Um Diario Do Ano Da Peste

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    A FICO FACTUAL DE DANIEL DEFOE

    Publicado em 1722, como relato de testemunha ocular s identificada no final dotexto pelas iniciais H. F., A Journal of the Plague Year uma narrativa ficcional sobre

    Londres durante o surto de peste bubnica no vero de 1665. Escrita na primeira pessoa porum narrador annimo e imaginrio (Daniel Defoe tinha quatro anos no ano da peste), otexto se apresenta como histria verdica, reconstruda a partir de dados e fatos concretos.

    Um dirio do ano da peste se diferencia de todas as demais abordagens da epidemiapor se tratar de uma obra ficcional que rene, organiza e contextualiza farta informao decredibilidade inquestionvel. Nesta, mais do que em qualquer outra das suas novelas,Daniel Defoe trama a narrativa fundindo fato e fico, atravs de minuciosa coleo dedetalhes. Ou seja, o autor emprega mtodos jornalsticos na fico, criando um primeiromodelo de narrativa objetiva, com muitas das tcnicas utilizadas at hoje na reportagemjornalstica, a dita primeira verso da Histria.

    O narrador da histria se limita a registrar as suas observaes e comentrios. Odesenrolar da ao determinado e conduzido pelo conflito entre as duas personagenscentrais: a peste atacando Londres de um lado, a cidade e seus habitantes resistindo aoataque do outro.

    O realismo e a preocupao informativa do texto tornam a obra, mesmo sendoficcional, um instrumento da maior eficincia para o estudo da propagao e controle dedoenas infecciosas no meio urbano. Um dirio do ano da peste tambm fonte deconsulta obrigatria para se entender o comportamento coletivo diante de uma calamidadesocial que cria um pandemnio na comunidade e ameaa a vida de cada um dos seusintegrantes.

    Neste sentido, Defoe empenha-se na exemplificao da irracionalidade dos homensfrente a um inimigo incontrolvel e invisvel. No processo, o texto deixa evidente que ossentimentos e reaes coletivas pouco mudaram do sculo XVIII para c. Da pestebubnica para a AIDS ou o dengue as epidemias mudaram, mas os povos continuam osmesmos.

    ODirio mapeia a disseminao da peste em Londres passo a passo, bairro a bairro,parquia a parquia, com contabilizao semanal dos mortos e uma exposio do alto custohumano da epidemia. Descreve as valas comuns, abertas para enterrar as pequenasmontanhas de mortos recolhidos pelas ruas da cidade, detalha os mais descabidos egrosseiros procedimentos mdicos, as supersties, simpatias, benzeduras, talisms, poesmilagrosas e o vasto instrumental teraputico, vindos tanto da sabedoria popular quanto daCabala ou bruxaria. Ainda registra os mais diversos nveis de sofrimento, da mortehorrenda das mes grvidas contaminadas execuo de 40 mil ces e 20 mil gatos, a fimde conter a transmisso da doena.

    Apesar da abundncia de ponto-e-vrgulas subordinando longas frases e do moralismoexcessivo caractersticos da escrita no incio do sculo XVIII, o livro mantm o prazer dotexto e o interesse do leitor, pela apurada manipulao dos fatos para surpreender e chocar.A acumulao de grande volume de dados e acontecimentos parece catica e malselecionada. A justaposio quase desconexa de estatsticas e incidentes mundanos, porm, intencional. Tem por funo aumentar a concretude da histria e sua verossimilhana aodepoimento espontneo e sincero de um autntico observador comum.

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    Estas sofisticadas artimanhas narrativas revestem o texto com o verniz da veracidade,despindo-o de qualquer pretenso literria.

    As anedotas e histrias de interesse humano, entremeadas com dados oficiais sobreo alastramento da epidemia nos quatro cantos de Londres, seriam apenas truques deimaginao para prender a ateno do leitor. Alm de deixar a histria mais convincente, o

    reaproveitamento de testemunhos verdicos d um valor acrescido de mercadoria aotexto.Com este estilo simples e direto, aparentemente tosco e pouco elaborado, Defoe busca

    despertar o interesse de um novo tipo de leitor, o cidado comum, que no freqenta oscrculos culturais, nem conhece os maneirismos intelectuais de seu tempo. Para isto, o textoinstrui enquanto entretm, incluindo vulgaridades e exageros alarmistas, assim comoinformaes de serventia prtica ou educativa para o homem da rua. Desta forma, Defoetambm antecipou os fundamentos da literatura popular moderna.

    Fico factual ou narrativa semi-histrica, Um dirio do ano da peste foi escrito em1721-22. Dois anos antes, o sensacionalismo jornalstico que cercou um surto de peste emMarselha, na Frana, despertou o interesse de Defoe pelo apelo comercial do tema. Aindaem 1720, publicou um panfleto compilado de outros autores, com medidas preventivascontra a peste, chamado Due Preparations for the Plague. Em seguida, Defoe partiu paraa criao do Dirio, sendo parcialmente inspirado naquele folheto e outros livros dapoca, que lhe serviram de fonte: as estatsticas das mortes causadas pela epidemia saramde Londons Dreadful Visitation, os procedimentos mdicos e tratamentos da doenavieram de Necessary Directions for the Preventions and Cure of the Plague e MedelaPestilentiae.

    A PESTE BUBNICA

    Infeco altamente transmissvel, causada pela bactria Yersinia Pestis, tambmconhecida comoPausteurella Pestis, que ataca o sistema linftico. A peste bubnica era adoena mais temida na Europa renascentista. Cerca de dez dias aps o contgio, d-se odoloroso inchao de gnglios linfticos do pescoo, axilas e virilhas, aparecendo a primeirangua, o bubo ou bubo.

    Esta primeira ngua sempre a maior e mais proeminente de todas. Em seguida,surgem outros bubes menores pelo corpo. Os sintomas mais comumente associados doena so dores de cabea, calafrios, febres, dores lombares, taquicardia, delrio evmitos. Na Renascena, s trs em cada dez contaminados conseguiam viver mais de umasemana depois da formao do primeiro bubo.

    Em Londres, a peste bubnica adquiriu propores pandmicas em 1665, matando17.440 dos seus 93 mil habitantes. De forma endmica, entretanto, a doena existia h maistempo nas docas da cidade, trazida por ratos de pores de navios estrangeiros. Acontaminao de seres humanos deu-se atravs destes ratos, de gatos e cachorros quecomeram ratos infectados e pelas pulgas destes animais. Apesar da crena popular, a gua eo ar no desempenharam qualquer papel na erupo ou disseminao da peste.

    Em Um dirio do ano da peste, a doena deixa Londres sbita e inesperadamente,feito um milagre, no final de 1665. Na verdade, a epidemia continuou em 1666, causando

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    UM DIRIO DO ANO DA PESTEDaniel Defoe

    Traduo de Eduardo S. San Martim

    Foi l pelo comeo de setembro de 1664 que eu e os meus vizinhos ouvimos emconversa corrente que a peste estava de volta na Holanda mais uma vez, pois j fora bemviolenta no ano de 1663, principalmente em Amsterdam e Rotterdam, onde, pelo quedizem, chegou entre mercadorias transportadas por navios da Turquia; uns diziam vindas daItlia, outros do Levante; tambm disseram que veio da Cndia, ou ento do Chipre. Deonde veio no interessava, todos estavam de acordo que a peste estava na Holanda outravez.

    Naqueles dias, no tnhamos coisas que eu ainda viveria para ver em prtica, como osjornais impressos para espalhar rumores e informar sobre os acontecimentos e paramelhorar as coisas pela imaginao dos homens. Notcias como aquela chegavam nas cartasdos mercadores e de outros que se correspondiam com o exterior e depois as divulgavamsomente em conversas. Assim, estas coisas no se espalhavam instantaneamente por toda anao como acontece agora. Parece, porm, que o governo tinha recebido um relatriocomprovando o fato e j promovera vrias reunies para estudar maneiras de impedir avinda da peste, mas tudo era feito muito discretamente. Por isso, os rumores nodemoraram a desaparecer e o povo foi esquecendo a coisa como algo que nos dizia muitopouco a respeito, e que espervamos no ser verdade. At o final de novembro, ou o inciode dezembro de 1664, quando dois homens, ditos franceses, morreram de peste em LongAcre, ou mais exatamente, l pelo fim de Drury Lane. A famlia com quem estavamhospedados tentou esconder o caso de todas as maneiras possveis, mas como aquilo foicomentado pela vizinhana, os secretrios de Estado tomaram conhecimento e sepreocuparam em mandar investigar. A fim de estabelecer a verdade com segurana, doismdicos e um cirurgio receberam ordens de ir quela casa fazer uma inspeo. Fizeramisto e, encontrando sinais evidentes da doena nos corpos dos dois mortos, manifestarampublicamente sua opinio de que tinham morrido de peste. Depois, o caso foi informado aopadre da parquia que o transmitiu ao Hall.l No boletim semanal de mortalidade, foiregistrado como de costume, desta forma;

    Peste, 2. Parquias contaminadas, 1.

    O povo mostrou grande preocupao com isto e o alarme comeou a se espalhar portoda a cidade, ainda mais porque, na ltima semana de dezembro de 1664, outro homemmorreu na mesma casa, com a mesma doena. Ento, ficamos tranqilos cerca de mais seissemanas, pois ningum morreu com sinais da infeco e foi dito que a doena desaparecera.Depois, acho que no dia 14 de fevereiro, morreu mais um em outra casa, mas na mesmaparquia e da mesma maneira.

    Esta morte chamou muito a ateno do povo para aquele canto da cidade. Emboracuidassem para manter isto o mais longe possvel do conhecimento pblico, com osboletins semanais mostrando um aumento de bitos acima do normal na parquia de StGiles, surgiu a suspeita de que a peste estava entre os moradores daquela zona da cidade eque muitos morriam com ela. Isto tomou conta da cabea das pessoas e poucas se

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    Alm disso, o povo notou, com grande inquietao, que os boletins de bitos emgeral aumentaram muito durante aquelas semanas, embora fosse uma poca do ano em queo nmero de mortos era normalmente moderado.

    O nmero habitual de enterros registrados nos boletins semanais era entre 240 e 300.O ltimo era considerado muito alto, mas, depois disso, vimos os boletins aumentando

    constantemente, como segue:Enterros AumentoDe 20 a 27 de dezembro 291 ...De 27 de dezembro a 3 de janeiro 349 58De 3 a 10 de janeiro 394 45De 10 a 17 de janeiro 415 21De 17 a 24 de janeiro 474 59

    O ltimo boletim foi realmente assustador, sendo o de mais alto nmero de enterrospor semanas desde a ltima epidemia, em 1656.

    Tudo isso, porm, passou novamente e, com o clima ficando frio e a geada quecomeara em dezembro continuando muito severa at perto do final de fevereiro,acompanhada por ventos cortantes mas moderados, os registros de bitos voltaram adiminuir e a cidade cresceu com sade e todo mundo comeou a encarar o perigo como tobom porque passou. S que, em St Giles, o nmero de enterros ainda continuava elevado.No comeo de abril, principalmente, estavam em vinte e cinco por semana at a semana de18 a 25, quando trinta foram enterrados na parquia de St Giles, sendo dois com peste eoito com febre tifide, que era considerada a mesma coisa. O nmero de mortos com febretifide tambm aumentou, sendo oito na semana anterior e doze na semana indicada acima.

