Richard Matheson Eu Sou A Lenda

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Richard Matheson Título original: I Am Legend Tradução e Revisão: Jean Steeler © 1954 by Richard Matheson ISBN: 958-16-0201-1

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I - Janeiro de 1976

Capítulo 1 Naqueles dias nublados, Robert Neville não sabia com certeza quando se poria o sol, e

às vezes eles já ocupavam as ruas antes de que ele retornasse. Durante toda sua vida, a hora do crepúsculo estava relacionada com o aspecto do céu, e geralmente, preferia não se afastar muito.

Passeava ao redor da casa, sob uma luz cinzenta e débil, com um cigarro na boca e um fio de fumaça por cima do ombro. Comprovou que as janelas não tinham nenhuma madeira solta. Os ataques mais violentos deixavam tábuas quebradas ou meio arrancadas, e devia remendá-las. Odiava esta tarefa. Hoje felizmente, só faltava uma tábua.

Quando esteve no pátio revisou a estufa e o reservatório. Às vezes os ferros que cobriam o depósito se afrouxavam e os encanamentos estavam retorcidos ou rotos. Às vezes, na estufa, as pedras que eles jogavam por cima do muro quebravam os vidros e tinha que trocá-los.

Mas o depósito e a estufa estavam intactos nesta ocasião. Retornou a casa. Quando abriu a porta da rua, apareceu no espelho uma imagem de si

mesmo, absolutamente distorcida. Fazia um mês que tinha pendurado ali aquele espelho rachado. Ao cabo de poucos dias, algumas partes caíam no alpendre. Pode cair inteiro, pensou. Não tinha idéia de pendurar ali outro maldito espelho; não valia a pena. Em troca, havia posto algumas cabeças de alho. Dariam melhor resultado.

Cruzou lentamente a sala, perdida no mais absoluto silêncio, virou pelo escuro corredor da esquerda, e entrou no dormitório.

Em outro tempo, a casa havia estado abarrotada de adornos, mas agora tudo era completamente funcional. Como a cama e a escrivaninha ocupavam muito pouco espaço, tinha convertido uma parede em depósito.

Na prateleira podia-se encontrar um serrote, um torno e uma pedra de esmeril. E na parede, um mostruário completo de ferramentas.

Neville agarrou o martelo e encontrou, no meio da desordem de uma caixa, uns tantos pregos. Tornou a sair, e fixou rapidamente a tábua que se danificou, cravando os pregos restantes na próxima porta caída.

Permaneceu ali durante um momento, de pé no jardim, contemplando a rua larga e silenciosa. Era um homem alto, tinha trinta e seis anos e sua descendência era inglesa e alemã. Em seu rosto, nada chamava especialmente a atenção, exceto a boca, larga e firme, e os brilhantes olhos azuis, que observavam agora as ruínas das casas vizinhas. Tinha-as queimado para evitar que se aproximassem pelos telhados.

Passados alguns minutos, respirou fundo e voltou a entrar. Jogou o martelo sobre o sofá da entrada, acendeu outro cigarro e tomou a xícara-de-café da manhã.

Pouco depois entrou na cozinha a contra gosto. Devia desfazer-se do lixo acumulado na lixeira. Devia também queimar os pratos e copos de papel, e tirar o pó dos móveis, e lavar a pia e a banheira, e trocar os lençóis e a capa do travesseiro. Mas vivia sozinho, e essas coisas podiam esperar.

Ao meio-dia, Neville estava na estufa recolhendo cabeças de alho. No princípio, seu estômago não podia suportar o aroma de alho. Agora o tinha

impregnado nas roupas, e às vezes pensava que até na pele, e quase não o notava. Quando lhe pareceu que tinha o suficiente, voltou para casa e os colocou na pia

da cozinha. Acionou o interruptor da parede. A luz vacilou uns instantes antes de brilhar normalmente. Neville deixou escapar um estalo de desgosto entre as mandíbulas apertadas. Outra vez o gerador. Teria que repassar o maldito manual e verificar os cabos.

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E se a reparação era muito complicada, deveria comprar um novo gerador. Sentou-se, mal-humorado, em um tamborete junto a pia da cozinha e tirou uma faca. Primeiro, foi separando os pequenos dentes rosados entre si, logo os cortou pela

metade. O acre e penetrante aroma inundou a cozinha. Pôs em funcionamento o aparelho de ar

condicionado e a atmosfera ficou bastante limpa. Logo, com uma agulha, fez um buraco em cada metade dos dentes e os atravessou com

um arame até formar uns vinte e cinco colares. No princípio pendurava estes colares nos vidros, mas a pedrada o teria obrigado a tapar

todos os vidros com madeira cruzada. Finalmente teria substituído estas madeiras pelas tábuas, como se a casa tivesse se convertido em um lúgubre sepulcro; mas teria posto fim à aquela chuva de pedras e vidros quebrados que entrava todas as noites nas casas. E uma vez instalados os três aparelhos de ar-condicionado, pôde-se respirar melhor. Um homem pode acostumar-se a tudo.

Quando teve os colares terminados, saiu e os cravou nas tábuas das janelas, e retirou logo os velhos porque já tinham perdido quase todo o aroma.

Realizava este trabalho duas vezes por semana. Não teria outra forma de defender-se melhor que esta, no momento.

Defender-se?, pensava freqüentemente. Para quê? Durante a tarde, passou o tempo fazendo estacas. Com a ajuda do torno reduzia as toras de madeira em estacas de vinte centímetros. Em

seguida, lhes afiava a ponta na pedra de esmeril. Era um trabalho cansativo e monótono, e a serragem flutuava no ar com seu morno

aroma e lhe penetrava nos poros e nos pulmões, e lhe provocava tosse. Mas as estacas nunca eram suficientes, independentemente de quantas fizesse. E

os toras escasseavam-se cada vez mais. Logo teria que usar pranchas. Pensou, irritado, que isso seria o cúmulo.

Tudo era muito deprimente e devia pensar em mudar-se. Mas como, se não podia dedicar nem um minuto a pensar?

Enquanto torneava, o alto-falante do dormitório deixava chegar o som da Terceira, a Sétima e a Nona de Beethoven. Com a música enchia o terrível vazio do tempo.

A partir das quatro da tarde começou a contemplar o relógio de parede. Trabalhava em silêncio, com os lábios apertando o cigarro, os olhos cravados na furadeira que varava a madeira semeando o chão de um pó esbranquiçado.

Quatro e quinze. Quatro e meia. Cinco para as cinco. Só faltava uma hora e os asquerosos bastardos rodeariam a casa. Logo que o sol se

pusesse, apareceriam. Deteve-se diante da enorme geladeira para escolher seu jantar. Os olhos indecisos

passearam pelas carnes, os vegetais congelados, os pães e os bolos, as frutas e cremes. Tirou ao fim duas costelas de carneiro, umas ervilhas e uma garrafa de suco de tomate. Em seguida, empurrou a porta com o cotovelo para fechá-la e se aproximou das latas de

conserva que se empilhavam até o teto. Tomou um copo de suco de tomate e saiu do cômodo.

Em outro tempo Kathy dormia ali. Agora era o refúgio de seu estômago. Cruzou a sala. O mural que tampava a parede do fundo mostrava um escarpado, com

um formoso oceano verde e azul. As ondas se rompiam contra umas rochas negras. Muito acima, no céu azul, as gaivotas estavam suspensas no ar, e à direita uma árvore torta pendurava-se sobre o abismo e os ramos escuros ficavam recortados contra o céu.

Neville entrou na cozinha e deixou cair os mantimentos sobre a mesa, com os olhos fixos no relógio. Cinco e quarenta. Faltava pouco.

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Pôs um pouco de água em uma panela e a esperou que fervesse. Em seguida tirou a

carne do gelo e a colocou na churrasqueira. Quando a água estava no ponto, colocou as ervilhas na panela. O mau funcionamento do gerador, sem dúvida, era devido à cozinha elétrica.

Na mesa cortou duas fatias de pão e se serviu um copo de suco de tomate. ficou olhando o ponteiro dos segundos que girava lentamente na esfera do relógio.

Depois de beber o suco de tomate foi até a porta e saiu ao alpendre. Deu uns passos mais, atravessou a grama e chegou à calçada.

O céu estava se enegrecendo e soprava um vento frio. Olhou ao longo da rua. Chegariam a qualquer momento.

Oh, na verdade, não eram piores que aquelas malditas tormentas de areia. Encolheu-se de ombros, atravessou o jardim e tornou a entrar na casa. Fechou a porta com chave e colocou a tranca em seu lugar correspondente. Retornou à cozinha, virou às costelas de carneiro e apagou a chama aonde ferviam as ervilhas.

Estava servindo o jantar quando se deteve para olhar o relógio. Hoje tinham chegado às seis e vinte e cinco. Ben Cortman gritava:

—Saia, Neville! Neville se sentou e começou a comer, suspirando. Depois de jantar, na sala, tratou de ler. Preparou um uísque com soda e tinha-o na mão

enquanto folheava um texto de fisiologia. Do alto-falante instalado na porta do vestíbulo chegava, a grande volume, uma obra de Shoenberg.

Não soa bastante alto, pensou. Ainda os ouvia lá fora. Ouvia seus murmúrios e seus passos, seus gritos, seus grunhidos e suas brigas. De vez em quando, uma pedra ou um tijolo golpeavam a casa. Às vezes ladrava um cão.

E todos se reuniam ali para o mesmo. Fechou os olhos por um instante. Logo acendeu um cigarro com resignação e deixou

que a fumaça lhe enchesse os pulmões. Se tivesse tempo isolaria a casa e evitaria os ruídos. Tudo seria melhor se não tivesse

que escutá-los. Ainda depois de seis meses lhe destroçavam os nervos. Já nem sequer os olhava. Á princípio teria aberto um buraco na porta para espioná-

los. Mas um dia, as mulheres se deram conta e lhe incitavam a sair da casa com gestos obscenos.

Deixou o livro e cravou os olhos no tapete, escutando a música do Verklärte Nacht. Podia colocar tampões nos ouvidos e não ouviria os ruídos da rua; mas então tão pouco ouviria a música, e não queria ficar encerrado em uma carapaça.

Voltou a fechar os olhos. A presença das mulheres complicava as coisas, pensou; as mulheres, como bonecas lascivas na noite. Esperavam lhe provocar e fazer com que se decidisse a sair.

Estremeceu-se. Todas as noites acontecia o mesmo: Começava a ler e a escutar música. Em seguida pensava em isolar a casa, e finalmente pensava nas mulheres.

De novo aquele calor insuportável nas vísceras. Conhecia muito bem aquela sensação e lhe enfurecia não poder dominá-la. O calor era cada vez mais forte, até que tinha que se conformar e passear pela sala com os punhos apertados. Então acendia o projetor e via um filme, ou comia muito, ou bebia muito, ou aumentava o volume da música até machucar os ouvidos.

