Sociedade Civil Organizada Global · mudanças sociais, políticas e econômicas acontecendo após...

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Sociedade Civil Organizada Global Prof. Diego Araujo Azzi BRI/CECS 2018.3

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Sociedade Civil Organizada Global

Prof. Diego Araujo Azzi

BRI/CECS

2018.3

Aula 3 (26/09)

Introdução teórica - Sociedade Civil Global

Leitura base:

BUDINI, Terra. Atores, processos e diferenças conceituais nos debates sobre “sociedade civil

global”. Revista de Estudos Internacionais (REI), Vol. 2 (1), 2011.

KALDOR, Mary. The idea of global civil society. International affairs, vol. 79, n. 3, p. 583-593, 2003.

Leitura complementar:

NOUR, Soraya. Cosmopolismo. Kant, os kantianos e as relações internacionais. Contexto

Internacional, vol. 25, Rio de Janeiro, 2003.

COSTA, Sérgio. Democracia Cosmopolita: deficits conceituais e equivocos politicos. RBCS, Vol. 18 no. 53 outubro, 2003.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Todas as concepções de sociedade civil e sociedade civil global incluem duas dimensões: normativa e descritiva

Não existe uma definição única de sociedade civil e nem de sociedade civil global.

Essa sua ambiguidade é parte da sua atratividade aos pesquisadores e o debate sobre o seu significado é parte da sua existência

A reinvenção do termo sociedade civil nos anos 1970 e 1980, simultaneamente na América Latina e na Europa oriental tem relação com o contexto global seguinte - as mudanças sociais, políticas e econômicas acontecendo após 1989

Anos 1990: acontecimentos diversos, como

- o fim da Guerra Fria,

- a crescente internacionalização da economia capitalista,

- políticas de ajustes estruturais visando à desregulamentação política da economia (incluindo o mercado de trabalho),

- a crescente integração dos mercados financeiros,

- a harmonização das leis e dos sistemas jurídicos nacionais nas áreas de proteção a contratos e investimentos,

- a revolução nas tecnologias de comunicação e informação

Contexto de discursos e expectativas otimistas sobre os processos de globalização e mudanças no sistema internacional e em torno da interdependência e da cooperação no cenário internacional (F. Fukuyama, O fim da história e o último Homem).

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Os termos ´global´ e ´sociedade civil´ se tornaram palavras da moda nos anos 1990

A novidade no uso do conceito a partir de 1989 é a globalização, a sociedade pós-industrial e a sociedade da informação

A sociedade civil não se encontra mais confinada às fronteiras do Estado nacional

A noção de sociedade civil tem sido associada a sociedades governadas com base no Direito e baseadas mais na conquista do consentimento dos indivíduos do que na coerção

Na sua versão vinculada aos espaços nacionais, a sociedade civil era tradicionalmente usada para analisar o contraste entre sociedades democráticas ocidentais e aquelas com governos autoritários e coercitivos ou sociedades com leis fracas

O fim da Guerra Fria erodiu a distinção entre sociedades civis e ´incivis´, entre o Ocidente democrático e o Oriente e o Sul não democráticos

A partir dos anos 1990, que muda com a globalização são as oportunidades de conexão com outros grupos de orientação similar em outras partes do mundo

Ao mesmo tempo, se ampliam as possibilidades de incidir não apenas sobre o Estado mas também sobre Organizações Internacionais

Hoje, a sociedade civil global e “um ator” que influencia e é influenciado pelo sistema internacional e suas diferentes autoridades

No entanto, uma das principais críticas ao conceito é referente a ausência de um Estado mundial, que permitiria uma analogia mais precisa com a sociedade civil em escala nacional.

A sociedade civil global atuaria no espaço aberto pela conjunção do direito humanitário e dos direitos humanos

Concretizado com o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, com a expansão das ações de paz, com a emergência de um marco de governança global

Garantida por um Estado de Direito cosmopolita, baseado em uma combinação de acordos internacionais e instituições.

O impacto recente da noção de sociedade civil nas relações internacionais e nas ciências sociais tem levado a releitura de obras clássicas, num esforço para se criar uma narrativa legitimizante

Essa narrativa constrói uma cronologia épica de ideias e autores que se inicia com uma história originária no final dos séc. XVII

Este é, portanto, um curso sobre uma ideia política.

