madeira e vamos passar aqui, vai ficar perfeito”, grita ele. Ariovaldo Louzada lembra-se de cenas iguais a essa como se fosse ontem. Hoje, aposentado aos seus 49 anos de idade, passa a maior parte do tempo em casa com a esposa. “Tempinho bom aquele, né?! Eu tenho saudade do campo, das brincadeiras.

Hoje em dia tudo mudou.” A lavoura, as bolitas e os carrinhos de madeira nunca saíram de sua me-mória. Se Arioval- do pudesse voltar no tempo, até de boneca e de comidinha brincaria com as vi-zinhas, se tivesse a oportunidade de novamente encher as unhas de barro ao cavocar o chão e construir buraqui-nhos, para lançar neles as pequeninas e inesquecíveis bolinhas de gude.

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Os cabelos brancos mostram que o tempo passou rápido para Hiltor Bau-mhardt, de 73 anos. O olhar embaça-do mira o horizonte e busca na me-mória as lembranças de uma infância feliz. Quando Hiltor era pequeno, a fa-mília Baumhardt morava no interior, dessa forma, as lojas de brinquedos se tornaram inacessíveis. Os cenários de seus primeiros anos de vida eram feitos de terra, de lavoura e de campo. “Nós mesmos criávamos nossos brin-quedos. Pegávamos sabugos, carre-téis de linha, arames, latinha de sar-

dinha e tampinha de garrafa para construirmos nossos tratorezi-nhos e trenzinhos.” Hiltor e seus

primos brincavam nas horas de folga, pois, nos momentos da lida no

campo, recolhiam os terneiros e alimentavam os porcos para

os seus pais. Quando a hora de brincar desa-

brochava, as crianças já estavam prontas para colocar em prática o que aprendiam com os mais velhos. “Como meu pai trabalhava na la-voura, nós também montávamos mini-lavouras na terra, imitando a grande que se encontrava a poucos passos dali.” Hiltor lembra também que, após construírem seus trato-rezinhos e trenzinhos, os meninos negociavam entre si, boizinhos e vaquinhas, com cédulas de votação, que eles transformavam em dinhei-ro. “Seria tão bom se a gente não cres-cesse. Era tudo tão diferente, agora a maioria das crianças passa a infân-cia em frente à televisão, sem colocar os pés descalços na lama”, lamenta.

Uma fotografia, um gesto, uma palavra. Uma temperatura, um abraço, uma data. Sem precisar de permissão, elas aparecem e nos prendem em algo que só nós conhecemos. Os sintomas são fáceis de reconhecer: se você encontrar alguém estático e com um olhar vago, pode ter certeza: ele está lembrando-se de algo. Imutáveis, muitas memórias têm como companhia sorrisos ou lágrimas. Tal-vez os dois ao mesmo tempo. Não existem fi-sicamente, mas se fazem sempre presentes. Nenhuma palavra explica o sentimento cau-sado por aquela imagem que só quem viveu consegue entender.

Memórias mudam atitudes, mudam cami-nhos. Fazem perder a concentração. Quem nunca fechou os olhos antes de dormir para lembrar algo? Cantarolou uma música recor-dando outro momento com a mesma melo-dia? Memorizou cada detalhe de uma foto-grafia para tentar fazer com que voltasse a ser o que era? Você pode dizer o que quiser para as pessoas, mas elas não vão entender. A mágica está naquele momento que é só seu, naquela paisagem que apenas você enxerga, no comentário que só você entende.

Cerca de um ano atrás escutei que os jo-vens não poderiam conjugar um tempo ver-bal que se refere a um passado distante porque eles não têm memórias para tanto. Discordo. Memórias não são dádivas de quem é mais velho. Elas são o que somos e constru-ímos a cada dia. Uma viagem que fizemos. A tão esperada formatura. O aperto no coração ao dizer adeus. Tudo está ali, naquele precio-so momento entre o passado e o presente, o que éramos e o que somos. Talvez nem tudo seja como o planejado, mas sempre podemos contar com as nossas memórias para seguir em frente.

CrônicaLaura Gomes

O re

flexo

de

uma l

embr

ança

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VIVIANE HERRMANN

O cérebro vem sendo estudado por

Iván Izquierdo com rigor e paixão

É impossível estar com Iván Iz-quierdo e ficar indiferente a esse homem. Aos 75 anos, ele fala dos complexos mecanismos da memória como quem fala sobre um assunto banal. Mas não pense que por ser um dos maiores pesquisadores da memó-ria ele é diferente de você. “O cérebro nos trai”, explica, ao esquecer o nome de um filme. No rosto e nos cabelos brancos, as marcas do tempo. Tempo esse dedicado ao estudo da memó-ria. Nascido na Argentina, em 1937, o neurocientista é naturalizado brasi-leiro há mais de 30 anos. Ser membro da National Academy of Sciences dos EUA é apenas uma de suas distinções.

Iván Izquierdo é daquelas pes-soas que amam o que fazem. “A me-

mória é apaixonante”, define. Ao ser questionado sobre as suas próprias recordações, ele não sabe o que di-zer. Lembra-se dos rostos e nomes das professoras e dos amigos. Re-corda-se do frio que fazia na Argen-tina e, principalmente, em Córdoba, onde morou muitos anos. E ainda dos 15 graus negativos que enfren-tou nos Estados Unidos. “Pensei que ia morrer. Não sei o que as pessoas veem de bonito na neve.”

Em seu escritório, no Centro de Memórias do Instituto de Pesquisas Biomédicas da PUCRS (IPB), em meio a muitos livros e revistas científicas, Izquierdo conversou com o Unicom.

Como ocorre a memória?A memória é uma função cere-

bral. Não é uma coisa que aconte-ce, é uma coisa que existe, que vem junto com o cérebro. É função de boa parte do cérebro. E, a partir das experiências, que podem ser das mais diversas, a gente gera a for-mação de arquivos, onde essa infor-mação eventualmente é mantida, conservada e evocada. A primeira aquisição de memória se denomi-na aprendizado. São memórias que vão mudar nosso comportamento. Aprendemos a caminhar, a falar, a gostar de ou a não gostar de coisas, pessoas, situações. Aprendemos o que fazer quando sentimos fome, medo, amor. Aprendemos tudo isso.

A memória é seletiva?Sim, pode ser seletiva. O cérebro

Esquecer é tão importante quanto lembrar

GILSON OLIVEIRA

Izquierdo: são 75 anos de vida, 20 livros publicados e mais de 500 artigos em revistas científicas

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decide que memória guardar e que memória não guardar. Um dos crité-rios que tem é verificar se aquilo que está recebendo a cada momento já está arquivado ou não. Se já está ar-quivado, geralmente o cérebro rejeita o novo, guarda o que já tem. Se não está, pode guardá-lo, se acha que é in-teressante. O cérebro seleciona isso.

Então o esquecimento também é seletivo?

Sim, e isso também é uma coisa que o cérebro faz. Parte do esquecimento talvez seja involuntário. Perdemos a maior parte das coisas que recebemos. Por exemplo, quem é capaz de se lem-brar da tarde de ontem por completo, cada um dos incidentes? Ninguém. Nós lembramos de fragmentos.