    Isto assustou a todos outra vez e temores terrveis assaltaram o povo, principalmenteporque o clima estava mudando, aumentando o calor com a proximidade do vero. Nasemana seguinte, no entanto, surgiram algumas esperanas. Os boletins diminuram e onmero de mortos ficou em 388 no total, nenhum com peste e apenas quatro com febretifide.

    Uma semana depois, porm, voltou novamente e a doena tinha se espalhado paraduas ou trs parquias, a saber: St Andrews, Holborn, St Clement Danes e, para grandeaflio da city2, morreu um dentro das suas muralhas, na parquia de St Mary Woolchurch.Isto significa que foi em Bearbinder Lane, perto da Bolsa de Mercadorias. No total, foramnove mortos com peste e seis com febre tifide. Atravs de uma investigao, entretanto,foi revelado que o francs que morreu em Bearbinder Lane tinha morado em Long Acre,perto das casas contaminadas e se mudara com medo da doena, sem saber que a tinhacontrado.

    Isto foi no comeo de maio, o clima ainda temperado, instvel e bastante frio, e opovo ainda tinha algumas esperanas. O que os encorajava era que a city estava saudvel:todas as noventa e sete parquias enterraram apenas cinqenta e quatro mortos ecomeamos a acreditar que a peste ficaria s naquele canto da cidade, sem avanar mais,pois na semana seguinte, de 9 a 16 de maio, morreram trs, mas nenhum dentro de toda cityou liberties3. St James enterrou apenas quinze, o que era muito pouco. verdade que StGiles enterrou trinta e dois, mas, mesmo assim, apenas um morrera com a peste e o povovoltou a se tranqilizar. O registro geral de bitos tambm estava bastante baixo, pois, nasemana anterior, registraram-se 347 mortos e, na semana mencionada acima, apenas 343.

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    Continuamos com esperanas por alguns dias, mas s alguns, pois o povo no podia maisser enganado desta maneira. Inspecionaram as casas e descobriram que a peste realmente seespalhara por toda parte e que muitos morriam com ela todos os dias. Ento, todo nossoentusiasmo diminuiu e no dava mais para esconder. Mais que isso, rapidamentetranspareceu que a epidemia tinha se espalhado mais do que qualquer esperana de seu

    declnio. Na parquia de St Giles, atingira vrias ruas e vrias famlias estavam de cama,com todos muito doentes e, conseqentemente, no boletim de bitos da semana seguinte, acoisa comeou a se mostrar. verdade que havia apenas quatorze registrados com peste,mas tudo no passava de fraude e enganao, porque na parquia de St Giles enterraramquarenta no total e certamente a maioria morreu de peste, embora estivesse registrada comoutras doenas. Mesmo o nmero de todos os enterros no aumentando para alm de trintae dois e sendo s 385 o total de mortos, havia quatorze com febre tifide e quatorze compeste. Considervamos bvio que, no total, cinqenta morreram de peste naquela semana.

    O boletim seguinte ia de 23 a 30 de maio, com dezessete casos de peste. Mas osenterros em St Giles chegaram a cinqenta e trs um nmero assustador , dos quais snove registrados com peste. Numa inspeo mais rigorosa, porm, feita pelos juzes de paza pedido do Lorde Prefeito, foi descoberto que mais vinte morreram realmente de pestenaquela parquia, mas foram registrados com febre tifide ou outras doenas, alm deoutros escondidos.

    Estas coisas foram insignificantes perto do que aconteceria imediatamente depois. Oclima esquentou e, a partir da primeira semana de junho, a epidemia se espalhou de umamaneira pavorosa e os boletins subiram s alturas. Os itens febre, febre tifide e dentescomearam a inchar. Todos os que puderam esconder a doena o fizeram para evitar que osvizinhos se afastassem e se recusassem a conviver com eles. E tambm para evitar que asautoridades fechassem suas casas; mesmo que ainda no estivesse em prtica, isto eraameaado e o povo se aterrorizava s de pensar.

    Na segunda semana de julho, a parquia de St Giles, onde mais se espalhava aepidemia, enterrou 120. Embora os registros indicassem s sessenta e oito com peste, todomundo disse que foram pelo menos cem, calculando isso, como anteriormente, pelo nmerohabitual de enterros naquela parquia.

    At esta semana, a city continuou livre, sem que ningum morresse de peste, excetoaquele francs que mencionei antes, em todas as noventa e sete parquias. Ento, quatromorreram dentro da city, um em Wood Street, um em Fenchurch Street e dois em CrookedLane. Southwark estava totalmente livre, ningum tinha morrido naquela margem do rio.

    Eu vivia perto de Aldgate, a meio caminho entre Aldgate Church e WhitechappelBars, no lado esquerdo ou norte da rua. Como a doena no tivesse chegado neste lado dacity, nossa vizinhana continuava muito tranqila. No outro extremo da cidade, aspreocupaes eram grandes: as pessoas mais ricas, principalmente a nobreza e o senhoriodo oeste da city corriam para fora da cidade com suas famlias e criados de maneiraincomum. Isto era melhor observado em Whitechapel, quer dizer, em Broad Street, onde euvida. Na verdade, no dava para ver nada alm de carretas e carroas com mercadorias,mulheres, criados, crianas etc. Carruagens cheias de gente melhor de vida, escoltada porhomens a cavalo, todos com muita pressa. Depois, apareciam carretas e carroas vazias ecavalos de reserva com criados que, aparentemente, estavam voltando ou foram enviadosdo interior para buscar mais gente. Alm de incontveis homens a cavalo, alguns sozinhos,outros com criados, mas todos, em geral, carregados de bagagens e equipados para viajar,como qualquer um perceberia pela sua aparncia.

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    Isto foi uma coisa muito triste e terrvel de se ver, e, sendo uma cena que eu no tinhacomo evitar a contemplao da manh noite (realmente, naquele momento no havia maisnada para se ver), encheu-me de reflexes sobre o tormento que se aproximava da city e asituao infeliz daqueles que ficassem l dentro.

    A correria do povo foi tanta que durante algumas semanas no havia como chegar at

    a porta do Lorde Prefeito sem extrema dificuldade. Uma multido se aglomerava l paraconseguir passes e atestados de sade a fim de viajar, pois sem eles ningum obteriapermisso para cruzar as cidades beira da estrada, nem para se hospedar em qualquerpenso. Como ningum tinha morrido na city durante todo esse tempo, o Lorde Prefeitodava atestados de sade sem qualquer dificuldade para todos que morassem nas noventa esete parquias e tambm nas liberties.

    Esta correria continuou por algumas semanas, quero dizer, todo o ms de maio,aumentando ainda mais em junho, porque foi comentado que o governo estava por baixaruma ordem de construo de postos e barreiras para impedir as pessoas de viajar e que ascidades junto s estradas no permitiriam a passagem de pessoas vindas de Londres pormedo de que trouxessem a epidemia junto com elas. Logo no comeo, nenhum destesrumores tinha qualquer fundamento, a no ser na imaginao.

    Ento, comecei a me preocupar seriamente com minha prpria situao e como eudeveria agir. Com isso, quero dizer que tinha que decidir entre ficar em Londres ou trancarminha casa e fugir, como fizeram muitos dos meus vizinhos. Exponho meu caso particularmais detidamente porque sei que isto poder ser til queles que vierem depois de mim,caso tenham que enfrentar a mesma desgraa e tenham que, da mesma maneira, fazer suaescolha. Por isso, desejo que este relato lhes sirva mais como uma orientao para seus atosdo que como a histria do meu comportamento, visto que saber o que aconteceu comigopoder no ter o menor valor para eles.

    Tinha duas coisas importantes diante de mim: uma era levar em frente meus negciose loja, que eram considerveis e nos quais tinha investido todos os meus recursos nestemundo. A outra era a preservao de minha vida em to terrvel calamidade que, pelo queeu via, certamente atingiria toda a cidade. Por maior que ela fosse, no entanto, meus medos,talvez como os de outras pessoas, a apresentavam muito maior do que poderia ser.

    A primeira preocupao tinha grande importncia para mim. Meu comrcio era o deselas e como a maioria das minhas transaes no eram em loja ou negcios casuais, masjunto a mercadores comerciando com as colnias inglesas na Amrica, muito dos meusestoques se encontrava nas suas mos. Era solteiro, verdade, mas tinha uma famlia decriados que mantinha a meu servio, tinha uma casa, loja e depsitos cheios demercadorias. Encurtando, largar tudo como coisas que tm que ser abandonadas numasituao como esta (quer dizer, sem qualquer supervisor ou pessoa apta para serencarregada delas) seria arriscar a perda no somente do meu comrcio, mas das minhasmercadorias, e realmente de tudo que eu tinha no mundo.

    Tinha um irmo mais velho em Londres na mesma poca, vindo no muitos anosantes de Portugal. Aconselhando-me com ele, sua resposta veio em trs palavras, asmesmas que foram ditas em situao bastante diferente, a saber: Mestre, salvai-vos! Emsuma, era a favor de que eu me retirasse para o interior, como ele mesmo se decidira fazerjunto com a famlia; e ele me disse o que parece que ouvira no exterior: a melhor precauocontra a peste fugir dela. Sobre meus argumentos de que perderia meu negcio, minhasmercadorias e crditos, ele me confundiu bastante, dizendo a mesma coisa que euargumentava para ficar, ou seja, que entregar a Deus minha segurana e sade seria a maior

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    negao das minhas pretenses de no perder meus negcios e minhas mercadorias. Mas disse ele no seria mais sensato entregar a Deus o risco de perder teus negcios em vez deficar num momento de tanto perigo, encarregando tua vida a Ele?

    No podia argumentar que no tinha lugar algum para ir, com tantos amigos eparentes em Northamptonshire, de onde veio nossa famlia e, principalmente, porque tinha

    uma irm nica em Lincolnshire, querendo muito me receber e me cuidar.Meu irmo, que j tinha enviado sua esposa e as duas crianas para Bedfordshire e sedecidira a imit-los, me pressionou fervorosamente para que eu fosse embora. Termineiconvencido a satisfazer sua vontade, mas naquele momento no tinha como conseguir umcavalo. Embora seja verdade que nem toda a populao saiu da city de Londres, me arriscoa dizer que todos os cavalos o fizeram, porque, durante algumas semanas, dificilmenteencontrou-se um cavalo venda ou para alugar em toda city. Resolvi viajar a p com umcriado e, como muitos faziam, dormir ao relento. Levaramos conosco uma barraca militare, assim, ficaramos pelos campos, o clima estava bastante quente e no havia perigo desentirmos frio. Digo como muitos faziam porque, no fim, muita gente fez isso,principalmente aqueles que estiveram nos exrcitos durante a guerra que terminara nofazia muito tempo. Preciso dizer que, falando de causas secundrias, se a maioria do povotivesse viajado assim, a peste no seria levada para dentro de tantas casas e cidades dointerior como foi, para grande prejuzo, a runa, na verdade, de uma enormidade de gente.

    Foi ento que meu criado, o que pretendia levar comigo, me abandonou. Assustadocom o crescimento da peste e no sabendo quando eu partiria, tomou outras providncias eme deixou. Assim, fiquei despreparado para aquela hora. E de uma maneira ou outra,sempre que estabelecia uma data para ir embora, era atrapalhado por um incidente ou outro,terminando em frustrao e novo adiamento. Isto me leva a contar uma histria que, deoutra forma, poderia ser considerada uma digresso desnecessria sobre estes imprevistosvirem do Cu.

