Sonho do Celta

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QUETZAL ave trepadora da América Central, que morre quando privada de liberdade; raiz e origem da Quetzalcoatl (serpente emplumada com penas de quetzal), divindade dos Toltecas, cuja alma, segundo reza a lenda, teria subido ao céu sob a forma de Estrela da Manhã. sonho_do_celta.qxd:Layout 1 11/5/10 12:21 PM Page 1

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romance de Mario Vargas Llosa, premiado com o Nobel da Literatura.

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QUETZAL ave trepadora

da América Central,

que morre quando privada

de liberdade; raiz e origem

da Quetzalcoatl (serpente

emplumada com penas

de quetzal), divindade

dos Toltecas, cuja alma,

segundo reza a lenda, teria

subido ao céu sob a forma

de Estrela da Manhã.

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Tinha deixado de chover háum bocado, mas a atmosferacontinuava húmida e pesada,parecia que em volta tudogerminava, crescia e se espessava.Dezoito anos depois, Roger,entre as imagens desordenadasque a febre fazia revoar na suacabeça, recordava o olharinquiridor, surpreendido,por momentos trocista, comque Henry Morton Stanleyo inspeccionou.– A África não se fez paraos fracos – disse ele por fim,como se falasse consigo mesmo.– As coisas que o preocupamsão um sinal de fraqueza.

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Mario Vargas Llosa

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O Sonho do Celta

Tradução de Cristina Rodriguez

QUETZAL série américas | Mario Vargas Llosa

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A cópia ilegal viola os direitos dos autores.Os prejudicados somos todos nós.

Título: O Sonho do Celta

Título original: El Sueño del Celta

Autor: Mario Vargas Llosa

Tradução: Cristina Rodriguez

Revisão: Pedro Ernesto Ferreira

Projecto gráfico original: RPVP Designers

Design da capa: Rui Rodrigues . Quetzal Editores

Composição: José Campos de Carvalho

Execução gráfica: Bloco Gráfico, Lda.

Unidade Industrial da Maia

© 2010 Quetzal Editores

[Todos os direitos para publicação desta obra em línguaportuguesa, excepto Brasil, reservados por Quetzal Editores]

© Mario Vargas Llosa, 2010

ISBN: 978-972-564-919-0

Depósito legal: 318536/10

Quetzal Editores

Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1

1500-499 Lisboa PORTUGAL

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Tel. 21 7626000 • Fax 21 7625400

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Para Álvaro, Gonzalo e Morgana.E para Josefina, Leandro, Ariadna,

Aitana, Isabella e Anaís.

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«Cada um de nós é, sucessivamente, não um, masmuitos. E estas personalidades sucessivas, queemergem umas das outras, costumam oferecer en-tre si os mais estranhos e assombrosos contrastes.»

JOSÉ ENRIQUE RODÓ, Motivos de Proteo

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O CONGO

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I

QUANDO ABRIRAM A PORTA DA CELA, com o jorro de luz e umgolpe de vento entrou também o barulho da rua que as paredesde pedra abafavam e Roger acordou, assustado. Pestanejando,ainda confuso, esforçando-se por se acalmar, vislumbrou, re-costada no vão da porta, a silhueta do xerife. A sua cara fláci-da, de louros bigodes e olhinhos maldizentes, contemplava-ocom a antipatia que nunca tinha tentado disfarçar. Eis aqui al-guém que sofreria se o Governo inglês lhe concedesse o pedidode clemência.

– Visita – murmurou o xerife, sem tirar os olhos de cimadele.