Sentiu que o estômago lhe retorcia como um arame. Pegou o livro e tentou ler, concentrando-se em cada palavra.

Mas um segundo depois o livro estava outra vez sobre seus joelhos. Olhou para a biblioteca. Aquela sabedoria não acalmaria nunca seu fogo; séculos e séculos de palavras não podiam satisfazer aquele desejo imperativo e irracional.

Sentiu-se doente, humilhado. Tinham-lhe terminado todas as possibilidades. Tinham-no obrigado ao celibato, e devia assumi-lo.

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Estendeu a mão, aumentou o volume da música e tratou de ler uma página inteira sem

deter-se. Leu algo sobre corpúsculos sangüíneos que atravessam membranas, e pálidas linfas e nódulos linfáticos, e linfócitos e fagócitos...

"...para terminar no ombro esquerdo, perto do tórax, em uma das veias largas do sistema circulatório..."

Fechou o livro de um golpe só. Por que não lhe deixavam tranqüilo? Acreditavam que seria de todos? Eram tão

estúpidos? Por que vinham todas as noites? Depois de cinco meses podiam ter desistido e

tentar a sorte em outro lugar. Foi até o bar e se serviu de outro copo. Enquanto voltava para seu lugar ouviu que

umas pedras rolavam pelo telhado e caíam entre os arbustos do fundo da casa. Além disso, do ruído das pedras, ouviam-se os acostumados gritos de Ben Cortman:

—Saia, Neville! Algum dia agarrarei a esse bastardo, pensou enquanto bebia de um gole o

amargo líquido. Algum dia o encontrarei e lhe cravarei uma estaca, bem no meio do seu maldito peito.

Amanhã. Amanhã isolaria a casa. Não queria pensar mais nas mulheres. Se a isolasse possivelmente deixaria de pensar

nelas.A música cessou e Neville tirou os discos do prato e os guardou em suas capas. Agora os sons da rua lhe chegavam claramente. Apanhou um disco qualquer, pôs no

toca-disco e aumentou o volume. O ano da praga, de Roger Leie, encheu-lhe os ouvidos. Os violinos chiavam e gemiam;

os tambores soavam como os batimentos de um coração agonizante; as flautas tocavam uma estranha melodia átona.

Tirou, furioso, o disco, e o quebrou em seu joelho direito. Fazia tempo que desejava fazê-lo. Caminhou logo rigidamente até a cozinha e jogou os pedaços no balde de lixo. Ali permaneceu um momento, na escuridão, com os olhos fechados e apertando os dentes, tampando os ouvidos com os punhos. Me deixem só, me deixem sozinho, me deixem sozinho!

Era inútil. Não podia vencê-los de noite. Era inútil tentá-lo; a noite lhes pertencia. Estava comportando-se como um estúpido. Faria melhor ver um filme, mas não, não tinha vontade de instalar o projetor. Iria em seguida à cama com tampões nos ouvidos. Ao fim e ao cabo, assim terminavam todas as suas noites.

Rapidamente, tratando de não pensar em nada, entrou no dormitório e se despiu. Colocou as calças do pijama e foi ao banheiro. Nunca usava camisa para dormir. Tinha se acostumado no Panamá, durante a guerra.

Olhou-se no espelho enquanto se lavava. Contemplou o peito largo e peludo e a tatuagem que lhe tinham feito no Panamá, uma noite. Durante uma bebedeira. Que estúpido era nessa época, pensou. Bom, possivelmente aquela cruz adornada teria dado-lhe sorte.

Escovou os dentes cuidadosamente. Agora era seu próprio dentista. Muitas coisas podiam ir-se ao diabo, mas sua saúde era muito importante. Por que não deixo também o álcool?, pensou. Por que não acabo com aquele inferno?

Antes de ir-se à cama percorreu a casa, apagando as luzes. Contemplou o mural durante uns minutos e tratou de pensar que era realmente o oceano. Mas como poderia concentrar-se com todos aqueles chiados e gritos noturnos?

Apagou a luz da sala e entrou no dormitório. Uma careta de desgosto se desenhou em sua cara. A serragem cobria os lençóis.

Sacudiu-os com a mão pensando que devia separar o armazém do dormitório. Seria melhor fazer isto, seria melhor fazer aquilo, pensou cansado. Teria tanto que fazer.

Nunca resolveria o verdadeiro problema.

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Colocou os tampões nos ouvidos e se afundou no silêncio. Apagou a luz e deslizou-se entre os lençóis. Eram um pouco mais das dez. Que mais dá pra fazer?, pensou, me levantarei mais cedo.

Estendido na cama, respirou profundamente na escuridão, esperando que lhe viesse o sono. Mas o silêncio não era uma grande ajuda. Ainda os tinha gravados; homens de caras brancas que se arrastavam pela rua, procurando incessantemente como chegar até ele. Alguns, possivelmente de cócoras, espreitando como cães, chiavam os dentes e se balançavam para frente e para trás, para frente e para trás.

E as mulheres... Mas ia pensar outra vez nelas? Deitou-se de barriga para baixo proferindo uma maldição e apertou a cabeça contra o travesseiro. Assim ficou durante um momento, respirando pesadamente, retorcendo-se.

Todas as noites pronunciava mentalmente o mesmo desejo: Que chegue a manhã. Deus, faz que chegue a manhã!

Sonhou com Virginia e gritou durante o sono e os dedos lhe cravaram na colcha como garras.

Capítulo 2 O despertador soou às cinco e meia. Neville estirou o braço intumescido e o parou. Procurou os cigarros, acendeu um, e se sentou à fumar na cama. Ao cabo de um

momento levantou-se, cruzou a sala e espionou pelo buraco. Lá fora, na grama, as obscuras figuras se erguiam como guardiões. Enquanto olhava,

algumas começaram a afastar-se, e se ouviam murmúrios de descontentamento. Outra noite chegava ao seu fim.

Voltou para dormitório, acendeu a luz e começou a vestir-se. Enquanto colocava a camisa ouviu o grito de Ben Cortman:

—Saia, Neville! E isso foi tudo. Em seguida se afastariam, mais fracos do que antes. Possivelmente

tinham-se atacado entre eles, o que ocorria freqüentemente. Nada os unia. Obedeciam a só uma necessidade. Uma vez vestido, Neville se sentou na cama e escreveu a lista dos recados do dia: Torno no Sears. Água. Gerador. Madeira. (?). Rotina. Terminou rapidamente o café da manhã: um copo de suco de laranja, uma torrada

e duas xícaras de café. Não podia acostumar-se a comer com tranqüilidade. Jogou o copo e o prato de papel no balde de lixo e escovou os dentes. Conservava esse

hábito, e isso lhe consolou. Quando chegou à porta, elevou os olhos. O céu estava claro, quase sem nuvens. Hoje

podia sair. Fantástico. No chão do alpendre tropeçou com alguns pedaços do espelho. Bom,

continuavam quebrando-os. Limparia-os logo. Havia um corpo sem vida na calçada e outro entre as ruínas da casa vizinha. Ambas

eram mulheres. Eram quase sempre mulheres as vítimas. Abriu a porta da garagem e tirou de marcha-ré sua caminhonete Willys. Descem em

seguida e abriu a porta traseira. Colocou umas luvas grossas e se aproximou da mulher da calçada.

Enquanto arrastava os corpos pela grama e os colocava em uma lona, pensou que à luz do dia, não eram absolutamente atrativas. Não tinha nenhuma gota de sangue nelas; tinham a cor de peixes. Fechou o porta-malas.

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Percorreu o jardim recolhendo em um saco todos os tijolos e pedras que lhe tinham jogado. Levou-o ao carro e tirou as luvas. Em seguida entrou novamente na casa, lavou as mãos e preparou umas bolachas e uma garrafa térmica de café quente.

Entrou no dormitório e recolheu o feixe de estacas. O carregou ao ombro, pegou um martelo da parede e tornou a sair.

Essa manhã não trataria de encontrar Ben Cortman. Teria outras coisas que fazer. Durante um instante recordou sua intenção de isolar a casa. Bom, ao diabo com isso. Faria-o outro dia, possivelmente algum dia que estivesse nublado.

Meteu-se na caminhonete e releu sua lista. O torno era imprescindível. Mas antes devia livrar-se dos corpos.

Pôs o motor em marcha e retrocedeu rapidamente para a Boulevard Compton. Dali se dirigiu ao leste. As casas se elevavam a ambos os lados da rua, silenciosas e vazias; os carros estavam estacionados ao longo das calçadas.

Baixou a vista um momento e examinou o indicador de combustível. Ainda tinha meio tanque, mas seria bom parar na avenida Western e enchê-lo. No momento, não teria motivo para utilizar a gasolina armazenada na garagem.

Entrou no silencioso posto de gasolina. Aproximou uma lata e com a mangueira, começou a encher o tanque até que este transbordou e o líquido se esparramou pelo cimento.

Revisou o óleo, a água, a bateria e os pneus. Tudo estava em ordem. Assim sucedia quase sempre, porque cuidava muito do carro. Se lhe danificasse alguma vez e não pudesse retornar antes do crepúsculo...

Bom, não teria motivo para preocupar-se. Se isso ocorresse, seria o fim. Continuou pela Boulevard Compton até deixar para atrás o posto de gasolina e as outras

ruas mortas. Não se via ninguém. Mas Neville sabia onde estavam. O fogo ainda ardia. Quando chegou mais perto colocou as luvas, a máscara de gás e

ficou olhando a escura coluna de fumaça que oscilava sobre a terra. Todo o campo, desde junho de 1975, era um grande poço.

Parou o carro e desceu rapidamente em um salto, ansioso por terminar o quanto antes. Abriu a porta traseira, tirou um dos corpos e o arrastou até a borda do poço. Ali levantou-o e lhe deu um empurrão.

O corpo caiu rodando até o fundo cinzento e fumegante. Retornou á caminhonete ofegando, apesar da máscara de gás.

Empurrou o outro corpo ao poço e jogou o saco de tijolos e pedras, e se afastou dali a toda pressa.

Quando estava afastado um quilômetro, tirou a máscara e as luvas e as jogou atrás. Abriu a janela e ficou a respirar a baforadas o ar frio. Tirou um frasco do porta-luvas e tomou um comprido gole de uísque. Em seguida acendeu um cigarro e aspirou profundamente a fumaça. Ocasionalmente, devia ir todos os dias ao poço, durante várias semanas, e sempre se sentia doente.

Em algum lugar, lá em baixo, estava Kathy. Á caminho de Inglewood parou em um mercado em busca de água mineral. Quando entrou no silencioso armazém sentiu de repente o fétido aroma dos

mantimentos putrefatos. Empurrou rapidamente o carrinho ao longo das silenciosas e poeirentas prateleiras.

