The Fantastique and the Marvelous

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THE FANTASTIC AND THE MARVELLOUS IN MIA COUTO’S NARRATIVE by ANA PAULA DOS REIS ALVES ROBLÉS submitted in part fulfilment of the requirements for the degree of MASTER OF ROMANCE LANGUAGES in the subject PORTUGUESE at the UNIVERSITY OF SOUTH AFRICA SUPERVISORS: MONICA DE ALMEIDA AND FERNANDA JONES JANUARY 2007

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THE FANTASTIC AND THE MARVELLOUS IN MIA COUTOS NARRATIVE by ANA PAULA DOS REIS ALVES ROBLS submitted in part fulfilment of the requirements for the degree of MASTER OF ROMANCE LANGUAGES in the subject PORTUGUESE at the UNIVERSITY OF SOUTH AFRICA SUPERVISORS: MONICA DE ALMEIDA AND FERNANDA JONES JANUARY 2007 2 O FANTSTICO E O MARAVILHOSO NA NARRATIVA DE MIA COUTO SUMRIO Estadissertaobuscademonstrarapresenadofantsticoedo maravilhoso na narrativa de Mia Couto.Paratal,apresenta-seumadiscussotericaacercadessesdoisgneros, retomando-se o que de mais importante se tem escrito sobre o assunto. A seguir, procede-se anlise do fantstico e do maravilhoso na narrativa de Mia Couto, recorrendo a exemplos dos seus contos e romances. Esta anlise incluiumadefiniodecadaumdestes gneros,adequadaespecificidadeda obra do escritor; um estudo dos temas fantsticos e maravilhosos mais frequentes; e, por fim, uma caracterizao dos discursos fantstico e maravilhoso.

PALAVRAS-CHAVE Fantstico; Literatura Moambicana; Maravilhoso; Mia Couto; Narrativa. 3 THE FANTASTIC AND THE MARVELLOUS IN MIA COUTOS NARRATIVE SUMMARY This dissertation aims to demonstrate the presence of the fantastic and the marvellous in Mia Coutos narrative. In order to achieve these objectives, the first step is to contextualize these two genres, making a brief reflexion about the most important theories on this subject. Afterthistheoreticalchapter,thisthesisanalysesthefantasticandthe marvellous in Mia Coutos work by giving examples from his short stories and novels. This chapter also includes a definition of each genre, specifically adapted to the writers narrative; a study of most frequent fantastic and marvellous themes;and, finally, a description of fantastic and marvellous discursive features. KEY WORDS Fantastic; Marvellous; Mia Couto; Mozambican Literature; Narrative. 4 AGRADECIMENTOS Aos meus pais que, em primeira instncia, proporcionaram e incentivaram a minha aprendizagem. Ao meu marido, pelo estmulo e pacincia com os meus horrios. Ao Mia Couto, pelo imenso prazer de o conhecer. sminhasorientadoras,nosomentepelotrabalhodeorientao,mas tambm pelo apoio e amabilidade. 5NDICE Pgina 1. Introduo6

2. O fantstico e o maravilhoso: contextualizao terica 8 2.1. O fantstico 9 2.1.1. Origens e percurso do fantstico 11 2.1.2. O fantstico: abordagens 14 2.1.2.1. O fantstico tradicional 17 2.1.2.2. O fantstico contemporneo21 2.1.2.3. O fantstico e o surrealismo24 2.1.2.4. O realismo mgico 25 2.2.O maravilhoso 28 2.2.1. Origens e percurso do maravilhoso 29 2.2.2. O maravilhoso: abordagens 31 3. O fantstico e o maravilhoso na narrativa de Mia Couto34 3.1. O fantstico na narrativa de Mia Couto 34 3.1.1. Definio35 3.1.2. Caractersticas temticas36 3.1.3. Caractersticas do discurso 54 3.2. O maravilhoso na narrativa de Mia Couto 67 3.2.1. Definio67 3.2.2. Caractersticas temticas68 3.2.3. Caractersticas do discurso 73 4. Concluses 77 5. Bibliografia80 6. Anexo: Conversa com Mia Couto 90 6 1. Introduo Estadissertaoprocurapreencherumalacunanosestudossobrea narrativa de Mia Couto, a saber, a falta de literatura a respeito da presena do sobrenaturalnasuaobra.Dadoqueosobrenaturalumdosaspectosmais marcantes e frequentes da escrita coutiana, espera-se que uma investigao sobre este tema possa contribuir de maneira significativa para o conhecimento da obra deste autor. Este trabalho foi organizado em funo de dois grandes objectivos e a investigao a ele inerente seguiu esses mesmos dois momentos. Relativamente aoprimeiromomento,tratadonocaptulo2equetemcomoobjectivodefinir fantsticoemaravilhoso,feitaumapanormicadoquemaisimportantese escreveusobreestesdoisgneros,quesodefinidosapartirdeautorescomo Tzvetan Todorov, Irne Bessire e J .P. Sartre, entre outros. Nosegundomomentodatese,correspondenteaoterceirocaptulo, comea-sepordefinirquetipodefantsticoedemaravilhososeencontrana narrativa coutiana. Procede-se, de seguida, anlise das principais caractersticas temticas e discursivas destes gneros na narrativa em estudo; estas caractersticas socorroboradascomexcertosdecontoseromancesdeMiaCouto.Porser imensaalistadepassagenstextuaisemqueestasestruturasnarrativasesto presentes, so seleccionados, no corpo da monografia, os episdios e as passagens mais relevantes. Considerandoottuloeosobjectivosqueforamestabelecidos,a metodologia que mais se adequa a este tipo de estudo , sem dvida, a anlise textual, principalmente no terceiro captulo. Este um mtodo qualitativo, que trabalhacominformaotextualecomacompreensodoseusignificado. exactamente isso que se pretende: compreender a organizao e a presena do fantstico/maravilhosonanarrativadeMiaCouto,tendocomobaseaanlise destas estruturas narrativas nos seus textos. 7Por ltimo, e ainda relativamente a aspectos metodolgicos, h que referir a necessidade de uma anlise de tipo indutivo. O mtodo indutivo comea com umaobservaomaisespecficadosfactosedesenvolve,posteriormente,uma conclusodecarctermaisgeral.Nestamonografia,depoisdeverificadaa presena do fantstico e do maravilhoso na obra de Mia Couto, avana-se para umacaracterizaoecompreensodapresenadestesgnerosnanarrativado escritor. 82. O fantstico e o maravilhoso: contextualizao terica SegundoJ eanMonardeMichelRech,naobraLeMerveilleuxetle Fantastique (1974:3), todo o homem tem, inconscientemente, uma necessidade de se maravilhar para compensar o excesso da razo e da tcnica dos tempos de hoje. Nesta perspectiva, o universo fantstico e o universo maravilhoso correspondem a umaevaso;paraestesautores(1974:3),literaturafantsticaeliteratura maravilhosa aparecem como esforos de uma razo superior que inclui o irreal no seu campo de aco, para melhor explicar, esquecer ou aniquilar a realidade. Nasuaessncia,aliteraturafantstica/maravilhosatemcomoobjectoo relato de fenmenos excepcionais ou inexplicveis, estranhos ao mundo da nossa experinciaequeentramemcontradiocomasleisqueregemomundo objectivo. Se se considerar que o mundo real o mundo racional, o mundo tal como o compreendemos e o explicamos, podemos afirmar que o fantstico e o maravilhoso encontram no sobrenatural um meio de fuga do real, um meio para exprimir o que o racional e o consciente no conseguem explicar, descrevendo tudo aquilo que no se ousa mencionar como realidade. Neste sentido, e ainda segundoMonardeRech(1974:7),aliteraturafantstica/maravilhosauma literatura de revolta e corresponde ao inconsciente normalmente reprimido pela sociedade,umavezquerevelaapartemaisocultadetodosns:osnossos instintos, as nossas aspiraes e os nossos fantasmas. A literatura fantstica/maravilhosa corresponde ainda a uma abolio de limites: o sobrenatural elimina as barreiras entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso,onormaleoanormal;aexperinciadoalm,dosobrenaturalque convive com o real (Monard & Rech, 1974:7). Fantsticoemaravilhosodesempenhamnoimaginriohumanopapis semelhantes.Seroestesdoisgnerosapenassinnimosdeumamesma realidade? De acordo com Monard e Rech (1974:6), o fantstico e o maravilhoso tmtemticascomuns,somenteaformadetratamentodotemasealtera.Um 9mesmo acontecimento, uma mesma imagem, pode ter um tratamento fantstico, maravilhoso, ou mesmo realista. O objectivo do presente captulo , depois desta breve reflexo sobre os pontos comuns aos dois gneros, tentar compreender a especificidade de cada um deles. Vejamos, de seguida, a contextualizao terica destes gneros. 2.1. O fantstico Apalavrafantstico,noseusentidoetimolgico(phino,emgrego, significa revelar, aparecer, mostrar, fazer brilhar), est em estreita relao com a funo imaginria, que uma importante faculdade do conhecimento. Para J os Coelho Braz, no artigo Algumas consideraes sobre literatura fantstica(s.d.:1-2),acompreensodofantsticopassapelacompreensoda literatura, uma vez que, de um modo geral, a literatura, assim como o fantstico, lidacomaconstruodeumairrealidade.Aliteratura,porsermetafrica, fico, algo que tenta passar por verdadeiro, uma mentira que procura sugerir-se verdade,umnoacontecidoqueseapresentacomoacontecidorealmente. Enquantoformadeconhecimento,aliteraturanobuscaoverdadeiro,nemo objectivamentedescritivo;aprofunda,sim,temascomoamisria,atristeza,a angstia, o medo, a beleza e a esperana, buscando discutir e entender a condio humana.Liga-seelidacommitosesmbolos,procuraquestionarascertezas, insuflar a dvida, tenta desorganizar o que se acha arrumado, quebrando a casca das aparncias. Considerando que toda a arte um eterno e essencial fingimento, dentrodesseespaoficcionaldamentiraconvencionadaprocuramostodos discutir, compreender e interpretar melhor e mais profundamente a verdade no revelada, subjacente aparncia das coisas. Oespaoficcionalfantstico,conformedizFilipeFurtadoemA ConstruodoFantsticonaNarrativa(1980:46),sfuncionaseapresentar alguma verosimilhana. Verosimilhana no subentende, segundo este autor, uma 10escrupulosa cpia do real, dado que uma narrativa no se torna verosmil apenas por traduzir o real com grande fidelidade, j que nem sempre o prprio real verosmil. Isto equivale a dizer que: () o verosmil remete o texto, antes de mais nada, para um corpus complexo, basicamentedeterminadopelascamadassociaisdominantesnumapocaenum espaogeogrficodefinidos.Compem-noasnormasdecondutaindividuale colectivaacorrentementeobservadaseaslinhasfundamentaisdacarga ideolgica que essas normas pressupem. (Furtado, 1980: 46) Esta noo de verosimilhana, determinante para compreender a essncia daliteratura,igualmenteimportanteparaadiferenciaodefantsticoe maravilhoso, como se ver adiante. Enquanto o maravilhoso no evidencia, em geral, a mnima preocupao em ajustar ao senso comum o mundo inverosmil quasesemprearbitrrioqueencena,ofantsticoprocuraseguirosditamesda opiniopblicaemover-senomundoverosmil.Consequentemente,otipode verosimilhanadequeostextosprocuramcobrir-seconstitui,pelasua variabilidade,umdoscritriospossveisnacaracterizaodestesdoistiposde textos literrios. Se considerarmos, por exemplo, a narrativa de Mia Couto, ser possvelidentificarognerofantsticonasinmeraspreocupaesde verosimilhanaemtermosdeespaoedetempo,comoserdemonstradono prximo captulo. Podemos dizer que a literatura , na sua prpria essncia, uma prtica de construo de uma realidade que se sobrepe realidade emprica, concreta. Para entend-la devemos considerar que as duas realidades a concreta e a ficcional entramnumjogodeinterdependnciasemqueaficcionalvistacomouma irrealidade em relao concreta, no como um reflexo desta, mas como uma tentativadecaptaodoseusignificado.TalcomoafirmaJ osCoelhoBraz (s.d.:2), embora a irrealidade seja condio no s do fantstico como de toda a literaturaficcional,nemtodaaobraliterriaumaobrafantstica;ofactode haverelementoscoincidentesentrealiteratura,emgeral,eofantstico,em particular,decorredeofantsticoserumamanifestaoesttica fundamentalmenteliterria.Aquestodeveserpostaemtermosdoqueque 11caracteriza especificamente o fantstico, comeando por conhecer as suas origens e percurso. 