Os idosos, mas os mais jovens tam-bém, esquecem coisas recentes, mas lembram de coisas que ocorreram há muito tempo. Por que isso acontece?

Isso se nota muito nos idosos. Parte dos idosos prefere lembrar coisas de antigamente. Porque o antigamente para o idoso representa a época em que ele é jovem, era feliz, era podero-so, era bonito, essas coisas. E depois isso se perde. Eu, claramente, prefiro me lembrar de quando podia varar uma noite sem sono dançando. E não da noite passada em que eu dormi mal. Então é melhor se lembrar dos bons momentos e não dos momentos ruins. O cérebro decide isso, sem que nós pos-samos interferir. Geralmente poucas pessoas pensam que quanto mais ve-lhos ficamos, mais memórias temos.

Podemos dizer, então, que é im-portante esquecer algumas coisas?

Sim, porque sem esquecer não po-demos aprender nada novo. Por exem-plo, uma coisa que nós todos já esque-cemos aqui é a terceira palavra que eu disse na frase anterior. Já esquecemos, não sabemos qual é. Se não tivésse-mos esquecido a palavra, ela estaria ocupando meu espaço e passaria a atrapalhar. Assim como atrapalharia lembrar-se de toda a tarde de ontem.

A emoção influencia na forma-ção da memória?

Muitíssimo. As memórias que mais lembramos são aquelas que es-tão mais carregadas de emoção.

Sejam positivas ou negativas.Sejam positivas ou negativas.

Todo mundo lembra onde estava, com quem estava e fazendo o quê no dia em que morreu uma pessoa muito famosa. Por exemplo, para quem tem idade suficiente, Airton Senna. O dia

em que ele morreu todo mundo sabe com quem estava e etc. E ninguém tem ideia do que fez no dia anterior ou na semana seguinte.

A nossa memória é fiel à versão original dos fatos?

Nem sempre. Geralmente é. As me-mórias geralmente são verdadeiras. Porém, construímos muitas memórias falsas ao longo dos anos. No momento em que a memória fica guardada, pas-sa a poder se misturar com outras me-mórias. É comum uma pessoa de certa idade misturar pessoas e nomes.

Para que pudéssemos ilustrar o processo da memória, seria correto dizer que a memória tem aquele de-terminado espaço e para que novas memórias venham surgindo, algu-mas têm que ser apagadas?

Em parte, sim. Só que o espaço é enorme. As memórias são feitas por sinapses. Existem 100 bilhões de neu-rônios e cada neurônio faz sinapses com outros mil ou 10 mil. São muitís-simos. Então uma memória que ocupe um espaço de, sei lá, vários milhões de sinapses, é pequeno em relação ao espaço total disponível.

Existem fatores que podem esti-mular a perda precoce da memória?

Sim. Problemas de alimentação, a falta de leitura, a falta de estímulo. A memória, como toda função cere-bral, funciona melhor quanto mais utilizada. Se não usamos os músculos da perna, ela atrofia. Por isso se reco-menda atividade física. A memória é a mesma coisa. E a melhor forma de exercitar, e isso já está muito bem estudado, é a leitura. Isso eu posso de-monstrar com muita facilidade.

Faça-o, por favor.(Pega uma folha com o desenho do

neto, onde está escrito o nome Francis-co). Vamos ver essa palavra. Começo a ler e o meu cérebro lê a letra F. Ime-diatamente é feito um scanning pelo cérebro de todas as palavras que ele conhece com a letra F. Francisco, Fer-nando, Fernanda, Francisca, feliz, fa-moso... Essa atividade é imensa. Usa muitíssimo os neurônios, exercita. Instantaneamente depois, lê-se a letra R. E a lista anterior será apagada e será feito um novo scanning de todas as pa-lavras que começam com FR. Cada vez se faz um inventário novo. E cada um desses inventários exige muito traba-lho, muito exercício de muitos neurô-nios. Exercita toda a memória. Assim com cada letra seguinte. E aí chuta e acerta: Francisco. Lemos muito por chute. Arriscamos interpretações.

O que as pessoas podem fazer para melhorar a memória, além da leitura?

Além da leitura? Ler mais. Não tem nenhuma outra atividade, nenhum jogo, muito menos palavra cruzada. Não tem nada que chegue perto do simples fato de ler. Aquela pessoa que fala que ler é chato, não sabe como vai ser chata a vida dela sem memória.

Uma das suas linhas de pesquisa se refere às alterações da memória como envelhecimento normal. Isso é algo natural? É uma tendência acontecer com as pessoas?

É tendência acontecer com todos os animais. Todos nós perdemos neu-rônios, perdemos células em geral. Na medida em que ficamos mais ve-lhos, morrem mais neurônios. Nesse momento em que conversamos aqui, devo ter perdido mil e vocês talvez 500 neurônios cada uma. Isso é parte da vida. Isso explica a lentificação da memória com a idade. Outro aspecto é que a quantidade de memória passa a ser cada vez maior. E não é fácil para a mesma máquina, agora com menos células, lembrar-se de mais coisas.

E na Doença de Alzheimer, como se dá essa perda de memória?

Na Doença de Alzheimer a perda é muitíssimo maior e é causada por lesões. Lesões no aparelho sinteti-zador de proteínas. Tem duas prote-ínas que ele utiliza que se chamam beta amiloide e proteína tau, que são produzidas em excesso pelas células que desenvolvem Alzheimer. Das do-enças degenerativas, para mim, Al-zheimer é a mais grave delas, porque acompanha uma enorme desper-sonalização. Começa, em certo mo-mento, por não lembrar quem são os filhos ou os amigos mais próximos. Perde os dados guardados no arqui-vo “meu filho, fulano de tal”. E isso é grave. E pode chegar a ser terrível no final, quando a pessoa nem da lin-guagem se lembra. Quer água e não pode pedir, não sabe como se chama aquilo que quer pedir. É diferente da velhice. Na Doença de Alzheimer a degeneração de determinado grupo celular causa uma perda grande e mais rápida.

E o senhor, que pesquisa e enten-de tanto de memória, como conside-ra a sua memória?

Mais ou menos, não é nada do ou-tro mundo (risos). Depende. Quanto mais a uso mais me lembro. Quanto mais carga emocional tem, mais me lembro, claro. É, minha memória deve ser mais ou menos normal.

Tínhamos sugestões de pau-ta parecidas e por isso fize-mos juntas. Entre a busca por novos cases, aquele que já havia confirmado morreu. Eis que surge o grande Iz-quierdo para dar vida e peso a nossa matéria. A conversa que tivemos com ele nunca sairá da memória.

JONARA RAMINELLIREPORTAGEM

VANESSA COSTAREPORTAGEM

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Gols, ídolos, derrotas, vitórias e, de repente, um vácuo que predomi-naria durante cinco anos no Estádio Joaquim Vidal. Uma época em que a cidade orgulhava-se em ser repre-sentada pelo vermelho e branco. Sem o barulho do estufar das redes e das manifestações vindas das ar-quibancadas, uma torcida sofre com o silêncio de um clube quase cente-nário que levava o nome da cidade pelos gramados Estado afora.