Uma ideia que expressa um fenômeno real, ainda que as fronteiras do fenômeno possam variar e que a direção em que se movimenta esteja em constante mudança

O conceito de sociedade civil tem sido tradicionalmente associado a ideia de minimizar a violência nas relações sociais, ao uso público da razão como forma de administrar as relações humanas

O contexto de emergência recente do conceito de sociedade civil se relaciona com o aumento das preocupações com a autonomia individual, a auto-organização e o espaço privado

Por um lado as elites ocidentais celebraram a difusão da linguagem sobre sociedade civil como um triunfo das democracias existentes

Já os movimentos sociais passaram a usar o termo para expressar demandas pela extensão radical da democracia em direção à emancipação política e econômica

1990 em diante: período de transformações sociais, econômicas, tecnológicas e culturais nos estilos de vida – seja no trabalho (maior insegurança, maior flexibilidade, maior desigualdade), nas relações de gênero e na família, etc.

Nos anos 1970-80, os herdeiros nos novos movimentos sociais – os movimentos pela paz na Europa e pelos direitos Humanos nos EUA – foram capazes de se vincular a grupos na Europa Oriental e na América Latina para fornecer ajuda e proteção

Boomerang effect: forma através da qual a sociedade civil doméstica se esquiva do Estado e apela a redes transnacionais e instituições, bem como a governos estrangeiros para suas demandas fossem levadas por eles de volta aos seus governos nacionais, pressionando-os a partir do exterior

The Great Divide – Cold War tradition in IR studies

Internal – External divide (2 levels game, R. Putnam)

No lugar de formas de sociedade civil verticais e territorialmente confinadas, estamos observando a emergência de redes transnacionais globais e horizontais, tanto civis quanto incivis

A restruturação territorial do social, do econômico e do político tem profundas implicações sobre como entendemos a sociedade civil

O propósito do curso é, então, investigar a natureza do fenômeno contemporâneo a partir de um entendimento sobre seus sentidos passados

Para isso, é preciso aprofundar e alargar o debate sobre sociedade civi:

- distanciando-se das abordagens Estadocêntricas

- distanciando-se das abordagens Ocidentocêntricas

- combinando uma abordagem que valoriza a preocupação com a autonomia individual com a restruturação territorial das relações político-sociais

5 sentidos de sociedade civil

1. Societas civilis

2. Sociedade burguesa

3. A versão ativista

4. A versão neoliberal

5. A versão pós-moderna

1. Societas Civilis

Sociedade civil como o domínio das leis e como uma comunidade política, uma ordem pacífica baseada implícita ou explicitamente no consentimento dos indivíduos, uma zona de civilidade

Civilidade como um estado das coisas em que o uso da violência foi minimizado como forma de solucionar os problemas humanos

O surgimento da segurança pública é que fornece as bases para procedimentos mais civilizados de solução de conflitos – acordos jurídicos ou deliberação pública, por exemplo

5 sentidos de sociedade civil

1. Societas Civilis

Está implícito nesta concepção que esta societas civilis exige a existência do Estado, detendo o monopólio público da violência legítima. Assim, o significado de sociedade civil não pode ser desligado da existência de um Estado

A sociedade civil aqui não se diferencia com relação ao Estado mas sim com relação a sociedades incivis – estado de natureza ou impérios absolutistas – e com relação à guerra

2. Sociedade burguesa

Para Hegel, a sociedade civil era uma arena de vida ética entre o Estado e a família

Trata-se de um fenômeno historicamente produzido ligado à emergência do capitalismo que, ao criar a sociedade de mercado, criou o indivíduo (A. Smith) – a condição necessária para a existência da sociedade civil

Mercado, classes sociais, direito civil e organizações de bem-estar eram todos parte da sociedade civil. Em Marx, a concepção é restringida à base material de organização da sociedade

2. Sociedade burguesa

Pela primeira vez a sociedade civil foi concebida em contraste com o Estado

Hegel: sociedade civil como ´a conquista da idade moderna´

Marx: sociedade civil como ´o teatro da história´

3. A versão ativista

Nesta definição, originada na Europa Oriental nos anos 1970-80, a sociedade civil se refere à cidadania ativa, à crescente auto-organização por fora da esfera política formal