2.1.1. Origens e percurso do fantstico Segundo J os Coelho Braz, no j citado artigo Algumas consideraes sobre literatura fantstica (s.d.:2), a narrativa fantstica constitui-se num gnero literrio que, por lidar com o sobrenatural, ou com o inexplicvel de qualquer tipo ou forma, remonta aos primrdios da prpria literatura. Para este autor, a literatura fantstica, entendida como qualquer tipo de criao literria que no d prioridade representaorealista,englobamitos,lendas,escritossurrealistas,contosde terror, etc. Mais propriamente do que gnero literrio, a literatura fantstica uma tendncia, observada ao longo de toda a histria da literatura. Na trajectria da sua construo,ofantsticofoi-sedesprendendodofundocomum,queo sobrenatural, e foi-se definindo aos poucos, firmando as suas caractersticas, at chegaraoquerepresentanaactualidade.Nessatrajectria,nosomenteo fantstico se firmou como um gnero narrativo com caractersticas prprias, mas tambm os gneros a ele contguos, como o maravilhoso, se foram construindo (Op. Cit. s.d.:2). J osBrazsegueafirmando(s.d.:2)queasprimeirasmanifestaes literrias, quer sagradas (Bblia) ou picas (narrativas de exaltao de um heri ou de um povo, como as epopeias gregas), quer ainda o conjunto de narrativas que compemofabulriopersa,apresentavamcaractersticasdofantsticoedo maravilhososobformadoinslito,doinexplicveledoirracional,queeram apresentadospelovisreligiosoedasmitologiasquetudoexplicavam:a intervenodivinaeraconsideradaumaocorrnciacomumeomundo sobrenaturalconviviacomonaturalsemmarcasdistintivas.Oquotidianodas pessoas oscilava entre dois mundos, o real e o sobrenatural religioso, sem que houvessesoluodecontinuidadeouanegaodeumoudeoutro(Op.Cit. s.d.:2). 12Entretanto, foi no sculo XVIII, com a literatura gtica, que o fantstico encontrou as bases para todo o seu desenvolvimento posterior, desligado do vis religioso.Nascidoentreasdiversaslinhasideolgicasquereagemcontrao optimismoconfiantedopensamentoiluministaedesenvolvidodurantea consolidao do movimento romntico, o fantstico manifesta desde cedo a sua hostilidade ou, pelo menos, o seu cepticismo perante as conquistas cientficas do intelecto humano, j ento bastante notrias. Ao discutir a trajectria do gnero fantstico em Lo Fantstico en la Obra de Adolfo Bioy Casares (1994), Francisca Surez Coalla chega concluso de que as manifestaes literrias do fantstico atravessaram fases distintas, a saber: -NofinaldosculoXVIIIeinciodoXIX,ognerofantsticoexigiaa presena do elemento sobrenatural, advindo o medo da figura de um fantasma ou monstro; -No sculo XIX, o fantstico passa a explorar a dimenso psicolgica, sendo o sobrenatural substitudo por imagens assustadoras cuja origem est na loucura, em alucinaes, pesadelos; -No sculo XX, o fantstico transporta-se para a linguagem, por meio da qual criada a incoerncia entre elementos do quotidiano e da vida comum. A causa da angstia humana est na falta de nexo na ordenao de coisas comuns, na falta de sentido, no surgimento do absurdo. SegundoCoalla,aconstantetransformaoporquepassaaliteratura fantstica deve-se ao facto de ela sempre constituir uma resposta ao complexo de preceitos,hbitoseconvenesdominantesnomeiosocialemquefoicriada: pode-seentenderessacategorialiterriacomouminstrumentoaservioda rebeldiaespiritual,socialeartstica.Assim,desenvolvidanumapocaque descobriuaimportnciadoindivduo(sculoXVIII)eviudespontardiversos elementos basilares para a modernidade tais como a Declarao dos Direitos do 13Homem, o acesso universal educao e consequente ampliao do pblico leitor, a transformao da arte em mercadoria e o surgimento da literatura de massas a narrativa fantstica impe-se como veculo de expresso do sujeito e mecanismo de crtica e transgresso da situao vigente (Coalla, 1994). Ainda para Coalla, no percurso do gnero fantstico, podem ser destacadas vrias temticas e obras representativas das mesmas:

-Reaco aos tabus da sociedade ao tratar, veladamente, de tpicos proibidos, como a sensualidade do acto amoroso (veja-se Dracula, de Bram Stocker), ou a liberao de impulsos agressivos e anti-sociais, tal como em Dr.Jekyland Mr.Hyde,deR.L.Stevenson,obraemqueodualismo,ouseja,a manifestao de um duplo, representa uma faceta escondida da personalidade humana; -Substituiodomundotangvelporumaoutrarealidademaiselevadae potica, para cuja representao concorrem o mito, os smbolos, as metforas (por exemplo, O Imortal, de J . L. Borges, que descreve a busca da Cidade dos Imortais por uma personagem, junto qual corre um rio cujas guas do a imortalidade a quem as bebe); - Libertaodoterrordiantedamorteedonada(anulaodoindivduo), atravs da sua representao dentro da narrativa enquanto forma de exorcizar e vencer o medo inspirado por eles (como acontece no romance O Retrato de DorianGray, de Oscar Wilde, em que se encontra uma verso para o mito faustianodaperdadaalmaemtrocadeprazeresmundanos:umhomem dotadodeumabelezararaeaparnciainocente,masguiadoporforas estranhas para uma busca incessante de prazeres, lanando mo de todos os recursos, justos ou no, racionais ou irracionais, sadios ou mrbidos); 14-Representao do absurdo e falta de sentido da vida por meio da criao de situaesinslitas,incompreensveis,ilgicas,quepememxequeanossa capacidade racional de entender a realidade (a obra de Franz Kafka); -Explorao dos limites da ficcionalidade, atravs da sobreposio ou mesmo decomposiodoselementostradicionaisdanarrativaedalinguagem(A Continuidade dos Parques, de J ulio Cortzar, em que uma personagem l um livro - fico dentro da fico - e onde se apagam os limites dos dois nveis da ficcionalidade: a histria que o homem l a sua prpria histria). (Conferir Coalla, Lo Fantstico en la Obra de Adolfo Bioy Casares, 1994) Negando a morte e todos os factores de aprisionamento ou limitao do indivduo, o fantstico abre as portas imaginao, libertao dos impulsos, experimentao de novos recursos de criao ficcional. Vistasassuasorigensepercurso,voltemosperguntajformulada anteriormenteoquequecaracterizaespecificamenteofantstico?Eque abordagens tm sido feitas sobre este gnero? 2.1.2. O fantstico: abordagens Aocontrriodamanifestaodofantsticoque,comofoidito previamente, remonta aos primrdios da literatura, o seu estudo aprofundado relativamente recente, assim como a sua definio. Definir fantstico no fcil. Ao que parece, mesmo quando utilizam a palavra definio, os autores procuram explicar o fantstico a partir das relaes que apresenta com os gneros literrios contguos, nomeadamente, o maravilhoso e o estranho. Apesar das dificuldades, vriasforamastentativasdedefiniodognerorealizadasportericosda literatura, que podemos agrupar em quatro principais abordagens. 15Umadasprimeirasdefiniesdefantsticosurgiucomosurrealismoe com Andr Breton que, em 1924, estrutura o conceito de mundos paralelos. Este pontodevistapossibilitaumaaproximaoentreomundosurrealeomundo fantstico, mas difere do mesmo em relao a um assunto polmico e crucial: a indefinio entre estes dois mundos. Oescritornorte-americanodenarrativassobrenaturais,H.P.Lovecraft, quedefiniuoconceitodeliteraturafantsticanaobraSupernaturalHorrorin Literature,publicadaem1945,tambmumdospioneirosnadefiniodeste gnero. Na introduo deste livro, Lovecraft define a literatura fantstica como sendo aquela capaz de suscitar o medo no leitor, mais exactamente o medo do desconhecido.Assim,factosnoexplicveisatravsdacinciaconstituiriamo focodanarrativafantstica.Sendoumadasprimeirastentativasde equacionamentodestenovotipodeliteratura,oseuenfoquevoltou-separao agrupamentodostemasrecorrentesemnarrativasdecunhofantsticoou sobrenatural e vrias das afirmaes feitas neste livro tornaram-se referncia em trabalhos posteriores, tais como a importncia do leitor implcito para o gnero fantstico e a curta durao do fenmeno fantstico em si. Em1947,ofilsofoJ .P.SartrepublicaSituationsIe,nocaptulo denominadoAminadaboudufantastiqueconsidercommeunlangage, apresenta a classificao de gnero fantstico contemporneo para os contos de natureza fantstica que haviam sido escritos no sculo XX. Estabelece-se, assim, uma diviso conceptual entre o gnero fantstico realizado at ao incio do sculo XX,ouofantsticotradicional(definioposteriormenteintroduzidapor Todorov), e o fantstico definido por Sartre, realizado a partir do sculo XX por autores como Kafka. Peter Penzoldt, por sua vez, em The Supernatural in Fiction, publicado em 1952, procura interpretar a literatura fantstica de um ponto de vista psicanaltico baseadoemconceitosdesenvolvidosporSigmundFreud,dentreelesos 16mecanismos do inconsciente e do sonho, e que proporcionam uma interessante perspectiva no estudo do gnero fantstico. ComTzvetanTodoroveasuaobraIntroductionlaLittrature Fantastique,de1970,temosacessoaumestudomaispormenorizadoe consistente das caractersticas formais da literatura fantstica. Como veremos no prximo captulo, Todorov dialoga com Sartre, concordando com a viso segundo a qual o sculo XX assistiria a uma redefinio de fantstico. Todorov vai, no entanto, centrar os seus estudos naquele a que chama fantstico tradicional. Estasntesedatrajectriadofantsticonopodeestarcompletasema referncia a dois tericos que introduziram a noo, hoje corrente, de realismo mgico.AngelFlores,em1985,eEnriqueAndersonImbert,em1976,soos autoresquecomeamafalardestaramificaohispano-americanadaliteratura fantstica. A concepo literria do realismo mgico assenta, essencialmente, na simultaneidadedorealedoimaginrioenaintegraodopensamentomtico enraizado em tradies ancestrais. Depoisdestabreveperspectivadopercursodofantstico,podemos agrupar estas reflexes em quatro principais abordagens: o fantstico tradicional, o fantstico contemporneo, o surrealismo e o realismo-mgico. Os quatro pontos que se seguem focam cada uma destas abordagens, determinantes para o modo como este gnero foi sendo definido durante o sculo XX e, em especial, para o estudo do fantstico na obra de Mia Couto. Analisa-se o conceito de fantstico tradicionaldeTodorov,adiferenciaoentreotipocontemporneoeo tradicional, estabelecida por Sartre, a abordagem surrealista deste gnero e, por ltimo, o fantstico sul-americano, conhecido por realismo mgico. 