Como personagem dessa história, Jacy Oliveira da Rosa, “Nega Véia”, 75 anos, ex-jogador, treinador e di-rigente do juvenil, lembra da partida contra o Nacional de Porto Alegre ocorrida há 54 anos, onde enfren-tou uma lenda do futebol brasileiro, Tesourinha. “Não acreditava que estávamos no mesmo campo, não distinguia se era sonho ou realidade. Um jogador comparado à Garrincha na minha frente e eu com o dever de pará-lo. Em um único lance, ele driblou três jogadores, eu inclusive, para dentro com o pé esquerdo e com o direito tocou lá no ângulo”, revela, com um sorriso de quem nunca se desprendeu do futebol. O placar foi 7x4 para o Nacional.

Uma arbitragem equivocada oca-siona desfechos imprevisíveis. O ex-zagueiro lembra-se do jogo contra o Cruzeiro de São Gabriel. Ao final da partida, a torcida se dirigiu à Rádio Cachoeira para linchar o árbitro. Com

a possibilidade, Altibano Sávio, de-legado da federação, encontrou uma alternativa. Ainda não existia a Pon-te do Fandango, para sair da cidade era preciso ir de barca até a localida-de do Seringa, proximidades da BR-153. Então, Sávio avisou a delegação cruzeirense para que o esperassem lá, que ele mesmo levaria o árbitro escondido no carro para embarcá-lo com o time. “Nosso técnico, Humber-to Guidugli, ouviu esse trecho da con-versa e, para melhorar o ambiente do vestiário, se dirigiu à janela, e come-çou a exclamar: ‘Vão matá-lo, não fa-çam isso. Estão pisoteando-o. Fomos roubados, mas ele não merece isso!’ E quando nos dirigimos à janela, ele nos impedia de ver a atrocidade. Na-quele momento, nos sentimos vinga-dos”, reitera. Era tudo mentira, claro.

Considerado pelo Guiness Bra-sil 2009 como o maior historiador do futebol amador do país, Sérgio Cláudio pesquisou as origens de 1175 clubes amadores, sendo 145 de Cachoeira do Sul. Médico vete-rinário aposentado, lembra-se da comemoração realizada na vitória por 2x1 sobre o Grêmio em 1965, em que jogadores, familiares e tor-cedores reuniram-se na Sociedade Rio Branco numa festa animada ao som de bolero pelo Conjunto João Roberto. “Nestas ocasiões, a cida-de ficava ornamentada com as co-res do clube, a alegria e o orgulho

ficavam estampados nos rostos dos cidadãos”, diz.

Na época em que naftalina e ge-mas de ovos eram usadas nas mas-sagens e a troca de numeração da camisa era uma forma de fugir da forte marcação, pequenos detalhes, como a simples mudança da cor da bola, faziam toda a diferença. “Em um clássico “Gua-ca”, o centroavante do Guarani, Gabriel Choaire, míope, sofria com a cor escura da bola, mas, desde o instante em que a bola come-çou a ser pintada de branco, passou a enxergá-la melhor, virou goleador e grande destaque da região”, comenta.

Delegado de polícia aposentado e ex-presidente, Roque Etges, 74 anos, acredita que para fazer futebol é pre-ciso apoio popular, amor à camisa e entusiasmo. O ex-dirigente lembra que a soma dos três fatores levou o clube à elite do futebol cachoeirense em 1975 . “Enxergamos um mar de carros a nos esperar na Ponte do Fan-dango. O centro da cidade estava lota-do, não conseguíamos entrar na sede do clube, então fomos carregados por cima pela multidão. Foi a maior re-cepção ocorrida em Cachoeira.”

A saudade talvez deixe de ser sau-dade a partir do segundo semestre deste ano, quando o alvirrubro dis-putará a série A-2 do Gauchão em sua volta ao profissionalismo. Enquanto a bola não rola novamente, os torce-dores sonham com dias de glória.

Tempo de glória e bola na rede

O passado do Cachoeira Futebol

Clube ainda provoca saudades em seus

torcedores

Lembro-me de assistir aos jo-gos das populares e, por um rádio de pilha, acompanhar um time que me ensinou que a paixão é o melhor combustí-vel para as dificuldades.

MAURÍCIO BESKOWREPORTAGEM

Jacy é remanescente do tempo em que zaguei-

ros jogavam duro, sem serem desleais

MAURÍCIO BESKOW

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Carlos*, 52, possui inúmeros moti-vos para ser banal e rancoroso. Mas, hoje, está focado na vida e cheio de es-peranças. Ele é um dos 535 apenados do Presídio Regional de Santa Cruz do Sul. Talvez o mais antigo deles, pois entrou lá jovem, com 26 anos. Terceiro filho mais novo entre 12 irmãos, mo-rava com sua família em Vale do Sol. Desde os 7 anos, Carlos e os irmãos trabalhavam em casas de família como agricultores, pois os pais não ti-nham condições de sustentar todas as crianças. A mãe era faxineira e o pai, ‘’um vagabundo alcoólatra’’, como ele mesmo descreve.

Nunca foi à escola e pouco conhe-ceu sobre limites e educação. Sempre foi dono de si. Saiu aos 9 anos de casa, por fome e em busca de trabalho. O destino traçou no tempo uma vida de amargura e pobreza no coração, na alma e no olhar de Carlos.

O único cristal de vidro que Carlos nunca deixou quebrar foi a paixão pelas peladas. Por curiosidade, pegou um ônibus até Santa Cruz do Sul e foi assistir a um treino da equipe do Fu-tebol Clube Santa Cruz. O menino de olhos atentos e encabulado foi cha-mado ao campo.

– O que está fazendo aqui? Pergun-tou o treinador da equipe juvenil.

– Eu vim olhar, gosto de futebol.E foi assim que Carlos deu o pon-

tapé inicial da sua carreira como go-leiro: um sonho sincero, em troca de uma chance.

Bom de bola, bom de luta e bom de cama. Assim, Carlos se descreveu ao conquistar o sucesso nos gramados.

– Chovia mulheres. Não sei? Todas me queriam.

Na volta para casa, após um treino de futebol, Carlos ouviu atrás da porta uma conversa entre a irmã e a namo-rada. Escutou da boca de sua garota que não era homem o suficiente para ela. O sangue subiu à cabeça e ele es-tuprou a própria namorada.

A falta de juízo lhe custou 44 anos, nove meses e cinco dias de pena. Car-los foi enquadrado em vários artigos, entre eles, abuso sexual e ameaça de

Memórias de um homem que passou mais tempo de sua

vida preso do que em liberdade

morte. A falta de lucidez do ato, segun-do ele, foi fruto do passado, pois, na in-fância, a violência sempre fez parte de sua rotina. Não foram uma nem duas vezes que viu suas irmãs se prosti-tuindo em troca de dinheiro.