Por fim encontrou as garrafas de água. No fundo, uma porta se abria a uns poucos degraus. Colocou as garrafas no carrinho e subiu. O proprietário do mercado deveria estar no andar de acima.

Eram dois. No vestíbulo, recostada em um sofá, havia uma mulher de uns trinta anos, vestida em um roupão vermelho. Respirava lentamente, tinha os olhos fechados e as mãos cruzadas sobre o estômago.

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Neville procurou o martelo e a estaca. Sempre era difícil cravar-lhe quando estavam vivos, especialmente às mulheres. De novo sentiu aquela urgência insensata que lhe endurecia os músculos.

A mulher não proferiu som algum, exceto um rouco grunhido. Enquanto entrava no quarto, Neville ouviu algo similar a um ruído de água. Bom, o que outra coisa podia fazer?, perguntou-se. Não sabia ainda que tinha se equivocado.

Parou na entrada da casa, olhando fixamente a cama, com o peito agitado e respirando com dificuldade. Logo, obedecendo a um impulso, aproximou-se e olhou a a menina.

Por que todas recordavam Kathy?, pensou, tirando a segunda estaca com mãos trêmulas.

Seguiu seu caminho, e enquanto se aproximava lentamente da Sears tratou de esquecer, pensando no efeito das estacas.

Cruzou, preocupado, a deserta avenida. Só se ouvia o apagado grunhido de seu motor. Parecia incrível que agora, depois de cinco meses, começasse a preocupar-se. E como sabia que sempre acertava no coração? Tinha que ser no coração, teria dito o

doutor Busch. Entretanto, ele, Neville, não tinha conhecimentos de anatomia. Franziu o cenho. Era irritante ter atuado em todo esse odioso processo sem ter

certeza uma só vez. Sacudiu a cabeça. Devo pensar atentamente em tudo isto, ordenar as perguntas

antes de me responder. Tenho que fazer as coisas de um modo científico. Sim, sim, sim, pensou, sombras do velho Fritz. Neville estava em desacordo com seu

pai, e havia lutado contra seu pensamento mecânico e lógico. O velho Fritz tinha morrido, negando violentamente a existência dos vampiros, até o último instante.

Encontrou o torno na Sears. Carregou-o na caminhonete e em seguida rastreou o edifício.

Viu cinco no porão, escondidos em lugares escuros, e achou um em uma geladeira. Quando viu o homem metido ali, nesse ataúde de porcelana, não pôde conter a risada. Mais tarde se deu conta de que só um mundo sem humor justificava essa risada. Por

volta das duas, parou e almoçou. Tudo parecia ter sabor a alho. Era surpreendente o efeito do alho. O aroma devia afastá-los, mas por que? Havia muitos pontos obscuros: que não saíssem de dia, que não suportassem o alho,

que os matassem definitivamente com as estacas, que temessem as cruzes e que evitassem os espelhos.

Segundo a lenda, eram invisíveis nos espelhos ou se transformavam em morcegos. Mas a ciência e a realidade tinham conseguido vencer aquelas superstições. Do mesmo

modo, era disparatado acreditar que se transformavam em lobos. Sem dúvida alguma, existiam cães vampiros; os havia visto e ouvido fora da casa, de noite. Mas só eram cães.

Neville apertou os lábios. Esquece-os, disse-se a si mesmo; não está preparado ainda. Algum dia poderá entender tudo isto, mas agora não. Há questões mais urgentes á

resolver. Depois do almoço, foi de casa em casa e utilizou todas as estacas.Quarenta e sete.

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Capítulo 3 «A força do vampiro reside em que ninguém acredita nele». Obrigado, doutor Van Helsing, pensou Neville deixando a um lado seu exemplar de

“Drácula”. Ficou com os olhos fixos na biblioteca, escutando o segundo concerto para piano de

Brahms, com um copo de uísque na mão direita e um cigarro na esquerda. Em efeito. O livro era um compêndio de superstições e convencionalismos

simples mas essa linha dizia a verdade. Ninguém havia acreditado neles, e como se podia lutar contra algo inverossímil?

Assim havia sido. Algo obscuro e noturno havia se cruzado nas sombras medievais. Algo impossível e inconsistente, algo que só existia em feitos e idéias, nas páginas da

literatura fantástica. Os vampiros pertenciam à outra época, como os romances de Summers ou os melodramas de Stoker. Eram apenas umas linhas na Enciclopédia Britânica ou possivelmente material para escritores ou filmes de média qualidade.

Uma débil lenda que havia se transmitido de séculos em séculos. Bom, pois agora tinha certeza. Tomou um gole de uísque e fechou os olhos, deixando descer o líquido gelado

pela garganta até esquentar-lhe o estômago. Era certo, pensou, mas ninguém tinha conseguido averiguá-lo. Oh, sabiam que existia algo, mas de maneira nenhuma podia ser isso. Isso era algo imaginário, uma mera superstição, não havia nada semelhante na vida real.

E antes de que a ciência tivesse destruído a lenda, a lenda devoraria a ciência e todo o resto.

Esse dia não havia procurado madeira. Não tinha revisado o gerador. Não havia recolhido os pedaços de espelho quebrados. Nem sequer tinha jantado; não tinha apetite. Acontecia freqüentemente. Não podia fazer aquilo e comer logo despreocupadamente. Nem ainda depois de cinco meses.

Pensou nos meninos que havia visto aquela tarde e tomou sua bebida. Piscou e as paredes da casa dançaram um pouco diante dele. Está embebedando-se

homem, disse a si mesmo. E o que importa?, replicou. Tinha alguém, mais direito? Lançou o livro ao outro extremo do quarto. Adeus, Van Helsing, Mina, Jonathan, e você,

Conde de olhos sanguinolentos. Ficções, extrapolações estúpidas de um tema sombrio. Tossiu engasgando-se. Lá fora, Ben Cortman o convidava a sair uma noite mais. Espera

aí, Benny, não vá, pensou. Espera que eu ponho o smoking. Espera, Benny... Bom, por que não?, perguntava-se. Por que não sair agora? Só assim

poderia livrar-se definitivamente deles. Convertendo-se em um deles. Riu entre dentes. Era muito simples. levantou-se e se aproximou cambaleando-se ao

bar. Por que não? Por que sofrer tanto, quando que com apenas o abrir uma porta e descer uns degraus se solucionaria tudo em seguida?

Havia, é obvio, uma ínfima possibilidade de que existissem outros como ele em alguma parte, tentando sobreviver, esperando poder encontrar algum dia a gente de sua espécie. Mas como podia encontrá-los, se viviam a mais de um dia de viagem?

Encolhendo-se de ombros, encheu de novo o copo com uísque. Qual era sua atividade, fazia meses, desde então? Pôr colares de alho nas janelas, colocar redes na estufa, queimar os corpos, tirar as pedras e, pouco a pouco, ir reduzindo aquela multidão. Por que enganar-se a si mesmo? Nunca havia encontrado a ninguém mais.

Deixou-se cair pesadamente no sofá. Aqui estou, acomodadíssimo, acossado por um regimento de sedentos de sangue que só aspiram a beber livremente o meu. Tomem um gole, cavalheiros, este é realmente por minha conta.

Uma careta de ódio apareceu em seu rosto. Bastardos! Matarei-os a todos antes de ceder! Apertou com força a mão direita e o copo quebrou-se em pedaços.

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Baixou os olhos e olhou aturdidamente os vidros no chão, o resto ainda seguia em sua mão, e o sangue diluído em uísque gotejava lentamente.

Gostariam de vê-la?, perguntou-se. Levantou-se, furioso, de um salto, e quase abriu a porta. Seria bom lhes esfregar a cara com a mão e ouvi-los uivar.

Fechou em seguida os olhos, sacudindo-se. Se controle, amigo, pensou. Vai enfaixar essa mão condenada.

Entrou no banheiro dando uns tropeções e lavou cuidadosamente a mão, estremecendo-se quando a tintura de iodo entrava na ferida. Enfaixou-se em seguida torpemente. Respirava com dificuldade e o suor lhe banhava a testa. Desejava um cigarro. Voltou para a sala, trocou Brahms por Bernstein e acendeu um cigarro.

O que farei se um dia me faltam os pregos para os ataúdes?, perguntou-se observando a lenta coluna de fumaça azul. Bom, seria difícil que isso ocorresse. Tinha mil caixas no armário da Kathy...

Na despensa, corrigiu-se, a despensa, a despensa. O quarto da Kathy... Olhou com olhos apagados o mural enquanto a idade da ansiedade lhe invadia os

ouvidos. Idade da ansiedade, meditou. Acreditava-se ansioso, Lenny. Lenny e Benny, vocês dois deviam se conhecer.

“— Compositor, apresento-lhe ao cadáver!”. “— Mamãe, quando for maior, quero ser um vampiro como papai!”. “— Oh, meu querido, "Deus" te abençoe, claro que chegará a sê-lo!” O uísque derramou-se do copo. Fez uma careta de dor e trocou de mão a garrafa. Sentou-se e bebeu. Apuremos o gasto fio da sobriedade, pensou. Arrastemos a

esmiuçada visão da realidade o quanto antes. O ódio. O quarto começou a girar sobre si mesmo e o chão se ondulou sob a cadeira. Uma

agradável neblina cobriu todas as coisas. Neville olhou o copo, os discos. Repousou a cabeça, primeiro a um lado e depois ao outro. Lá fora eles rondavam, rosnavam e esperavam que saísse. Pobres vampiros, pensou, pobres criaturas, tão abandonadas, passeando-se frente a minha casa como gatinhos sedentos.

Teve uma idéia. Ergueu o indicador, que aparecia tremer diante de seus olhos. Amigos, me aproximarei de vós para discutir sobre os vampiros. Um representante da

minoria sempre o houve. Mas vou esboçar concretamente as bases de minha tese: os vampiros são vítimas de

um preconceito. A explicação do dito preconceito é esta: Os despreza porque os teme; portanto... Neville seguiu bebendo. Uma vez, nas noites da Idade Média, os vampiros tinham sido muito poderosos e

enormemente temidos. Os considerava um anátema, e ainda o eram. A sociedade os perseguia sem descanso.

Mas são suas necessidades mais detestáveis que as de outros animais e inclusive as de alguns homens? Realmente, reflita, é tão mau o vampiro?

Afinal de contas, só bebem sangue. Por que então esse profundo ódio, essa condenação eterna? Por que o vampiro não

era livre de escolher sua moradia? Por que devia estar sempre oculto? Por que exterminá-los? Ah, lhe dá conta? O desamparado inocente terminará convertendo-se em um animal açoitado. O vampiro carece de meios próprios para subsistir, não pode educar-se. Negam-lhe o direito de voto. Não é estranho que levam uma existência noturna e depredadora.