Pôs-se de pé, esfregando os braços. Quanto teria dormido?Um dos suplícios da prisão de Pentonville era não se saber ashoras. No cárcere de Brixton e na Torre de Londres ouvia asbadaladas que marcavam as meias horas e as horas; aqui, as es-pessas paredes não deixavam chegar ao interior da prisão o al-voroço dos sinos das igrejas de Caledonian Road nem o bulíciodo mercado de Islington e os guardas perfilados na porta cum-priam estritamente a ordem de não lhe dirigir a palavra. O xe-rife pôs-lhe as algemas e indicou-lhe que saísse à sua frente.Traria o seu advogado alguma boa notícia? O gabinete ter-se-iareunido e tomado uma decisão? Talvez o olhar do xerife, maiscarregado do que nunca com a aversão que ele lhe inspirava,se devesse a terem-lhe comutado a pena. Ia a caminhar pelo

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longo corredor de tijolos vermelhos enegrecidos pela sujidade,entre as portas metálicas das celas e umas paredes descoloridasnas quais a cada vinte ou vinte e cinco passos havia uma altajanela com grades através da qual conseguia avistar um boca-dinho de céu acinzentado. Porque é que tinha tanto frio? EraJulho, o coração do Verão, não havia razão para aquele geloque lhe eriçava a pele.

Ao entrar no estreito parlatório das visitas, afligiu-se. Quemo esperava ali não era o seu advogado, maître George GavanDuffy, mas sim um dos seus ajudantes, um jovem louro e desen-gonçado, de maçãs do rosto salientes, vestido como um peralvi-lho, a quem ele tinha visto durante os quatro dias do julgamentoa levar e a trazer papéis aos advogados de defesa. Porque é queo maître Gavan Duffy, em vez de vir em pessoa, mandava umdos seus estagiários?

O jovem atirou-lhe um olhar frio. Nas suas pupilas haviairritação e repugnância. O que é que aquele imbecil estaria apensar? «Olha para mim como se eu fosse uma besta», pensouRoger.

– Alguma novidade?O jovem negou com a cabeça. Inspirou antes de falar:– Sobre o pedido de indulto, ainda não – murmurou, com

secura, fazendo um esgar que ainda o desengonçava mais. –É preciso esperar que o Conselho de Ministros se reúna.

A Roger incomodava-o a presença do xerife e do outroguarda no pequeno parlatório. Embora permanecessem si-lenciosos e imóveis, sabia que estavam suspensos de tudo oque diziam. Essa ideia oprimia-lhe o peito e dificultava-lhe arespiração.

– Mas, tendo em conta os últimos acontecimentos – acres-centou o jovem louro, pestanejando pela primeira vez e abrindoe fechando a boca com exagero –, tudo se tornou agora maisdifícil.

– À prisão de Pentonville não chegam as notícias do exte-rior. O que é que aconteceu?

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E se o Almirantado alemão tivesse decidido por fim atacara Grã-Bretanha a partir das costas da Irlanda? E se a sonhadainvasão estivesse a acontecer e os canhões do Kaiser vingassemnaqueles mesmos instantes os patriotas irlandeses fuzilados pe-los Ingleses na Revolta da Páscoa? Se a guerra tivesse tomadoaquele rumo, os seus planos realizavam-se, apesar de tudo.

– Agora tornou-se difícil, talvez impossível, ter êxito – re-petiu o estagiário. Estava pálido, continha a sua indignação eRoger adivinhava sob a pele esbranquiçada da sua tez a sua ca-veira. Pressentiu que, atrás de si, o xerife sorria.

– De que é que está a falar? O senhor Gavan Duffy estavaoptimista relativamente à petição. O que é que aconteceu paraque mudasse de opinião?

– Os seus diários – soletrou o jovem, com outra careta dedesagrado. Baixara a voz e Roger tinha alguma dificuldade emouvi-lo. – Foi a Scotland Yard que os descobriu, na sua casa deEbury Street.

Fez uma longa pausa, esperando que Roger dissesse algu-ma coisa. Mas como este tinha emudecido, deu rédea solta àsua indignação e franziu a boca:

– Como é que pôde ser tão insensato, homem de Deus? –falava com uma lentidão que tornava mais patente a sua raiva.– Como é que pôde pôr em tinta e papel semelhantes coisas, ho-mem de Deus? E, se o fez, como é que não tomou a precauçãoelementar de destruir aqueles diários antes de se pôr a conspirarcontra o Império Britânico?