Nos primeiros anos de confinamen-to, Carlos confessa que levou na brin-cadeira. Até o quarto ano de prisão, ar-quitetou fugir com outros detentos e o fez. Afinal, o muro da penitenciária era o seu maior inimigo. Era o muro que o separava de sua liberdade. Entretanto, depois de 9 anos enclausurado, o muro passou a ser somente um muro e ele, parte da instituição. Não entende até hoje como está vivo, como suportou as agressões dos outros presos e a solidão que sentia na cela.

Os anos atrás das grades fizeram com que Carlos perdesse a noção de tempo e de espaço. Na Rua Marechal Floriano, em Santa Cruz do Sul, o que antes era o bar de um amigo, hoje é um posto de gasolina. As coisas mudam em duas décadas e, agora, Carlos pou-co reconhece da cidade. A única coisa que não mudou em vinte anos foi a paixão pelo futebol.

O esporte lhe deu tudo, mas tam-bém lhe tirou. Para quem nunca aprendeu regras e educação, o destino encontrou na prisão, uma forma de ensinar limites. Assim como fazia nos

gramados na década de 70, o goleiro agarrou a oportunidade de ressocia-lização como se fosse a última jogada antes do apito final. O futebol, que foi o grito de independência de Carlos, hoje é o grito de esperança.

Em 2012, Carlos respira duas vezes, conta até dez e pensa antes de dizer ou fazer. Não age mais por impulso ou rancor. Durante as oito horas diárias de trabalho na fábrica de móveis do presídio, desempenha a função com o maior cuidado. Respeita os colegas e capricha no acabamento dos pufes. Es-pera, ansioso, pelo dia em que a assis-tente social da instituição entrará pela porta de seu quarto no albergue e dirá:

- Vem Carlos, você vai trabalhar na equipe de futebol do Santa Cruz.

Depois de tantos anos preso é que a vida passou a ter sentido. O destino tratou de explicar as razões dos fatos e as novas vivências deram conta de semear valores bem diferentes dos antigos. As memórias de quem viveu a vida atrás das grades refletiram no significado da existência. Carlos percebeu que é o próprio ser humano quem dá sentido à vida e que sempre há uma segunda chance.

*Carlos: nome fictício do apenado do regime semi-aberto do Presídio Re-gional de Santa Cruz do Sul

Da ascensãoao fracasso

Brinquei pouco de boneca e muito de Lego. Juntar peças para formar objetos era um desafio, assim como a repor-tagem, uma reflexão sobre o significado da vida.

VANESSA SCHULER

REPORTAGEM

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ILUSTR

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IELA MELLER

Augusto Cezar, 51 anos, não esquece

a viagem, a canção, o programa

Lembrou do Chacrinha?E do seu programa, quando ele

jogava bacalhau para o público?Não lembrou do bacalhau?Mas lembrou das moças que

dançavam no programa, as “Chacretes”?

Abelardo Barbosa, o Chacri-nha, estreou na televisão em 1956, com o programa Rancho Alegre, na TV Tupi, na qual come-çou a fazer também a Discoteca do Chacrinha.

Em seguida foi para a TV Rio e, em 1970, foi contratado pela Rede Globo, onde chegou a fazer dois programas se-manais, Discoteca do Chacrinha e A Buzina do Chacrinha, onde apresentava calouros, distribuía abacaxis e pergun-

tava para a plateia: “- Vai para o trono, ou não vai?”.

Dois anos depois, Abelar-do voltou para a Tupi. Em 1978 transferiu-se para a TV Bandei-rantes e, em 1982, retornou à Glo-bo, onde ocorreu a fusão de seus dois programas num só, o “Cassi-no do Chacrinha”, que fez grande sucesso nas tardes de sábado.

O consagrado comunicador faleceu em 30 de junho de 1988,

deixando imagens, fotografias e muitos admiradores da sua trajetória. Com seus programas fez com que singelos artistas como Augusto Cezar divulgassem seu trabalho, além de promover venda de discos e con-tratos para shows.

Minha memória falhou no dia da reunião de pauta. Se não fosse o lembrete da repórter Leticia Pereira, esta matéria não estaria na edição do Jor-nal Unicom.

Lembranças do Velho Guerreiro

Depois de apresentações no “Clu-be do Bolinha”, viajo agora para São Paulo para cantar no palco do “Cas-sino do Chacrinha” no ano de 1985. Ainda sou jovem, estou com 24 anos e este é meu terceiro disco. Cinquen-ta mil cópias vendidas, com distri-buição nacional pela Polygram.

Programa ao vivo. Canto Na hora do banho para todo Brasil. Essa é a primeira vez que estou ao lado do Chacrinha, dividindo palco com Sid-ney Magal e Crystian & Ralf. Acos-tumado com Cachoeira do Sul, já morando em Porto Alegre, mas nada perto de São Paulo. Outras vezes cantei nas rádios Globo e Tupi, mas agora é a minha imagem que está no ar na Rede Globo, na tarde de sábado.

Quem banca minhas viagens é a gravadora Acit. Meu contrato com ela já rende três discos. O primeiro é uma regravação do clássico Manhã de amor. Já o segundo Amor primeiro, e este terceiro, Na hora do banho, faz com que todas as “Chacretes” dancem minhas músicas. Falo da Índia Ama-zonense, Sonia Rangel, Rita Cadillac, Rose Cleópatra, Mara Prado, Sandra Veneno, Regina Polivalente, Leda Ze-ppelin, Kátia Pavão, Fátima Boa Via-jem, Gracinha Copacabana, Gracinha Portelão e Chininha. Elas arrancam suspiros de muitos telespectadores.

Comecei a carreira com 21 anos. O gosto pela música nasceu em casa. Minha família toda “bate” um violão-zinho. Rodei o país. Foram dias de via-

gens, shows, participações em progra-mas de TV. Já estive na Bandeirantes com as festejadas “boletes”, no progra-ma apresentado por Édson Cury (Boli-nha). Lembro da belíssima Loraina e da “bolete que nunca sorria”, Zulu.

Década de 80. Viajo sozinho, nenhu-ma câmera fotográfica na mala. Meu nome de batismo é Cezar Augusto, mas há outro cantor com este nome, por isso resolvo ser o cantor do que muitos cha-mam de estilo brega, Augusto Cezar. Parece piada, mas como vender discos sem a mudança de nome?

Hoje a única lembrança são os LPs, antigos bolachões de vinil, além de ter guardado as memórias de uma época de ouro. Fotos não tenho, mas o suces-so, este guardarei para sempre.

GABRIELA MELLERREPORTAGEM

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VIVIANE HERRMANN

O dia em que estive no Chacrinha

“Como faço para fotografar com temporizador?” e “O sinal do flash, dentro de um círculo e com um traço na diagonal, diz o quê?” Essas foram algumas das típicas perguntas de um senhor de 85 anos, Guilherme Stockey, meu avô. Recebi estas dúvi-das em seu segundo e-mail, intitula-do de Help II. Na mensagem anterior, continha uma lista de questiona-mentos que o vovô internauta ainda não tinha desvendado em seu novo “brinquedinho”, uma câmera foto-gráfica semiprofissional.