    Menciono a histria tambm como o melhor mtodo que posso recomendar paraqualquer um nesta situao, principalmente se for algum com conscincia de suasresponsabilidades em busca de orientao sobre o que fazer. Objetivamente: manter osolhos atentos s predisposies peculiares do que ocorre a sua volta na poca e examin-lascom profundidade, para saber como se relacionam entre si e como se relacionam todasjuntas com a questo diante da pessoa. Ento, acho que se pode tom-las como intimaesdo Cu sobre o que seu dever inquestionvel fazer nesta situao. Refiro-me a ir emboraou ficar no lugar onde moramos quando visitados por uma doena contagiosa.

    Uma manh, enquanto matutava sobre estas coisas particulares e sobre nada chegarat ns sem orientao e permisso do Poder Divino, veio bem claramente na minha menteque estes contratempos tinham alguma coisa extraordinria e fui obrigado a considerar seisto no indicava ou me intimava a crer que era a vontade do Cu que no fosse embora.Imediatamente, meu raciocnio prosseguiu: se realmente vinha de Deus que eu deveriaficar, Ele seria capaz de efetivamente me preservar no meio de toda a morte e perigo queme cercaria e, se eu tentasse me salvar fugindo de minha casa, agindo de modo contrrio aestas intimaes que acredito serem Divinas, seria como fugir de Deus, e assim Ele poderiaaplicar Sua justia em mim quando Ele achasse conveniente.

    Estas reflexes mais uma vez modificaram muito minhas decises e, quando voltei aconversar com meu irmo, disse que me inclinava a ficar e assumir meu fardo no lugar queDeus me designou, o que, considerando tudo o que disse, parecia ser ainda maisespecialmente o meu dever.

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    Meu irmo, embora ele mesmo um homem muito religioso, riu de tudo que faleisobre uma intimao do Cu e contou vrias histrias de pessoas imprudentes, como ele aschamou, como eu era; certamente, eu deveria me submeter a isto como uma obra do Cu se,de alguma maneira, estivesse incapacitado por males ou doenas e por isso no pudesse irembora. Ento, deveria aceitar a Sua orientao, pois, sendo meu Criador, tinha um direito

    indiscutvel de soberania para dispor de mim. S assim no haveria dificuldade emdeterminar qual era ou no era o chamado de Sua Providncia. Aceitar uma intimao doCu para no sair da cidade somente porque no conseguiu alugar um cavalo para viajar ouporque fugiu o acompanhante que levaria como empregado era ridculo, pois eu ainda tinhaa minha sade, meus membros, outros criados e poderia com facilidade andar a p um oudois dias. Tendo um bom atestado de que estava com sade perfeita, conseguiria tantoalugar um cavalo quanto um lugar numa diligncia dos correios j na estrada, conformepreferisse.

    Ele passou, ento, a me falar das malficas conseqncias decorrentes da presunodos turcos e maometanos na sia e em outros lugares por onde andara (sendo um mercador,meu irmo tinha retornado do exterior h poucos anos, vivendo por ltimo em Lisboa,como j mencionei). Baseando-se nas noes de predestinao que professam, crendo que ofim de todo o homem est predeterminado e definitivamente decretado de antemo, elesiam despreocupados em lugares contaminados e conversavam com pessoas contaminadas.E assim morriam em mdia entre dez e quinze mil por semana, enquanto os mercadoreseuropeus ou cristos se mantinham recolhidos e reservados, geralmente evitando ocontgio.

    Com estes argumentos, meu irmo mudou minha deciso mais uma vez e resolvi irembora, deixando todas as coisas prontas para isso. Em suma, a epidemia cresceu muito ameu redor, os registros de bitos subiram para quase setecentos por semana e meu irmome disse que ele no se arriscaria a ficar por mais tempo. Pedi que me desse mais um diapara pensar e eu me decidiria. J tinha organizado todas as coisas da melhor maneirapossvel, tanto no meu comrcio quanto pessoa a quem confiaria meus negcios, e poucome restava fazer, a no ser decidir.

    Naquela noite, fiquei em casa completamente s, com minha mente sob grandepresso, indeciso e sem saber o que fazer. Tirei a noite para pensar seriamente. De comumacordo, as pessoas j tinham abandonado o costume de sair depois do pr-do-sol. Sobre asrazes disso, terei oportunidade de falar mais adiante.

    No recolhimento da noite, empenhei-me em decidir, primeiro, qual era o meu dever ecitei os argumentos com que meu irmo me pressionara a ir para o interior. Contrapus aeles a forte tendncia da minha mente para que ficasse, um visvel chamado que sentia virdas minhas circunstncias particulares e do devido cuidado para a preservao dos meusbens que, devo dizer, eram o meu patrimnio. Para mim, as intimaes que pensava terrecebido do Cu tambm significavam um tipo de orientao para me arriscar. Ocorreu-meque, se recebia o que devo chamar de uma orientao para ficar, tambm deveria supor queela continha uma promessa de ser protegido, caso a acatasse.

    Isto continuou junto comigo e me sentia cada vez mais encorajado para ficar,estimulado pela confiana secreta de que seria salvo. Some-se a isto que, abrindo a Bbliaque se encontrava diante de mim e, no momento em que minhas reflexes sobre a questoficaram mais srias do que o costume, entre outras expresses, gritei: Bem, no sei o quefazer; Deus, orientai-me! E, naquele instante, parei de folhear o livro no Salmo 91, fixandoos olhos no segundo verso. Li at o stimo verso, excluindo-o, depois acrescentei o dcimo.

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    Assim: Eu direi do Senhor, Ele meu refgio e minha fortaleza, Nele hei de crer; Eleseguramente te proteger com Suas penas e sob as Suas asas tu hs de crer; Sua verdade hde ser teu escudo e proteo; no temers o terror da noite, nem a flecha que vara o dia,nem a pestilncia que caminha na escurido, nem a destruio que devasta ao meio-dia; milcairo a teu lado e dez mil tua direita, mas no chegar perto de ti; vers somente com

    teus olhos e contemplars a recompensa dos pervertidos; porque assim quis o Senhor, que meu refgio, o Altssimo, a tua morada; e nenhum mal te atingir nem peste algumachegar perto de tua casa, etc.

    Quase nem preciso dizer ao leitor que, a partir do momento em que resolvi ficar nacidade, entregando-me inteiramente bondade e proteo do Todo-Poderoso, deixei deprocurar qualquer outra forma de defesa. Minha sorte estava nas Suas mos e Ele seriacapaz de me manter vivo tanto em tempo de epidemia quanto em tempo de sade. Caso Eleno me considerasse digno de salvao, eu continuaria nas Suas mos, aceitando que Elefizesse de mim o que Lhe parecesse melhor.

    Com esta deciso, fui para a cama. Ela seria reconfirmada no dia seguinte, quando amulher com quem eu pensava deixar minha casa e meus negcios ficou doente. Outroimperativo me conduziu na mesma direo. No dia seguinte, eu mesmo tambm fiqueipassando muito mal, assim que no conseguiria ir embora ainda que tentasse. Fiquei doentetrs ou quatro dias, e isso me deixou completamente determinado a ficar. Ento, dei adeus ameu irmo, que foi para Dorking, em Surrey, mais tarde se afastando ainda mais, emBuckinghamshire ou Bedfordshire, num refgio que encontrou para sua famlia.

    Era um pssimo momento para ficar doente. Se algum notasse, seria imediatamentecomentado que estava com peste. Embora no tivesse sintoma algum daquela doena, mesentia muito mal na cabea e no estmago e no fiquei sem medo de estar realmentecontaminado. Em trs dias, melhorei. Na terceira noite descansei bem, suei um pouco eacordei bastante refeito. O medo de que fosse a epidemia foi embora junto com a doena eretomei meus negcios como sempre.

    Essas coisas, no entanto, eliminaram todas minhas cogitaes de ir para o interior.Como meu irmo j tinha partido, no tive mais com quem discutir o assunto, nem com elenem comigo mesmo.

    Estvamos, ento, em meados de junho e a peste, que atacava principalmente o outroextremo da cidade, como disse antes, nas parquias de St Giles, St Andrew e Holborn,seguindo para Westminster, comeou a se mover para o leste, na direo da zona onde eumorava. Observariam, porm, que ela no vinha diretamente para ns. Na city, digo dentrodas muralhas, a vida continuava indiferente, ainda saudvel. A peste tambm no avanavapara alm do rio, em Southwark. Embora, em todas as doenas, 1.268 tenham morridonaquela semana de onde se pode imaginar que uns novecentos morreram com peste ,apenas vinte e oito morreram dentro dos muros da city e dezenove em Southwark, incluindoa parquia de Lambeth, enquanto s nas parquias de St Giles e St Martin-in-the-fieldsmorreram 421.

    Percebemos que a epidemia continuava principalmente nas parquias de fora que, porserem mais populosas e cheias de pobres, foi onde a doena encontrou melhores condiespara se espalhar do que na cidade, conforme explicarei mais tarde. Eu dizia que percebemosa peste vir em nossa direo pelas parquias de Clarkenwell, Cripplegate, Shoreditch eBishopsgate. As duas ltimas uniam-se a Aldgate, Whitechapel e Stepney; nestas zonas, aepidemia terminou por se espalhar com toda sua fria e violncia, mesmo quando diminuiunas parquias do oeste, onde comeara.

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    Foi muito estranho notar que, nesta semana especfica de 4 a 11 de julho, quasequatrocentos morreram de peste s nas parquias de St Martin e St Giles-in-the-fields,enquanto verifiquei que, em Aldgate, morreram quatro, em Whitechapel trs e, na parquiade Stepney, um.

    Da mesma forma, na semana seguinte, de 11 a 18 de julho, registraram-se 1.761

    bitos, mesmo assim, em todo outro lado do rio, em Southwark, no mais que dezesseismorreram de peste.Este estado de coisas mudou logo, comeando a se agravar principalmente na

    parquia de Cripplegate e Clarkenwell. Na segunda semana de agosto, s Cripplegateenterrou 886, e Clarkenwell, 155. Na primeira, deve-se admitir que 850 morreram compeste. Na ltima, o prprio boletim registrou que 145 tinham a peste.

    Durante o ms de julho, enquanto nossa zona da cidade parecia ser poupada emcomparao com a zona oeste, como observei, eu andava normalmente pelas ruas,conforme exigissem meus negcios e, geralmente, uma vez por dia, s vezes duas, entravana city para ir casa de meu irmo, que ele tinha me encarregado de cuidar para ver secontinuava segura. Trazendo as chaves no meu bolso, eu as utilizava para entrar na casa,percorrendo a maioria das salas para ver se tudo estava bem. Embora pudesse ser uma coisamaravilhosa dizer que ningum teria um corao to endurecido por tal calamidade paraassaltar e roubar, a verdade que todas as formas de vilanias, canalhices e libertinagensforam praticadas to abertamente como sempre na cidade no direi com a mesmafreqncia porque a populao estava muito reduzida.