Um espaço expandido no qual cidadãos individuais podem influenciar as condições nas quais vivem, tanto diretamente através da auto-organização ou através da pressão política

A visão ativista aborda a emancipação política, o empoderamento dos indivíduos e a ampliação da democracia

3. A versão ativista

No plano transnacional, essa visão pressupõe a existência de uma esfera pública global na qual uma comunicação não-instrumental pode acontecer

O papel da sociedade civil global num sistema de governança global não é o de substituir a democracia do nível nacional, mas antes, deve ser visto como um complemento a ela em uma era em que a democracia clássica está fragilizada no contexto da globalização

4. A versão neoliberal

A sociedade civil é concebida como vida associativa – um terceiro setor voluntário, sem fins lucrativos – que não apenas restringe o poder do Estado como também fornece um substituto em diversas funções estatais

Associações voluntárias de caridade desempenham funções na área do bem-estar, com as quais o Estado não se dispõe mais a arcar

ONGs humanitárias são vistas como uma rede de proteção para lidar com os efeitos colaterais do liberalismo e das privatizações dos bens e serviços públicos, contribuindo com a evasão do Estado destas responsabilidades

5. A versão pós-moderna

A sociedade civil concebida como uma arena de pluralismo e contestação, uma fonte tanto de incivilidade quanto de civilidade

Crítica ao conceito de sociedade civil como eurocêntrico, baseado em realidades específicas da cultura Ocidental

Ruptura com a Modernidade, da qual um componente chave sempre foi o Estado-nação

5. A versão pós-moderna

Sociedade civil global como a difusão de arenas de contestação, uma pluralidade de sociedades civis globais organizadas através de redes globalmente estruturadas

Isso pode incluir o Islam, redes de diáspora nacionalista, redes de direitos humanos, etc

Transposta ao nível global, a sociedade civil se refere a todos os aspectos dos acontecimentos globais que ocorrem por baixo e além do estado e das instituições internacionais, incluindo a ação de corporações transnacionais, o investimento estrangeiro, migrações, indústria cultural global, etc.

Os vários atores das concepções contemporâneas de sociedade civil são todos partes da sociedade civil global

A sociedade civil é um processo, um horizonte, não um ponto de chegada. O termo oferece uma direção de futuro que não está pré-definida

T. Budini

Em grande parte da literatura liberal, a construção de agência política para uma “sociedade civil global” deriva de uma homogeneidade baseada em pressupostos normativos.

A análise das perspectivas teóricas críticas permite contestar esta homogeneidade e argumentar que a emergência de uma “sociedade civil global” pode ser mais bem compreendida como uma arena de disputa entre atores não estatais, com interesses e identidades diversas.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Vários analistas do “novo transnacionalismo” tratam de forma indiscriminada as relações entre tipos distintos de atores transnacionais

Distinguimos três categorias com base em suas motivações:

(1) Aqueles com objetivos essencialmente instrumentais, especialmente corporações transnacionais e bancos;

(2) aqueles motivados primariamente por ideias causais compartilhadas, como grupos científicos ou comunidades epistêmicas; e

(3) aqueles motivados primariamente por princípios e valores compartilhados

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Destacam-se três processos que contribuíram para fortalecer a perspectiva de uma sociedade civil em escala global:

- O renascimento da sociedade civil em âmbito doméstico nas décadas de 1970 e 80;

- A ampla participação de organizações não governamentais e movimentos sociais nas Conferências Mundiais das Nações Unidas nos anos 1990; e

- O aparecimento do movimento antiglobalização/altermundialista, na virada do milênio

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Sociedade civil global como um projeto inacabado

Que consiste em:

- redes elásticas mais ou menos densas,

- pirâmides e grupos com centro e ramificações de instituições socioeconômicas e

- atores que se organizam através das fronteiras, com objetivo deliberado de redesenhar o mundo de novas formas.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Embora a participação destes novos atores tenha potencial de pluralizar a política mundial

As hierarquias e desigualdades de acesso colocam em evidencia o tema da representatividade e da legitimidade.