«É um insulto este imberbe chamar-me “homem de Deus”»,pensou Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha pelo menoso dobro da idade daquele rapazola amaneirado.

– Circulam agora por todo o lado fragmentos desses diários– acrescentou o estagiário, mais sereno, embora sempre desa-gradado, agora sem olhar para ele. – No Almirantado, o porta--voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra Reginald Hall empessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por todaa Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes

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liberais e conservadores, nas redacções e nas igrejas. Não se falade outra coisa na cidade.

Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez,aquela estranha sensação que se havia apoderado dele muitasvezes nos últimos meses, desde aquela manhã cinzenta e chuvo-sa de Abril de 1916 em que, transido de frio, fora detido entreas ruínas do Forte McKenna, no Sul da Irlanda: não se tratavadele, era doutro que falavam, doutro a quem aconteciam aque-las coisas.

– Já sei que a sua vida privada não é um assunto meu, nemdo senhor Gavan Duffy, nem de ninguém – acrescentou o jovemestagiário, esforçando-se por baixar a cólera que impregnavaa sua voz. – Trata-se de um assunto estritamente profissional.O senhor Gavan Duffy quis pô-lo ao corrente da situação. E pre-veni-lo. A petição de clemência pode ver-se comprometida. Estamanhã, nalguns jornais, já há protestos, inconfidências, rumoressobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública favorávelà petição poderá ver-se afectada. Uma mera suposição, claro.O senhor Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhetransmita alguma mensagem?

O prisioneiro negou, com um movimento quase impercep-tível da cabeça. No mesmo instante, girou sobre si mesmo, en-carando a porta do parlatório. O xerife deu uma indicação coma sua cara bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolhoe a porta abriu-se. O regresso à cela pareceu-lhe interminável.Durante o percurso pelo longo corredor de pétreas paredes detijolos vermelhos enegrecidos teve a sensação de que a qualquermomento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras hú-midas e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálicada cela, recordou: no dia em que o trouxeram para a prisão dePentonville, o xerife disse-lhe que todos os réus que ocuparamaquela cela, sem excepção, tinham acabado no patíbulo.

– Poderei tomar um banho, hoje? – perguntou ele, antesde entrar.

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O obeso carcereiro negou com a cabeça, olhando-o nosolhos com a mesma repugnância que Roger tinha notado noolhar do estagiário.

– Não poderá tomar banho até ao dia da execução – disseo xerife, saboreando cada palavra. – E, nesse dia, só se for asua última vontade. Outros, em vez do banho, preferem umaboa refeição. Um mau negócio para Mr. Ellis, porque então,quando sentem a corda, cagam-se. E deixam o lugar feito umaporcaria. Mr. Ellis é o verdugo, para o caso de não saber.

Quando sentiu a porta fechar-se atrás de si, foi deitar-sede barriga para cima no pequeno catre. Fechou os olhos. Teriasido bom sentir a água fria daquele cano a arrepiar-lhe a pele ea azulá-la de frio. Na prisão de Pentonville, os réus, com excep-ção dos condenados à morte, podiam tomar banho com sabãouma vez por semana naquele jorro de água fria. E as condiçõesdas celas eram sofríveis. Em contrapartida, recordou com umcalafrio a sujidade do cárcere de Brixton, onde se tinha enchidode piolhos e pulgas que pululavam no colchão do seu catre e otinham coberto de picadas nas costas, nas pernas e nos braços.Procurava pensar nisso, mas voltavam várias vezes à sua me-mória a cara descontente e a voz odiosa do louro estagiárioataviado como um janota que maître Gavan Duffy lhe tinhaenviado em vez de vir ele em pessoa dar-lhe as más notícias.