    A city tambm comeou a ser atingida dentro de suas muralhas, mas havia muitomenos gente, porque uma grande multido fora para o interior, continuando a fugir aindatodo o ms de julho, mas no mais em massa como anteriormente. Em agosto, verdade, opovo fugiu de uma maneira que comecei a pensar que no sobraria realmente ningum, sficando na city oficiais de justia e criados.

    Enquanto a populao fugia da city, descobri que a corte se mudara mais cedo, asaber, no ms de junho, indo para Oxford, onde foi do agrado de Deus preserv-la. Ouvidizer que a doena no a atingiu muito, mas no posso afirmar que tenha visto demonstrarmaiores preocupaes com a gratido e o arrependimento, embora no quisesse ser acusadade ir longe demais em seus vcios gritantes que, pode-se dizer sem abuso de confiana,trouxeram aquele terrvel castigo para toda a nao.

    A aparncia de Londres ficou assim estranhamente alterada: refiro-me a toda a massade prdios, city, liberties, subrbios, Westminster e Southwark em conjunto, embora a zonaespecfica chamada de city, ou dentro das muralhas, ainda no estivesse muitocontaminada. Como um todo, a aparncia das coisas estava muito diferente: dor e tristezaem todas as faces. Mesmo algumas zonas ainda no estando tomadas, todos pareciam muitopreocupados. Como vamos a peste, aparentemente, se aproximando, cada um cuidava de sie de sua famlia como se corressem o maior perigo. Se fosse possvel representarexatamente aqueles tempos para aqueles que no os viram, dando ao leitor a devida idia dohorror que se apresentava em toda parte, seria preciso criar imagens em suas mentes eench-las de pavor. Bem pode-se dizer que Londres estava toda em lgrimas. Ascarpideiras, na verdade, no saam pelas ruas e ningum se vestia de preto ou mandavafazer um traje formal de luto nem pelos amigos mais ntimos, mas as vozes das carpideiraseram claramente escutadas nas ruas. A choradeira das mulheres e crianas nas janelas eportas das casas onde seus parentes mais queridos talvez estivessem morrendo, ou recm-mortos, era to freqente quando se passava pelas ruas que bastava para cortar o mais

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    insensvel corao do mundo que a escutasse. Viam-se lgrimas e lamrias empraticamente todas as casas, principalmente no incio da epidemia, pois, quando seaproximou do fim, os coraes dos homens estavam to endurecidos e a morte era toconstante diante de seus olhos que j no se preocupavam tanto com a perda de seusamigos, esperando que tambm eles fossem chamados na hora seguinte.

    Meus negcios s vezes me levaram at o outro extremo da cidade, mesmo onde adoena estava predominante. Como a coisa era nova para mim, assim como para todos osoutros, o mais impressionante foi ver aquelas ruas que normalmente eram tomovimentadas ficarem desertas, com to pouca gente vista que se eu fosse um estrangeiroe estivesse perdido em meu caminho, algumas vezes percorreria uma rua inteira (refiro-mes transversais) sem encontrar pessoa alguma para me orientar, exceto os vigias sentadosnas portas das casas que estavam fechadas, sobre as quais falarei daqui a pouco.

    Um dia, estando naquela zona da cidade para fazer um negcio importante qualquer,a curiosidade me levou a observar as coisas mais do que o costume e, assim, percorri umlongo trajeto por onde no tinha compromissos. Subi at Holborn e l as ruas estavamcheias de gente, mas todos s caminhavam no meio da rua, nunca em qualquer um doslados, porque, eu suponho, no queriam se misturar com qualquer pessoa vinda das casasou sentir cheiros e odores das casas que deveriam estar contaminadas.

    Os tribunais da corte estavam totalmente fechados. Tambm no havia muitosadvogados vista em Temple ou em Lincolns Inn ou Grays Inn. Todo mundo estava empaz e no havia necessidade de advogados. E tambm porque, sendo tempo de frias, elesem geral iam para o interior. Em alguns lugares, as casas de quarteires inteiros estavamfechadas e todos os moradores fugiram para o interior, deixando apenas um ou dois vigias.

    Quando digo quarteires de casas fechadas, no me refiro a casas lacradas pelosoficiais de justia. que muita gente acompanhou a corte, por exigncia de seus empregosou outras necessidades. Outros realmente se retiraram apavorados com a doena e issodeixou algumas ruas simplesmente abandonadas. Na city, o medo no estava nem perto deser to grande, abstratamente falando, principalmente porque, embora tivessem sepreocupado muitssimo no incio, a peste, como j disse, aparecia esporadicamente, demodo que todos ficaram alerta e se despreocuparam muitas vezes seguidas, at que isso setornou algo cotidiano para eles. Mesmo quando a peste surgiu com violncia, embora notivesse se espalhado visivelmente dentro da city, ou nas zonas leste e sul, as pessoascomearam a sentir coragem e ficaram, diria eu, um pouco insensveis. verdade que umagrande quantidade de gente fugiu, mas j disse que estes viviam principalmente na zonaoeste da cidade e do que chamamos de corao da city: vale dizer, os mais ricos, pessoasdesvinculadas do comrcio ou dos negcios. O resto, a maioria, ficou e parecia se submeterao pior. Assim, nos lugares que chamamos de liberties e nos subrbios, em Southwark e nazona leste, como Wapping, Ratcliff, Stepney, Rotherhithe e outros, a populao em geralpermaneceu, com exceo aqui e ali das poucas famlias ricas que, como as anteriores, nodependiam de seus negcios.

    preciso no esquecer que a city e os subrbios eram incrivelmente cheios de gentena poca desta epidemia; quero dizer, na poca em que comeou. Embora tenha vivido paraver um crescimento ainda maior, com multides se estabelecendo em Londres mais do quenunca, mesmo assim sempre fizemos idia de que, depois do fim das guerras, da dissoluodos exrcitos e da restaurao da famlia real e da monarquia, a quantidade de gente queveio para Londres estabelecer negcios ou acompanhar as resolues da corte sobrenomeaes, gratificaes por servios prestados e outras foi to grande que se computou

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    haver na cidade mais de cem mil pessoas, alm das que sempre houvera anteriormente. Nos isso, outros chegaram a dizer que foi o dobro porque todas as famlias arruinadas dopartido do rei vieram para c. Todos os velhos soldados se estabeleceram no comrcio emuitssimas famlias se fixaram aqui. A corte, mais uma vez, trouxe consigo uma grandeonda de vaidade e novas modas. Todas as pessoas andavam faceiras e elegantes e o bem-

    estar da Restaurao atraiu grande quantidade de famlias para Londres.Muitas vezes pensei nisso como Jerusalm cercada pelos romanos quando os judeusestavam reunidos para celebrar a Pscoa assim, uma quantidade inacreditvel de gente foisurpreendida quando, no fosse isso, estaria em outros pases. Da mesma forma, a pesteentrou em Londres quando, casualmente, pelas circunstncias especficas acimamencionadas, ocorrera um grande crescimento da populao. Este afluxo de gente a umacorte jovem e alegre gerou muito trabalho na city, principalmente para tudo que estivessena moda ou fosse um refinamento. Conseqentemente, isso atraiu grande nmero detrabalhadores, artesos e semelhantes, que eram, essencialmente, gente pobre que dependiade seu trabalho braal. Lembro de modo particular que, numa representao sobre ascondies dos pobres encaminhada ao Lorde Prefeito, estimou-se haver no menos de cemmil teceles manuais dentro e nas cercanias da city, vivendo a maioria deles nas parquiasde Shoreditch, Stepney, Whitechapel e Bishopsgate, ou seja, em torno de Spitalfields, masdo que Spitalfields era ento, pois no passava de uma quinta parte do que agora.

    Por isso, no entanto, pode-se supor a populao total. E, de fato, muitas vezes chegueia considerar que, mesmo depois de uma quantidade alarmante de gente ter ido embora noincio, ainda havia uma multido to grande quanto parecia haver anteriormente.

    Devo retornar mais uma vez ao comeo desses tempos assustadores. Enquanto ostemores da populao foram novos, eles cresceram estranhamente com diversos acidentesesquisitos que, reunidos, tornavam realmente surpreendente o povo no se levantar feito umnico homem e abandonar suas casas, deixando o lugar como um territrio destinado peloCu para uma Akeldama4, condenada destruio na face da Terra e tudo que l fosseencontrado desapareceria com ela. Vou descrever apenas algumas destas coisas, mas elascertamente foram tantas, e tantos feiticeiros e gente velhaca as propagavam queseguidamente me perguntei se algum (principalmente mulheres) permaneceria.

    Em primeiro lugar, uma estrela incandescente ou cometa apareceu durante vriosmeses antes da peste, como faria no ano seguinte, pouco antes do incndio. As velhas e aporo fleumtica hipocondraca do outro sexo, a quem quase tambm poderamos chamarde velhas, observaram (principalmente depois e no antes de acontecerem os flagelos) quedois cometas passaram exatamente sobre a city e chegaram to perto das casas que ficouevidente que eles significavam algo peculiar s da city. O cometa anterior peste tinha umacolorao plida, dbil e opaca, seu movimento era pesado, solene e lento. J o cometa queapareceu antes do incndio era brilhante e faiscante ou, como tambm disseram, emchamas, movendo-se com rapidez e fria. Um prenunciava uma pesada condenao, lentaporm severa, terrvel e apavorante como a peste. O outro anunciava uma exploso, sbita,rpida e ardente como o incndio. Algumas pessoas foram to peculiares que no apenasviram o cometa antes do incndio, mas acreditavam que, alm de ter acompanhado seumovimento rpido e violento com os olhos, tambm teriam escutado o cometa, que faziaum vigoroso rudo de atrito, forte e terrvel, perceptvel apesar da distncia.

    Tambm vi estas duas estrelas e devo confessar que, tendo apenas uma noo leigasobre estas coisas, as encarei como pressgios e avisos de um castigo de Deus. Depois quea peste surgiu, antecedida pela primeira estrela, ainda vi outra do mesmo tipo e, ento, no

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    consegui pensar outra coisa, a no ser que Deus ainda no tinha castigado suficientemente acity.

    No podia, porm, considerar estas coisas com a mesma importncia dada por outros,pois sabia que os astrnomos indicam causas naturais para fenmenos como esses. Seumovimento e suas rotaes so inclusive calculadas, ou pelo menos tentam calcul-las. De

    forma que no podiam ser to simplesmente prenncios ou anunciaes e muito menos acausa de fenmenos como a peste, a guerra, um incndio e outros do gnero.Se pensassem como eu ou como pensam os filsofos, essas coisas teriam pouca

    influncia sobre a imaginao das pessoas comuns, que tinham uma melancolia quaseabsoluta, com medo de que alguma pavorosa calamidade ou castigo tomasse a city. Issoaconteceu principalmente com a viso deste cometa e com o pequeno alarme dado emdezembro pelas duas pessoas que morreram em St Giles, como j disse.