Neville deixou escapar um grunhido. Claro, com certeza, mas não permitiria que minha irmã se casasse com um deles.

Era um beco sem saída, pensou, encolhendo-se de ombros.

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A música cessou. A agulha seguiu patinando sobre os sulcos negros. Neville sentiu que um frio lhe subia pelas pernas. Isso lhe acontecia quando bebia muito. A gente deixa de saborear as delícias da bebida. Já não há consolo no álcool.

O desmoronamento se adianta à sorte. O quarto estava voltando para seu lugar original. Os sons da rua aturdiam-lhe de novo.

—Saia, Neville! Fez-lhe um nó na garganta e exalou um rouco suspiro. Saia. As mulheres esperavam ali,

com os vestidos abertos ou nuas. Sua pele espera meu toque, seus lábios esperam... meu sangue, meu sangue!

Como se não tratasse de sua própria mão, Neville olhou o punho pálido que se elevava lenta e trêmulamente, para cair logo sobre sua perna. A dor lhe fez aspirar o ar rarefeito. Por toda parte se cheirava a alho. Na roupa, nos móveis e na comida, e até no uísque. Sirva-me um pouco de alho com soda, por favor! A piada morreu rapidamente.

Levantou-se e começou a andar. O que farei agora? Cairei na rotina de todas as noites? Ler, beber, pensar em isolar a casa, pensar nas mulheres. As mulheres, nuas, ofegantes e sedentas de sangue, desdobravam diante dele os corpos quentes. Não, não eram quentes.

Um gemido trêmulo lhe subiu pelo peito e pela garganta. O que esperavam aqueles malditos? Supunham que ia sucumbir e entregar-me?

Possivelmente estavam certos. Já estava levantando a tranca da porta. Moças, umedeçam seus lábios que vou agora mesmo.

Lá fora, ouviram o ruído da tranca e um alarido de antecipação encheu a noite. Neville girou sobre si mesmo, retrocedeu e golpeou com os punhos a parede com tal força

que afundou o gesso e machucou a pele. Depois de um momento conseguiu recuperar a calma. Colocou a tranca na porta e se

dirigiu ao dormitório. Deixou-se cair na cama, de costas, gemendo. A mão esquerda golpeou uma vez, fracamente, o travesseiro da cama.

Meu deus!, pensou. Até quando, até quando? Capítulo 4 Neville não pensou em pôr o despertador e o alarme não soou aquela manhã. Dormiu

toda a noite com a perna solta, o corpo imóvel, como que forjado em ferro. Quando por fim abriu os olhos. Eram dez horas.

Mexeu-se com um murmúrio de desgosto, tirando as pernas para fora da cama. Pulsavam-lhe as têmporas como se o cérebro quisesse sair do crânio. Fantástico,

pensou, isto é da bebedeira de ontem à noite. Não necessitava mais averiguações. Levantou, e queixando-se, foi se arrastando até o banheiro, encharcou a cara e a

cabeça em água bem fria. Não é suficiente, protestou, não. Sinto-me realmente mal. O homem que se refletia no espelho era fraco, barbudo, e aparentava mais de quarenta anos. Amor, seu mágico encanto alcança a todos os homens. Estas palavras ininteligíveis lhe golpearam no cérebro como lençóis molhados no vento.

Cruzou lentamente o vestíbulo e desobstruiu a porta da rua. Uma maldição saiu de seus lábios quando viu outra mulher estendida na calçada. Sentiu que a raiva lhe invadia o corpo, mas isso aumentou os batimentos do coração no crânio e se controlou. Estou doente, pensou.

O céu era de um cinza plúmbeo. Bem!, disse. Outro dia encerrado nesta covinha! Deu uma portada com raiva, mas em seguida se arrependeu, gemendo. O som do golpe havia entrado em seu cérebro. Lá fora ouviu cair os últimos restos do espelho. Apertou os lábios fazendo uma débil careta.

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As duas xícaras de café só pioraram as coisas ainda mais. Deixou a xícara e retornou ao vestíbulo. Ao diabo contudo, pensou. Voltarei a me embebedar.

Mas o álcool lhe tinha sabor de terebintina. Visivelmente contrariado, jogou o copo contra a parede e ficou contemplando como o líquido molhava o tapete. Demônios, vou ficar sem copos. A idéia o enfureceu.

Afundou-se no sofá e ficou ali sacudindo a cabeça com ingenuidade. Era inútil; sentia-se vencido. Os escuros bastardos o tinham vencido.

De novo lhe atacava aquela inquietante sensação. Sentia como se seu corpo se expandisse e que a casa se contraía sobre ele, e que em qualquer momento a armação voaria em pedaços; madeiras, gesso e tijolos. Levantou-se e se dirigiu rapidamente para a porta.

Parou na grama, respirando profundamente o ar úmido, de costas para casa. Mas as outras casas não eram menos desagradáveis, e também as odiava, assim como o pavimento e as calçadas e os jardins e toda a rua.

E de repente se deu conta de que devia sair dali. Estivesse nublado ou não, devia sair imediatamente.

Fechou a porta da rua, tirou o cadeado da garagem e ergueu a pesada porta. Não se entreteve em baixá-la. Voltarei logo, pensou. Será só um momento.

Tirou rapidamente a caminhonete dando marcha-ré até a rua. Deu volta e apertou o acelerador, entrando na Boulevard Compton. Não tinha rumo algum.

Dobrou a esquina a uns sessenta quilômetros por hora e antes de cruzar a próxima travessa já corria a mais de noventa. O carro saltava para frente. A perna tensa de Neville apertava o acelerador no fundo. As mãos eram de gelo no volante. Pelo Boulevard vazio e morto alcançou os cento e vinte quilômetros por hora: um impressionante rugido quebrava aquela opressiva quietude.

O mato do cemitério havia crescido tão rápido que já se dobrava sobre si mesmo, estalando sob os pesados sapatos de Neville. Não se ouvia mais som além dos seus passos e o desafortunado canto dos pássaros. Em um tempo acreditei que cantavam porque tudo estava bem no mundo, refletiu Neville. Equivoquei-me. Cantam porque são débeis mentais.

Tinha percorrido dez quilômetros antes de descobrir aonde se dirigia. Era estranho como se havia escondido. Em princípio só estava doente e deprimido e precisava sair da casa. Não se havia dado conta de que ia visitar Virginia.

Mas tinha vindo diretamente e a toda velocidade. Havia parado a caminhonete junto à calçada, cruzando a pé a enferrujada porta, e agora caminhava entre aquele mato crescido.

Quando havia sido a última visita? Fazia um mês pelo menos. Poderia ter trazido algumas flores, mas até chegar à grade não compreendeu o que estava fazendo.

Apertou os lábios ao sentir de novo a persistente dor. Por que Kathy não estava descansando também ali? Como teria se deixado dominar por aqueles estúpidos, seguindo suas regras? Se pelo menos estivesse ali junto a sua mãe...

Tenso, aproximou-se da cripta. A porta de ferro estava entreaberta. Oh, não terão se atrevido, pensou. Pôs-se a correr entre o mato úmido. Se a houverem tocado queimarei a cidade, anunciou. Juro-o, queimarei a cidade até seus alicerces.

Abriu bruscamente a porta e o ferro golpeou com um som oco e ressonante a parede de mármore. Deu uma rápida olhada na lápide e no ataúde.

Tranqüilizou-se, suspirando com alívio. Ainda seguia intacta. Em seguida viu o homem. Estava jogado em um canto da cripta, com o corpo dobrado sobre o chão.

Furioso, Neville correu para o corpo, e agarrando-o pela camisa, sacudiu-o, arrastou-o pelo chão e o jogou violentamente fora da cripta. O corpo rodou sobre si mesmo, ficando de cara ao céu.

Neville voltou para a cripta, ofegante. Com os olhos fechados, colocou as mãos sobre o ataúde.

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Estou aqui, pensou. Voltei. Recordei-me. Atirou as flores que havia trazido na última visita e tirou as folhas que o vento teria

arrastado até a cripta. Em seguida se sentou junto ao ataúde e apoiou a testa no frio metal. Era como

sentir a carícia das suaves mãos do silêncio. Poderia morrer agora, pensou, assim, docemente, sem prantos nem tremores. Se

pudesse estar com ela... Se tivesse a certeza de que estaria com ela... Fechou lentamente as mãos e deixou cair a cabeça. Virginia. Leve-me contigo. Uma lágrima cristalina se deslizou sobre suas mãos imóveis. Não sabia quanto tempo havia transcorrido desde que chegou ali. Ao fim, pensou, até a

dor mais profunda se abranda, o desespero mais intenso cede. A maldição do carrasco: o prisioneiro se acostuma á sua pena.

Colocou-se de pé. Ainda vivo, refletiu; meu coração pulsa insensatamente; o sangue corre por inércia; ossos e músculos funcionam sem motivo.

Deu um último olhar à tampa do ataúde, e ao fim se voltou com um suspiro e deixou a cripta fechando a porta silenciosamente.

Havia esquecido ao homem e quase tropeçou nele. desviou-se murmurando uma maldição e afastou-se do corpo.

De repente, virou-o com brutalidade. Como podia ser? Olhou, incrédulo, o corpo do homem. Estava morto, realmente

morto. A mudança tinha sido imediata, parecia como se levasse vários dias morto. Sentiu-se subitamente excitado. Algo havia matado ao vampiro, algo brutalmente eficaz. Nem estacas, nem alhos, e entretanto... De repente compreendeu. Claro, a luz do dia! Durante cinco meses tinha visto que não

saíam durante o dia, mas não se lhe havia ocorrido perguntar o porquê! Fechou os olhos assombrado de sua própria estupidez.

Tinham que ser os raios do sol; os raios infravermelhos e ultravioletas. Mas por que? Nada sabia sobre os efeitos da luz solar no corpo humano.

E, além disso, aquele homem havia sido realmente um vampiro, um cadáver vivente.

Teria a luz o mesmo efeito sobre os que ainda estavam vivos? Pela primeira vez em meses se sentia excitado. Correu à caminhonete.

Quando esteve no interior do veículo pensou se não seria melhor levar o cadáver. Quem sabe atrairia os outros, que poderiam invadir a cripta? Não, não se

atreveriam a aproximar-se do ataúde; estava selado com alho. Além disso, o sangue do homem agora estava morto...

Com certeza, os raios do sol modificavam de algum modo o sangue dos vampiros! Era possível, então, que tudo guardasse relação com o sangue? O alho, as cruzes, o

espelho, a estaca, a luz do dia, e inclusive a terra em que alguns dormiam? Não compreendia a razão, e entretanto...

Teria muito por ler, muito por investigar. Havia pensado nisso á algum tempo, mas ultimamente não havia se dedicado a isso. Agora esta idéia lhe dava novas forças.