O seu Stockey, além de gostar de novas tecnologias, é um amante das redes sociais. Leitor assíduo de jor-nais diários, expectador de telejor-nais e apaixonado por palavras cru-zadas. Mas se engana quem acha que ele sempre teve esta vida tranquila, de sombra e água fresca. O octogená-rio é filho de colonizadores alemães. Seus pais passaram por grandes di-ficuldades até fixarem moradia no Brasil. Em busca da paz e fugindo de uma Alemanha em ruína, devi-do a Primeira Guerra Mundial, eles partem da cidade de Hagen, capital da Westfália, para o estado gaúcho. O vovô conta que o lote de terras que seus familiares compraram era de mata virgem e os animais selvagens eram seus vizinhos mais próximos.

Desde cedo, ele conheceu na pró-pria pele o significado das palavras “lida, suor, cansaço físico e deter-minação”. Trabalhou como leiteiro e com o pequeno salário que recebia, custeava seus estudos. Concluiu o Curso Técnico Agrícola. Mas, ele que-ria mais e desejava mais. Por isso, fez o concurso para Fiscal da Carteira de Crédito Agrícola e Industrial (CRE-AI) do Banco do Brasil e foi nomeado para atuar em Cachoeira do Sul.

Sua aposentadoria veio há 30 anos. Entretanto, o vovô não queria descan-sar. Resolveu ser professor do curso superior de Economia da Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Administrativas de Cachoeira do Sul. E por falar em graduação, ainda quando era aluno de Economia, havia uma colega para lá de especial em sua turma. Era uma de suas filhas, a An-nelise, que cursou Ciências Contábeis. Como os cursos tinham disciplinas em comum, muitas vezes se encontra-vam na mesma sala de aula. Ambos foram diplomados no mesmo dia. Uma emoção e tanto, para um senhor que estava beirando os 60 anos! Inquieto, o vovô não parou por aí e fez especia-lização na área.

Na gaveta dos diplomas, ele tem guardado o de Técnico Agrícola Es-pecializado em Pecuária, Economis-

ta, Pós em Economia pela PUC (RS) e a Especialização em Curso Basic, também na PUC. E na “cuca” do se-nhor Stockey, ele domina a língua alemã e a espanhola, lê e entende o francês e o inglês, aprendidos por meio de muita leitura, sem auxílio de professor ou curso. Um verdadei-ro autodidata.

Realmente, a vida deste senhor foi e é bem agitada, só pelos seus ho-bbies podemos ter uma noção: criou pombos-correios, colecionou selos, foi chefe escoteiro e sócio do Lions International, é radioamador, e na época de solteiro, foi muito namora-dor. Hoje, se dedica à internet, às re-des sociais e às suas viagens. Faltou citar seus dotes culinários: quando a família está reunida, ele vai para a cozinha e prepara um prato mais delicioso que o outro. São receitas que só de lembrar dão água na boca. Como o galeto, que só poderá ser ser-vido acompanhado pelas polentas preparadas pela vó Helga. Mas a lim-peza da cozinha é tarefa das netas e filhas, que não mostram nenhuma empolgação com tamanha pilha de louças que as esperam na pia.

Como ele mesmo diz, o otimismo é a regra de sua vida. Será que foi por isso que conseguiu vencer tantos obstáculos e com tamanha energia?

Memórias de um vovô internautaAos 85 anos,

Guilherme Stockey é exemplo de força de

vontade, coragem e otimismo

Meu avô é uma daquelas figu-ras que sempre têm histórias para contar. Após escolher-mos a temática do Unicom, Memórias, logo lembrei do vô Guilherme e seus causos.

DAIANA CARPES

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DAIANA STOKEY CARPES REPORTAGEM

O peso das lembranças e o vazio da saudade

Enquanto unslembram com

carinho, outros preferem esquecer

para aliviar a dor

Para compor a matéria, me-tade razão, metade coração.Sem essa de não se envolver! É importante a fonte perceber que você se importa, mas sem perder o foco.

VANESSA KAEMPFREPORTAGEM

Tudo o que julgamos relevante um dia, de alguma maneira fica guardado na memória. Às vezes, mesmo sem querer, somos pegos revirando mares de lembran-ças sem fim, buscando reencontrar momentos que já se foram e não voltam mais. A situação é particular-

mente complicada quando aquele que partiu é um ir-mão ou um filho. Nestes casos, a dor toma dimensões desproporcionais. É o que contam Elmes Edenir do Nascimento, 37 anos, e Mara Pante, 52. Para eles, me-mórias é tudo o que resta.

Ainda que tímido, um sorriso escapa no canto da boca de Mara Pante, 52 anos, ao lembrar o filho Nícolas. No início da conversa, ela recorda os olhos verdes do menino e elogia: “Eles brilhavam, ele sorria com os olhos’’. Dos três filhos, Ní-colas era o mais próximo e parecido com a mãe. O parceiro de aventuras deixa de lembrança grandes momentos.

Os instrumentos, dispostos por todos os lados da casa são, além de equipamen-tos necessários à profissão, uma paixão compartilhada pelos irmãos. Com o olhar vago e imerso em um tempo distante, não foram necessárias lágrimas para eviden-ciar a falta que Jodenir faz à vida do irmão, Elmes Edenir do Nascimento, o Edinho.

‘’Vivo uma vida de bêbado, sempre anestesiado, tentando não pensar no que aconteceu.’’ São muitas recordações de uma vida juntos, onde inclusive as brigas e bate-bocas abrem espaço para a sauda-de. O acidente que levou Jodenir do Nas-cimento, 22 anos, ao óbito, ainda é uma incógnita na vida da família.

Noite de sábado, 15 de outubro de 2005, por volta das 19h20, o telefone de Edinho toca. Edinho é informado sobre o acidente de Jô e a motocicleta Honda Bis, na Aveni-da Paul Harris. Já no hospital, vê o irmão pela última vez em vida, e se recorda da

briga que tiveram na noite anterior. Briga feia, se não a mais feia que já haviam tido. O irmão teve morte cerebral.

Uma fuga desesperada para Austrália frustrou qualquer tentativa de apagar as lembranças e os sonhos a dois, interrompidos naquela noite. O mistério do acidente nunca foi re-solvido. Nenhum culpado, nenhu-ma explicação sobre o ocorrido.

Hoje casado, com dois filhos, Edinho vê neles traços que lhe fazem lembrar diariamente do irmão. Os trejeitos de Iago, o filho mais velho, são muito se-melhantes aos de Jô. As brigas entre pai e filho, a risada. Tudo faz lembrar. A música, atividade diária na vida de Edinho, às vezes se faz impossível de ser tocada, ar-ranca lágrimas e transborda uma saudade que nunca terá fim.