172.1.2.1. O fantstico tradicional EmIntroductionlaLittratureFantastique(1970),Todorovdefine fantstico tradicional: Le fantastique, cest lhsitation prouve par un tre qui ne connat que les lois naturelles, face un vnement en apparence surnaturel. (p.29) Paraqueestahesitaoocorra,trscondiesdevemsersatisfeitas:o leitordeveconsideraromundodaspersonagenscomoummundodecriaturas vivasehesitarentreumaexplicaonaturaleumaexplicaosobrenatural;a hesitao deve ser confiada a uma personagem, que se torna um leitor implcito; e necessrio que o leitor adopte uma certa atitude para com o texto, ao recusar tanto uma leitura alegrica quanto potica. A primeira e a terceira condies so fundamentais para a ocorrncia do fantstico, ao passo que a segunda pode no ocorrer (Todorov, 1970:37-38). Assim, o fantstico dura o tempo da incerteza entre uma explicao natural ou sobrenatural, pois se o leitor escolher uma resposta que o faa sair da dvida, entra nos dois outros gneros vizinhos: o estranho e, mais importante no contexto destetrabalho,omaravilhoso.Ofantsticositua-senolimiteentreestesdois gneros e nele os acontecimentos sobrenaturais actuam como algo perturbador, porque eles se colocam no seio do mundo real, obrigando o leitor a optar por uma dasduasexplicaes:ousetratadeumailuso,efeitodaimaginao(asleis naturais continuam a ser o que so), ou ento os factos ocorreram realmente e no podem ser explicados pelas leis que conhecemos (Todorov, 1970:46). AindaparaTodorov(1970:65),existemdoisperigosiminentesparaa continuidadedomundofantstico.Primeiramente,aleiturapoticapoderia finalizar a hesitao e, logo, o fantstico, j que permite uma sequncia mais livre edesvinculadadecausaseefeitos,assimcomodepersonagenseenredo.O segundoperigoestariasituadonaleituraalegrica.Aalegoriatratadade maneiramaisintensaporTodorov;estadenotaumsentidofiguradoopostoao 18sentidoficcionalouliteraldotexto.Destaforma,naoposioentrealegoriae sentidoliteral,umoutropatamardaliterariedadeanalisado.Ainterpretao inicialdeumfactonarradopodeassumirumoutrosentido.Entretanto,sea alegoria no categrica, explcita, pode vir a tornar-se mais uma ferramenta paraqueseestabeleaadvida.Almdestefacto,muitoscontosalegricos somenteexplicitamoseuaspectototalizadornofinaldotexto.Duranteo desenrolardanarraopodemosvivermomentosfantsticos,quesso considerados como alegoria no trmino da leitura. Todorov acaba por concluir que tanto a imagem potica quanto a alegoria podem tornar-se aliados do fantstico, se empregues com a parcimnia devida. Ampliando as ideias de Todorov, Filipe Furtado, no livro A Construo do FantsticonaNarrativa(1980),apontaoutroelementoquepoderiaeliminaro momento fantstico os efeitos cmicos: Esses efeitos anulam o equilbrio da ambiguidade fantstica e levam a narrativa a recuar at ao grotesco. Assim, tornando a manifestao meta-emprica objecto do riso de diversas personagens, suprimem qualquer dvida quanto possibilidade da suaexistnciaobjectiva,aomesmotempoqueviabilizamleiturasdecarcter alegrico. (p.69) Segundo este autor, o motivo da aniquilao do efeito fantstico no seria o uso do recuo cmico, mas a leitura alegrica, j descrita por Todorov. Contudo, o efeito cmico, por si s, seja ele grotesco ou irnico, no extingue a dvida estabelecidaatravsdoselementosdofantstico(1980:68).Estaideia determinante para a anlise do fantstico na obra de Mia Couto, como veremos no prximo captulo. Para Furtado, o elemento bsico, caracterizador da literatura fantstica, o sobrenatural, ou o meta-emprico, entendendo como tal o que esteja: (...) para alm do que verificvel ou cognoscvel a partir da experincia, tanto por intermdio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da mente humana, como atravs de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades. (p.20) 19E continua: (...) o conjunto de manifestaes assim designadas [como meta-empricas] inclui noapenasqualquertipodefenmenosditossobrenaturaisnaacepomais correntedestetermo(...),mastambmtodososque,seguindoemboraos princpios ordenadores do mundo real, so considerados inexplicveis e alheios a ele apenas devido a erros de percepo ou desenvolvimento desses princpios por parte de quem porventura os testemunhe. (p.20) bomrecordarqueometa-emprico,ouosobrenatural,quernoseu sentidoreligioso,quernosentidodeestaralmouforadonatural,no caractersticaexclusivadofantstico.Apresenadosobrenaturalnofantstico ocorre de forma particular. Trata-se de uma invaso do inexplicvel no mundo concreto,criandoumasituaoangustiantedeambiguidadequeabalaanossa compreenso baseada na experincia quotidiana. No fantstico, o sobrenatural no aceite nem vivido (como acontece no gnero maravilhoso). Irne Bessire outro nome determinante para a definio do fantstico tradicional, pois tambm ela parte das premissas de Todorov para aprofundar o estudodognero.EmLeRcitFantastique(1974),nocaptuloLexprience imaginairedeslimitesdelaraison,Bessireapresentaumadefiniode fantsticobaseadanacontradioentreonaturaleosobrenatural.Otexto fantstico , sobretudo, uma representaoda realidadeque atingeo leitorpor meiodailuso,causando-lheumasensaodeestranhamento.Arecepodo texto fantstico no se coloca em termos de crenas ou referncias culturais do autor e do leitor, mas pelo uso da imaginao do autor em captar a sensibilidade do leitor. Apesar de o texto fantstico se prender ao ilusrio e ao irreal, no exclui aautenticidadeeaverosimilhana,poisairrealidadedassuaspremissasdeve estarligadaaorealconcretoeaoscdigosscio-cognitivosdoleitor(Op. Cit.1974:29-64). Assim, segundo Bessire, possvel dizer que o real parece comandar a organizaodanarrativafantstica,tomandoporbaseacontradiorecproca entrepremissasracionaiseirracionais.Deacordocomatericafrancesa (1974:56),adefiniodefantsticopropostaporTodorov,ejcitadaneste 20captulo, pouco precisa. O indivduo, vtima dos acontecimentos, conhece as leis naturais, porm tem problemas quanto postura a ser adoptada face aos factos: se eles so naturais ou sobrenaturais. Escolher uma das duas posturas , para esta autora,solucionaroproblema,oqueanarrativafantsticatendejustamentea recusar. Como tal, para Bessire, a definio de Todorov, centrada na hesitao, reduz o fantstico ao estranhamento e ao jogo do real e do imaginrio, dualidade natural-sobrenatural, razo-iluso (1974:249). Segundo Todorov, um texto, para ser considerado fantstico, necessita que a hesitao seja mantida at ao fim da narrativa, limitando a sua definio ao estreito cerco da hesitao, esquecendo-se que,emalgumasnarrativas,oprotagonistapodenooptarpornenhumadas solues, enquanto o leitor escolhe a que melhor lhe convm. SegundoBessire(1974:211),ofantsticotradicionalnoresultada hesitao entre o natural e o sobrenatural, mas da contradio e da recusa mtua e implcitaentreessasduasordens.Naverdade,notextofantstico,aordem racional entra em confronto com a sobrenatural, desconstrudas simultaneamente parainstalaraincerteza.Poroutraspalavras,oelementosobrenaturalactua desracionalizandoarealidade,masparticipa,porsuavez,domundoreal.O racionaleoirracional,orealeoirreal,coexistemnointeriordanarrativae conduzem ambiguidade, remodelando o sistema cultural com que se relacionam. Il [le rcit fantastique] rappelle que toute cration esthtique voit doublement le monde,lefigurepardeuxrationalits(...).Ilinstallelincertitudeparcequil placeentrelesdeuxrationalitsunrapportdgalitetnonplusunrapportde subordination de lune lautre. (Bessire, 1974: 210-211) Emsuma,paraBessire,anarrativafantsticaprovocaaincerteza, aliandoproposiescontraditriasdeacordocomumaorganizaoespecfica, que a coloca nos limites extremos da razo. 212.1.2.2. O fantstico contemporneo EmSituationsI(1947),nocaptuloAminadaboudufantastique considrcommeunlangage,J .P.Sartredefineoquechamariadefantstico contemporneoemoposioaofantsticotradicional.Segundooautor,o fantstico contemporneo, corrente no sculo XX, seria um desenvolvimento do tradicional,realizadonosculoXIX,eteriaKafkacomooseugrande representante (p.126). A literatura fantstica do sculo XIX surge como reaco a um mundo, regido pelas ideias positivistas, em que o medo no tem mais espao diante da infalibilidadedasleispostuladaspelacincia.Porvircontraestaordem estruturada, o fantstico funciona como uma ruptura. Contudo, no fantstico do sculo XX, tambm denominado neofantstico (Nunes, s.d.:2), a funo de fazer estremecer o leitor com a quebra de uma ordem inviolvel fica perdida. Com a ampliao de horizontes em quase todas as reas do conhecimento humano e a relativizaodoqueseentendiaporabsoluto,aordeminviolvelsofre transformaes.Estemundoordenadosubstitudoporummundode ambiguidade, sempre aberto a uma contnua reviso, tanto dos valores quanto das certezas. Para M.C. S, na monografia Da Literatura Fantstica (Teorias e Contos) (2003),tantonofantsticotradicionalcomonofantsticocontemporneo,os factos transgridem as leis da causalidade. Nesse ltimo, porm, nem leitor nem personagenshesitamdiantedosacontecimentos.Tambmonarradornose espanta diante das ocorrncias que se lhe apresentam. Ao contrrio do fantstico tradicional,noqualumhomemdireitoeratransportadoparaummundos avessas (como Alice que chega ao Pas das Maravilhas ou como Dante que chega aoInferno),nofantsticocontemporneooprpriohomem,geralmente, fantstico e no o ambiente em que se insere ou os acontecimentos que presencia. 22Alm deste facto, o fantstico contemporneo habitado principalmente porsereshumanos.Assim,Sartreexpeoqueseriaasntesedofantstico contemporneo, ou seja, o retorno ao humano. Ao apresentar o homem s avessas, este fantstico no mais explora as realidades transcendentais, mas transcreve a condio humana: (...)pourtrouverplacedanslhumanismecontemporain,lefantastiquevase domestiquercommelesautres,renoncerlexplorationdesralits transcendentes,sersignertranscrirelaconditionhumaine.(Sartre,1947: 126) O fantstico contemporneo afasta-se, segundo Sartre, das fadas do mundo maravilhoso(1947:125).Limita-sesomenteaumobjecto,ohomem.Nasua definio, o homem passa a ser o fim a atingir, ou seja, a grande preocupao do fantstico contemporneo consiste no bem-estar espiritual do homem (1947:126). E com base neste aspecto do retorno ao humano que podemos traar um paralelo entre o fantstico contemporneo e o fantstico em Mia Couto. Nessa caracterizao do fantstico contemporneo, Sartre analisa a obra do autorfrancsAlbertCamusLeMythedeSisyphe(1942),ondeesteescritor recuperaummitodaGrciaAntigapara,atravsdele,apresentarohomem absurdo.ParaCamus,Ssiforepresentaomortalque,condenadopelopoder transcendente dos deuses a empurrar sem descanso uma rocha at ao cume de uma montanha, de onde esta cai de novo, , ao mesmo tempo, impotente e revoltado. Para este autor, o homem absurdo comporta-se como Ssifo. O absurdo de Camus retrata tanto o impossvel de ser atingido quanto o contraditrio, isto , o homem inseridonomundoabsurdonuncaatingeofimpretendido,mas, contraditoriamente, continua a tentar: Jeviensdeledfinircommeuneconfrontationetuneluttesansrepos.Et poussantjusqusontermecettelogiqueabsurde,jedoisreconnatrequecette luttesupposelabsencetotaledespoir(quinarienvoiravecledsespoir),le refuscontinuel(quonnedoitpasconfondreaveclerenoncement)et linsatisfaction consciente (...) (Camus, 1942: 49-50) 23Assim,ohomemabsurdoencontra-sepresonumalutaincessantee infrutfera, denotando o impossvel e o contraditrio. E, para Sartre (1947:100), o homem absurdo o homem do fantstico contemporneo. Para que exista uma luta infrutfera, o narrador ou a personagem central devem esmerar-se na tentativa de atingir um fim que, entretanto, nunca se concretiza. Define-se conscientemente como um lutador absurdo, aquele que empurra a pedra em direco ao cume da montanha,mesmotendoacertezadeque,pertodotopo,serevoltaerola montanha abaixo, obrigando-o a repetir novamente a rdua tarefa. Aoexporacondiodohomemenquantomatriaescravizada,Sartre sugere que, alm dos utenslios materiais, existem homens-utenslios, cuja funo a de servir como um meio, como um soldado, um empregado, um autmato que executainfindavelmenteasuafuno.Ouniversofantsticocontemporneo assume,destafeita,oaspectodemundoburocratizado,povoadoporleissem finalidadeedesconhecidaspelosprpriosexecutores(1947:102).Kafkao representante mximo deste tipo de fantstico que encontramos muitas vezes em Mia Couto, como veremos: um homem absurdo dominado por lutas infrutferas contra foras que o transcendem completamente. Em suma, no fantstico contemporneo, definido por J .P. Sartre, no existe o mesmo espanto que ocorre no fantstico tradicional, uma vez que o mundo que observamos o mundo quotidiano e que o homem constitui o seu nico objecto; a sensaodoabsurdo,deummundocaticoqueinviabilizaconstantementea prpria vida, atinge o leitor de forma incontestvel e igualmente determinante para o fantstico contemporneo. 