Colocou em marcha o carro e se dirigiu rua acima, entrando em um bairro de residências, e parou diante da casa mais próxima.

Dirigiu-se até a porta, mas a encontrou fechada com chave. Com um sussurro de impaciência tentou o mesmo na casa vizinha. A porta estava aberta aqui e Neville cruzou o vestíbulo a toda pressa e subiu atapetados degraus de dois em dois.

Encontrou à mulher no dormitório. Sem vacilar, agarrou-a pelos pulsos. O corpo golpeou contra o chão e ouviu-se um fraco gemido. Neville a arrastou escada abaixo.

Quando atravessavam o vestíbulo, a mulher começou a mover-se. Suas mãos apertaram os pulsos de Neville e o corpo se retorceu sobre o tapete. Não abriu os olhos, mas ofegava e rosnava tentando liberar-se.

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De repente cravou suas unhas escuras na carne de Neville, que se afastou e

proferindo uma maldição a agarrou pelos cabelos. Habitualmente, tivesse-lhe parecido quase intolerável fazer estas coisas; aquelas pessoas tinham sido como ele. Mas agora se sentia animado por um novo ardor, o ardor experimental.

Ainda assim, quando chegaram à rua se estremeceu ao ouvir o entrecortado grito de horror da mulher.

Apoiou-a na calçada. A mulher agitava as mãos; estirava os lábios manchados de vermelho. Neville a olhava tensamente.

Sentiu que algo lhe sufocava. Bom, sofre, é verdade; mas é um vampiro e se pudesse, me mataria com prazer. Terei que ver deste modo, o único modo. Mordendo os lábios ficou ali, até que a viu morrer.

A mulher deixou de agitar-se, deixou de rosnar, e suas mãos foram abrindo-se lentamente como casulos brancos sobre o cimento. Neville escutou-lhe o coração. Não pulsava. A carne começava a esfriar-se.

Esboçou um débil sorriso, subiu no carro e se afastou dali. Depois de tanto tempo, descobria um método mais eficaz. Não necessitaria mais estacas.

De repente, lhe cortou o fôlego. Como podia saber se a mulher estava morta? Como

podia averiguá-lo antes do crepúsculo? A raiva o dominava de novo, uma raiva impaciente. Todas as perguntas pareciam anular

as possíveis respostas. Parou a caminhonete em um supermercado e se sentou para beber um suco de tomate. Como iria saber? Não podia ficar com a mulher até que anoitecesse. Podia levá-la a sua

casa. Estava irritado consigo mesmo. Hoje não conseguiria acertar uma resposta. Agora tinha

que retroceder o caminho e encontrar o cadáver, e não se lembrava onde estava a casa exatamente.

Ligou o motor jogando um olhar ao seu relógio. Três horas. Tinha tempo. Pisou no acelerador e a caminhonete começou a correr.

Demorou meia hora aproximadamente para encontrar a casa. A mulher continuava na calçada, tal como a havia deixado. Neville colocou as luvas, abriu as portas da caminhonete, aproximou-se da mulher e meteu-a na caixa. Depois tirou as luvas. Levantou o pulso. Olhou o relógio. Só eram três horas. Tinha tempo... Três!

Sacudiu o relógio e o aproximou do ouvido, com o coração nas mãos. O relógio tinha parado.

Capítulo 5

Neville girou a chave de ignição com dedos trêmulos. As mãos apertavam rigidamente o volante, e dando meia volta, apontou para o jardim.

Que estúpido havia sido! Pelo menos teria demorado uma hora para chegar ao cemitério. Tinha permanecido na cripta durante horas. Logo, a viagem em busca daquela mulher, e a viagem ao supermercado, e depois de novo em busca da mulher.

Quanto tempo havia passado? Idiota! Sentiu gelar as veias ao imaginá-los lhe esperando diante da casa. Oh, Meu

Deus, e a porta da garagem tinha ficado aberta! A gasolina, os equipamentos, o gerador! Com um gemido entrecortado pisou fundo no acelerador e a caminhonete pôs-se a

correr. O ponteiro do velocímetro oscilou, e saltou dos noventa até os cem, e em seguida até os cento e vinte. O que ocorreria se já estavam esperando-o? Como poderia entrar em casa?

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Tratou de acalmar-se. Não podia se desesperar agora. Tinha que entrar. Não há por que preocupar-se, entrará, disse a si mesmo. Mas não lhe ocorria o método para isso.

Passou a mão nervosamente pelo cabelo. Fantástico, fantástico, pensou. Passar por tudo isto para seguir vivo, e no dia pior planejado, não volta a tempo. Merecia qualquer castigo por ter esquecido dar corda no relógio. E eles se encarregariam gostosamente de castigá-lo.

As silenciosas ruas desfilavam rapidamente. Neville olhava de vez em quando as portas das casas. Começava a escurecer aparentemente, mas sem dúvida era sua imaginação. Não podia ser tão tarde.

Acabava de passar a esquina da Western e Compton quando um homem saiu correndo

de um edifício e gritou. A Neville lhe gelou o sangue. O grito do homem ficou ressonando no ar.

Não podia ir mais depressa. Em qualquer momento arrebentariam os pneus, ou se romperia o eixo da direção, e o carro iria estatelar-se contra qualquer casa. Tremiam-lhe os lábios. Fechou a boca com força. As mãos lhe intumesciam no volante.

Teve que reduzir a velocidade ao chegar à esquina da rua Silvestre. Pelo retrovisor, viu um homem que saía de uma casa e corria atrás dele.

Os pneus chiaram ao dobrar a esquina. Neville afogou um grito. Estavam todos lhe esperando em frente à casa.

Sentiu um nó de terror na garganta. Não queria morrer. Podia havê-lo imaginado. Mas não queria morrer. Pelo menos, não deste modo.

Tinham ouvido o rugir do motor e as caras brancas foram se voltando para ele. Alguns saíram correndo da garagem. Neville apertou com fúria as mandíbulas. Que forma tão estúpida de morrer!

Vinham ao seu encontro, cruzando a rua. Neville compreendeu de repente, que não podia parar. Apertou o acelerador, e um instante depois a caminhonete ia-os atropelando, derrubando-os como se fossem pinos de boliche. Sentiu tremer o chassi com o impacto. Os rostos brancos passaram diante da janela com gritos dilaceradores.

Deixou-os atrás, e viu pelo espelho retrovisor como corriam, perseguindo-o. Teve uma idéia. De repente, diminuiu a velocidade até quarenta e em seguida trinta quilômetros por hora. Virou a cabeça. As caras de um branco cinzento estavam cada vez mais perto, com os olhos cravados no carro e nele.

De repente, girou-se sobressaltado. Alguém havia grunhido muito perto. Olhou pela janela e viu o rosto enlouquecido de Ben Cortman junto ao carro.

Apertou rapidamente o pedal do acelerador, mas o outro pé escorregou sobre a embreagem. A caminhonete morreu. Um suor frio lhe banhou a testa. Inclinou-se sobre a chave de ignição. A mão de Ben Cortman lhe cravou no ombro.

Neville proferiu uma maldição e afastou aquela mão branca. —Neville! Neville! Ben Cortman o alcançou de novo, com suas frias garras de gelo. Neville conseguiu

livrar-se outra vez e seguiu girando a chave. Atrás se ouviam os gritos excitados dos que se aproximavam.

Por fim, o motor arrancou no instante em que as unhas de Ben Cortman se cravavam na bochecha de Neville.

—Neville! A dor lhe fez fechar a mão, e o punho rígido se dirigiu para o rosto de Cortman.

Cortman caiu de costas contra o chão e o carro se afastou rapidamente. Outro tinha subido na parte traseira da caminhonete. Durante uns instantes Neville viu o rosto cinzento, apertado contra a janela. Dirigiu-se para a esquina e virou bruscamente; o homem foi jogado para fora e se colocou a correr tropeçando pela grama, com os braços levantados, indo chocar-se violentamente na frente de uma casa.

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Neville se sentia intumescido e frio. O coração lhe saltava no peito. O sangue lhe descia pela bochecha. Passou sua mão trêmula pelo rosto.

Virou na esquina, à direita. Foi até a rua Haas e dobrou de novo à direita. O que aconteceria se cruzavam os terrenos baldios e bloqueavam a rua?

Viu-os lhe seguir, como uma manada de lobos, e reduziu um pouco a velocidade, para voltar a acelerar imediatamente. Contava com que todos lhe seguissem. Suspeitariam o que tramava?

A caminhonete alcançou rapidamente a outra esquina. Neville virou a oitenta por hora, chegou à rua Silvestre e dobrou outra vez à direita.

Aproximou-se da calçada e abriu a porta. Enquanto descia do carro, alguns gritos

aproximavam-se pela esquina. Tentaria fechar a garagem. Do contrário, podiam destruir o gerador; não tinham tido

tempo ainda. Correu pela calçada. —Neville! Deteve-se bruscamente. Cortman saiu dentre as sombras da garagem e se chocou

contra ele, quase derrubando-o. Sentiu suas mãos frias e fortes lhe apertando o pescoço e um hálito fétido que lhe banhava o rosto. Neville retrocedeu tropeçando para a calçada. A boca branca e fungosa lhe buscou a garganta.

Neville levantou bruscamente o punho direito e o deixou cair com toda sua força sobre o peito de Cortman. Ouviu-se um som surdo. Um homem apareceu pela esquina, correndo e gritando.

Neville agarrou violentamente Cortman pelos sujos e largos cabelos e o arrastou pela calçada até o carro. A cabeça de Cortman golpeou o estribo.

Não tinha tempo para ocupar-se da garagem. Neville subiu rapidamente os degraus do alpendre e parou de repente. Meu Deus, as chaves!

Sentiu que lhe faltava o fôlego. Inspirou e pôs-se a correr para o carro. Cortman se aproximou grunhindo afônicamente. Neville lhe golpeou a cara com o joelho, e Cortman caiu de novo contra a calçada. As chaves estavam no porta-luvas.

Quando Neville saiu da caminhonete, um deles saltou para ele. Retrocedeu apoiando-se no assento, e o homem, tropeçando com suas pernas, rodou

pesadamente pela calçada. Neville deu um salto, cruzou a grama, e alcançou o alpendre. Estacou-se para procurar a chave e outro homem subiu atrás dele. O impacto jogou

Neville contra a casa. Outra vez aquele fôlego fétido e a boca entreaberta sobre seu pescoço. Afundou o joelho no ventre do homem e em seguida, apoiando-se contra a parede, empurrou-o bruscamente com o pé. O homem, dobrado sobre si mesmo, caiu em cima do outro que se aproximava pela grama.

Neville abriu a porta, entrou, e se voltou para fechá-la, quando um braço alcançou-o passando pela abertura. Neville apertou com todas suas forças até ouvir quebrar os ossos. Em seguida abriu, jogou o braço quebrado e fechou com uma portada. Colocou a tranca com mãos trêmulas.