    As apreenses da populao foram como que estranhamente aumentadas pelos errosda poca, pois o povo no consigo imaginar por que princpio estava mais influencivelpor profecias e conjuraes astrolgicas, sonhos e contos da carochinha do que jamaisestivera ou seria. Se este estado de esprito foi criado pelas maluquices de alguns queganhavam dinheiro com isso quer dizer, publicando previses e profecias eu no sei.Mas certo que alguns livros amedrontaram terrivelmente a populao, livros como oAlmanack Lilly, As previses astrolgicas de Gadbury, o Almanack de Poor Robin esemelhantes. Muitos outros se anunciaram como livros religiosos. Um destes tinha comottulo Fuja dela, meu povo, a no ser que queiras tomar parte em suas pestes. Outro sechamava Bom conselho; outro, Curador da Gr-Bretanha e muitos iguais. Todos, ou amaior parte deles, previam, direta ou veladamente, a runa da cidade. Alguns eram toinflamados e atrevidos que percorriam as ruas pregando suas profecias, fingindo seremenviados para rezar pela cidade. Um deles, em particular, como Jonas para Nnive, gritavapelas ruas: Daqui a quarenta dias Londres ser destruda. No tenho certeza se diziadaqui a quarenta ou daqui a poucos dias. Outro corria quase nu, s com ceroulas na cintura,chorando noite e dia, como o homem mencionado por Josephus 5, que gritava Desgraapara Jerusalm, pouco antes da destruio da cidade. Assim, aquela pobre e nua criaturagritava oh grande e terrvel Deus e nada mais dizia, repetindo estas palavrascontinuamente, com uma voz e expresso cheias de horror e passos rpidos. Ningumconseguia faz-lo parar ou descansar ou ingerir qualquer alimento, pelo menos o que ouvidizer. Encontrei esta pobre criatura vrias vezes nas ruas e eu teria conversado com ele,mas ele no conseguia falar comigo ou com quem quer que fosse, tomado por seus gritoscontnuos e melanclicos.

    Estas coisas aterrorizaram o povo ao extremo, principalmente quando, duas ou trsvezes como j mencionei, descobriram um ou dois mortos de peste no registro de St Giles.

    Ao lado destes casos pblicos, estavam os sonhos das velhas ou, devo dizer, ainterpretao que as velhas davam aos sonhos de outras pessoas. Isso deixou muita gentefora de seu juzo. Alguns ouviram vozes dizendo que fugissem porque haveria uma pesteem Londres to violenta que os vivos no conseguiriam enterrar os mortos. Outros viamaparies no ar e devo ter permisso para afirmar, sem abusar da confiana, que ouviamvozes que nunca falavam e viam imagens que nunca apareciam. A imaginao do povoestava realmente alterada e possuda. No era de se estranhar que aqueles que ficaramconstantemente observando as nuvens vissem formas e figuras, representaes e apariesque nada tinham por dentro, apenas ar e vapor. Aqui, falavam de uma espada de fogo numamo que saa de uma nuvem com a ponta voltada diretamente para a cidade. Viam carros

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    fnebres e caixes levados no ar para serem enterrados, pilhas de corpos de mortosabandonados sem sepulturas e outras vises semelhantes, conforme a imaginao dospobres aterrorizados os alimentava de material para trabalharem.

    Assim hipocondracas fantasias representam

    Navios, exrcitos, batalhas no firmamento;At que olhos firmes dissolvam as imagens,E tudo volte a sua primeira matria, nuvem.

    Eu poderia preencher este relato com as estranhas verses que, todos os dias, aspessoas davam sobre o que tinham visto. Cada um ficava to certo de ter visto o quesupunha ver, que no dava para contradiz-lo sem perder um amigo ou ser consideradorude e mal-educado por um lado, profano e insensvel por outro. Uma vez, antes decomear a peste (para alm de St Giles, como j disse), acho que foi em maro, vi umaaglomerao na rua e me juntei multido para satisfazer minha curiosidade. Descobri quetodos estavam olhando para cima, tentando ver o que uma mulher dizia ter aparecidoclaramente para ela, um anjo vestido de branco, com uma grande espada na mo, quesacudia e brandia sobre sua cabea. Ela descreveu cada detalhe da figura, mostrou seusmovimentos e sua forma, e os pobres logo a reconheceram com muita avidez e prontido:Sim, eu vejo tudo claramente, disse algum, l est a espada, to verdadeira quanto podeser. Outro viu o anjo. Um viu seu rosto e gritou que gloriosa criatura ele era! Um via umacoisa, outro via outra. Olhei to interessado quanto os demais, mas talvez sem tanta vontadede ser sugestionado. Falei que, na verdade, no via nada alm de uma nuvem branca,brilhante de um lado devido luz do sol. A mulher esforou-se para me mostrar o anjo, masno conseguiu me fazer admitir que o tinha visto e, caso eu o fizesse, estaria mentindo.Voltando-se para mim, a mulher me olhou no rosto e imaginou que eu ria, o que eraimaginao sua, porque realmente no estava rindo, mas refletia seriamente como os pobresso aterrorizados pela fora de sua prpria imaginao. Ela, no entanto, se afastou mechamando de sujeito profano e gozador e me disse que estvamos num tempo de ira deDeus e terrveis castigos se aproximavam e que menosprezadores como eu andariam aesmo e pereceriam.

    O povo a seu redor parecia to incomodado quanto ela e achei que no havia comopersuadi-los de que eu no ri deles, pois seria massacrado antes de conseguir convenc-los.Assim, deixei-os e aquela apario foi considerada to real quanto a prpria estrelaincandescente.

    Tambm vivi outro encontro como este em pleno dia. Aconteceu numa passagemestreita entre Petty France e o cemitrio de Bishopsgate, num quarteiro de asilos. H doiscemitrios na igreja ou parquia de Bishopsgate. Um, a gente atravessa para passar do lugarchamado Petty France para a Bishopsgate Street, saindo bem na porta da igreja. O outrofica ao lado de um beco estreito, que tem os asilos esquerda, uma mureta com paliada direita e, do outro lado, mais direita, a muralha da city.

    Neste beco estreito, um homem estava parado, olhando para dentro do cemitrioatravs das grades da paliada e cercado por tanta gente quanto permitia a estreiteza dobeco, sem impedir a passagem. O homem falava com veemente fervor, indicando ora umlugar, ora outro e afirmando que via um fantasma caminhando sobre determinado tmulo.Descreveu a forma, a postura e o movimento do fantasma com tamanha exatido que reagiucom o maior espanto do mundo porque ningum o via to bem quanto ele. Subitamente,

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    gritou: Ali est ele, agora vem nesta direo. Depois, j foi embora. Por insistncia,persuadiu o povo com sua convico e logo algum imaginou ter visto o fantasma, emseguida outro tambm viu. O homem passou a vir todos os dias, provocando umaaglomerao de curiosos no beco estreito, at que o relgio de Bishopsgate batesse onzehoras, quando, de repente, o fantasma desaparecia como se fosse chamado de longe.

    Olhei interessado para todos os lados e na direo exata que o homem indicava, masno pude ver a menor apario de coisa alguma. Este pobre homem estava to convicto queincutia grandes pavores nas pessoas, que se afastavam tremendo de medo, at que poucaseram as que conheciam o caso e se arriscavam a cruzar aquele beco e dificilmente algum,pelo motivo que fosse, o cruzaria noite.

    Este fantasma, conforme dizia o pobre homem, fazia sinais para as casas, para o choe para o povo, indicando claramente, ou pelo menos assim o entendia, que muita gente teriade ser enterrada naquele cemitrio, o que realmente aconteceu. Devo reconhecer que nuncaacreditei que o homem tenha visto isso, nem pude ver coisa alguma por mim mesmo,embora tenha olhado com interesse de, se possvel, ver o fantasma.

    Essas coisas servem para mostrar at onde o povo estava realmente tomado poralucinaes. Como se tivessem uma noo da proximidade da epidemia, todos os vaticniosse referiam mais pavorosa peste que assolaria toda a cidade e at o reino, destruindoquase toda a nao, seus homens e animais.

    A isto, como disse antes, os astrlogos acrescentavam histrias de conjunes deplanetas em angulaes malignas e de perniciosas influncias. Uma dessas conjunesestava por acontecer, e realmente aconteceu, em outubro, outra em novembro. Enchiam acabea do povo com previses destes sinais dos cus, pois aquelas conjunes indicavam avinda da seca, da fome e da peste. As duas profecias, porm, estavam totalmente erradas,porque no tivemos seca, mas uma forte geada no incio do ano, indo de dezembro a maro;depois, um clima moderado, mais morno do que quente, com ventos refrescantes e, emresumo, o clima bem tpico da estao, e tambm grandes chuvaradas.

    Tentaram com algum empenho suprimir a publicao dos livros que apavoravam opovo e, para intimid-los, alguns distribuidores foram presos. No se fez mais nada, peloque estou informado, porque o governo no queria exasperar o povo que j estava, comopoderia dizer, totalmente fora do seu bom senso.

    Tampouco posso perdoar os sacerdotes que, com seus sermes, deprimiam mais doque aliviavam os coraes de seus ouvintes. Muitos, sem dvida, faziam isso para ofortalecimento da vontade do povo e, principalmente, para apress-lo no caminho doarrependimento, mas no obtinham bons resultados, pelo menos na proporo do mal que,por outro lado, causavam. A verdade que o prprio Deus, em todas as Escrituras, tentaatrair-nos para voltar a viver com ele atravs de convites e chamamentos, nunca nos guiapelo terror e pelo espanto. Assim, devo confessar que achei que os sacerdotes deveriamfazer do mesmo modo, imitando o nosso abenoado Senhor e Mestre, mostrando que SeuEvangelho est repleto de declaraes sobre a santa misericrdia de Deus e que Ele estpronto para receber e perdoar os arrependidos. Chega a lamentar: No quereis vir a Mimque vos posso dar vida, e por isso que Seu Evangelho chamado de Evangelho da Paz ede Evangelho da Graa.

    Mesmo assim, vamos alguns homens de bem, de todas as crenas e cultos, cujaspregaes eram cheias de terror e no falavam de outra coisa que no fosse algo sombrio.Depois de irmanar as pessoas num tipo de horror, as dispersavam deixando todas emlgrimas, profetizando nada alm de acontecimentos sinistros, apavorando o povo com o

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    medo de ser sumariamente destrudo, sem conduzi-lo pelo menos o suficiente, a suplicar aoCu por misericrdia.

    Foi, de fato, um tempo de muitas e infelizes divergncias sobre questes religiosasentre ns. Incontveis seitas, divises e credos isolados prevaleciam junto ao povo. A Igrejada Inglaterra fora restaurada com a monarquia, cerca de quatro anos antes.

    Os missionrios e pregadores presbiterianos, independentes e de todos os outros tiposde cultos comearam a formar sociedades parte e erguer altares sobre altares. Todas sereunindo separadamente para praticar seus cultos, como agora, mas em menor nmero, semque os no-conformistas formassem um grupo como desde ento, e estas congregaes quese uniram ainda eram poucas. Mesmo as poucas que havia foram proibidas pelo governo,que se empenhou em suprimi-las e acabar com suas assemblias.

    A epidemia voltou a concili-los mais uma vez, pelo menos por algum tempo, commuitos dos melhores e mais valiosos missionrios e pregadores no-conformistas recebendopermisso para freqentar as igrejas cujos encarregados tinham fugido, e muitos o tinham,incapazes de suportar a situao. O povo se reunia sem distines para escutar suaspregaes, sem se perguntar muito quem eram ou qual era seu culto. S depois que adoena passou, diminuiu o esprito caritativo. Toda a igreja foi novamente provida com seuprprio sacerdote ou por substitutos daqueles vigrios que morreram e as coisas voltarammais uma vez para seus antigos canais.