242.1.2.3.O fantstico e o surrealismo Le fantastique cest lintime qui fait surface et qui drange.Freud (J ean Bellemin-Noel, 1972: 23) Em1924,comAndrBretoneoManifestesduSurralisme,e anteriormente obra de Sartre ou Todorov, surgia o movimento surrealista, cuja atituderevolucionriapretendiaintervirnarealidadelevandoohomemaum estado de liberdade suprema. Tendo como base os estudos de Freud sobre a vida manifesta e a latente e ainda a definio acerca dos mecanismos do sonho (S, 2003:32), os surrealistas estabeleceram um estreito lao entre o mundo da viglia e o do sonho, de forma a resolver os problemas fundamentais da existncia: Tout porte croire quil existe un certain point de lesprit du la vie et la mort, le rel et limaginaire, le pass et le futur, le communicable et lincommunicable, le haut et le bas cessent dtre perus contradictoirement. Or, cest en vain quon chercheraitlactivitsurralisteunautremobilequelespoirdedtermination de ce point.(Breton, 1965: 76-77) A proposta dos surrealistas pretendia unir esses dois mundos, ao contrrio dadescriodefantsticopropostaporTodorov,segundoaqualaatitude fantstica seria gerada por meio do no posicionamento entre os mundos real e irreal. Esta a primeira das vrias diferenas entre o surrealismo e o fantstico tradicional: um ou indefinido, em suspenso, temido e gerador de espanto, entre orealeosonhado,aopassoquenosurrealismotemosume,aglutinador, desejado e definido. Os pontos de contacto entre o surrealismo e o fantstico so variados, mas as diferenas esto igualmente presentes (S, 2003:32). Arealidade,tantoparaofantsticocomoparaosurrealismo, multifacetada,assumindovaloresdiferentesemltiplossegundoavisodo indivduo. No entanto, apesar desta caracterstica comum em relao realidade, para o fantstico as facetas assumem o papel de indeciso, ao passo que para o 25surrealismo passam por uma integrao, faces de um mesmo dado. Assim, se o movimentosurrealistafocalizaprincipalmenteummundoquepermitea convivnciaentreointerioreoexterioratravsdaconciliaodosestadosde sonho e realidade, muitas vezes expressa-se a favor do no posicionamento entre estes dois mundos. Contudo, esta falta de posicionamento no tratada como uma dvidaangustiante,conformedefendidopelanoodefantsticotradicionalj descrita, mas como um estado desejado (S, 2003:37-38). A importncia do acaso outro ponto de contacto entre o surrealismo e o fantstico. O acaso, como conjunto de premonies, de reencontros inslitos e de coincidncias estranhas que se manifestam de tempos em tempos na vida humana, um momento desejado pelo surrealismo. Para o fantstico, da mesma maneira, umapeaimportantenainstauraodoseumundo.Entretanto,separao surrealismooacasoumfim,paraofantsticoummeioparaseatingiro espanto (S, 2003:48). Veremos, no captulo 3, como que esta vertente surrealista do fantstico podeserencontradananarrativacoutiana,nomeadamente,aausnciade posicionamento face ao sobrenatural e a aglutinao do real com o imaginrio. 2.1.2.4.O realismo mgico Esta panormica das principais abordagens do fantstico no poderia estar completa sem considerarmos o fantstico sul-americano, tambm designado por realismo mgico. Autores como Gabriel Garcia Marquez, Isabel Allende e Mrio Vargas Llosa, excelentes representantes do fantstico sul-americano, no podem ser ignorados num estudo sobre a presena do fantstico e do maravilhoso na obra deumescritorafricano.ParainvestigadorescomoGilbertoMatusse,emA Construo da Imagem de Moambicanidade em Jos Craveirinha, Mia Couto e UngulaniBaKaKhosa(1998), evidente a relao que se pode traar entre as literaturas africanas e as literaturas latino-americanas: 26Tivemosocasiodereferirarelaoqueseestabeleceentreasliteraturas africanas e as literaturas latino-americanas. Trata-se de uma relao que decorre fundamentalmentedofactodeumaseoutrasnasceremedesenvolverem-seno mbito de situaes coloniais, o que lhes coloca a necessidade de romperem com o periferismo e vincarem uma identidade prpria. (Matusse, 1998:159) Este desejo de afirmao e a consequente ruptura com a hegemonia dos cnoneseuropeuscontriburamparaagnesedorealismomgicoeapartir deste fenmeno que podemos estabelecer um paralelo com o fantstico africano, poishtambm,emalgunsautoresdefrica,umansiaderupturacomos modelosdoex-colonizadoreanecessidadedeconstruodeumaidentidade prpria. Segundo Maria Fernanda Afonso, em O Conto Moambicano, foi a partir dosanos50queoscrticossul-americanosAngelFloreseEnriqueAnderson Imbert comearam a falar de realismo mgico para caracterizar esta tendncia da narrativahispano-americana(2004:361).Imbert,nolivroElRealismoMagico (1976:7), explica que o termo, nascido na Europa, foi pela primeira vez empregue em 1925, por Franz Roh, para caracterizar a arte de um grupo de pintores alemes que pintavam objectos vulgares sob um olhar maravilhado; a expresso adquiriu deimediatoumaextensomuitovasta,aplicando-sepintura,aocinemae, principalmente,literatura.Estaformaartstica,quedescobrenamagiauma maneiradedescortinaratrsdarealidadeedosonhoumaespciede transcendncia, encontrou grande expresso na Amrica Latina, continente onde a magia est indubitavelmente viva (Afonso, 2004:363). Enrique Imbert parte de uma dialctica, definindo realismo mgico como a sntese do realismo, ou verdico, com o fantstico, ou sobrenatural: [] una tesis: la categora de lo verdico, que da el realismo; una anttesis: la categora de lo sobrenatural, que da la literatura fantstica; y una sntesis: la categora de lo extrao que da la literatura del realismo mgico. (Imbert, 1976:9) 27E, para melhor explicar a diferena entre realismo, fantstico e realismo mgico, apresenta-nos trs tipos de narrador: Un narrador realista, respetuoso de la regularidad de la naturaleza, se planta en mediodelavidacotidiana,observacosasordinariasconlaperspectivadeun hombredelmontnycuentaunaaccinverdaderaoverosmil.Unnarrador fantstico prescinde de las leyes de la lgica del mundo fsico y sin darnos ms explicacionesqueladesupropiocaprichocuentaunaaccinabsurday sobrenatural. Un narrador mgico-realista, para crearnos la ilusin de irrealidad, finge escaparse de la naturaleza y nos cuenta una accin que por muy explicable que sea nos perturba como extraa. (Imbert, 1976:10) Realismomgicoefantsticorepresentam,paraesteautor,universos muito diferentes, o que no exclui a sua presena simultnea na obra do mesmo autor,comoacontececomBorges,porexemplo(Imbert,1976:24).Tambma obra de Mia Couto , como se ver no captulo 3, exemplo da presena simultnea destes dois universos. WojciechCharcalis,noartigoLorealmaravillosoamericanodeMia Couto(s.d.:6),afirmaqueorealismomgicoumamisturadorealcomo sobrenatural,tendocomoparticularidadeaapresentaodeacontecimentos inventadoscomosefossemreais.Ignorandobarreirasoulimites,odiscurso afectado de realismo mgico prope um mundo onde tudo possvel. Distingue-sedofantsticoporqueestesupeahesitaofacepercepodarealidade (Todorov,1970:29),enquantoorealismomgicocontinuaainsistirna simultaneidade, sem requerer qualquer hesitao. No realismo mgico no existe questionamento, pois o sobrenatural aparece integrado na realidade. Para a autora Lindsay Moore, em Magical Realism (1998): Magical realism is characterized by two conflicting perspectives, one based on a rationalviewofrealityandtheotherontheacceptanceofthesupernaturalas prosaic reality. Magical realism differs from pure fantasy primarily because it is setinanormal,modernworldwithauthenticdescriptionsofhumansand society.(p.1) 28No entanto, este lao entre a imaginao e a realidade procura ser discreto, enraizandoimperceptivelmenteosdoisuniversos,umnooutro.Seguindoa perspectivadeDupuiseMingelgrn(1987:224),podemosdizerqueosdois universossosuspensosnummesmomeiohbrido,aflorandooconcretoea imaginao. Na opinio de Maria Fernanda Afonso, esta concepo literria que supe uma relao de influncia entre o real quotidiano e o imaginrio est presente em frica(2004:365).Mais,orealismomgicopareceencontraremfricauma fora particular pelo facto de se ancorar num continente em que o mito faz parte da existncia quotidiana, em que h uma relao necessria de contiguidade entre o real e o imaginrio (Afonso, 2004:365). No terceiro captulo, dedicado anlise do fantstico e do maravilhoso na narrativa coutiana, debruar-nos-emos sobre as influncias do realismo mgico neste autor moambicano. Terminandoaquiacontextualizaotericarelativaaofantstico, passemosaumacontextualizaosemelhanteparaogneromaravilhoso,esta focar as suas origens, percurso e respectivas abordagens. 2.2.O maravilhoso SegundoIrlemarChiampi,emElRealismoMaravilloso(1983:54),o maravilhoso pode ser definido como o extraordinrio, o inslito, o que escapa ao quotidiano das coisas e do humano. Maravilhoso o que contm a maravilha, dolatimmirabilia,ouseja,coisasadmirveis(belasouexecrveis,boasou horrveis), e oposto a naturalia. Em mirabilia est presente o mirar: mirar com intensidade, ver com ateno ou, ainda, ver atravs de. Numa segunda acepo, apontada ainda por Chiampi, o maravilhoso difere radicalmentedohumano:tudooqueproduzidoporintervenodeseres sobrenaturais; tudo o que pertence a outra esfera, no humana e no natural, e que 29notemexplicaoracional(1983:54).Retomandoaquianoode verosimilhanatoimportanteparaofantstico,IrneBessireafirmaqueo maravilhoso surge no plo oposto, ou seja, na inverosimilhana (1974:170), na criao de mundos novos completamente dissociados da realidade e que tem nos contos de fadas um excelente exemplo. semelhana do que foi feito com o fantstico, prosseguimos com uma caracterizao mais aprofundada do maravilhoso, gnero essencial para um estudo do sobrenatural em Mia Couto, como j foi referido anteriormente. Principiemos por uma compreenso das suas origens e percurso. 2.2.1.Origens e percurso do maravilhoso Para Irlemar Chiampi, maravilhoso o conceito adequado para: () designar a forma primordial do imaginrio de obras de todas as latitudes culturais como o Rmayna, As Mil e uma Noites, a Ilada, a Odisseia, as canes degesta,osEddaescandinavos,osNibelungengermnicos,oRomancero espanhol, etc. Constitui igualmente importante elemento da pica renascentista e alcana o perodo romntico na evocao legendria do passado (), e em pleno realismo europeu sobrevive na busca da sobre-realidade (). Tradicionalmente, o maravilhoso , na criao literria, a interveno de seres sobrenaturais, divinos ou legendrios (deuses, deusas, anjos, demnios, gnios, fadas) na aco narrativa ou dramtica. (Chiampi, 1983: 49) DeacordocominformaodaEncyclopaediaBritannicadoBrasil (consultada on-line),omaravilhosotornou-semaisvisvelpeladivulgaoque alcanou, atravs dos sculos, com os contos de fadas e fbulas. Para Cristiane de Oliveira, em artigo sobre a fbula, este tipo de texto j aparece no sculo XVIII a.C., na Sumria. Nascido no Oriente, vai ser reinventado no Ocidente pelo grego Esopo (sculo V a.C.) e aperfeioado, sculos mais tarde, pelo escravo romano Fedro (sculo I a.C.). Ao francs J ean La Fontaine (sculo XVII) coube o mrito de dar a forma definitiva fbula (Oliveira, 2005:1-2). 30AindasegundoaEncyclopaediaBritannicadoBrasil,omaravilhoso afirma-secomogneronaIdadeMdia,constituindo-seentocomopea fundamental de uma literatura primordial cujas obras, como o ciclo arturiano, por exemplo, tm valor inicitico. Atravs da guerra ou do amor, o homem, numa buscaespiritualdeummundoperfeito,postoprovapelosobrenatural.O maravilhoso cristo e o maravilhoso ferico so determinantes nesta poca, como se pode verificar em A Cano de Rolando, A Busca do Santo Graal e A Lenda do ReiArtur. Estas obras tm como alicerce um mundo mgico, onde prevalece a esttica da fora com a exaltao do valor sobre-humano. A manifestao deste maravilhosoenquadra-senumespaodeviolnciaguerreira,deefeitosquase milagrosos,emqueosherissedestacampelapossessodearmas-talisms, smbolosiniciticos,eosprodgiosdanaturezaganhamformaatravsdeum bestirio original, bem como pela interveno dos vrios elementos naturais, que se congregam na realizao das aces hericas.