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II

DO SEU NASCIMENTO, A 1 DE SETEMBRO DE 1864, em Doyle’sCottage, Lawson Terrace, no subúrbio Sandycove de Dublin,não se lembrava de nada, é claro. Embora sempre tenha sabidoque tinha sido dado à luz na capital da Irlanda, uma boa parteda sua vida deu como assente o que o seu pai, o capitão RogerCasement, que tinha servido oito anos com distinção no Ter-ceiro Regimento de Dragões Ligeiros, na Índia, lhe inculcou:que o seu verdadeiro berço era o condado de Antrim, no cora-ção do Ulster, na Irlanda protestante e pró-britânica, onde a li-nhagem dos Casement estava estabelecida desde o século XVIII.

Roger foi criado e educado como anglicano da Igreja Ir-landesa, tal como os seus irmãos Agnes (Nina), Charles e Tom– os três mais velhos que ele –, mas intuiu, ainda antes de ter ouso da razão, que em matéria de religião nem tudo na sua fa-mília era tão harmonioso como no resto. Até para um meninode poucos anos era impossível não reparar que a mãe, quandoestava com as suas irmãs e primos da Escócia, agia de maneiraque parecia esconder alguma coisa. Já adolescente, descobririaque, Anne Jephson, embora aparentemente, se tinha converti-do ao protestantismo para casar com o seu pai, e às escondidasdo marido continuava a ser católica («papista» teria dito o ca-pitão Casement), confessando-se, ouvindo missa e comungando,e, no mais cioso dos segredos, ele próprio tinha sido baptizadocomo católico quando fez quatro anos, durante uma viagem de

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férias que ele e os seus irmãos fizeram com a mãe a Rhyl, no Nor-te do País de Gales, a casa das tias e tios maternos que lá viviam.

Naqueles anos, em Dublin, ou nos períodos que passaramem Londres e em Jersey, Roger não lhe interessava nada a re-ligião, ainda que, para não desgostar o pai, durante o ofíciodominical rezasse, cantasse e seguisse o serviço com respeito.A mãe havia-lhe dado aulas de piano e tinha uma voz clara etemperada que costumava granjear-lhe aplausos nas reuniõesfamiliares em que entoava velhas baladas irlandesas. O que ver-dadeiramente lhe interessava naquele tempo eram as históriasque, quando estava bem-disposto, o capitão Casement lhe con-tava a ele e aos seus irmãos. Histórias da Índia e do Afeganis-tão, sobretudo as suas batalhas contra os Afegãos e os Siques.Aqueles nomes e paisagens exóticos, aquelas viagens atraves-sando florestas e montanhas que escondiam tesouros, feras, ali-márias, povos antiquíssimos de estranhos costumes, deusesbárbaros, disparavam-lhe a imaginação. Os seus irmãos, às ve-zes, aborreciam-se com aqueles relatos, mas o pequeno Rogerpoderia ter passado horas e dias a escutar as aventuras do seupai nas remotas fronteiras do Império.

Quando aprendeu a ler, gostava de mergulhar nas histó-rias dos grandes navegadores, viquingues, portugueses, inglesese espanhóis que tinham sulcado os mares do planeta volati-lizando os mitos segundo os quais, chegadas a um certo ponto,as águas marinhas começavam a ferver, abriam-se abismos eapareciam monstros cujas fauces podiam engolir um barco in-teiro. Contudo, entre as aventuras ouvidas e as lidas, Rogersempre havia preferido escutar as da boca do pai. O capitão Ca-sement tinha uma voz quente, descrevia com rico vocabulário eanimação as florestas da Índia ou os rochedos de Khyber Pass,no Afeganistão, onde a sua companhia de Dragões Ligeiros foiuma vez emboscada por uma massa de enturbantados fanáticosque os bravos soldados ingleses enfrentaram, primeiro a balá-zios, depois a baioneta, e, por fim, com punhais e com mãosnuas, até os obrigarem a retirar-se derrotados. Mas não eram os

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feitos de armas o que mais deslumbrava a imaginação do pe-queno Roger, mas sim as viagens, abrir caminhos por paisagensnunca pisadas pelo homem branco, as proezas físicas de resis-tência, vencer os obstáculos da natureza. O seu pai era agradá-vel, mas severíssimo e não vacilava em açoitar os filhos quandose portavam mal, mesmo Nina, a mulherzinha, pois assim secastigavam os erros no Exército e ele tinha verificado que sóaquela forma de castigo era eficaz.