Apoiado na parede, foi escorregando lentamente para o chão e se inclinou de costas. Ficou ali na escuridão, com o peito agitado e os braços e as pernas estendidos e insensíveis. Lá fora, ouviam-se gritos furiosos e golpes violentos. Pedras e tijolos choveram sobre a casa.

Ao cabo de um momento Neville se dirigiu ao bar. Parte do uísque se derramou sobre o tapete. Bebeu apoiando o corpo no móvel, com um nó lhe apertando a garganta e os lábios trêmulos.

Sentiu descer o calor do líquido até o estômago e se sentiu reconfortado. Respirou devagar.

Lá fora se ouviu um estrondo.

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Neville correu a espionar pelo buraco. Pedras e tijolos quebravam o pára-brisa da caminhonete, derrubada no meio da rua, e alguns homens providos de paus golpeavam o motor com todas suas forças. Neville sentiu fúria nas veias, uma corrente como um ácido lhe percorreu todo o corpo.

De repente se lembrou do gerador e tratou de acender o abajur. Não havia luz. Correu até a cozinha. O refrigerador não funcionava. Foi de uma casa a outra. Todos os mantimentos se danificariam. A casa era uma casa morta.

—Basta! —gritou em um ímpeto de cólera. Revirou as roupas da cômoda com impaciência até que as mãos se encontraram com as

armas. Cruzou a sala e tirou a tranca da porta deixando-a cair ao chão. Os de fora o ouviram e

começaram a uivar. Já saio, bastardos!, gritou Neville em sua mente. Abriu a porta repentinamente e disparou contra o primeiro na cara. O homem rodopiou e

caiu do alpendre à grama, aonde duas mulheres com os vestidos rasgados receberam-no em seus braços. Neville viu como os corpos se retorciam com as balas e ouviu gritos dilaceradores.

Disparou até esgotar as balas. Logo, seguiu dali ao alpendre, golpeando-os cegamente com as culatras das armas, e observando aterrorizado como voltavam para ele quão mesmos havia ferido. E quando lhe arrebataram as pistolas, recorreu aos punhos e aos cotovelos, e afastou-os á cabeçadas e chutes.

Só quando sentiu aquela intensa dor no ombro se deu conta do que estava fazendo. Afastando de um lado a duas mulheres, chegou até a porta. O braço de um homem lhe rodeou o pescoço. Neville se dobrou para frente jogando o homem por cima de sua cabeça.

Antes que o alcançassem outra vez, fechou a porta em seguida e trancou. Apoiando-se contra a parede de pé na fria escuridão da casa, Neville voltou a

escutar os gritos dos vampiros. Quase sem forças golpeou o gesso da parede; as lágrimas lhe corriam pelas barbudas bochechas; a mão machucada lhe doía intensamente. Tudo estava perdido, tudo.

—Virginia —soluçou como um menino perdido e assustado—. Virginia. Virginia.

II - Março de 1976 Capítulo 6 A casa, ao fim, era confortável outra vez. Ainda mais que antes em realidade, pois, depois de três dias de trabalho tinha

conseguido isolar as paredes. Agora podiam gritar e uivar a seu gosto. Era um descanso não ter que ouvir novamente Ben Cortman.

Havia-lhe levado tempo e trabalho. Em primeiro lugar teve que procurar uma nova caminhonete. Não tinha sido tarefa fácil.

Teve que ir até a Santa Mónica. Não conhecia outra concessionária Willys, nunca tinha dirigido outras marcas e não era momento para experimentos. Como não podia ir andando até Santa Mónica, procurou outro carro pelos arredores. Mas a maior parte não funcionava, por um motivo ou outro; a bateria descarregada, a bomba de óleo rachada, falta de gasolina, pneus murchos.

Por fim, a um quilômetro de sua casa, encontrou um carro em bom estado e correu a Santa Mónica em busca de outra caminhonete. Colocou-lhe uma bateria nova, encheu o tanque de gasolina, carregou algumas latas e voltou para a casa. Chegou uma hora antes do anoitecer.

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Por sorte não tinham quebrado o gerador. Aparentemente, os vampiros não

conheciam sua importância. Neville só havia encontrado um cabo partido e as marcas de algumas pauladas. Arrumou-o em seguida, durante a manhã seguinte ao ataque, evitando assim que a comida se danificasse. Alegrou-se realmente, pois agora que faltava eletricidade no bairro, seria impossível conseguir mantimentos congelados.

Depois, havia arrumado a garagem tirando restos de lâmpadas, fusíveis, cabos, reposições de motor e uma caixa de sementes que tinha guardado ali fazia anos.

A máquina de lavar roupa não funcionava e a havia trocado. Mas tudo isto não tinha sido difícil. Em compensação, havia custado tornar a encher as latas de gasolina. Nisto se superaram a si mesmos, pensou com irritação enquanto limpava o combustível derramado no chão.

No interior da casa tinha arrumado o gesso da parede e, como novo estímulo, havia

trocado o mural, dando assim uma aparência distinta à sala. Pôs entusiasmo em seu trabalho, uma vez começado. Era algo no que se ocupar, algo

no que consumir os restos de raiva. Desse modo quebrava a monotonia das tarefas diárias; o traslado dos cadáveres, as reparações do exterior, os colares de alho.

Nesses dias bebia pouco; tratava de não provar o uísque durante o dia, e de que os drinques noturnos fossem simplesmente para acompanhá-lo nos momentos de descanso e não um suicídio camuflado. Teve mais apetite e aumentou dois quilos. Até dormiu profundamente nestas noites, e sem pesadelos.

Durante um dia ou dois pensou na idéia de mudar-se para um luxuoso apartamento de algum hotel, mas a abandonou ao considerar todo o trabalho que seria necessário para acondicioná-lo. Não, já estava bem em sua casa.

Agora, sentado no vestíbulo, escutava Júpiter, de Mozart, e pensava sobre como e onde começaria sua investigação.

Conhecia alguns detalhes, mas eram só pequenos sinais em um terreno desconhecido. Sem dúvida alguma, a resposta residia em outra parte. Possivelmente em algum feito familiar, não considerado devidamente e sem relação aparente com o resto.

Mas o que? Recostado na cadeira, com um copo na mão direita, observava o mural. Era uma paisagem canadense: bosques profundos, estáticos e misteriosos, de

sombras verdes, onde reinava o profundo silêncio da natureza indomável. Neville cravou pensativamente seu olhar nas sombras verdes do mural. Aquela noite, fazia tempo, havia desatado uma tormenta de areia. O vento tinha

sacudido a casa, penetrando pelas frestas, e até pelos poros do gesso, cobrindo o chão e os móveis com uma fina capa de pó que repousava sobre a cama e se metia nos olhos e sob as unhas.

Neville havia passado meia noite acordado, tratando de ouvir a pesada respiração de Virginia, mas só lhe chegava o estrondo da tormenta. Durante um momento, suspenso entre o sonho e a vigília, havia chegado a sentir como se rodas gigantescas triturassem a casa e umas terríveis superfícies abrasivas corroessem seu esqueleto.

Não chegava a acostumar-se às tormentas de areia, não suportava aquele som sibilante dos redemoinhos. Quando começavam, quase não podia dormir, e ao dia seguinte ia à fábrica com um grande cansaço no corpo e na mente.

E agora, além disso, a preocupação por Virginia. Às quatro da manhã despertou e percebeu que a tormenta havia cessado. O

som do silêncio lhe assobiava nos ouvidos. Enquanto se movia para acomodar o retorcido pijama, deu-se conta de que Virginia

estava acordada. Deitada de barriga para cima, olhava o teto baixo. —O que houve? —perguntou-lhe sonolento. Virginia não respondeu. —Querida... A mulher se voltou para ele. —Nada —disse—, dorme.

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—Como você está? —Igual. —Ah. Neville a olhou um momento. —Bom —disse ao fim, e virando-se, tratou de dormir. O despertador soou às seis e meia. Quase sempre Virginia desligava-o, e em algumas

ocasiões Neville, estirando o braço por cima do corpo imóvel de sua mulher. Virginia seguia de barriga para cima, olhando ao teto.

—O que houve? —perguntou Neville preocupado. Virginia o olhou e sacudiu a cabeça. —Não sei —disse—, não posso dormir. —Porquê? A mulher se encolheu de ombros. —Sente-se fraca ainda? —perguntou Neville. Sua mulher tentou sentar-se e não pôde. —Trate de não se mover. —Neville lhe aproximou uma mão à testa—. Parece que não

tem febre —lhe disse. —Não me encontro mal —disse Virginia—. Só... cansada. —Está muito pálida. —Já sei. Pareço um fantasma. —Não se levante. Virginia havia se levantado. —Não vou morrer disto —disse—. Vamos, se vista. —Não se levante, se não se sente bem, querida. Virginia deu-lhe uma palmada no

ombro e sorriu. —Passará logo. Vá se aprontar. Neville estava barbeando-se quando ouviu os passos da Virginia arrastando os chinelos.

Abriu a porta e a viu cruzar a sala muito devagar, vestida com um roupão e cambaleando-se ligeiramente. Neville tornou a fechar a porta sacudindo a cabeça. Não deveria levantar-se.

O pó também cobria a bacia. Tinha pó por toda parte. Neville teve que improvisar uma capa sobre a cama da Kathy. A lona estava pendurada da parede, junto ao travesseiro da cama, e duas madeiras a sustentavam no chão.

A areia havia impregnado o sabão e Neville não pode barbear-se bem. Mas já era tarde, e não podia perder mais tempo. lavou a cara, pegou uma toalha limpa do armário do corredor e se secou.

Antes de voltar para sua casa, olhou no quarto de Kathy. Dormia ainda. A cabecinha loira descansava relaxada sobre o travesseiro. O

sonho havia colorido suas bochechas. Neville passou um dedo pela lona e ficou cinza de pó. Sacudiu a cabeça aborrecido e saiu do quarto.

—Se estas condenadas tormentas de areia terminassem de uma vez —disse ao entrar na cozinha, uns minutos depois—. Me parece que...

Calou-se. Habitualmente Virginia estava de pé junto à cozinha, fritando uns ovos, ou preparando umas torradas, ou fazendo café. Hoje estava sentada na mesa sem fazer nada. Sobre o fogão fervia o café, somente.

—Querida, se você não se encontrar bem, volte para a cama —lhe disse Neville—. Eu me ocuparei do café da manhã.

—Não, deixe-me —disse Virginia—. Só estava descansando. Sinto muito. Em seguida lhe prepararei uns ovos.

—Descanse —replicou Neville—. Não sou um inútil. Aproximou-se da geladeira e a abriu.

—Eu gostaria de saber o que eu tenho —disse Virginia—. A metade dos vizinhos tem o mesmo e você diz que na fábrica, a maior parte do pessoal está de licença.