Osrelatosmaravilhosos,dequefazemparteoscontosfolclricoseos contos de fadas, figuram entre as primeiras manifestaes literrias, no escritas, destegnero.Umadascompilaesmaisimportantesdessetipoderelato atribudaaosirmosGrimm.NolivroKinderundHasmarchen(1812), recolheram grande nmero de narrativas da tradio popular alem, muitas das quais,comooCapuchinhoVermelhoeaGataBorralheira,setornaram mundialmente famosas (Encyclopaedia Britannica do Brasil). Aomaravilhosopertencemaindaobrascomo:AsViagensdeGulliver (1726), de J onathan Swift, um livro que transporta o leitor para uma terra habitada somente por gigantes e uma outra por anes; OMgicodeOz (1900), de Frank Baum, obra em que uma menina, Dorothy, capturada por um tornado e levada paraaTerradeOz,ondeencontramos serescomoleescovardes,espantalhos falantes, um homem de lata, entre muitos outros; AHistriasemFim (1979), de MichaelEnde,emqueapersonagemcentral,ummeninochamadoBastian,se torna personagem do mundo de fantasia contado pelo livro que l; e O Senhor dos Anis(1954-1955),cujoautor,J .R.Tolkien,aomesmotempoquetratatemas 31como o poder, a ambio, a guerra e a morte, numa dimenso muitas vezes pica, concretiza uma das maiores criaes mitolgicas da literatura de todos os tempos e que nos conduz para um mundo cheio de criaturas como elfos, anes, magos e outros povos imaginrios. Depois desta panormica das origens e percurso do gnero maravilhoso, salientam-se, de seguida, as principais abordagens que tm sido feitas sobre este gnero. 2.2.2.O maravilhoso: abordagens Vriosexpoentesdacrticadogneromaravilhososounnimesem afirmar que uma das suas principais determinaes a presena do sobrenatural nassuashistrias.Porexemplo,TzvetanTodorov,cujaobraIntroductionla LittratureFantastique(1970)constituiumimportantecontributosobreessa matria, pois apresenta variados aspectos para a compreenso do maravilhoso e diferencia-o dos gneros prximos, nomeadamente, o fantstico e o estranho. Ou Irne Bessire, autora de Le Rcit Fantastique (1974), cuja reflexo se reveste de grande interesse para o conhecimento da esttica do maravilhoso, porque contm elementos que permitem distingui-lo do resto da literatura sobrenatural. SegundoFilipeFurtado,emAConstruodoFantsticonaNarrativa (1980:44), o fantstico e o maravilhoso propem ao destinatrio da narrativa um universoemquealgumasdascategoriasdorealforamabolidasoualteradase ambosnopermitemqueumaexplicaoracionalvenhareporalgicae reinstalar,porcompleto,oleitornoreal.Osobrenaturaltambmoprincipal elementodiferenciadorentreosdoisgneros,residindoessadiferena exactamente na perspectiva de tratamento, no modo como cada um apresenta e trata os fenmenos meta-empricos no decorrer da narrativa. 32 (...) a diferena bsica entre eles resulta das respectivas atitudes face ao debate entre a razo e o seu oposto que o surgimento da fenomenologia meta-emprica suscita. (Furtado, 1980:39-40) No maravilhoso, a atitude para com o sobrenatural de total adeso por partedas personagens e do leitor, isto , estes no tm qualquer dvida de que esto perante um mundo que nada tem de real. O sobrenatural apresenta-se no apenascomoumacaractersticadogneromaravilhoso,masconstituiasua prpriaessncia,poisouniversoondesepassamasnarrativasmaravilhosas organizado por ele, um mundo parte das leis que estruturam o nosso universo quotidiano.Paraanarrativamaravilhosa,nohestranhamento.Comoexplica Todorov, em As Estruturas Narrativas (1979): Nocasodomaravilhoso,oselementossobrenaturaisnoprovocamqualquer reaco particular nem nas personagens nem no leitor implcito. No uma atitude para com os acontecimentos contados que caracteriza o maravilhoso, mas a prpria naturezadessesacontecimentos.Oscontosdefadas,aficocientficaso algumas das variedades do maravilhoso (...). (p.160) O maravilhoso representa ainda, segundo Furtado (1980), o sobrenatural aceite, em oposio ao fantstico, uma vez que este, como j foi visto, seria o sobrenatural que permanece sem ser aceite nem explicado: Na lisura e honestidade do texto maravilhoso, o destinatrio j sabe com o que conta, no tendo surpresas face a tudo o que nele possa surgir. A a alterao uniforme: personagens, aco e espao obedecem de facto a outra lgica, mas sempre e s a essa. Desde que aceite as regras do jogo, ter na narrativa desse gnero aquilo que se convencionou poder esperar dele: est em pleno sobrenatural, mas no tem quaisquer dvidas sobre isso. (p.44) De acordo com Irlemar Chiampi, os destinatrios do maravilhoso nunca se desconcertamperanteosobrenatural.Contrariamentesurpresa,ao estranhamento,hesitao,doleitordasnarrativasfantsticas,oleitordas narrativasmaravilhosascaracteriza-sepeloencantamento.Oefeitode encantamento do leitor do maravilhoso provocado por uma percepo de uma unidimenso (1983:70), j que o leitor sabe que est perante uma s dimenso: a dimenso do irreal. 33Ainda para Chiampi, esta ausncia da realidade no gnero maravilhoso um instrumento pedaggico e moral, pois permite exemplificar um mundo ideal (1983:71);estesinstrumentoschegaramaomaravilhosoporviadoimaginrio popular, do qual retirou temas e figuras. Tal como afirma Irne Bessire, em Le Rcit Fantastique (1974): Le conte merveilleux contraint daccepter linvraisemblable parce quil le donne pourlesymboledunergulationmoraletduneexpressiondirecteouindirecte dun ordre. (p.170) Bessire apresenta a narrativa maravilhosa como tendo preocupaes de ordem moral, como se o discurso maravilhoso correspondesse a um discurso da legalidade, contra a ilegalidade do fantstico (1974:18). As fbulas so o exemplo deste discurso moralista. CarlosEspritoSanto,emTipologiasdoContoMaravilhosoAfricano (2000),salientaqueonovoeoextraordinrioconstituemtambma substnciadomaravilhoso.Indicaaindaquenouniversomaravilhosotudose pode tornar realidade; os obstculos materiais so miraculosamente suprimidos, as balizas do espao e do tempo abolidas e os limites prprios da condio humana extintos (2000:15). Todas estas caractersticas servem de base anlise do gnero maravilhoso na narrativa de Mia Couto, elaborada no captulo seguinte. 343. O fantstico e o maravilhoso na narrativa de Mia Couto Depoisdacontextualizaotericadofantsticoedomaravilhosoede uma perspectiva das diferentes abordagens dos mesmos, efectua-se, no presente captulo, um estudo destes gneros nos textos narrativos de Mia Couto. Os dois pontos que se seguem obedecem a uma estrutura semelhante: aps uma definio do que o fantstico e o maravilhoso na obra de Mia Couto, procede-se anlise das caractersticas temticas e discursivas destes gneros na narrativa coutiana, a partir de exemplos tirados do corpo da sua obra. 3.1. O fantstico na narrativa de Mia Couto Iniciemosestepontoporumadefiniodefantsticoqueseadapte especificidade da obra de Mia Couto e que melhor caracterize, assim, o fantstico coutiano.SeseconsideraocontextodaliteraturadeMiaCouto,nosedeve deixar de ressaltar que aquilo que pode ser considerado como fantstico depende daculturaemquenosinserimos.ParaGilbertoMatusse(1998),nohum paradigma de fantstico para todas as civilizaes, porque em cada sociedade o inconscientecolectivodeixa-seguiarporumconjuntodemitosecrenasque impregnam o respectivo contexto cultural e social: No h () um padro vlido para todas as sociedades e civilizaes a partir do qual se possa traar uma fronteira entre o que e o que no fantstico. As nossas reflexes partem de uma viso do mundo assente no modelo racionalista ocidental, mas os universos retratados nas obras [moambicanas] pertencem a civilizaes onde imperam outros modelos de pensamento (). (p.171) Portanto, o que para os europeus fantstico pode no ser considerado como tal por um africano. A viso utilizada nesta monografia, para caracterizar o fenmenofantstico,passaporumabasetericaeuropeia,eurocntrica,pois muitosdosfenmenosaquiidentificadoscomofantsticospoderiamser qualificados, por um africano, como algo pertencente esfera da normalidade. As 35palavras de Mia Couto, na entrevista em anexo, Conversa com Mia Couto (pgina 90 desta tese), confirmam esta ideia: Para um leitor europeu a referncia a um homem que, de noite, se transmuta em hiena pode ser do domnio do fantstico. Mas para um moambicano rural (e para a maioria dos urbanos) esse detalhe da ordem do natural. Precisemos, ento, a definio de fantstico que orientar a anlise deste gnero na obra de Mia Couto e que autores foram determinantes para a elaborao desta mesma definio. 3.1.1. Definio Para Todorov, na obra Introduction la Littrature Fantastique (1970), o fantsticodefine-secomoumainvasoabruptadoinexplicvelnomundo concreto,criandoumasituaoangustiantedeambiguidadequeabalaanossa compreenso, baseada na experincia quotidiana. A definio de Todorov implica anoodehesitao,quedevesermantidaataofimdanarrativa(1970:46). Considerando a obra de Mia Couto, j que no se verifica esta caracterstica da hesitao mantida at ao fim da obra, h que fazer uma aproximao definio de Irne Bessire, definio que se adequa muito mais ao tipo de fantstico deste autor:pode-seconsiderarqueofantsticonanarrativacoutiananoresultada hesitaoentreonaturaleosobrenaturalataofinal,masdacontradio momentnea, da recusa mtua entre essas duas ordens. O texto fantstico de Mia Couto no exclui a autenticidade e a verosimilhana, supe mesmo a presena das duas ordens contraditrias (o mundo natural e o sobrenatural), levando o elemento sobrenatural a actuar na desracionalizao da realidade. O racional e o irracional, o real e o irreal, coexistem no interior da narrativa e conduzem ambiguidade. Numasntese,ofantsticocoutianoresultadeumainvasosbitado sobrenaturalnomundoquotidiano,criando umacontradiomomentneaentre 36real/irreal e uma ambiguidade, que fruto desse sobrenatural que permanece sem ser aceite nem explicado. Muitasvezes,porm,estefantsticoemMiaCoutoseaproximado fantstico contemporneo e roa, por vezes, o surrealismo. Com efeito, o retorno aohumanoeoabsurdodavidamodernasoelementosfundamentaisparaa caracterizao do fantstico coutiano. Tambm a coexistncia do pensamento mtico com um espao hbrido de realidade e fico, maneira do realismo mgico, desempenha um papel basilar na construo do fantstico nas obras de Mia Couto. Com efeito, as narrativas coutianasproporcionam-nos,frequentemente,mundosmgicosondetudo possvel;noentanto,nodescuramorealnemosmitosenraizadosno subconsciente colectivo moambicano. Paraalmdestadefiniomultifacetadadofantsticocoutiano,hque dedicar um espao, nos prximos pontos, anlise dos temas mais recorrentes e dos traos discursivos deste gnero. Comecemos com as caractersticas temticas dofantsticoverificadasnanarrativadeMiaCoutoefundamentadascom exemplos da mesma. 3.1.2. Caractersticas temticas Comojfoimencionadonestecaptulo,atemticadeterminanteparao gnero fantstico, segundo Todorov e Bessire, a existncia de uma irrupo inslitanummundorealeainstauraodeumaambiguidade,ouseja,um fenmenoinslitoquepermanecesemseraceitenemexplicado.Osexemplos desta caracterstica so, como foi referido na introduo, inmeros. Salientemos, todavia, alguns episdios que ilustram esta ideia. 