Nicolas sentado no colo da mãe, Mara, ao lado dos irmãos

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A situação costurada pela vida, no dia 7 de março de 2012, ficará para sempre marcada nas pessoas mais pró-ximas. Quando voltava para a casa do pai, com quem mora-va, Nícolas sofreu um mal súbito e foi acudido por pessoas que passavam pelo local, na rua Félix Hoppe. Sem qualquer documento de identificação, foi internado em coma sem que a família fosse avisada. Naquele dia, navegando por um portal de notícias da região, a namorada do outro filho de Mara se deparou com as características do cunhado divulgadas no site. “Tudo aconteceu muito rápido.” No dia seguinte, ao meio dia, Nícolas, 20 anos, faleceu, diagnosti-cado com leucemia mielóide M3.

Os jogos do time do coração, o Internacional, paixão divida por mãe e filho, hoje já não têm a mesma graça. As aventuras de rapel e escaladas deixam agora de ser tão divertidas e desafiadoras. A vida tratou de propor à mãe o maior desafio que ela poderia enfrentar.

O barulho das sirenes de ambulância remete diaria-mente a perda de Nícolas. Mesmo assim, Mara prefere lembrar dos bons momentos que teve a oportunidade de desfrutar ao lado do filho, das risadas, do abraço. Sem falar nos olhos verdes. Ah, os olhos, que faziam parte de seu sorriso.

“Resta uma lembrança boa”

“Não há distâncias suficientes”

ARQUIVO PESSOAL

A janela está fechada, mas posso ver entre as frestas que o sol ainda não despertou. A noite é silenciosa no terceiro andar des-se prédio. 5h10, anuncia o relógio de pulso que deixara ao lado da cama. O sono me abandonou. Teria a enfermeira aplicado a dose correta do medicamento?

Adriana. Os pensamentos talvez sejam os únicos a não me deixarem. Eu sinto seu doce perfume, vis-lumbro seus belos olhos castanhos e consigo até mesmo ouvir sua voz. Voz rouca, dos cigarros que fumava compulsivamente. As lembranças me fazem pensar. Por que não havíamos fica-do juntos?

Talvez fosse a nossa imaturidade. Em-bora, é verdade, Adriana problematizasse o relacionamento com o meu temperamento. “Você nasceu com a lua em sagitário, Mar-cos.” Eu fingia que aquilo fazia algum senti-do e sentenciava a discussão com um beijo. Até mesmo a astrologia faz sentido quan-do se ama.

Ainda é escuro na rua. Por que haví-amos terminado? Creio que um dia ela se cansara do meu silêncio. Éramos bons amantes, é verdade, mas não nos entendí-amos. “Você não compreende, Marcos, mas você é meu inferno astral. Nunca poderia dar certo.” Outras amantes surgiram, mas nenhuma me fez esquecer aquele belo sorri-so. E aquela voz, rouca de cigarros.

Minhas pernas doem. Não virá a enfermei-ra fornecer os medicamentos da manhã? Al-guns sons surgem na rua, ainda tímidos, mas já deixam o ambiente um pouco mais afável. O quar-to é mais alegre durante o dia, quando é possível ou-vir os sons da cidade, com seus carros e caminhares apressados das pessoas.

Talvez pudesse falar com Flávio quando o dia chegasse, eu penso. Mas ele não iria atender às minhas ligações. O apa-relho móvel iria mostrar quem ligava e ele fingiria estar ocupa-do, atento aos cálculos que dispunham de toda a sua atenção. Que assuntos ele poderia ter para falar com seu velho pai? Não costu-

mávamos nos falar, afinal.Durante muito tempo eu me esquivara de minhas responsa-

bilidades paternais. Coisas que, afinal, eram fatigantes quando o pequeno Flávio requeria de minha atenção. Estava muito

mais interessado em Sônia, nossa jovem e bela vizinha. Como eram belas aquelas fartas coxas. Tão linda fica-

va em seu vestido azul, à francesa, roubando para si os olhares dos homens da rua. E de algumas mu-

lheres também, é verdade.Também havia Carmen, a doméstica. Mas

com ela os momentos eram mais raros, pois não era fácil manter a minha esposa longe de casa. “Miriam, você não vai ao chá na casa de Margaret?”. E Miriam se produzia para o en-contro na casa das amigas, feliz por ter um marido tão compreensivo. “Cuide bem dos meus meninos”, advertia Carmen. E ela cui-dava, de fato.

Um dia cansou de fingir que não sa-bia das Sônias, das Carmens e de todas as outras mulheres que despertavam a atenção do marido. Deixou-me, dizen-

do que havia encontrado finalmente um amor. Eu também havia, mas pensei que

seria maldade demais falar de Adriana em um dos raros momentos em que ela expunha

seus sentimentos.O pequeno Flávio viveu com a mãe, é claro.

Pouco contato tivemos durante o seu cresci-mento. Lembro de ter ido a sua festa de forma-

tura. Não poderia esquecer a sua linda profes-sora de Português. “Sou Marcos Vinícius”, me

apresentei. Ela ficou encantada ao conhecer um jornalista tão proeminente. Bons tempos.

O dia começou, posso ver por entre as frestas da janela. Talvez eu ligue para o Flávio. Na minha idade,

não há de se temer os riscos. Talvez ele queira se despe-dir do velho pai. Talvez até Miriam venha me ver hoje. Ou

Adriana. Daqui a pouco poderei trocar algumas palavras com a enfermeira. Ela teria aplicado a dose correta do medicamen-to? Minhas pernas doem.

Pessoas que conheci, alguém que um dia fui

ILUSTRAÇÃO: AMANDA MENDONÇA

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O pediatra que sonhou com o museu

As memórias de Flávio Seibt, um dos

fundadores do museu de Venâncio Aires

Ao passar em frente do museu, em uma tarde qualquer, surgiu a ideia de contar estas memórias.

LUCAS SILVAREPORTAGEM

Recém-chegado de uma sessão de fisioterapia, em decorrência de problemas nos ombros, o diretor-fundador do museu de Venâncio Aires, Flávio Seibt, acomoda-se em uma alta cadeira retrátil. Na pare-de, quadros com retratos referen-tes ao prédio do museu. Ao lado di-reito da sua mesa de trabalho, uma estante abarrotada de publicações antigas. Seibt é um sujeito afável, comunicativo e de um bom humor que nem mesmo se afeta pelos cons-tantes toques de campainha.

Ao relembrar as histórias relati-vas ao museu, Flávio Seibt não es-conde o ar nostálgico. Parece mergu-lhar numa espécie de túnel do tempo e retornar aqueles dias gloriosos. Dias de sonhos que não pertenciam mais somente a ele, mas a todo povo venâncio-airense.

O pediatra aposentado conta que o seu interesse por antiguidades surgiu em uma manhã de sábado, que não sabe precisar exatamente ano e mês, após receber um reló-gio de corda do pai de um paciente como forma de agradecimento pela consulta. Desde então, começou a colecionar objetos antigos para, se-gundo ele, doá-los a um futuro mu-seu na cidade. Anos se passaram e o pediatra decidiu ceder a sala 13, do edifício Seibt, para concretizar o sonho do museu.

Lembra, com brilho nos olhos, da inauguração do museu na cidade, que aconteceu no dia 26 de outubro

de 1994. O evento contou com inú-meras pessoas. Mostrou, segundo Seibt, a necessidade de uma sede maior para acomodar o acervo.