    Um mal sempre chama outro. Os terrores e medos do povo o conduziam a milfraquezas, loucuras e atos perversos. Realmente, no faltava gente para encoraj-lo: isto sedava correndo atrs de cartomantes, bruxos e astrlogos para saber seu futuro ou, como sedizia vulgarmente, ler a sorte, calcular o horscopo e semelhantes. Em pouco tempo, estaloucura fez da cidade uma colmia de uma nova gerao de pervertidos que fingiam sermgicos, da magia negra como diziam, e no sei mais o que, mil pactos com o diabo, muitopiores do que aqueles pelos quais realmente eram culpados. Este comrcio cresceu toabertamente e tornou-se uma prtica to generalizada que era comum encontrar sinais einscries nas portas: Aqui mora uma cartomante, aqui vive um astrlogo, aqui secalculam horscopos e assim por diante. A cabea de bronze do frei Bacon6 diante da casadestas pessoas era to comum que podia ser vista em quase todas as ruas; ou, ento, oemblema da madre Shipton7 ou a cabea de Merlin e semelhantes.

    Com que cegos, absurdos e ridculos truques estes orculos do demnio agradavam econvenciam o povo, eu realmente no sei, mas certo que inmeros clientes se juntavamdiariamente diante de suas portas. Se um sujeito soturno com uma jaqueta de veludo, umturbante e um casaco negro como era costume daqueles charlates andarem fosse vistopelas ruas, o povo o seguiria numa multido, fazendo perguntas enquanto caminhavam.

    No preciso explicar o que era, ou tentava ser, esta horrenda enganao. No haveriaremdio para isto at que a prpria peste pusesse um fim em tudo e, imagino, limpasse acidade da maioria destes especuladores. Um de seus logros era quando gente humildeperguntava a estes falsos astrlogos se haveria ou no uma peste. Todos eles concordavam,em geral dizendo que sim, pois assim podiam continuar com seu comrcio. Caso o povono tivesse seu medo alimentado desta forma, os bruxos teriam se tornado inteis e seusservios chegariam ao fim. Ento, eles sempre falavam sobre tais e tais influncias dosastros, das conjunes de tais e tais planetas que, necessariamente, provocariam doena,mal-estar e, conseqentemente, a peste. Chegavam a afirmar com segurana que a peste jchegara, o que era bem verdade, embora o dissessem sem nada saber a respeito.

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    Mesmo estas saudveis reflexes que corretamente empregadas teriam conduzidomais generosamente o povo a cair de joelhos, confessar seus pecados, implorando Suacompaixo naquele momento de dor, no qual poderamos nos tornar uma segunda Nnive tiveram um efeito completamente ao contrrio sobre o povo simples, ignorante e estpidoem suas reflexes to brutalmente pervertidas e insensveis como sempre, que foi ento

    conduzido por seu medo a extremos de loucura. Como disse antes, as pessoas correram aoscurandeiros, feiticeiros e a toda sorte de impostores para saber o que aconteceria com elas(com seus medos alimentados e mantidos sempre despertos por aqueles que as iludiam afim de esvaziar seus bolsos). Assim, o povo andava feito louco atrs de curandeiros,charlates e de toda velha benzedeira em busca de remdios e tratamentos, estocandotamanha quantidade de plulas, poes e preservativos, como chamavam, que no apenasgastavam seu dinheiro, mas at se envenenavam antecipadamente. Com medo do veneno dainfeco, preparavam seus corpos para a peste, em vez de se protegerem contra ela. Poroutro lado, incrvel e difcil de se imaginar como os postes das casas e das esquinasficaram recobertos de receitas de mdicos e reclames de sujeitos ignorantes, prticos eamadores em medicina, convidando as pessoas a vir a eles atrs de remdios geralmenteanunciados em floreios como estes: plulas preventivas, infalveis contra a peste, elixirsoberano contra a corrupo do ar, instrues precisas para o tratamento do corpo emcaso de infeco, plulas antipestilenciais, incomparvel poo contra a peste, nuncadescoberta antes, a cura universal da peste, a nica verdadeira gua da peste, oantdoto real contra todos os tipos de infeces e tantas outras que no consigo lembrar,e se conseguisse, encheria um livro s com elas.

    Outros fixavam cartazes chamando o povo para seu endereo, onde todos seriamaconselhados e orientados em caso de contaminao. Estes tambm tinham ttulosenganadores, tais como:

    Eminente mdico da Alta Germnia, recm-vindo da Holanda, onde morava notempo da grande peste do ano passado em Amsterdam. Curou multides de pessoasrealmente contaminadas.

    Uma senhora italiana recm-chegada de Npoles, conhecedora de uma frmulasecreta para a preveno do contgio, descoberta atravs de sua grande experincia,fazendo curas maravilhosas na ltima peste, l, quando morreram vinte mil num nico dia.

    Uma velha senhora, que testou seus conhecimentos com grande sucesso na ltimapeste nesta cidade, anno 1636, oferece-se para aconselhar somente o sexo feminino. Podeser contatada diretamente......, etc.

    Um experiente mdico, que muito estudou a doutrina de antdotos contra todos ostipos de venenos e infeces, atingindo tal competncia depois de quarenta anos de prticaque, com a ajuda de Deus, pode orientar pessoas sobre como evitar o contato com qualquertipo de doena. Atende os pobres gratuitamente.

    Chamo a ateno para estes a ttulo de exemplos. Poderia citar duas ou trs dzias deanncios semelhantes e muitos ainda ficariam de fora. Estes bastam para deixar claro aqualquer um o estado de esprito daqueles tempos e como um grupo de ladres e batedoresde carteiras no apenas ludibriavam e roubavam o dinheiro dos pobres, mas envenenavamseus corpos com preparados repugnantes e fatais, alguns com mercrio, outros com coisasigualmente malficas, completamente opostas ao que se pretendiam ser, mais nocivas doque benficas ao corpo, caso ocorresse o contgio.

    No posso omitir a sutileza de um destes preparadores de poes com as quaisenganava os pobres que se aglomeravam a seu redor, mas nada conseguiam sem dinheiro.

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    Nos cartazes que distribua pelas ruas, parece que acrescentara este anncio com letrasmaisculas: d conselhos de graa aos pobres.

    Conseqentemente, uma multido vinha atrs dele, para quem ele fazia longos e belosdiscursos, examinava o estado de sade, a constituio de seus corpos e dizia muitas coisasque seria bom que fizessem, coisas impossveis no momento. Mas toda questo levava

    concluso de que se tivessem uma poo e a tomassem numa quantidade determinada todasas manhs, ele garantia com a prpria vida que nunca contrairiam a peste, mesmo quevivessem numa casa onde houvesse gente contaminada. Isto levava o povo todo a querer atal poo, mas o preo era muito alto, acho que custava meia coroa. Senhor disse umapobre mulher , sou uma pobre mendiga mantida pela parquia e vosso anncio diz que dconselhos de graa aos pobres. Ai, bondosa senhora disse o doutor , isto que eu fao,conforme anuncio. Dou conselhos de graa aos pobres, mas no meus medicamentos. Aide mim, Senhor disse a mulher , ento isto uma arapuca armada para os pobres. Darconselho de graa aos pobres. Isto quer dizer que o senhor os aconselhais de graa acomprar vossos medicamentos com dinheiro. o mesmo que faz um balconista com suasmercadorias. Aqui, a mulher comeou a insult-lo, ficando na porta da casa dele econtando sua histria ao povo que aparecia. At que o doutor descobriu que ela estavaafastando seus clientes e foi obrigado a cham-la no andar superior e dar-lhe uma caixa doseu remdio grtis, o que talvez tambm no valesse nada quando ela o tomasse.

    Voltando populao, cujas confuses a tornavam facilmente sugestionvel por todasorte de farsantes e qualquer tipo de curandeiro. No h dvidas de que estes charlatesfizeram grandes lucros com a misria do povo, pois diariamente vamos que as multidescorrendo atrs deles eram cada vez maiores. s portas de suas casas, se aglomerava maisgente do que diante das casas do dr. Brooks, dr. Upton, dr. Hodges, dr. Berwick ouqualquer outro, entre os mais famosos da poca. E disseram-me que alguns deles ganhavamcinco libras por dia com sua medicina.

    Alm de tudo isso, ainda havia outra maluquice que pode servir para dar uma idia daperturbao do esprito dos pobres da poca, que seguiam impostores ainda piores do quequalquer um destes. Estes ladres baratos somente iludiam o povo para abrir seus bolsos epegar seu dinheiro. Assim, qualquer que fosse a perversidade, ela vinha da parte dosimpostores, no dos ludibriados. O aspecto que vou mencionar estava predominantementenas pessoas enganadas, ou igualmente em ambos os lados: carregavam talisms, filtros,praticavam exorcismos, carregavam amuletos e no sei mais que poo para fortalecer ocorpo contra a peste; como se a peste no estivesse nas mos de Deus, no fosse a maldiode um esprito diablico; como se pudesse ser afastada com cruzes, signos zodiacais, papisamarrados com muitos ns e algumas palavras ou desenhos, conforme aconteceuprincipalmente com a palavra Abracadabra formando um tringulo ou pirmide como esta:

    ABRACADABRA Outros tinham a inscrioABRACADABR dos jesutas numa cruz:ABRACADABABRACADA IHABRACAD S.ABRACAABRACOutros, nada alm de umaABRA marca assim:ABR

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    ABA

    Poderia consumir um bom tempo em minhas condenaes s loucuras e verdadeiraperversidade de coisas semelhantes numa poca de tanto perigo, com um problema de

    conseqncias to graves como este, uma epidemia nacional. Meus apontamentos dessascoisas so mais para chamar a ateno para o fato e somente registrar que foi assim. Comoos pobres sofreram com a ineficcia daquelas coisas e como muitos terminaram carregadospelo carro dos mortos e atirados em valas comuns de todas as parquias, com seus talismse escapulrios diablicos ao redor de seus pescoos, permanecer um assunto para maisadiante.

    Tudo isso foi decorrncia da precipitao das pessoas depois da primeira noo deque a peste j estava entre elas, o que se pode dizer que se deu a partir da aproximao deMichaelmas8, em 1664, mas principalmente depois que os dois homens morreram em StGiles, no comeo de dezembro; acontecendo mais uma vez, depois de outro alarme, emfevereiro. Quando a peste se espalhou de modo evidente, logo comearam a ver a loucuraque foi acreditar naquelas criaturas incompetentes que s lhes tiraram dinheiro. Ento, seusmedos reagiram de outra maneira, com espanto e estupidez, sem saber que direo seguirou como agir para se socorrerem e se ajudarem. Corriam da casa de um vizinho para a deoutro, ou percorriam a rua batendo de porta em porta, com repetidos gritos de Senhor,tende misericrdia de ns! O que devemos fazer?