37No conto O ltimo aviso do corvo falador (1987:33), Zuz Paraza, um pintor reformado, vomita um corvo vivo, sado das suas entranhas, em plena praa cheia de gente; este facto inslito no provoca grande surpresa na multido. Zuz explicaaseguirqueopssarovinhadafronteiradavidaequepodiadar informaessobredefuntosaquemquisesse.Tambmestespoderesde adivinhaodaavenocausamqualquerestranhezaepermanecemsemser aceites ou explicados at ao final do conto. Botasordinriastornam-seobjectosfantsticosemdoiscontosdeMia Couto: em O apocalipse privado do tio Gegu (1990:31), uma bota, lanada ao ar pelo tio Gegu, voa e rodopia como se de uma ave se tratasse; em A velha e a aranha (1991:35), conto que narra a histria de uma me que dedica a sua vida espera de um filho que partiu para a guerra, h umas botas brilhantes e sem poeira que permanecem ao lado da me do soldado durante anos e anos, apesar de nunca terem sido polidas e de estarem no meio de poeiras e teias de aranha. Tambm estes acontecimentos inslitos no merecem qualquer aceitao ou explicao. EmTerraSonmbula(1992),romancequetemcomopanodefundoa guerraemMoambiqueedaqualtraaumretratoforteebrutal,Muidinga, personagem central, cruza-se com um pastor que lhe conta a histria de um boi que se transfigurou em gara (p.190). Para alm de uma descrio pormenorizada deste fenmeno, o pastor garante a Muidinga que o mesmo se repetia em todas as noitesdeluacheia.Ofantsticodesteepisdioreside,maisumavez,na ambiguidade. J ocontoObebedordotempo(1994:156)contaahistriadeuma forasteira desconhecida que liquidifica Xidakwa, um bbado de carreira, para dentro de um copo de cerveja. O conto termina sem qualquer tentativa de explicar aocorrnciaecomumnarradoremestadodetransedepoisdepresenciarto extraordinrio evento. 38Um potico exemplo dessa irrupo do fantstico est no conto O cho, o colchoeacolchoa(1997),emqueXavierZandamela,umex-mineiro, reconhece as formas da sua ex-companheira, que o abandonou, no seu colcho e neleacabaporsedissolver(p.218-219).Estecolchoqueadquireformas femininasvem,comoreconheceoprprionarrador,dasobrenaturezae,deste final fantstico, podemos depreender a fuso do homem com esta sobrenatureza. EmOcoraodomeninoeomeninodocorao(1997),contoque ainda vai ser objecto de anlise neste captulo, verifica-se umfinal igualmente fantstico: um corao morto d luz uma criana igual ao seu progenitor (p.243). Este tipo de final fantstico, que no deixa espao para qualquer tipo de reflexo ou explicao, parece ser outra caracterstica do fantstico coutiano predominante nos contos. Em VinteeZinco(1999), obra que acompanha o 25 de Abril de 1974 de uma famlia de colonizadores portugueses em Moambique, a bengala do cego Tchuviscoconverte-seemaveperanteosolhosdeumamultido(p.86-87). Verifica-se, assim, a irrupo do inslito no mundo real, caracterstica essencial dofantstico.Tambmaquiabengalaassociada,peloprprionarrador, sobrenatureza e entendida como pressgio dos acontecimentos histricos que se sucedem. Em OltimoVoodoFlamingo(2000B), os capacetes azuis das Naes Unidas,quechegamviladeTizangara,explodem,sbitaesucessivamente, dandoorigeminvestigaolevadaacabopeloitalianoMassimoRisi(p.12). Neste caso, a ambiguidade do fenmeno fantstico instaura-se logo no incio e acompanha o leitor at ao fim do romance, pois nunca fica esclarecido o mistrio da exploso dos enviados das Naes Unidas. No conto Ave e nave (2001), Aurora vai desaparecendo aos poucos at ficarreduzidasomentesmos,noobstantetodoaatenoecarinhodoseu marido (p.172); este assiste ao processo de reduo da mulher com sofrimento e 39no manifesta espanto perante esta incrvel transformao: ele vive bem com as mos da sua mulher e envelhecem juntos e felizes.

EmUmRioChamadoTempo,UmaCasaChamadaTerra(2002), romance que se desenrola a partir da vinda de um jovem para o enterro do av, verifica-se um fenmeno anormal aquando do funeral: a terra fecha-se e ningum, nomundointeiro,conseguecav-laouenterraralgum(p.181-182).Esta ocorrncia sobrenatural classificada pelo coveiro como vingana do cho sobre os desmandos dos vivos, explicao que no termina com a ambiguidade de tal acontecimento. Temos, por ltimo, o conto O homem cadente (2004), em que Zuz Neto plana no cu durante dias, depois de se atirar de um edifcio (p.17). O inslito desta situao reside na durao do fenmeno: durante grande parte da histria, Zuz permanece no ar, em eterna queda. Para alm do seu carcter fantstico, este conto ilustra ainda como o cmico pode conviver com o fantstico sem que este ltimo fique prejudicado, caracterstica a considerar no incio do ponto 3.1.3. O tema da vida e da morte e da ambiguidade de ambos, outra importante caracterstica fantstica apontada por Bessire, tambm frequente nos livros de Mia Couto. Nos romances e nos contos deste autor moambicano, os mortos e os fantasmas habitam no mundo dos vivos e causam situaes de ambiguidade, como sepodevernesteexemplo,deTerraSonmbula(1992),eondeFarida,a misteriosa apaixonada de Kindzu, outra das personagens centrais do romance, se refere a ela prpria nos seguintes termos: -(...)Noacreditasnosxipocos?Poiseusoudafamliadosxipocos.Me ensinaramaapagaressapartedemim,crenasquealimentaramnossasantigas raas.Agora,noqueacrediteneles,nosespritos.Seiquesouumdeles,um esprito que vagueia em desordem por no saber a exacta fronteira que nos separa devocs,osviventes.Nssomossombrasnoteumundo,tujamaisnostinhas escutado. porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu ests do lado de fora da casca. (p.90-91) 40Ainda em Terra Sonmbula, Kindzu ouve a estranha histria de Quintino, personagem que regressou casa onde trabalhou como empregado domstico e encontrou o antigo patro, j h muito falecido: De sbito, um barulho lhe gelou o nervo. Olhou, conquanto nem quisesse ver: o defunto, seu antigo patro, se erguia do leito fnebre. Romo Pinto, filho e neto de colonos,voltavavelhacasadafamliadepoisdemaisdeumadcadade definitiva ausncia. (p.155) J o romance AVarandadoFrangipani (1996) inicia com um narrador fora do normal, instaurando, desde a primeira linha, o elemento fantstico: Sou o morto. (...) Como no me apropriaram funeral fiquei em estado de xipoco, essas almas que vagueiamdeparadeiroemdesparadeiro.Semtersidoceremoniadoacabeium morto desencontrado da sua morte. No ascenderei nunca ao estado de xicuembo, que so os defuntos definitivos, com direito a serem chamados e amados pelos vivos. (p.12) Por sua vez, em OltimoVoodoFlamingo (2000B), o feiticeiro Zeca AndorinhofalacomMassimoRisi,oitalianoqueinvestigaaexplosodos capacetesazuis,sobreosinexplicveisacontecimentosnaviladeTizangara. Zeca Andorinho tenta explicar ao europeu que a vida vai muito para alm dos vivos: Pergunte vida, senhor. Mas no a este lado da vida. Porque a vida no acaba do lado dos vivos. Vai para alm, para o lado dos falecidos. (p.159) Talcomoseverificaestaconvivnciaentremortosevivos,tambma indefinio de fronteiras entre o domnio do sonho e da realidade, proposta por Todorovepelosurrealismoeabordadanocaptuloanterior,fulcralparaa construo do fantstico na obra em estudo. A importncia do sonho e a constante contaminaodarealidadepelosonhosotemticasrecorrentesnanarrativa coutiana. A passagem que se segue, retirada do conto O homem com um planeta dentro (1991), refere-se a Mamudo, personagem que carrega em si o peso de 41almas infinitas, e ilustra a contiguidade estabelecida entre o mundo do sonho e da realidade: - Sofro de doena de sonhar. Nem quero escutar nem ver, ocupado que estou-me. (...) Este homem no tem regresso, sua viagem bonita de mais. Foi assim que o velho declarou: s h uma maneira. E qual , diga-nos. vocs olharem o dentro dele, procurando-se cada uns l no meio da multido. Vos fao ver, atentem-se. E espreitaram o interior do mudo Mamudo, agora vertido em Mamundo. - J se encontraram? Todossehaviamachado.Quefaziamnesseuniverso?Sonhavam,parados,no mesmo que o actual Mamudo. (p.117-119) TambmKindzu,deTerraSonmbula(1992),hesitaentreosonhoea realidade quando, no meio do mar, lhe aparece a figura do falecido pai: Numa das seguintes noites, escuras de perder o prprio nariz, tive, quem sabe, um sonho. Omarparava,imovente.As ondasseaplanavam,seurugidoemudecia. Haviaumacalmiadessasqueprecederamonascerdomundo.Ento,sbitoe inesperado,dasprofundezasemergiramosafogados.Vinhamaodecimo, borbulhavamemfesta.Entreelesestavameupai,idosocomonootnhamos deixado. (p.44-45) Entre a vida e a morte, entre a realidade e o sonho, surge na obra de Mia Couto um elemento de ligao fundamental: o feiticeiro. Ele o elo reconciliador do sobrenatural com o natural, do mundo dos mortos com o mundo dos vivos, como se v, por exemplo, em Terra Sonmbula, quando Kindzu fala sobre a sua famlia: Certo foi minha me, aps a viuvez, se enconchar, triste como um recanto escuro. Consultmos o feiticeiro para conhecer o exacto da morte de meu pai. Quem sabe era um falecimento sem validade, desses que pedem as mais devidas cerimnias? O feiticeiro confirmou o estranho daquela morte. Lhe receitou: ela que construsse umacasa,bemafastada.Dentrodessasolitriaresidnciaeladeveria colocar o velho barco de meu pai, com seu mastro, sua tristonha vela. (p.21) OcontoOadivinhadordasmortes(1994),narraahistriadeum feiticeiro que, mais do que conciliar os mortos com os vivos, acerta na data da morte de quem o consulta: 42No bairrinho de Muitetecate havia um poderoso espiriteiro que adivinhava, com acertodelgebra,adatadasindividuaismortes.Nousavaosconvencionais mtodos: pedrinhas, conchas e ossinhos. No. Ele tinha duas pequenas cruzes de marfim que encostava sobre os olhos dos consultados. O adivinho cerrava os seus prpriosolhos:seconcentrava,tododentrodasplpebras,atabraarcomseu escuro o escuro do outro. Nesse tocar de penumbras se escrevia o exacto da data dos falecimentos. (p.167) Todorov descreve o feiticeiro como aquele que reconhece mais facilmente o poder do sobrenatural, ou sobrenatureza, nas palavras de Mia Couto (conferir na entrevista em anexo a esta monografia). Para Todorov, o feiticeiro tem mais facilidade em identificar os seres e os fenmenos sobrenaturais. A metamorfose , paraesteautor,umdosfenmenossobrenaturaisquemaisagradaaognero fantstico (1970:115), observao que se corrobora no fantstico coutiano: basta recordar,porexemplo,omeninoquesetransformaemrvore,nofinaldeO embondeiroquesonhavapssaros(1990:70-71),ouogovernadorquese converte em serpente do conto A carteira de crocodilo, em Contos do Nascer da Terra (1997:102-103). O feiticeiro de O ltimo Voo do Flamingo (2000B), ao ser consultado por Massimo Risi sobre as visitas de uma estranha mulher, reconhece algumas metamorfoses como consequncia de feitios, sendo estes demonstraes do sobrenatural: Fiz sinal ao italiano para que no falasse. O feiticeiro j no lhe daria ouvidos. O velho,sempredeplpebradescida,pareciavariarsobreassuntonochamado. Dissequehaviafeitioschamadosdelikaho.Umadiversidadedessesfeitios, cada qual feito de diferente animal. Havia likaho de lagarto: os homens inchavam no ventre. Sucedia o mesmo com os ambiciosos os fulanos eram comidos pela barriga. Havia o likaho de formiga e os enfeitiados emagreciam