Embora admirasse o pai, de quem Roger verdadeiramentegostava era da mãe, aquela mulher esbelta que parecia flutuarem vez de andar, de olhos e cabelos claros e cujas mãos, tão sua-ves, quando se enredavam nos seus caracóis ou lhe acariciavamo corpo na hora do banho o enchiam de felicidade. Uma dasprimeiras coisas que aprenderia foi – teria cinco, seis anos? –que só podia correr a atirar-se para os braços da mãe quandoo capitão não estava por perto. Este, fiel à tradição puritana dasua família, não era partidário de que as crianças crescessemcom muitos mimos, pois isso tornava-os moles para a luta pelavida. Diante do pai, Roger mantinha-se à distância da pálida edelicada Anne Jephson. Mas quando aquele partia para se jun-tar aos amigos no seu clube ou para dar um passeio, corriapara ela, que o cobria de beijos e carícias. Às vezes, Charles,Nina e Tom protestavam: «Gostas mais do Roger que de nós.»A mãe garantia-lhes que não, que gostava igualmente de todos,só que Roger era muito pequeno e precisava de mais atenção ecarinho que os mais velhos.

Quando a mãe morreu, em 1873, Roger tinha nove anos.Aprendera a nadar e ganhava todas as corridas com meninosda sua idade e até mais velhos. Ao contrário de Nina, Charlese Tom, que derramaram muitas lágrimas durante o velório e oenterro de Anne Jephson, Roger não chorou nem uma únicavez. Naqueles dias tétricos, o lar dos Casement converteu-senuma capela funerária, cheia de gente vestida de luto, que falavaem voz baixa e abraçava o capitão Casement e as quatro crian-ças com caras pesarosas, pronunciando palavras de pêsames.

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Durante muitos dias não conseguiu pronunciar uma frase,como se tivesse ficado mudo. Respondia com movimentos decabeça ou gestos às perguntas e permanecia sério, cabisbaixo ecom o olhar perdido, até mesmo de noite no quarto às escuras,sem conseguir dormir. Desde então e para o resto da sua vida,de quando em quando, nos seus sonhos, a figura de Anne Jeph-son viria visitá-lo com aquele sorriso convidativo, abrindo-lheos braços, onde ele se ia encolher, sentindo-se protegido e felizcom aqueles dedos finos na sua cabeça, nas suas costas, nassuas faces, uma sensação que parecia defendê-lo das maldadesdo mundo.

Os irmãos depressa se conformaram. E Roger também,aparentemente. Porque, embora tivesse recuperado a fala, eraum tema que ele nunca referia. Quando algum familiar lhe re-cordava a mãe, emudecia e mantinha-se encerrado no seu mu-tismo até aquela pessoa mudar de tema. Nas suas insónias,pressentia na escuridão, olhando para ele com tristeza, o sem-blante da infortunada Anne Jephson.

Quem não se conformou nem voltou a ser o mesmo foi ocapitão Roger Casement. Como não era efusivo e nem Rogernem os irmãos o tinham visto alguma vez ser pródigo em genti-lezas para com a mãe, as quatro crianças ficaram surpreendidascom o cataclismo que o desaparecimento da esposa significoupara o pai. Ele, tão bem ataviado, andava agora vestido dequalquer maneira, com a barba crescida, o sobrolho franzidoe um olhar de ressentimento como se os filhos tivessem a culpada sua viuvez. Pouco tempo depois da morte de Anne, decidiudeixar Dublin e despachou as quatro crianças para o Ulster,para Magherintemple House, a casa de família, onde, a partirde então, o tio-avô paterno John Casement e a sua esposa Char-lotte se encarregariam da educação dos quatro irmãos. O pai,como que a querer desinteressar-se deles, foi viver a quarentaquilómetros dali, no Adair Arms Hotel de Ballymena, onde,como às vezes o tio-avô John acabava por dizer, o capitão Ca-sement, «meio louco de dor e solidão», dedicava os seus dias e

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noites ao espiritismo, tentando comunicar com a mulher mor-ta através de médiuns, cartas e bolas de cristal.