    Realmente, era preciso sentir pena dos pobres numa coisa em particular, na qualcontavam com pouca ou nenhuma ajuda. Desejo mencionar com grande respeito econsiderao algo que, talvez, todo mundo que leia ache desagradvel. Objetivamente,refiro-me morte no mais se satisfazer em pairar, se podemos assim dizer, sobre a cabeade cada um, entrando nas casas e nos quartos para contemplar a face das pessoas. Talvezhouvesse alguma insensatez e inrcia na mente delas (e havia em quantidade), mas tambmhavia algo de muito justo no pnico soando nas profundezas da alma dos outros, se possodizer isto. Muitas conscincias despertaram, muitos coraes endurecidos se derreteram emlgrimas, muitos penitentes confessaram crimes h muito tempo ocultos. Tocaria a alma dequalquer cristo ouvir os gemidos de agonia de tanta gente desenganada, de quem ningumchegava perto para oferecer qualquer consolo. Muitos roubos, muitos assassinatos tambm,foram ento confessados em voz alta, embora ningum sobrevivesse para registrar suasconfisses. Caminhando pelas ruas, podia-se ouvir gente implorando misericrdia a Deus,apelando para Jesus Cristo e dizendo fui um ladro, cometi o adultrio, matei eoutras frases semelhantes. Ningum ousava parar para fazer a menor investigao sobreessas coisas ou para oferecer consolo s pobres criaturas que gritavam dessa maneira,tomadas de corpo e alma pelo pnico. No princpio, e por pouco tempo, alguns sacerdotesvisitavam os doentes, mas isso no deveria ser feito. Entrar em determinadas casas eramorte certa. Mesmo os que sepultavam os mortos e eram as criaturas mais endurecidas dacidade, s vezes recuavam to aterrorizados que no se arriscavam a entrar em casas ondefamlias inteiras foram eliminadas juntas, em circunstncias particularmente horripilantes,como algumas foram. Isso, claro, no primeiro surto da doena.

    O tempo acostumou-os a tudo aquilo e pouco depois se arriscavam em toda parte semhesitao, como terei oportunidade de descrever em detalhe mais adiante.

    Suponho que a peste comeou nesse momento e, como j disse, as autoridadestambm comearam a refletir seriamente sobre as condies da populao. Em seguida,

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    contarei o que fizeram para controlar os habitantes contaminados e suas famlias. Sobre aquesto da sade, cabe mencionar apenas que, constatando o nimo enlouquecido do povo,numa correria atrs de charlates e curandeiros, mgicos e cartomantes, como as pessoasfaziam at perder a lucidez, o Lorde Prefeito, um homem muito sbrio e religioso, nomeoumdicos e cirurgies para atendimento dos pobres refiro-me aos doentes pobres e

    determinou que o Colgio de Mdicos publicasse orientaes sobre remdios baratos paraos pobres em todos os estgios da doena. Esta foi uma das medidas mais piedosas ejudiciosas que poderiam ser tomadas naquele tempo, pois afastou a populao dasconcentraes diante das portas de qualquer fornecedor de receitas, evitando que as pessoasingerissem, cegamente e sem qualquer considerao, veneno por remdio, encontrando amorte em vez da vida.

    Estas recomendaes dos mdicos foram estabelecidas por uma consulta a todo oColgio. Concebidas especialmente para o uso de medicamentos baratos pelos pobres, estasrecomendaes tornaram-se pblicas para que todos pudessem conhec-las e todos osinteressados podiam obter uma cpia gratuita. Como so informaes pblicas, que podemser verificadas a qualquer momento, pouparei o leitor do trabalho de l-las aqui.

    No pretendo diminuir a autoridade ou a capacidade dos mdicos quando digo que aviolncia da doena, ao atingir seus extremos, foi como o incndio do ano seguinte. O fogoconsumiu aquilo que a peste no conseguiu tocar, desafiando a aplicao de todos osremdios. Os carros de bombeiro se quebraram, os baldes foram jogados fora e o poder doshomens, fracassando, chegou ao fim. Tambm a peste desafiou todos os medicamentos. Osprprios mdicos se contaminavam com seus preventivos na boca; os homens saam por aprescrevendo e dizendo aos outros o que fazer at que apresentassem os sintomas e cassemmortos, destrudos pelo mesmo inimigo que ensinavam os outros a enfrentar. Este foi ocaso de muitos mdicos, mesmo alguns dos mais eminentes e vrios dos cirurgies maishabilidosos. Muitssimos charlates tambm morreram, aqueles que cometeram a loucurade acreditar em seus prprios remdios que, sendo conscientes de si mesmos, sabiam noservir para nada. Antes fizessem como outros tipos de ladres que reconheciam sua culpafugindo da justia, pois no podiam esperar mais do que o castigo que sabiam merecer.

    No h qualquer depreciao ao trabalho e dedicao dos mdicos em dizer quemorreram na calamidade geral. Nem esta minha inteno, pois antes para louv-los porterem arriscado suas vidas ao ponto de perd-las a servio da humanidade. Eles seesforavam para fazer o bem e salvar a vida do prximo, mas no podemos esperar quemdicos consigam conter os castigos de Deus ou evitar uma peste claramente enviada doCu para executar os pecadores.

    Sem dvida, os mdicos ajudaram muitos com seus conhecimentos, salvando suasvidas e restabelecendo sua sade com sua prudncia e curativos. No diminuir suacompetncia ou reputao dizer que no podiam curar aqueles que j apresentavam ossinais da doena ou aqueles que j estavam mortalmente contaminados quando mandavamchamar um mdico, como freqentemente foi o caso.

    Falta agora registrar as medidas tomadas pelas autoridades para a segurana geral epara evitar a disseminao da doena quando surgiu pela primeira vez. Terei vriasocasies para falar sobre a prudncia das autoridades, sua caridade, sua vigilncia dospobres e da manuteno da boa ordem, fornecendo alimentos e coisas do gnero quando apeste aumentou, o que aconteceu mais tarde. Agora, refiro-me s ordens e regulamentaesque publicaram para o governo das famlias contaminadas.

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    Mencionei acima o fechamento de casas, mas preciso dizer alguma coisa mais sobreisto, pois esta parte da histria da peste muito melanclica, mas a histria mais cruelprecisa ser contada.

    Perto de junho, o Lorde Prefeito de Londres e a Corte de Vereadores, como disse,comearam a se preocupar mais objetivamente com a regulamentao da cidade.

    Os juzes de paz de Middlesex, sob orientao do secretrio de Estado, comearam afechar casas nas parquias de St Giles-in-the-fields, St Martin, St Clement Danes etc. Istofoi um grande sucesso. Em vrias ruas onde surgira a peste, com rigorosa vigilncia dascasas contaminadas e cuidando para enterrar aqueles que morriam imediatamente depois daconstatao de suas mortes, a peste desapareceu naquelas ruas. Tambm observou-se que,naquelas parquias, depois da contaminao total, a peste diminuiu mais depressa do quenas parquias de Bishopsgate, Shoreditch, Aldgate, Whitechapel, Stepney e outras, sendoos cuidados semelhantes tomados com antecedncia, um valioso meio para o controle daepidemia.

    Este fechamento das casas, pelo que sei, foi adotado pela primeira vez como ummtodo de conteno da peste em 1603, com a chegada do rei James I ao trono. O poderpara trancar as pessoas em suas prprias casas foi outorgado pelo Ato do Parlamentointitulado Uma Lei para a Assistncia caritativa e Disposio das Pessoas contaminadascom a peste. Neste Ato do Parlamento, o Lorde Prefeito e os vereadores da cidade deLondres fundamentaram as ordens que deram na poca, entrando em vigor em primeiro dejulho de 1665, quando ainda eram poucos os contaminados dentro da city e o ltimoregistro de bitos de noventa e duas parquias indicava apenas quatro com peste. Algumascasas da city j estavam fechadas e algumas pessoas removidas para o hospital depestilentos, logo depois de Bunhill Fields, no caminho de Islington. Digo que, por essesmeios, quando no total morriam perto de mil por semana, na city eram s vinte e oito e acity conservou-se proporcionalmente mais saudvel do que qualquer outro lugar todo otempo de epidemia.

    Estas determinaes do Lorde Prefeito foram publicadas, como disse, no final dejunho, entrando em vigor a partir de 1o de julho como segue, a saber:

    ORDENS CONCEBIDAS E PUBLICADAS PELO LORDE PREFEITO EVEREADORES DA CITY DE LONDRES REFERENTES EPIDEMIA DE PESTE,1665.

    DURANTE o reinado do nosso falecido soberano rei James, de feliz memria, foicriada uma lei para a assistncia caritativa e disposio de pessoas contaminadas com apeste, quando os juzes de paz, prefeitos, intendentes e outros altos funcionrios foramautorizados a nomear, em suas jurisdies, inspetores, investigadoras, vigilantes, zeladorese coveiros para lugares e pessoas contaminadas, com poderes para for-los a desempenharsuas funes. Este mesmo estatuto tambm autorizou-os a decretar outras ordens que sefizessem necessrias nas circunstncias presentes. Agora, depois de muita ponderao,pensou-se no mesmo expediente para prevenir e evitar uma epidemia da enfermidade (seesta for a vontade de Deus todo-poderoso), com a nomeao dos seguintes funcionrios e adevida observncia destas ordens:

    Inspetores nomeados para cada parquia

    Primeiro, entende-se como necessrio, e assim se ordena, que cada parquia tenhauma, duas ou mais pessoas de boa ndole e credibilidade, escolhidas e nomeadas pelovereador, seu substituto e conselho de comuns de cada distrito com o ttulo de inspetores,para permanecer na funo durante pelo menos dois meses. Qualquer pessoa apta assim

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    nomeada que se recusar a assumir o cargo ser mantida na priso at que se conformedevidamente.

    Funes dos inspetoresQue estes inspetores encarregados pelos vereadores de investigar e conferir de tempos

    em tempos que casas, em cada parquia, esto contaminadas e quantas pessoas esto

    doentes e de que doenas, se informem o melhor possvel. Em caso de dvida, determinemo isolamento at que surjam provas da doena. Ao encontrar qualquer pessoa sofrendo dadoena, dar ordens para que a polcia feche a casa. Se o policial for ineficiente ounegligente, informar em seguida o vereador do bairro.

    Vigilantes

    Que para cada casa contaminada sejam indicados dois vigilantes, um para todos osdias e outro para as noites. Estes vigilantes tm como tarefa especfica impedir a entrada ousada de qualquer pessoa das casas contaminadas que estiverem sob sua guarda, sob penade dura punio. Se os ditos vigias forem enviados a qualquer parte, devero trancar a casae levar a chave. O vigilante diurno ficar a postos at s dez horas da noite, o vigilantenoturno at as seis da manh.

    Investigadoras

    Que haja um cuidado especial na nomeao de mulheres investigadoras em cadaparquia, selecionando-as entre as de melhor reputao e ndole que se possa encontrar nognero. Estas sero encarregadas de fazer a devida investigao e informar a verdade omais fiel possvel sobre o que observarem nos corpos que tenham que examinar paraconferir se morreram de peste ou de outra doena. E que os mdicos nomeados para cura epreveno da epidemia convoquem estas investigadoras que foram ou venham a sernomeadas para as vrias parquias sob sua responsabilidade a fim de verificar se estopreparadas e qualificadas para o servio, denunciando-as sempre que acharem necessrio,caso se mostrem ineficientes no cumprimento de seus deveres.

    Que nenhuma investigadora tenha permisso para fazer qualquer trabalho ou serviopblico, manter uma loja ou tenda, ou seja contratada como lavadeira, ou qualquer outrotipo de emprego comum.