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—Possivelmente se trate de algum vírus. —Não sei. —Entre as tormentas, os mosquitos e as enfermidades, a vida vai tornando-se difícil —

disse Neville servindo-se suco de laranja de uma garrafa—. É algo diabólico. No suco de laranja havia uma bolinha preta.

—Não entendo como entram no refrigerador —comentou Neville. —Não me sirva , Bob —disse Virginia. —Não quer um pouco? —Não. —Te faria bem. —Não, obrigado, querido —disse a mulher, tratando de sorrir. Neville tornou a garrafa a

seu lugar e sentou-se frente a ela com o copo na mão. —Não lhe dói nada? —perguntou—. A cabeça? Ou algo? Virginia negou com um gesto. —Se eu soubesse o que tenho... —disse. —Chame hoje mesmo o doutor Busch. —Farei-o —disse Virginia erguendo-se. Neville lhe acariciou a mão. —Não, não, querida, não se mova. —Mas não há motivo para estar assim. Parecia zangada. Sempre foi assim Desde que Neville a conheceu. A

enfermidade a irritava, de algum modo lhe parecia como um insulto. —Vamos —Disse Neville levantando—. Ajudarei-lhe a voltar para a cama. —Não, ficarei aqui com você. Me deitarei quando Kathy sair para a escola. —Bom. Não precisa de nada? —Não. —Um pouco de café, talvez? Virginia negou com a cabeça. —Vai adoecer seriamente se não comer. —Não tenho apetite. Neville terminou sua laranjada e se voltou para fritar uns ovos. Quebrou as cascas na

borda da frigideira, e jogou gemas e claras na manteiga derretida. Tirou logo o pão de uma gaveta e voltou para a mesa.

—Me dê. Colocarei-o na torradeira —disse Virginia—. Termine você... Oh Deus. —O que houve? A mulher sacudiu fracamente uma mão diante do seu rosto. —Um mosquito —disse com uma careta. Neville se aproximou e esmagou ao mosquito entre as palmas das mãos. —Mosquitos —disse Virginia—. Moscas. Moscas de areia. —Entramos na era dos insetos —disse Neville. —Eu não gosto delas —continuou Virginia. Trazem pestes. Teremos que pôr também

uma mosquiteira na cama da Kathy. —Sim, sim —disse Neville voltando para a cozinha e movendo a frigideira para que os

ovos não grudassem—. Já tinha pensado nisso. —Não acredito que esse inseticida sirva —disse Virginia. —Não? —Não. —Deus, dizem que é um dos melhores. Neville colocou os ovos em um prato. —Realmente não quer café? —perguntou. —Não, obrigada. Neville se sentou e sua mulher aproximou-lhe a torrada com manteiga.

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—Espero que não estejamos criando uma raça de super-insetos —disse

Neville. —Lembra-se aqueles gafanhotos gigantes que encontraram no Colorado? —Sim. —Possivelmente os insetos são... Como os chamam? Mutantes. —O que quer dizer? —Oh, significa que... mudam. Evoluem saltando fases intermediárias, e chegam a

desenvolver-se como nunca o fariam se não fosse por... Silêncio. —Os bombardeios? —perguntou a mulher. —Pode ser. —Bom, pelo menos provocam as tormentas. E possivelmente outras coisas. Virginia suspirou cansada e sacudiu a cabeça. —E dizem que ganhamos a guerra —disse. —Quem ganhou? —Os mosquitos ganharam. Neville sorriu fracamente. —Parece que tem razão —disse. Calaram-se um momento. Só se ouvia o garfo de Neville no prato e o da xícara no pires. —Levantou-se ontem à noite para ver a Kathy? —perguntou por fim a mulher. —Acabo de vê-la agora. Estava dormindo. —Bom. Virginia olhou Neville atentamente. —Estive pensando, Bob —disse—. Possivelmente deveríamos enviá-la ao Leste, para a

casa da sua mãe, até que melhore. Pode ser contagioso. —Possivelmente sim —disse Neville, duvidando—. Mas se for contagioso, na casa da

minha mãe ela não estará melhor. —Tem certeza? —perguntou Virginia. Parecia preocupada. Neville se encolheu de ombros. —Não sei, querida. Penso que aqui ela está a salvo. Se as coisas piorarem no bairro, ela

deixará de ir à escola. Virginia começou a dizer algo, mas em seguida se deteve. —Bom —disse. Neville olhou seu relógio. —É melhor que você vá. Virginia assentiu com a cabeça e Neville terminou rapidamente seu desjejum.

Estava a ponto de tomar o café quando Virginia lhe perguntou se tinham o jornal do dia anterior.

—Está na sala —disse Neville. —Algo novo? —Não, o de sempre. Invadiu todo o país, um pouco em cada lugar. Não

descobriam ainda de que vírus se trata. Virginia mordeu seu lábio inferior. —Ninguém sabe nada? —Duvido. Se alguém soubesse suponho que já diriam. —Mas devem ter alguma idéia. —Todos têm idéias, mas... —O que dizem? Neville se encolheu de ombros. —Fazem todo tipo de comentários, começando pela guerra bacteriológica. —Pode ser? —Guerra bacteriológica? —Sim. —A guerra terminou —disse Neville.

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—Bob —disse Virginia de repente—. Você acha que deve ir trabalhar? Neville sorriu. —Que outra coisa posso fazer? —perguntou—. Temos que comer. —Eu já sei, mas... Neville, estirando-se sobre a mesa, pegou a mão de sua mulher. Estava gelada. —Tudo se resolverá, querida —disse. —Mando a Kathy à escola? —Sim, não se preocupe. Enquanto as escolas estiverem abertas, não há motivo para

deixá-la em casa. Não está doente. —Mas os outros meninos... —Acredito que é o melhor para ela —disse Neville. Virginia deixou escapar um som entrecortado. Em seguida disse: —Bom, se você acha... —Não quer nada antes que eu vá? —perguntou Neville. Virginia sacudiu a cabeça. —Não saia hoje —disse-lhe Neville—, e fique deitada. —Assim o farei —disse ela—. Quando a Kathy se for. Neville lhe apertou a mão. Lá fora soou uma buzina. Neville terminou o café em um gole

e foi ao banheiro escovar os dentes. Em seguida pegou a jaqueta do armário e a colocou. —Até mais tarde, querida —disse a Virginia beijando-a—. Fique tranqüila. —Até mais tarde —disse ela—. Tome cuidado. Neville cruzou o jardim. Sentiu entre os dentes o pó do ar. Podia cheirá-lo e

dava-lhe coceira no nariz. —Bom dia —disse quando entrou no carro. —Bom dia —respondeu Ben Cortman. Capítulo 7

«Destilado do Allium estivum, gênero de liliáceas no que estão compreendidos o alho, o alho-poró, a cebola e a cebolinha. É de cor pálida e aroma penetrante, e contém vários súlfures. Composição: Água, 64,6%; Proteínas, 6.8%; Gordura,0.1%; Hidratos de Carbono, 26.3%; Fibras, 0.8%; Cinza, 1.4%».

Isso era. Neville ficou olhando o dente de alho, rosado e flexível, na palma da mão.

Durante sete meses havia fabricado várias centenas de colares e os pendurava fora da casa. Era o momento de descobrir por que afastava os vampiros.

Deixou o dente na borda da pia. Alhos-poró, cebolas, sementes de cebola. Seriam tão efetivos como o alho? Se fosse assim, sentiria-se realmente tolo. Tinha percorrido quilômetros em busca de alhos e em vez disso, por toda parte, só encontrava cebolas.

Amassou o dente até conseguir uma massa polpuda e cheirou o fluido acre no fio da lâmina. Muito bem, e então? Não havia nada revelador no passado, exceto conversas e apontamentos sobre insetos e vírus.

O passado só trazia a dor da lembrança. Cada palavra que recordava era como a ponta de uma faca que se cravava na carne; uma velha ferida que se abria outra vez. Devia aceitar o presente tal como era, deixando a um lado o passado. Mas só o álcool conseguia apagar momentaneamente aquela profunda tristeza.

Sacudiu a cabeça. Bom, maldita seja, disse a si mesmo, mova-se. Olhou novamente o texto: A água. Podia ser? Não, era ridículo. Todas as coisas tinham

água. Proteínas? Não era isso. Gordura? Não. Hidratos de carbono? Tão pouco. Fibra? Não. Cinzas? Não. O que era então?

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«O aroma e sabor que caracterizam ao alho se devem a um óleo essencial que corresponde a 0.2% do peso, e que consiste fundamentalmente em sulfureto de alho e em isoticianato de alho».

Possivelmente era esta a resposta. «O sulfureto de alho pode obter-se a partir de esquentar óleo de mostarda e sulfureto de

potássio até uma temperatura de cem graus». Neville recostou-se na poltrona da sala bufando contrariado. E onde diabos

encontrarei óleo de mostarda ou sulfureto de potássio? E os elementos químicos? Começou a andar, mas deu de nariz contra o chão. Levantou-se e se encaminhou

para o bar. Mas, enquanto se servia um copo, afastou bruscamente a garrafa. Não, não pensava ir às cegas até que a velhice ou um acidente terminassem com

ele. Encontraria a resposta ou deixaria tudo, inclusive a vida. Olhou o relógio. Dez e vinte da manhã. Tinha tempo. Foi resolutamente até o corredor e

consultou a Lista Telefônica. Tinha um lugar em Inglewood. Quatro horas mais tarde levantava a cabeça da mesa de trabalho, com o

pescoço duro. Olhou o líquido na agulha hipodérmica: sulfureto de alho. Pela primeira vez sentia que desde o começo de seu forçado isolamento havia conseguido algo.

Excitado, correu ao carro e foi mais à frente da área já limpa e assinalada com giz. Era provável que alguns novos vampiros se ocultaram ali. Mas não tinha tempo para buscá-los.

Aproximou o carro à calçada, entrou em uma casa e se dirigiu ao dormitório. Uma moça jazia na cama, com um fio de sangue na boca.

Neville virou de costas a mulher e lhe levantou a camisola para lhe injetar o sulfureto de alho. Em seguida virou-a outra vez e deu um passo para trás. Durante meia hora ficou ali, olhando-a.

Não ocorreu nada. Nada disto tem sentido, argumentou mentalmente. Se pendurar alhos ao redor da casa,

os vampiros não se aproximam. E o alho se caracteriza por esse óleo que lhe injetei. E entretanto não aconteceu nada. Maldição, não aconteceu nada!

Atirou a seringa ao chão e estremecendo de raiva e frustração voltou para seu refúgio. Antes que começasse a escurecer instalou uma armação de madeira na grama e pendurou ali umas réstias de cebolas. Passou a noite insone.

Pela manhã foi olhar a armação de madeira.