Desde então, Roger raramente viu o pai e nunca mais o ou-viu voltar a contar aquelas histórias da Índia e do Afeganistão.O capitão Roger Casement morreu de tuberculose em 1876, trêsanos depois da esposa. Roger acabava de fazer doze anos. NaEscola Diocesana de Ballymena, onde esteve três anos, foi umestudante distraído, que tirava notas regulares, excepto a Latim,Francês e História Antiga, disciplinas em que se destacou. Escre-via poesia, parecia sempre metido consigo mesmo e devoravalivros de viagens pela África e pelo Extremo Oriente. Pratica-va desporto, sobretudo natação. Aos fins-de-semana ia ao Cas-telo de Galgorm, dos Young, para onde um colega da turma oconvidava. Mas Roger passava ainda mais tempo com RoseMaud Young, bela, culta e escritora, que percorria as aldeiasde pescadores e camponeses do Antrim, recolhendo poemas,lendas e canções em gaélico. Da sua boca ouviu pela primeiravez os épicos conflitos da mitologia irlandesa. O castelo, de pe-dras negras, torreões, escudos, lareiras e uma fachada catedra-lesca tinha sido construído no século XVII por Alexander Colville,um teólogo de cara maldisposta – segundo o seu retrato do ves-tíbulo – que, dizia-se em Ballymena, tinha feito um pacto como Diabo e o seu fantasma deambulava pelo lugar. Tremendo,nalgumas noites de luar, Roger atreveu-se a procurá-lo pelospassadiços e aposentos vazios, mas nunca o encontrou.

Só muitos anos mais tarde aprenderia a sentir-se confor-tável em Magherintemple House, o solar dos Casement, queantes se tinha chamado Churchfield e fora uma reitoria da pa-róquia anglicana de Culfeightrin. Porque nos seis anos que aliviveu, entre os nove e os quinze anos, com o tio-avô John e atia-avó Charlotte, e restantes parentes paternos, sempre se sen-tiu um pouco estranho naquela imponente mansão de pedrascinzentas, de três andares, altos tectos lisos, muros cobertos dehera, telhados de falso gótico e cortinados que pareciam ocul-tar fantasmas. Os vastos aposentos, os longos corredores e as

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escadas com gastos corrimãos de madeira e degraus que gemiamaumentavam a sua solidão. Em compensação, tinha prazer aoar livre, entre os robustos olmos, sicômoros e pessegueiros queresistiam aos ventos ciclónicos e as suaves colinas com vacas eovelhas das quais se avistava a localidade de Ballycastle, o mar,os escolhos que investiam contra a ilha de Rathlin e, nos diasclaros, a esbatida silhueta da Escócia. Ia com frequência às al-deias vizinhas de Cushendum e Cushendall que pareciam o ce-nário de antigas lendas irlandesas, e aos nove glens da Irlandado Norte, aqueles estreitos vales cercados de colinas e ladeirasrochosas em cujos cumes as águias traçavam círculos, espec-táculo que o fazia sentir-se corajoso e exaltado. A sua diversãopreferida eram as excursões por aquela terra áspera, de campo-neses tão velhos como a paisagem, alguns dos quais falavam en-tre eles o irlandês antigo, acerca do qual o seu tio-avô John e osamigos faziam às vezes cruéis chacotas. Nem Charles nem Tompartilhavam o seu entusiasmo pela vida ao ar livre, nem tiravamprazer das caminhadas pelos campos ou a escalar as lombasescarpadas do Antrim; Nina, pelo contrário, e por isso mesmo,apesar de ser oito anos mais velha do que ele, foi a sua preferidae com quem sempre se daria melhor. Com ela fez várias excur-sões até à baía de Murlough, eriçada de rochas negras e com asua praiazinha pedregosa, junto do Glenshesk, cuja recordaçãoo acompanharia toda a vida e à qual sempre se referiria, nas suascartas à família, como «aquele recanto do Paraíso».