at ficarem do tamanho do insecto. O italiano me olhou de soslaio e eu adivinhei o seu receio. Seria aquele o feitio que o visitara no seu pesadelo? (p.150) Aestaideiadequenohbarreirasentreomundonaturaleo sobrenatural, entre o fsico e o mental, ou ainda entre a coisa e a palavra, atribui Todorovoconceitodepan-determinismo(1970:116)epan-significao (1970:118). O pan-determinismo implica que tudo tem uma causa, mesmo que seja de carcter sobrenatural; a pan-significao estabelece relaes entre todos os elementos. Estes conceitos, que, para Todorov, so prprios do fantstico, esto inerentes em algumas passagens da narrativa de Mia Couto, como pode ser visto 43noseguintetrecho,retiradodoromanceUmRioChamadoTempo,UmaCasa ChamadaTerra(2002).Nestetrecho,oshabitantesdaIlhadeLuar-do-Cho interrogam-sesobrearazodofenmenobizarroocorridoquandoochose fechouechegamconclusodequetudoestinterrelacionado,quenoh barreiras entre o mundo natural e o mundo sobrenatural: Nenhuma pessoa uma s vida. Nenhum lugar apenas um lugar. Aqui tudo so moradias de espritos, revelaes de ocultos seres. (p.201) Esta ideia de que Nenhum lugar apenas um lugar, fundamental para a pan-significao, faz coexistir o universo real e o sobrenatural nas histrias de Mia Couto. So inmeros os excertos em que encontramos este espaohbrido, expresso adoptada por Filipe Furtado (1980:119), resultante de uma mistura de espao real com espao sobrenatural. Na obra de Mia Couto, o espao africano aparece vrias vezes como o espao hbrido ideal, onde o sobrenatural convive comoquotidiano.ExcertosdeVinteeZinco(1999)edeOltimoVoodo Flamingo (2000B) comprovam a hibridez do espao africano: A Loureno de Castro irritava era esse sim e no dos assuntos em frica. Esse poder ser e no ser, essa lquida fronteira que separa o possvel do impossvel. Comoseaverdade,nostrpicos,setornasseemcoisafluida,escorregadia. (p.128) (...)hmuitacoisaescondidanestessilnciosafricanos.Porbaixodabase materialdomundodevemdeexistirforasartesanaisquenoestomode serem pensadas. (p.76) Paraalmdosfeiticeiros,h,nouniversoficcionalcoutiano,outros elementos privilegiados nesta ponte entre o real e o sobrenatural: as crianas e os velhos.ComomostraLisngelaDanielePeruzzo,ascrianasdasnarrativasde MiaCoutopossuemumapercepoaguadadosdramasdomundorealeda existnciadosobrenatural,certamenteporqueaindaconservamainocncia necessria a essa percepo: 44As crianas, ao lado dos animais, tambm so de grande importncia como elos entre o mundo real e o mundo fantstico. Elas acreditam que sempre ser possvel uma soluo mesmo que esta parea impossvel aos olhos dos adultos. Possuem umapercepoaguadaparaosdramasdomundoadulto,comoaopresso,a sujeio, o adultrio, a doena ou a morte. (Peruzzo, s.d.:2) Esta presena das crianas parece merecer especial destaque nos livros de Mia Couto. Em O embondeiro que sonhava pssaros (1990), Tiago a criana que, por conservar a inocncia de viver no mundo dos sonhos e da fantasia, se mostra sensvel excentricidade e alegria de um velho que vende pssaros: Era Tiago, criana sonhadeira, sem outra habilidade seno perseguir fantasias. (p.64) No conto A casa marinha (1997), uma criana aparece, mais uma vez, ao ladodeumvelhovagabundochamadoTiane.Apesardaproibiodospais,o menino teima em acompanhar este idoso que anda numa louca busca de sinais do alm-mundo: Euoseguiacalado,mortoporsaberosenfinsdaquelabusca.Meapetecia aquelacompanhiacomoseTianefossemaismeninoqueeu,parceirodeminha meninagem. - Quantos anos tenho? Sou igual como voc... E dizia: uma criana um homem que se d licena de voar. (p.133-134) TambmemTerraSonmbula(1992),bviaaligaodacriana, Kindzu, com o seu velho pai, que, em sonhos, recebia notcia do futuro por via dos antepassados: Eassimseguianossacriancice,temposafora.Nessesanosaindatudotinha sentido:arazodestemundoestavanumoutromundoinexplicvel.Osmais velhos faziam a ponte entre esses dois mundos. (p.16) ParaLisngelaDanielePeruzzo(s.d.:2),estarecorrnciaapersonagens infantis tem uma explicao importante: atravs das vozes dos mais fracos que vm, na literatura de Mia, as percepes e os desejos mais fortes. So as crianas, 45aoladodosloucos,marginalizadoseanimais,asportadorasdaboa-novaeda esperana. Osvelhos,contadoresdehistrias,tmtambmpapelpredominantena narrativa coutiana e na construo do fantstico. Tal como afirma Michel Lima Gonalves, no artigo A questo do tempo em TerraSonmbula, so os velhos que recuperam o mundo da tradio oral, repleto de histrias fantsticas, e que o introduzem no mundo real, sendo um elo de ligao com um mundo que est a morrer,omundodaancestralidade.Apassagemquesesegue,extradadeA VarandadoFrangipani(1996),ilustraaimportnciadestemundoda ancestralidade: - Olhe para estes velhos, inspector. Eles todos esto morrendo. - Faz parte do destino de qualquer um de ns. - Mas no assim, o senhor entende? Estes velhos no so apenas pessoas. - So o qu, ento? - So guardies de um mundo. todo esse mundo que est sendo morto. - Desculpe, mas isso, para mim, filosofia. Eu sou um simples polcia. -Overdadeirocrimequeestasercometidoaquiqueestoamataro antigamente... (p.59) TambmemMarmeQuer(2000A),ZecaPerptuorecordaos ensinamentos do seu velho pai quando procura uma explicao para as suas vises de afogamento: Eu olhei o mar, sem dar outra resposta. Meu pai, afinal, me estava a dizer o qu? Que trazemos oceanos circulando dentro de ns? Que h viagens que temos que fazersnontimodens?Ficareisempresemsaber.Liesqueovelho Agualberto me deu sempre foram assim: esquivas e mal desenhadas. (p.59) No romance Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra (2002), amortedoAvMarianopareceameaaraligaoqueesteestabeleciacomo mundo da ancestralidade quando contava as suas histrias: Custa-mev-lodefinitivamentedeitado,di-mepensarquenuncamaiso escutareicontandohistrias.Terumavassimeraparamimmaisqueum parentesco. Era um lao de orgulho nas razes mais antigas. Ainda que fosse uma 46romanteaodasminhasorigensmaseu,deslocadoqueestoudosmeus, necessitava dessa ligao como quem carece de um deus. (p.43-44) O ancio, depositrio da memria e da sabedoria africana, medita sobre questesquedizemrespeitodignidadehumana.Oslaosdesolidariedade estabelecidos entre velhos e crianas tm em vista a criao de um novo mundo, fundado sobre os valores africanos que se aprendem com os avs. Recuperando as histriasdatradiooral,osanciosveiculamofantsticoquenormalmente caracteriza as lendas dos seus antepassados. Aindasobreaausnciadelimitesentreomundorealeomundo sobrenatural, surge em Mia Couto a temtica da multiplicao da personalidade, apontada por Todorov (1970:122) e igualmente apreciada pelos surrealistas como recorrentenaliteraturafantstica(S,2003:49).Apresenademltiplas personalidades como expresso do fantstico pode ser vista na personagem central docontoAfinal,CarlotaGentinanochegoudevoar?(1987),quandoum marido amargurado, depois de ter assassinado a sua mulher Carlota, se refere a si mesmo usando as seguintes palavras: Eu somos tristes. No me engano, digo bem. Ou talvez: ns sou triste? Porque dentro de mim, no sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha nica vida. Vamos tendo nossas mortes. (p.85) Em O homem com um planeta dentro (1991), conto j mencionado neste captulo, tambm o mudo Mamudo fica a saber que sofre de doena relacionada com mltiplas personalidades quando o levam ao mdico, pensando que este o podia curar das dores e do cansao que sentia: O doutor se explicou: que seu corpo no se excedendo, ele, em si, albergava milhes de seres. Aquele cansao dele provinha de carregar infinitas almas. Um familiar perguntou: por onde lhe havia entrado toda aquela matilha de almas? Pelo corao, s pode ser. (p.117-118) 47Maistarde,oshabitantesdapovoaolevamMamudoaum espiriteiro (umvelhocompoderdeespritos)eested-lhesoextraordinrioconselhode espreitarem o mundo interior de Mamudo para se encontrarem a eles prprios; no final, todos se procuram na multido que Mamudo carregava e todos se encontram. Fica clara, atravs deste ltimo exemplo, a presena de uma concepo fantstica dosdistrbiosdapersonalidade;oqueequivaleadizerque,nomundoda narrativacoutiana,asdoenasdepersonalidadesoassociadasaumaviso fantstica do mundo. Abordemosagora,nocorpodaobradeMiaCouto,apresenade elementos directamente relacionados com o fantstico contemporneo, conceito introduzido,comojfoivisto,pelofilsofoJ eanPaulSartre.Oretornoao humano a ideia chave deste fantstico. De acordo com esta ideia, a humanidade precisa de atingir novamente uma ordem espiritual h muito perdida; mostrando o homem s avessas do mundo moderno, tenta-se expor a actual condio humana e apelar a um regresso da dimenso espiritual. Muitos episdios da obra de Mia Couto deixam transparecer este mundo s avessas e a consequente necessidade de um retorno ao humano. No conto Sangue da av, manchando a alcatifa (1991), uma anci agride a televiso com a sua bengala ao ver uma reportagem sobre a guerra (p.27-28). O fantsticoinstaura-senahistriaquandoosanguedaidosa,quetinhasido derramado na alcatifa, resiste a qualquer lavagem e se cola ao soalho, crescendo sempre. Destruindo a televiso, a av destri o objecto que a substituiu, pois os seusnetosdacidadepreferemvertelevisoaescutarassuashistrias.O fenmeno fantstico do aumento do sangue pode ser entendido como um alerta para a situao de guerra constante da actualidade e para a urgncia de escutarmos osmaisvelhos,recuperando,destaforma,aordemespiritualqueohomem modernojperdeuequeeratransmitidadegeraoemgeraoatravsdas histrias dos ancios. 