Quando a possibilidade do museu de Venâncio Aires possuir uma sede mais ampla, parecia uma miragem. O então coordenador do departamento de museus, Flávio Seibt, ficou saben-do por intermédio de uma amiga que o Edifício Storck, situado no centro da cidade, estava à venda. Procurou o presidente do Núcleo de Cultura de Venâncio Aires, Lineo Felten, e suge-riu a ideia de comprar o prédio com a ajuda da comunidade. “Tínhamos um inconveniente, não possuíamos ne-nhum centavo em caixa”, conta Seibt.

Ele lembra que, após três reuni-ões com a família Storck, proprietá-ria do edifício de mesmo nome, ficou definida a forma de pagamento: a di-visão do prédio em 1398 CUBs (Cus-to Unitário Básico da Construção Ci-vil), com um prazo de três anos para a quitação total da dívida. A partir deste momento, a cidade presenciou uma grande campanha de arreca-dação financeira para a aquisição do edifício junto à comunidade da cidade. Com a possibilidade de po-der parcelar em até 24 vezes e com ampla divulgação dos veículos de comunicação do município, a campa-nha se tornou um sucesso.

As memórias daqueles tempos de engajamento popular em torno da compra do edifício Storck causam em Seibt sentimentos de saudade, alegria

e emoção. A história do museu e de Flávio Seibt se confundem. Há quase 20 anos trabalhando em prol do mu-seu, esbanja disposição, empolgação e orgulho ao falar do modelo de gestão comunitária, onde o acervo é prove-niente de doações, a entrada é franca e a compra do edifício foi realizada de maneira coletiva.

Com orgulho, ressalta o fato de o museu recentemente ter sido tom-bado pelo Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul (Iphae/ RS). Porém, não es-conde a sua indignação com o fato de não possuir, na cidade, e até mes-mo no edifício Storck, uma única placa, indicando a existência do museu no local.

Pai de três filhas, Seibt divide sua vida e a da família em antes e depois do seu envolvimento com o museu. Conta que após o início de suas ati-vidades no museu, aprendeu a falar alemão, língua de origem da família, aperfeiçoou o inglês e atualmente es-tuda francês.

Para o mês de setembro, uma folga na rotina diária de museu já está agen-dada: uma viagem para França, com o intuito de aperfeiçoar a língua do país e também visitar a filha e a neta que moram na “Cidade Luz”.

Este é Flávio Seibt, o pediatra que colecionava peças antigas e um dia so-nhou como um museu na sua cidade, e com ajuda da comunidade de Venâncio Aires, possibilitou à Capital do Chi-marrão um “museu de muitos donos”.

Flávio Seibt, destaca o caráter co-munitário da entidade

FOTOS: LUCAS SILVA

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Em 1953, Cachoeira do Sul olhava pela primeira vez para

um mito: o Cine Ópera Astral

Antes de começar a escrever eu já estava apaixonada pela pau-ta. Gosto muito de cinema e tam-bém guardo boas lembranças do Cine Astral. O difícil foi escrever tudo no limite estabelecido.

29 de janeiro de 1953. O projetor fabricado em Londres, o quarto a che-gar ao país, tomou vida às 15 horas para exibir a comédia musical Vênus, a Deusa do Amor. Na tela, a paixão platônica de um homem por uma es-tátua. Nas 1.060 cadeiras novas, a paixão dos telespectadores pelo ci-nema que abria as portas.

A construção do Astral teve início em julho de 1951. O prédio em estilo Art Déco encantou a cidade. “A facha-da, as janelas, tudo tinha aquele brilho de grande cinema”, lembra Cristiano Maxwell, 25 anos. A decoração ousada, em tons quentes, dava asas à imagina-ção. “A escada acarpetada era um peda-ço de Hollywood em Cachoeira”, brinca. Para Elza Pereira, 56 anos, o cinema era um lugar mágico. “Me encantei com as cadeiras estofadas, o tamanho da tela, a escada iluminada, a decoração.” José Esber, o Zé, 51 anos, se diverte ao falar do local. “A gente passava a sema-na inteira juntando garrafa e osso pra vender, pra garantir a bala Chita.” O prédio imponente era carinhosamente chamado de Palácio dos Sonhos.

Na década seguinte, a apresenta-ção do Palhaço Carequinha marcou o início das matinês infantis. Na década de 90, os baixinhos da Xuxa lotaram o cinema para ver sua rainha em Lua de Cristal. “Eu fui um deles”, admite Cris-tiano. Elza, professora aposentada, lembra dos alunos. “Levei várias vezes eles ao Astral.” A distância entre a es-

cola humilde e o cinema no centro da cidade não incomodava a professora e os alunos. “Íamos a pé, uma enorme fila indiana cantando e pulando na rua. Era uma festa. Muitos nunca ti-nham ido ao cinema.” Para os alunos, a emoção era a mesma. “Eu fui com a minha escola assistir ao Titanic. A cada dia uma turma diferente ia e a expectativa pra chegar a minha vez era muito grande”, lembra Cristiano.

Para os apaixonados por terror e suspense, o Palácio dos Sonhos tam-bém abria as portas e se tornava um pesadelo. Maria Marques, 58 anos, lembra com horror de sua primeira e única visita ao cinema. Foi a convite da prima Elza, que “mentiu que era um filme de amor”. “Imaginei um ro-mance, um conto de fadas. Só abri os olhos na hora de ir para casa”, recorda. “O noticiário tu assistiu”, brinca Elza, lembrando das notícias que antiga-mente passavam antes do filme. “Só!”, retruca a prima e as duas se perdem em boas lembranças.

O Canal 100, cinejornal fundado por Carlos Niemeyer, mostrava imagens “de gols do Flamengo, Fluminense e São Paulo”, lembra Zé. Entre as propagan-das, se destaca a Condor Filmes. “Antes da exibição do filme, aparecia um Con-dor. Aí todo mundo gritava: Schii, schi! E o pássaro sumia e aparecia o título do filme”. Para os que perdiam a sessão, a saída era gravar. “Meu amigo entrava com um gravador embaixo do casaco.

A gente gravava as pessoas conversan-do, as propagandas e principalmente a música que passava antes do filme”, coisa de adolescente, afirma ele, com olhar distante e saudoso.

Nos anos 90, sem emplacar ne-nhum grande sucesso, o Palácio dos Sonhos começa a ruir. Em 1993, o cinema entra em recesso e retorna, no ano seguinte, graças ao Clube de Cinema, iniciativa da comunidade cachoeirense para manter a sétima arte na cidade. Três anos depois, mais uma vez o Astral é ameaçado, mas consegue retornar em 1997. Em 99 o cinema reduz as sessões e deixa de ser diário. Em 2002 a direção aluga o primeiro andar do prédio e resume o cinema às 800 cadeiras da galeria do andar superior. Era o lugar preferido dos jovens. “Nunca assisti filmes no astral na plateia, sempre subia para o segundo andar que deixava a enorme tela na altura dos olhos”, lembra Fer-nanda Fernandes, 22 anos.