Mas ainda mais que dos passeios pelo campo, Roger gos-tava das férias de Verão. Passava-as em Liverpool, junto da tiaGrace, irmã da sua mãe, em cuja casa se sentia querido e aco-lhido: pela tia Grace, claro, mas também pelo seu esposo, o tioEdward Bannister, que tinha corrido muito mundo e fazia via-gens de negócios a África. Trabalhava para a companhia denavegação Elder Dempster Line, que transportava carga e pas-sageiros entre a Grã-Bretanha e a África Ocidental. Os filhosda tia Grace e do tio Edward, os seus primos, foram melhorescompanheiros de brincadeira de Roger do que os seus próprios

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irmãos, sobretudo a sua prima Gertrude Bannister, Gee, com aqual, desde muito pequeno, teve uma proximidade que nuncafoi manchada por um só desgosto. Eram tão unidos que umavez Nina brincou com eles: «Vocês ainda vão acabar por ca-sar.» Gee riu-se, mas Roger corou até à ponta dos cabelos. Nãose atrevia a erguer o olhar e balbuciava: «Não, não, porque éque dizes essa palermice?»

Quando estava em Liverpool, junto dos primos, Rogervencia por vezes a sua timidez e fazia perguntas ao tio Edwardsobre África, um continente cuja simples referência lhe enchiaa cabeça de florestas, feras, aventuras e homens intrépidos.Graças ao tio Edward Bannister ouviu falar pela primeira vezdo doutor David Livingstone, o médico e evangelista escocêsque andava há anos a explorar o continente africano, percor-rendo rios como o Zambeze e o Chire, baptizando montanhas,paragens desconhecidas e levando o cristianismo às tribos deselvagens. Tinha sido o primeiro europeu a atravessar a Áfricade costa a costa, o primeiro a percorrer o deserto do Calaárie tinha-se convertido no herói mais popular do Império Britâ-nico. Roger sonhava com ele, lia os folhetos que descreviam assuas proezas e ansiava por fazer parte das suas expedições, en-frentar os perigos a seu lado, ajudá-lo a levar a religião cristãàqueles pagãos que não tinham saído da Idade da Pedra. Quan-do o doutor Livingstone, procurando as fontes do Nilo, desa-pareceu engolido pelas selvas africanas, Roger tinha dois anos.Quando, em 1872, outro aventureiro e explorador lendário,Henry Morton Stanley, jornalista de origem galesa empregadopor um jornal de Nova Iorque, emergiu da selva a anunciar aomundo que tinha encontrado vivo o doutor Livingstone, aca-bava de fazer oito. O menino viveu a história novelesca comassombro e inveja. E quando, um ano mais tarde, se soube queo doutor Livingstone, que nunca quis abandonar o solo africa-no nem voltar a Inglaterra, falecera, Roger sentiu que tinhaperdido um familiar muito querido. Quando fosse crescido,também ele seria explorador, como aqueles titãs, Livingstone e

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Stanley, que estavam a alargar as fronteiras do Ocidente e a vi-ver umas vidas tão extraordinárias.