Há a necessidade de novas formas e critérios de representatividade e legitimidade frente aos desafios impostos ao Estado-nação

O ponto crítico não é que esses grupos transnacionais societais estabeleçam novos critérios de legitimidade, mas, precisamente, o ponto crítico é a ausência destes critérios.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

O ativismo da sociedade civil global ofereceria possibilidades significativas de reduzir a maioria dos déficits democráticos na governança das relações globais.

Esta “democratização” se daria por meio:

- da amplificação das vozes dos diversos grupos afetados;

- do papel educativo de atividades públicas;

- da pluralidade de posições;

- do aumento da transparência, por meio de pressão;

- do aumento da prestação de contas, por meio de acompanhamento;

- e, como resultado dos cinco elementos acima, do aumento da legitimidade

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

A sociedade civil global acompanha uma diferenciação funcional emergente no sistema político da sociedade mundial, em um subsistema de Estados, um subsistema de instituições internacionais e uma esfera pública.

Esta esfera pública internacional estaria envolvida nas operações governamentais da política mundial, enquanto simultaneamente se diferenciaria de seus aparatos institucionais oficiais.

Como em qualquer divisão do trabalho, a autonomia funcional da esfera pública internacional significaria interdependência estrutural com seu ambiente político (sistema de Estados e organizações internacionais).

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

A emergência de uma esfera pública global parece estar dentro do sistema político, como um subsistema, e não como uma manifestação externa de “democratização” das relações internacionais

A sociedade civil contribuiria com vigilância, regulação, técnica e mobilização

Assim, mais do que se opor externamente ao sistema político da sociedade mundial, a esfera pública internacional participaria de sua reprodução

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

O conceito de “sociedade civil global” deve ser entendido mais em termos de sua função retórica do que de seu significado conceitual na teoria política e de relações internacionais.

A função retórica seria constituir o global como um espaço político e torná-lo um campo governável, justificando o exercício da autoridade dentro dele, seria uma resposta ao problema da governança sem governo

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Seria possível identificar duas dimensões ou duas esferas distintas de pressão:

Forças sociais contestadoras/contra-hegemônicas e forças dominantes, interessadas na manutenção da ordem hegemônica.

Mesmo dentro do mesmo conjunto de forças sociais identificam-se posições e interesses distintos, que podem ou não convergir.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Duas grandes dimensões de análise quando se trata do termo “sociedade civil global”:

Por um lado, uma vertente mais institucionalizada de participação de atores não estatais nas arenas de governança no plano internacional (como em organismos internacionais e cúpulas governamentais) e,

Por outro lado, a articulação de atores não estatais em movimentos contra-hegemônicos e subalternos, de âmbito continental ou mesmo mundial.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

A construção da sociedade civil como uma esfera autônoma seria, paradoxalmente, uma das maiores conquistas da “arte de governo liberal”.

Se a sociedade civil global é mais bem entendida em correlação a uma governança global emergente e se as teorias que a explicam servem para justificar o exercício de autoridade no campo global...

Então seu papel de emancipação deve ser discutido.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

No começo dos debates acadêmicos sobre a “sociedade civil global”, subjazia a perspectiva de um processo relativamente coeso, de democratização bottom-up da política mundial.

Ao longo da última década, a ideia adquire um sentido dual, que permite a coexistência e a disputa entre forças sociais contestadoras/contra-hegemônicas e forças dominantes, interessadas na manutenção da ordem hegemônica.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

A formulação liberal de sociedade civil - tanto quando considerada em âmbito doméstico, quando tomada em sua dimensão além-fronteiras – passou a conotar uma ideia de contrapeso, seja ao poder do Estado, seja aos mecanismos de governança do sistema de Estados.

Particularmente no âmbito internacional esta é sua maior contribuição, isto é, a ideia de uma “sociedade civil global” contribui mais pela tentativa de explicar forças que lutam por reforma/contestação do sistema internacional, do que pela realocação propriamente dita de um conceito historicamente ligado ao âmbito doméstico

Introdução teórica – Sociedade Civil Global

Os espaços criados pela articulação de atores não estatais além das fronteiras, por vezes chamado de “sociedade civil global”, devem ser entendidos como

arenas transnacionais de disputas entre forças sociais, nas quais coexiste o potencial de dominação e de resistência.

Introdução teórica – Sociedade Civil Global