Em 2003, já cansado e sentindo o peso do cinquentenário, o Cine Ópera Astral encerra as atividades. “Até hoje me emociono com o prédio”, diz Elza. A arte perdeu a batalha para o progres-so. “A cidade na época tinha uma vida cultural fervilhante, rica. Hoje em dia não vejo isso”, lamenta Zé. No dia 29 de setembro, em sua última sessão, cerca de 100 crianças assistiram à animação Procurando Nemo. O Palácio dos So-nhos fechava as portas para a arte.

Memórias póstumas do Palácio dos Sonhos

RENATO FONTANARI THOMSEN

LETICIA PEREIRA

REPORTAGEM

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O ditado popular diz que fotografar não é apenas uma arte, mas sim uma paixão. E é essa paixão que foi passada de pai para filho na família Kuhn.

Tudo começou em 1895, quando o imigrante alemão Wilhelm Kuhn fixa-va moradia em Santa Cruz do Sul. Aos 18 anos, Kuhn tinha como hobby tirar fotos das paisagens de sua nova terra. Hobby este que foi passado ao seu fi-lho, Hugo Kuhn. Assim, percorreu mais uma geração e hoje quem atualiza e cui-da do acervo fotográfico da família é o

neto do imigrante, Luiz Hugo Kuhn, e o bisneto, Charles Guilherme Kuhn.

Luiz conta que sempre teve interes-se nessas fotos, mas por falta de tempo a paixão pela arte ficava para depois. Agora, com a aposentadoria, ele cuida das 5 mil imagens em preto e branco de uma Santa Cruz que poucos conhece-ram. E, com sua lente, revela paisagens que agora são coloridas.

Atualmente Luiz e seu filho produ-zem as fotos antigas de seus antepas-sados a partir do negativo original.

A história contada pelas imagens

A família Kuhn guarda na genética a arte de fotografar paisagens

santa-cruzenses Luiz: “A fotografia contamina”

DAIANA CARPES

DAIANA CARPES

ACERVO FOTOGRÁFICO DA FAMÍLIA KUHN

Pensar em memória é pensar em fotografia. E conhecendo a história da família Kuhn, nada mais justo do que publi-car isto na edição temática do Jornal Unicom.24

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DAIANA STOKEY CARPES REPORTAGEM

O que representa uma pessoa a uma comunidade? Depende do que ela fez. No Vale do Taquari, um equipamento é mais do que o pas-sado e a memória do seu criador. Ele hoje é presente de uma histó-ria quase centenária.

Henrique Uebel tinha um so-nho: construir uma peça única. O agricultor de poucas letras, nas-cido em 1906 em Linha Schmidt, interior de Estrela e hoje Westfá-lia, alcançou seu objetivo porque ficou doente. No início dos anos 1930, uma inflamação nas coste-las e três cirurgias o impossibili-taram de trabalhar. Foi ali que o projeto pensado teria a chance de ser executado.

Amante da música, Henrique Uebel aprendeu na adolescência sobre tons, notas, sinfonias e a sistemática de Bach (sim, o Bach famoso). O jovem foi pupilo do tio, homônimo de Uebel. O primeiro instrumento foi um bandoneon, principal peça numa orquestra de tango. A propósito, além das val-sas alemãs, o ritmo característico da Argentina sempre foi um dos seus favoritos. Ele acreditava ser possível harmonizar instrumen-tos de corda, sopro e percussão, além do piano, numa única peça. Com essas características tinha-se uma orquestra completa. Na sua cabeça, tudo era claro, mas como fazê-lo? Adolfo Hollmann, marceneiro de Linha Schmidt, foi a solução. No início relutante, nunca tinha feito nada do tipo, mas com a insistência de Uebel, se prontificou a ajudá-lo.

Uebel lembrou-se do Klavier-

zeihten Instrument, fabricado pelo tio. Daí surgiu-lhe a ideia de construir uma caixa, com cordas sobre uma prancha. Um piano, com um mecanismo para tocá-lo com os pés. Além do piano, com-pletava a peça um bandoneon, uma gaita de boca e um tambor. Levou cerca de quatro anos para a construção do conjunto e ensaiou mais um ano para tocar os quatro instrumentos. O corpo e a mente também tinham que ser sincroni-zados. Exercícios com os dedos dos pés e das mãos, além de ter muita concentração para coordenar me-lodia, ritmo e harmonia.

A primeira apresentação públi-ca foi em Porto Alegre, no centená-rio da Revolução Farroupilha, em 1935. Nos jornais, os repórteres o chamaram de “Homem-orquestra”. Foi ali que surgiu o apelido.

Nos anos 50, depois de já ter percorrido todo o Rio Grande do Sul, realizou apresentações na TV Tupi e percorreu algumas ci-dades alemãs. Desde a construção da primeira peça com os quatro instrumentos, até fechar os sete tocados simultaneamente (bando-neon, flauta, pratos, piano, pistão, violoncelo e gaita) foram 40 anos de aperfeiçoamento. Uebel com-pôs apenas uma música, uma val-sa alemã chamada Sonho de amor, ainda hoje executada por Ernivo Sulzbach, 80 anos, músico folclo-rista de Estrela e aprendiz do Ho-mem-orquestra.

Henrique Uebel faleceu em 1973 e no seu enterro um conjun-to de trombones tocou A valsa do adeus. Antes de morrer, fez a pro-

messa aos filhos Erno, Yris e Her-bert: quem conseguisse tocar seus instrumentos, os receberia de pre-sente. Isso não aconteceu até hoje.

Depois de mais de 30 anos de sua morte, a família e a comuni-dade resolveram que Henrique Uebel não deveria ficar apenas na memória de quem o conheceu. Em 1993, a prefeitura de Teutônia construiu o museu que leva seu nome, onde se encontra, hoje den-tro de uma caixa de vidro, a peça única do Homem-orquestra.

Em 2007, Ademar, filho de um primo de Uebel, escreveu um livro sobre a história de vida do músico, O Homem Orquestra. A primeira e única experiência de Ademar como escritor e justamente sobre algo que vem servindo como fonte de pesquisa para músicos interes-sados em aprender sobre sistemas, tons e melodias.

Já em 2010, Airton, neto de Ue-bel, funda o Instituto Henrique Uebel, com sede no município de Teutônia. Uma associação para promover a cultura e conservação do patrimônio artístico. Segundo seu presidente, a essência do IHU é a história de vida e o legado dei-xado pelo avô. Projetos culturais dentro de escolas, como o Música na escola e Jovem cantor, ambos desenvolvidos com crianças de Westfália.

Dessa forma, manter viva a memória daquele que foi chama-do por muitos de gênio e de louco, é manter viva uma história sem igual. O Homem-orquestra ainda não foi superado, seja na loucura ou na genialidade.

Homenagem ao Homem-orquestra“Aquilo que apresentou

foi simplesmente único” Jornal Die Rheinpfalz,

Alemanha, 1959

DÉBORA KISTREPORTAGEM

Sempre gostei de música e sou autoditada nos teclados. Isso me ajudou na construção da matéria.

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