Ao fazer quinze anos, o tio-avô John Casement decidiu queRoger devia abandonar os estudos e procurar um trabalho, dadoque nem ele nem os irmãos tinham rendas das quais podiam vi-ver. Aceitou de boa vontade. Decidiram de comum acordo queRoger iria para Liverpool, onde havia mais possibilidades de tra-balho que na Irlanda do Norte. Com efeito, pouco depois de che-gar junto dos Bannister, o tio Edward arranjou-lhe um lugarna mesma companhia onde ele tinha laborado tantos anos.Começou os seus trabalhos de aprendiz na companhia de nave-gação logo a seguir a fazer os quinze anos. Parecia mais velho.Era muito alto, de profundos olhos cinzentos, magro, de cabelosnegros encaracolados, pele muito clara e dentes certos, frugal, dis-creto, ajuizado, amável e serviçal. Falava um inglês marcado porum toque irlandês, motivo de zombarias entre os seus primos.

Era um rapaz sério, empenhado, lacónico, não muito pre-parado intelectualmente, mas esforçado. Levou as suas obri-gações na companhia muito a sério, decidido a aprender.Colocaram-no no departamento de administração e contabili-dade. A princípio, as suas tarefas eram as de um mensageiro.Levava e trazia documentos de um escritório para o outro e iaao porto fazer os trâmites entre barcos, alfândegas e depósitos.Os seus chefes tinham-no em boa consideração. Nos quatroanos em que trabalhou na Elder Dempster Line não chegou aser íntimo de ninguém, devido à sua maneira de ser retraída eaos seus costumes austeros: inimigo de festarolas, quase nãobebia e nunca o viram frequentar os bares e lupanares do por-to. Desde então, foi um fumador empedernido. A sua paixãopor África e o seu empenho em conquistar mérito na compa-nhia levavam-no a ler com cuidado, enchendo-os de anotações,os folhetos e as publicações que circulavam pelos escritórios re-lacionados com o comércio marítimo entre o Império Britânicoe a África Ocidental. Depois, repetia, convencido, as ideias queimpregnavam aqueles textos. Levar para África os produtos

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europeus e importar as matérias-primas que o solo africanoproduzia era, mais que uma operação mercantil, um empreen-dimento a favor do progresso de povos parados na Pré-História,imersos no canibalismo e no tráfico de escravos. O comércio le-vava para lá a religião, a moral, a lei, os valores da Europa mo-derna, culta, livre e democrática, um progresso que acabaria portransformar os infelizes das tribos em homens e mulheres donosso tempo. Neste empreendimento, o Império Britânico estavana vanguarda da Europa e as pessoas tinham de se sentir orgu-lhosas por fazerem parte dele e do trabalho que realizavam naElder Dempster Line. Os seus colegas de escritório trocavamolhares trocistas, interrogando-se se o jovem Roger Casementseria um tonto ou um espertalhão, se acreditava naquelas paler-mices ou as proclamava para ter mérito perante os seus chefes.

Nos quatro anos em que trabalhou em Liverpool, Rogercontinuou a viver com os seus tios Grace e Edward, a quem en-tregava parte do seu salário e eles tratavam-no como um filho.Dava-se bem com os primos, sobretudo com Gertrude, com aqual aos domingos e dias feriados ia remar, pescar, se estivessebom tempo, ou ficava em casa a ler em voz alta junto à lareira,se chovia. A sua relação era fraterna, sem pitada de malícia oude sedução. Gertrude foi a primeira pessoa a quem mostrou ospoemas que escrevia em segredo. Roger chegou a conhecer decor o movimento da companhia e, sem nunca ter posto os pésnos portos africanos, falava deles como se tivesse passado a vidaentre os seus escritórios, lojas, diligências, costumes e gentes queos povoavam.

Fez três viagens à África Ocidental no SS Bounty e a expe-riência entusiasmou-o tanto que, depois da terceira, renunciouao seu emprego e anunciou aos irmãos, tios e primos, que tinhadecidido ir para África. Fê-lo de uma maneira exaltada e, se-gundo lhe disse o tio Edward, «como aqueles cruzados que naIdade Média partiam para o Oriente para libertar Jerusalém».A família foi despedir-se ao porto e Gee e Nina deitaram gros-sas lágrimas. Roger acabava de fazer vinte anos.

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