    Cirurgies

    Para melhor assistncia s investigadoras, j que h grande abuso na falsificao deinformaes sobre a doena com disseminao ainda maior da epidemia, fica determinada anomeao de cirurgies selecionados por sua capacidade e discrio, alm daqueles que jpertencem ao hospital de pestilentos entre os quais a city e liberties sero subdivididas emreas conforme o adequado e conveniente aos lugares. Cada um destes cirurgies cobrir oslimites de uma rea, unindo-se s investigadoras de sua rea para examinar os corpos, a fimde que seja feito um relatrio correto sobre a doena.

    E mais, os ditos cirurgies devem visitar e examinar as pessoas que os mandemchamar ou lhes sejam indicadas ou enviadas pelos inspetores de cada parquia,informando-se sobre as doenas das ditas partes.

    E j que os ditos cirurgies sero afastados do tratamento de todas as outras doenas,dedicando-se apenas epidemia, fica determinado que cada um dos referidos cirurgiesreceba doze pence por corpo que examine, a serem pagos pelos recursos da pessoaexaminada, se ela dispor de meios, ou ento pela parquia.

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    Enfermeiras

    Caso qualquer enfermeira se retire de qualquer casa contaminada antes de sepassarem vinte e oito dias da morte de qualquer vtima da peste, a casa para onde aenfermeira se dirigir ser fechada at que se complete o prazo de vinte e oito dias.

    ORDENS REFERENTES S CASAS CONTAMINADAS E PESSOAS

    SOFRENDO DE PESTENotificao da doenaO chefe de cada famlia, assim que algum em sua casa se queixe de manchas ou

    vermelhides, inchaos em qualquer parte do corpo, ou caia de cama perigosamente doentesem causa aparente de outra doena, deve notificar o inspetor de sade at duas horasdepois do aparecimento dos ditos sintomas.

    Isolamento dos doentesAssim que qualquer homem for identificado como portador de peste pelo inspetor,

    cirurgio ou investigadora, ele deve ser isolado na mesma noite e na mesma casa. Casofique assim isolado, mesmo que no venha a morrer, a casa onde adoeceu deve permanecerfechada durante um ms depois da aplicao das devidas medidas preventivas nos demais.

    Ventilao dos objetos

    Para proteo de mercadorias e objetos da epidemia, suas roupas de cama e vesturioe todos os mveis dos quartos devem ser bem ventilados e tratados com fogo e osaromatizantes necessrios dentro das casas contaminadas, antes de serem retirados paraentrar em uso. Isto deve ser feito na presena de um inspetor.

    Fechamento das casasSe qualquer pessoa visitar qualquer homem sabidamente contaminado pela peste, ou

    entrar por vontade prpria e sem autorizao numa casa sabidamente contaminada, a casaque ele habitar deve permanecer fechada durante alguns dias, conforme determinao doinspetor.

    Nada deve ser removido das casas contaminadas, excees, etc.

    Que objeto nenhum seja removido da casa onde algum contraiu a doena paraqualquer outra casa na city (exceo feita ao hospital dos pestilentos, barraco ou qualqueroutra casa de propriedade da pessoa contaminada, desde que faa a mudana com suasprprias mos e ocupe a casa com seus prprios criados). Assim, preserva-se a seguranada parquia onde ocorrer tal mudana, cujas condies e especificaes devem serobservadas pela pessoa contaminada conforme estabelecidas com antecedncia em todos osseus detalhes, sem qualquer custo para a parquia onde ocorra, devendo ser feita noite. um direito de qualquer pessoa que possua duas casas transferir tanto os sadios quanto seusdoentes, conforme preferir, para sua segunda casa; desde que, enviando primeiro os comsade, mais tarde no envie seus doentes para o mesmo lugar, nem traga um so de voltapara junto dos doentes. Os que assim se deslocarem devem permanecer pelo menos umasemana trancados e isolados de toda companhia, por receio de alguma infeco que notenha aparecido logo no comeo.

    Enterro dos mortosQue o enterro dos mortos com peste ocorra nas horas mais convenientes, sempre

    antes do sol nascer e depois do pr-do-sol, com autorizao do encarregado da parquia ouda polcia e nunca de outro modo. Nenhum vizinho ou amigo pode acompanhar o corpo ata igreja ou entrar na casa contaminada, sob pena de ter sua casa fechada ou ser preso.

    Nenhum cadver de morto com peste deve ser enterrado ou permanecer na igreja nashoras de rezas pblicas, sermes ou missas. Nenhuma criana pode estar presente na hora

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    do enterro de qualquer corpo em qualquer igreja, cemitrio e cercanias, nem chegar pertode cadveres, caixes ou sepulturas. As covas devem ter pelo menos seis ps9 deprofundidade.

    E ainda mais, ficam proibidos os cortejos fnebres dos demais enterros enquantodurar esta epidemia.

    Nenhum objeto contaminado pode circularQue roupa nenhuma, objetos, cobertas de cama ou trajes possam ser retirados outransferidos de qualquer casa contaminada e que os anunciantes e carregadores ambulantesde cobertas e roupas velhas para venda ou aluguel sejam terminantemente proibidos ereprimidos e que nenhum comerciante de cobertores e roupas velhas tenha permisso parafazer qualquer exposio pblica ou pendurar em sua barraca, balco de loja ou vitrinediante de qualquer rua, beco ou passeio pblico qualquer cobertor ou roupa velha posta venda, sob pena de priso. Caso algum comerciante ou outra pessoa compre qualquerroupa, cobertor ou outra coisa vinda de qualquer casa contaminada menos de dois mesesdepois da epidemia ter estado l, sua casa ser fechada como contaminada, assim devendopermanecer por, pelo menos, vinte dias.

    Ningum pode sair de qualquer casa contaminada

    Se qualquer pessoa, por sorte, vigilncia negligente ou outro meio, sair ou forconduzida de um lugar contaminado para outro, a parquia de onde saiu ou foi retirada, aoser informada se encarregar de trazer de volta a pessoa contaminada que fugiu, noite. Aspartes envolvidas nesta contraveno devem ser punidas conforme determinar o vereadordo bairro e a casa que recebeu a pessoa contaminada deve ficar fechada durante vinte dias.

    Toda casa contaminada deve ser identificada

    Que toda casa contaminada seja identificada por uma cruz vermelha com um p decomprimento no meio da porta, bem visvel e com estas palavras inscritas em cima damesma cruz, ou seja: Senhor, tende piedade de ns, l devendo permanecer at areabertura legal das casas.

    Toda casa contaminada deve ser vigiada

    Que policiais supervisionem cada casa fechada para que disponha de vigias, quemantero os moradores l dentro, suprindo suas necessidades com os moradores arcando oscustos se tiverem disponibilidade, ou s custas da comunidade caso no tenham recursos. Ofechamento deve ser pelo espao de quatro semanas aps o restabelecimento total da sade.

    Que sejam baixadas ordens especficas para que as investigadoras, os cirurgies,zeladores e coveiros no andem pelas ruas sem levar na mo uma vara ou basto vermelhode trs ps de comprimento, reconhecvel e evidentemente visvel, no entrando emqualquer outra casa que no a sua prpria, ou naquelas s quais forem designados ouconvocados. Evitaro toda companhia, principalmente se foram empregados recentementeem tais tarefas ou servios.

    Residentes

    Que, onde quer que vrios residentes coabitem uma mesma casa e uma pessoa da casaesteja contaminada, mais ningum, nem da famlia desta casa, seja autorizado a retirar odoente ou a si prprio sem um atestado dos inspetores de sade daquela parquia. Naausncia desse documento, a casa para onde os doentes ou os moradores se dirigirem deveser fechada como se estivesse contaminada.

    Carros de aluguelQue se tomem providncias para que os cocheiros no possam colocar seus carros

    disposio do pblico (como muitos foram vistos fazendo, depois de transportar pessoas

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    contaminadas para o hospital dos pestilentos e outros lugares) antes de serem bem arejados,permanecendo fora de circulao por um perodo de cinco a seis dias depois de prestaremtais servios.

    ORDENS PARA A LIMPEZA E MANUTENO DAS RUASAs ruas devem ser conservadas limpas

    Primeiro, considera-se necessrio e assim se determina que todo proprietrioprovidencie a limpeza diria da rua em frente sua casa, assim mantendo a rua limpa evarrida durante toda a semana.

    Que o lixo seja recolhido das casasQue o lixo e detritos das casas sejam recolhidos diariamente pelos lixeiros e que eles

    avisem sua chegada tocando uma corneta como at hoje tem sido feito.Despejo de esterco longe da cityQue o esterco humano seja removido em recipientes para to longe quanto possvel

    da city e passeios pblicos. Os lixeiros noturnos ou outros ficam proibidos de esvaziar estesrecipientes em qualquer jardim nas cercanias da city:

    Precaues com peixe ou carne passados e com trigo mofadoQue sejam tomadas precaues especiais para que todo peixe malcheiroso, carne

    passada, trigo mofado ou outras frutas estragadas de qualquer tipo tenham sua vendaproibida na city ou em qualquer parte da cidade.

    Que as fbricas de cerveja e casas de bebidas sejam inspecionadas procura de barrisapodrecidos ou bolorentos.

    Que nenhum porco, cachorro, gato, pombo domstico ou coelho seja mantido emqualquer parte da city, ou qualquer suno ande pelas ruas e becos. Caso qualquer bedel ououtro funcionrio encontre porcos soltos, o proprietrio deve ser punido de acordo com aLei do Conselho dos Comuns, e que os ces sejam mortos pelos exterminadores nomeadospara esta finalidade.

    ORDENS REFERENTES A PESSOAS LIBERTINAS E REUNIES DEDESOCUPADOS

    MendigosTendo em vista que nada gera mais reclamaes do que a multido de vagabundos e

    mendigos andarilhos que surgem por todos os lados da city, tornando-se importante fator dedisseminao da epidemia e algo inevitvel apesar de todas as determinaes em contrrio:Fica aqui estabelecido que a polcia e outros a quem compete lidar com o problema devemtomar providncias para que nenhum andarilho vagabundo tenha permisso para ficar pelasruas desta cidade qualquer que seja o motivo, sob as penas da lei, que sero devida eseveramente aplicadas sobre eles.

    Espetculos

    Que todos os espetculos, rinhas de urso, jogos, cantorias de baladas, duelos eatividades semelhantes que promovam concentraes pblicas sejam terminantementeproibidos e os infratores sejam severamente punidos pelo vereador do bairro.

    Proibio de festinsQue todos os banquetes pblicos, especialmente os promovidos pelas companhias da

    city, e jantares nas tavernas, cervejarias e outros lugares de diverses pblicas sejamproibidos at segunda ordem e autorizao. O dinheiro assim economizado deve serutilizado na assistncia e socorro dos pobres contaminados pela peste.

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    Casas de bebidas

    Que a embriaguez desordeira em tavernas, cervejarias, cafeterias e adegas sejavigiada como um pecado pblico destes tempos e grande fonte de difuso da peste.Nenhuma pessoa ou grupo deve permanecer ou entrar para beber numa taverna, cervejariaou cafeteria depois das nove da noite, conforme uma antiga lei e costume desta cidade, sob

    as penalidades por ela estipuladas.Para melhor execuo destas ordens, assim como de outras normas e determinaesque se faam necessrias depois de maiores consideraes; Fica estabelecido e juramentadoque os vereadores, seus substitutos e conselheiros comuns