48Por sua vez em O pescador cego (1990), Maneca Mazembe, pescador invisualqueficaperdidonomarduranteumasemanaporcausadeuma tempestade, arranca os seus prprios olhos para os utilizar como isca, tencionando acabar com a fome que o atormentava. Graas aos peixes fisgados, ele mantm-se vivoatregressarpraiadasuaaldeia.Esteepisdio,aroarosurrealismo, expeodesesperodafomeeigualmenteelucidativodoabsurdodomundo contemporneo. Esta sensao de absurdo est igualmente presente no conto Os pssaros de Deus (1987), com uma figura que, vivendo num mundo to absurdo e catico, seencontranumalutaincessanteeinfrutferaparasobreviverumlutador absurdo, imagem de Ssifo, mito recuperado por Camus e que j foi abordado no segundo captulo. Ernesto Timba, um pescador de longa data, continua a procurar no rio o sustento da esfomeada famlia, pois a seca esgotara a terra e j no era possvelcontarcomascolheitas.Apesardeorionadalheoferecer,Ernesto prossegue com a infrutuosa pesca: Sozinho sobre a velha canoa, Ernesto Timba media a sua vida. Aos doze anos comeara a escola de tirar peixe da gua. Sempre no comboio da corrente, a sua sombra havia mostrado, durante trinta anos, a lei do homem sobre o rio. E tudo era para qu? A seca esgotara a terra, as sementeiras no cumpriam promessa. Quando regressava da pescaria, no tinha defesa para os olhos da mulher e dos filhos que se espetavam nele. Pareciam olhos de cachorro, custava admitir, mas a verdade que a fome iguala os homens aos animais. (p.57) Certodia,Ernestoacreditaqueumpssaro,cadonasuacanoa,um enviadodeDeuserecusa-seamat-loparaalimentaramulhereosfilhos.O absurdoaumentaquandoopssaroencontraumacompanheiraetmcrias:a famlia de Ernesto, j anteriormente famlica, deve agora alimentar todo o grupo de pssaros. Kindzu, de TerraSonmbula(1992), mais uma vez evidenciado neste captulo. Quando conta as suas aventuras, ocorridas durante a busca do filho de 49Farida, fala de mulheres que teimam em plantar terras infrteis o absurdo de uma luta invlida, to caracterstica do mundo contemporneo: Daminhajanelaviamulheresplantandomilhopertodaestrada.Insistiamem todoolado,mesmoondenempedradsemente.Perdiamhorasnaquelaluta invlida. Tal como minha me elas acreditavam que um ventre morto pode dar luz. (p.128) Estemundocontemporneo,igualmentemarcadoporindivduosque desesperam por falta de contacto humano, cria situaes completamente absurdas. Mia Couto no deixa de denunciar isso na sua obra. o caso do vagabundo que se deixaatropelarparapoderteracompanhiadealgumemOhomemdarua (1997:157), ou do homem idoso que assalta para obter a ateno de quem passa emOassalto(2001:131).Estashistriasrevelamalutacontraasolidodo homem moderno: -que,sabe,eunotenhoningum.Antesaindatinhaquemmedispensasse migalha de conversa. Mas, agora, j nem. E me d um medo de me sozinhar por esses as. Quasequefalavaparadentro,eudeviabaixarorelhaparaoentender.Assim, cabismudo, prossegui: - Sabe o que fao? Vou dizer...mas o senhor me prometa que no zanga... - Prometo. - O que fao, agora, me deixar atropelar. . Ser embatido num resvalo de quase nada. Indemnizao que peo s esta: companhia de uma noite. Ento, isso? Simplesmente um palavreado? Sim, era s esse o mbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de ateno. Se ningum lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. No podia era perder sua ltima humanidade o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto. Comofoivisto,Sartreapresentaomundodofantsticocontemporneo como um mundo burocratizado, povoado por leis sem finalidade e desconhecidas pelos prprios executores (1947:102); neste mundo, os homens transformam-se em homens-utenslio, matria escravizada cuja funo a de servir como um meio, um autmato que tudo executa infindavelmente e rotineiramente. Nas histrias de 50MiaCouto,encontram-sepassagensqueilustramestemundoburocratizado, artificial, como no conto A princesa russa (1990): O mundo est cheio de pases, a maior parte deles estrangeiros. J encheram os cus de bandeiras, nem eu sei como os anjos podem circular sem chocarem-se nos panos. (p.77) No romance OltimoVoodoFlamingo(2000B), at a fome e a misria aparecem burocratizadas, ao servio da corrupo instaurada no pas: Eraoqueaconteciasehaviaasvisitasdecategoria,estruturaseestrangeiros. Tnhamosorientaessuperiores:nopodamosmostraraNaoamendigar,o Pascomascostelastodasdefora.Navsperadecadavisita,nstodos, administradores,recebamosaurgncia:eraprecisoesconderoshabitantes, varrer toda aquela pobreza. Porm, com os donativos da comunidade internacional, as coisas tinham mudado. Agora,asituaoeramuitocontrria.Eraprecisomostrarapopulaocoma suafome,comsuasdoenascontaminosas.Lembrobemassuaspalavras, Excelncia: a nossa misria est a render bem. Para viver num pas de pedintes, precisoarregaarasferidas,colocarmostraosossossalientesdosmeninos. Foramessasaspalavrasdoseudiscurso,ataponteinomeucadernomanual. (p.77) UmaspectodaficodeMiaCoutoquechamaaatenologonuma primeira leitura o facto das suas narrativas apresentarem, simultaneamente, uma feio realista perceptvel na narrao de eventos histricos relacionados com as guerrascoloniaisecomaguerracivil,bemcomocomasituaodecorrente dessas lutas e uma outra feio em que aparecem acontecimentos inslitos, alm decrenasemitosmoambicanos.Eexactamentenestaambivalnciaque podemosencontrarainflunciadorealismomgicosul-americano,poiseste permite,comojvimos,acoexistnciadopensamentomticocomumespao hbrido de realidade e fico. ParaAlcioneManzoniBidinoto,noartigoOcarcterambivalenteda fico de Mia Couto em CadaHomemumaRaa, os elementos relacionados comomitooucomumavisomticadomundosomuitofrequentesnas narrativas coutianas e aparecem misturados com diferentes momentos histricos de Moambique. H a narrao de acontecimentos inslitos, nos quais ocorre a 51subverso das leis naturais, do modo como elas so concebidas pelo pensamento racional(Bidinoto,2004:13).NocontoOpescadorcego(1990),jreferido neste captulo, Salima, a mulher do pescador Maneca Mazembe que utilizou os seus olhos como isca para pescar e matar a fome, manifesta vontade de sair com o barco para pescar. Maneca probe-a, arrasta o barco para longe da gua e passa a viver dentro dele. Um dia, malgrado as advertncias de Salima quanto desgraa queistoprovocaria,opescadorpefogoaobarco.Amulhereosfilhos abandonam-no. Um tempo depois, ocorre algo inusitado: Certanoite[],seconfirmouopressgiodeSalima:aquelefogovoara demasiado alto, incomodando os espritos. Porque, do topo dos coqueiros, o vento se deu de uivar. Mazembe se afligiu, o cho mesmo se arrepiou. Sbito, o cu se rasgou e grossas pedras de gelo tombaram em toda a praia. O pescador corria no vazio,procuradeabrigo.Ogranizo,implacvel,lhecastigava.Maneca desconhecia explicao. Nunca ele se cruzara com tais fenmenos. A terra subiu para o cu, pensou. Virado do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais. (p.103) inconcebvel para uma racionalidade cientfica aceitar que tais eventos possam realmente ter lugar: como pode uma tempestade to grande e avassaladora ser desencadeada pelo fumo do incndio de um barco? No h dvida que temos aqui a presena de crenas africanas, um pensamento mtico que coabita com um espao hbrido de realidade e fico, to ao gosto do realismo mgico. A ltima histria de Contos do Nascer da Terra, O corao do menino e omeninodocorao(1997:239),jaquireferida,elucidaadmiravelmenteo realismo mgico de Mia Couto. Um rapazinho sofre de uma doena estranha: o corao dele bate anormalmente. Depois de algumas visitas mdicas, o rapaz, que escreveu numerosas cartas de amor a uma prima, morre sem ela as ter lido. Os mdicos guardam o corao dele numa vitrina para investigao. Nesse momento, araparigadecidelerascartaseficaapaixonadapelaspalavrasdoprimo.O estranho que, medida que a jovem l as cartas, o corao d luz uma criana que se assemelha como duas gotas de gua ao primo. O amor de uma jovem, ao dar origem a outro ser, anuncia um mundo novo, em que os homens procuraro 52entender-se para l de todas as divises raciais. A propsito deste mesmo episdio, diz Maria Fernanda Afonso: MiaCoutoserve-sedestaprticaliterriaparaconstruirumamensagemque anuncie os seus desejos de um mundo mais fraterno. Face realidade, ele quer criar um pequeno milagre literrio que deixe entrever as verdades primeiras sobre o Homem e sobre um pas, o seu, sofrendo as mais duras adversidades. A magia nasce da transfigurao do real, engendrando uma espcie de alegoria enraizada no universo social caleidoscpico de Moambique. (2004:377-378) Para esta autora, a narrativa mgico-realista de Mia Couto apresenta uma pticaparticular:anecessidadedesonhar,porqueosonhoquedumnovo sentidovidaesemestafaculdadeohomemnopodeavanar(Afonso, 2004:379).ocaso,porexemplo,deJ ordoQualquer,nocontoNorioda curva(1994),quetemnecessidadederealizarumdosseusantigossonhos montar um cachalote e percorrer o rio para descobrir um lugar para l de todos os lugares: J ordosonhavacomosanimais,pareciamcanoasviradasdoavessonalenta superfcie do rio. E ele, no sonho, montava-lhes os dorsos e subia o rio, alm da curva.Esseeraodevaneiomaior:descobriroadiantedahumanapaisagem, encontrar o lugar para alm de todos os lugares. (p.100) EmMiaCouto,osonhotorna-seumtermointerdependentedepoesia (Afonso, 2004:100), pois a sua aco pode ultrapassar toda a espcie de limites. ComonocontoRazes(1997:179),emqueencontramosumaparbolada gnesedapoesia:umhomem,quetinhadormidoumamanhnaareia,quis levantar-se; tinha, no entanto, a cabea agarrada ao solo por inmeras razes que resistiram aos esforos de todos os que tentaram libert-lo. As razes, profundas e ramificadas, espalharam-se pelo mundo inteiro. Os sbios sugeriram que a cabea do homem fosse levada para a lua. Foi assim que, segundo este conto, o homem passou a andar com a cabea na lua e que, nesse mesmo dia, nasceu o primeiro poeta.nesteespaodesonhoepoesia,queignorabarreirasoulimites,que podemos reconhecer uma narrativa afectada de realismo mgico. Distingue-se do fantstico porque este supe a hesitao face percepo da realidade, como j 53vimos,enquantoorealismomgicocontinuaainsistirnasimultaneidade,sem requerer hesitao. A propsito de distino, h que se estabelecer que o realismo mgico na narrativadeMiaCoutosedistinguedomaravilhoso.NaopiniodeMaria Fernanda Afonso, h algo de mgico que envolve as narrativas deste autor; porm, os seus textos no contm qualquer idealizao, pelo contrrio, alimentam-se de factos da realidade quotidiana (Afonso, 2004:366). A autora define muito bem a essncia do realismo mgico em Mia Couto: um olhar mgico lanado no interior de um fragmento de realidade, encarado sem ser de forma pattica, um olhar de admirao pousado sobre o real, como o de ummago,deuminiciadooudeumacrianaque,pelasuaperceponovae virgem das coisas, est prestes, depois das maiores calamidades, a recriar o mundo [] (2004:366) NocontoOembondeiroquesonhavapssaros(1990),J oo Passarinheiro, um vendedor de pssaros, provoca descontentamento ao entrar no bairrodoscolonosbrancoseaoatrairaamizadedascrianas.Sendonegro, fechado numa priso e desaparece de forma estranha. Tiago, um menino branco, sofrecomasituaoerefugia-senointeriordeumavelharvorequeabriga espritos. O final da histria reveste-se de uma dimenso mgica extremamente bela: As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braossemadeiravam.Osdedos,lenhosos,minhocavamaterra.Omenino transitavadereino:arvorejado,emestadodeconsentidaimpossibilidade.Edo sonmbulo embondeiro subiam as mos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pssaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas [] Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a seduo da cinza. Ento, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes razes. (p.68) H, portanto, uma situao real de racismo dos colonos que se encontra comumadimensomgica.OrealismomgicoemMiaCoutoprogridedo concreto para o transcendente, propondo, assim, um regresso ordem espiritual (Afonso, 2004:367). 543.1.3. Caractersticas do discurso Considerandoagoraascaractersticasdodiscursofantstico,Irene Bessire aponta o humor como seu trao determinante (1974:247). Tal como j fora mencionado por Filipe Furtado, e como vimos em 2.1.2.1., o efeito cmico noterminacomaambiguidadeestabelecidapeloselementosfantsticos (1980:68). Bessire considera mesmo que, perante um mundo traumatizado, s o discurso humorstico permite uma escrita libertadora (1974:248), uma vez que se apresenta como um escape da realidade opressora do mundo moderno. O prprio Mia Couto, na entrevista que se encontra em anexo a esta monografia, salienta a importncia do cmico para a construo de um discurso fora da lgica comum: O cmico