Outro símbolo: a cruz. Tinha uma dourada na mão que brilhava a luz da manhã. Isto também afastava os vampiros.

Por que? Tinha que existir uma resposta lógica, algo que pudesse aceitar sem cair na superstição?

Só podia sabê-lo de um modo. Tirou a mulher da cama, sem reparar que sempre experimentava com mulheres. Não lhe

preocupava admitir que a observação fosse válida. Era o primeiro vampiro com que havia tropeçado, nada mais. É certo que tinha um homem no vestíbulo, mas não ia violar a mulher. Embora às vezes se surpreendia a si mesmo. A consciência de outro tempo havia se transformado em uma molesta companhia.

Levou-a a sua casa, e durante a tarde não ficou com ela. Esteve na garagem revisando a caminhonete. Por fim chegou a misericordiosa noite. Neville fechou a garagem, entrou na casa e trancou a porta.

Em seguida serviu-se um copo de uísque e se sentou na poltrona, frente à mulher. Do teto, justo sobre a sua cara, pendia uma cruz.

Por volta das seis e meia a mulher abriu os olhos de repente, como que acordada com uma obrigação determinada e não despertou preguiçosamente, mas sim com movimentos claros e precisos.

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Logo que viu a cruz, afastou os olhos, com um rouco grunhido, agitando-se na cadeira. —Por que lhe assusta? —perguntou Neville, sobressaltando-se diante do som da sua

própria voz. A mulher olhou Neville. Brilharam-lhe os olhos e a língua lambeu os lábios como se não

formasse parte da boca. O corpo lhe contraía tentando aproximar-se dele. Proferiu um grunhido gutural. Parece um cão quando defende seu osso, pensou Neville estremecendo-se.

—A cruz —perguntou nervosamente—. por que lhe tem medo? A mulher tentou livrar-se de suas amarras, as mãos na borda da cadeira. Não

falava, só respirava ofegando. —A cruz! —gritou Neville furiosamente. Colocou-se de pé. O copo caiu e se derramou sobre o tapete. Pegou a cruz com dedos

rígidos e a aproximou-lhe da cara. A mulher afastou a cabeça com um surdo grito de horror e retorceu-se na cadeira.

—Olhe-a! —uivou Neville. O terror paralisava a mulher. O olhar extraviado passeava pelo quarto; olhos

grandes e brancos com pupilas negras como a fuligem. Neville lhe tocou o ombro mas em seguida retirou a mão, ensangüentada, com

os dentes marcados. Sentiu um nó no estômago. Rapidamente, esbofeteou-a até lhe tombar a cabeça.

Minutos mais tarde arremessava o corpo à rua e fechava a porta imediatamente. Permaneceu um momento apoiado na porta, respirando pesadamente. Apesar

do isolamento das paredes, ouviu-os uivar como chacais, disputando os restos. Pouco depois foi ao banheiro e limpou as feridas com álcool, escarnecendo-se com a

dor.

Capítulo 8

Neville se agachou e pegou um punhado de terra. Deixou-a escapar por entre os dedos, desfazendo os negros torrões. Quantos, perguntava-se, dormem na terra, como diz a lenda?

Alguns. Então, que percentagem da lenda era realidade? Com os olhos fechados, soltou lentamente a terra escura. Existia alguma resposta? Se

pelo menos tivesse a certeza dos que dormiam na terra, tinham retornado da morte, poderia elaborar alguma teoria.

Mas não sabia. Outro problema insolúvel. Como o que se tinha deparado na noite anterior.

Como reagiria um vampiro maometano diante da visão de uma cruz? Surpreendeu-se ao ouvir sua própria risada: um rouco latido na manhã silenciosa. Meu

Deus, pensou, faz tempo que não rio. Já tinha esquecido. Recordava a tosse de um cão doente. Bom, isso é o que sou agora, ao fim e ao cabo: Um cão muito doente.

Houve um princípio de tormenta por volta das quatro da manhã, e as lembranças voltaram para sua memória. Virginia, Kathy, aqueles horríveis dias.

Tratou de distrair-se. Era perigoso. Pensar no passado era terminar bebendo. Embora não se explicava por quê havia sobrevivido. Provavelmente, pensou, não há um

motivo concreto. Estou muito aturdido para acabar com tudo. Bom... Juntou as mãos como se por fim tivesse decidido algo. O que faria agora?

Olhou ao redor como se acontecesse algo interessante na rua silenciosa. Muito bem, decidiu impulsivamente, verei se o truque da água dá resultado.

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Escondeu uma mangueira em uma sarjeta e levou-a assim até uma mesa de madeira. A água passava pela mesa, passava por outro buraco a uma segunda mangueira, e chegava ao subsolo.

Quando finalizou a tarefa, entrou e tomou uma ducha. Em seguida se barbeou e tirou a

atadura da mão. A ferida havia cicatrizado bem. Mas isto não lhe tirava o sono. O tempo tinha demonstrado que estava imunizado.

Às seis e vinte se instalou na sala, frente ao buraco. No momento se espreguiçava; doíam-lhe todos os músculos. Serviu-se um uísque.

Quando se aproximou do buraco, Ben Cortman já cruzava a grama. —Saia, Neville —rosnou Neville, e Cortman, como se lhe ouvisse, devolveu-lhe as

mesmas palavras em um grito. Neville continuou ali, imóvel, observando Cortman. Em geral, não havia mudado muito de aspecto. Tinha o cabelo ainda preto, seguia

sendo corpulento e com o rosto pálido. Mas agora levava barba e um grosso bigode. Esta era a diferença fundamental. Antes, quando lhe esperava para irem juntos à fábrica, Ben estava sempre perfeitamente barbeado e cheirava a colônia.

Parecia estranho vê-lo agora: um Ben completamente desconhecido. Em outro tempo tinha conversado com aquele homem, ido com ele ao trabalho, comentando as partidas de beisebol ou os assuntos políticos, e depois da enfermidade e de como estavam Virginia e Kathy, de como estava Freda Cortman, e...

Neville sacudiu a cabeça. Era inútil seguir com isso. O passado estava tão longe como o verdadeiro Cortman.

Sacudiu novamente a cabeça. O mundo está no avesso, pensou. Os mortos caminham pelas ruas, e isso não me surpreende. O retorno dos cadáveres se converteu em algo cotidiano. Com que rapidez se aceita o incrível, se você o vê com freqüência!

Tragou um pouco de uísque e tratou de pensar a quem se parecia Cortman. Durante um tempo esteve convencido de que Cortman recordava alguém, mas não sabia a quem.

Encolheu-se de ombros. Que importância tinha isso? Deixou o copo no chão e foi à cozinha para abrir a torneira da água. Quando voltou a

vigiar pelo buraco viu outro homem e uma mulher na grama. Nunca falavam entre si. Davam voltas e voltas, infatigavelmente, como se tratassem de lobos, sem cruzar jamais um olhar, os olhos famintos cravados na casa e na presa que havia dentro.

De repente Cortman viu a água que corria pela mesa e ficou olhando-a. Depois de um momento levantou a cara e sorriu mostrando os dentes.

Neville ficou rígido. Cortman saltava de um lado ao outro da mesa. Neville sentiu um nó na garganta. O bastardo sabia! Caminhou depressa até o dormitório e tremendo pegou as pistolas da gaveta da

cômoda. Cortman estava pisoteando as bordas da mesa quando a bala o feriu no ombro direito. Retrocedeu cambaleando e caiu no cimento, com as pernas para cima. Neville

voltou a disparar e a bala deu contra a calçada a uns centímetros de seu corpo. Cortman se levantou grunhindo e a terceira bala lhe alcançou o peito. Neville, com a fumaça acre da pistola ainda no ambiente, tornou a olhar. A

mulher apareceu então diante de Cortman e começou a levantar a saia. Neville fechou o buraco. Não queria ver isso. Havia bastado um segundo para sentir

aquela dor ardente em seu interior. Ao cabo de um momento voltou a olhar e Cortman estava passeando, chamando-o. E, sob a luz da lua, de repente recordou a quem se parecia Cortman.

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Meu Deus, era como Oliver Hardy!. Dos dois curtas-metragens que tinha passado em seu projetor. Cortman era o eco morto do grande cômico. Um pouco mais magro, somente. Até o bigode era igual.

Oliver Hardy caindo de costas sob o impacto das balas. Oliver Hardy voltando sempre por outra ração, não importava o que ocorresse. Furado pelas balas, cravado por facas, esmagado por automóveis, chocando-se contra paredes, afundando no mar, passando por chaminés. E voltando sempre, paciente e arroxeado. Isso era Ben Cortman. Um maligno e detestável Oliver Hardy aporreado e resistente.

Meu Deus! Não podia parar de rir. Mais que a vontade de rir, isso era um alívio, uma saída. As lágrimas lhe rodavam pelas bochechas. Com as sacudidas o copo se derramou e o líquido molhou-lhe de acima a abaixo, lhe provocando ainda mais risada. O copo por fim caiu no tapete, e Neville também, retorcendo-se com espasmos de incontida diversão. A risada incessante encheu a sala.

Mais tarde foi o pranto. Introduziu a estaca no estômago, no ombro. No pescoço com uma só martelada. Nos braços e pernas, e sempre acontecia o mesmo: a carne branca ficava coberta pelo

sangue vermelho. Acreditava ter encontrado a solução. Tinha que sangrá-los: uma hemorragia. Mas logo, quando encontrou a mulher na casinha branca e verde, e lhe cravou a estaca,

a decomposição foi tão rápida que teve que fugir, e já não pôde provar o seu café da manhã.

Quando se recuperou, e se atreveu a voltar, só encontrou sobre a colcha uma linha de algo parecido com sal e pimenta, uma linha tão larga como o corpo. Nunca tinha visto nada parecido.

Abalado pela cena, saiu devagarzinho da casa e se sentou no carro durante uma hora, bebendo até esvaziar a garrafa. Mas nem sequer o álcool podia apagar aquela impressão.

Havia sido tudo tão rápido... A martelada ainda lhe soava nos ouvidos, e a mulher já não era mais que uma linha.

Recordou um bate-papo com um negro, na fábrica. O homem conhecia o assunto e havia falado de mausoléus e de gente metida em caixões herméticos, onde se conservavam com a mesma aparência de sempre.

—Mas deixe entrar um pouco de ar —tinha dito o negro—, e Bum!, transformam-se em uma linha de sal e pimenta. Assim fácil. —E o negro fazia estalar os dedos.

A mulher, pois, estava á muito tempo morta. Possivelmente, lhe ocorreu, era um dos vampiros originários da praga. Só Deus sabia quanto tempo tinha escapado da morte.

Neville se sentiu muito deprimido, e nesse dia, e nos seguintes, não fez nada. Ficou em casa, bebendo e tratando de esquecer, e deixou que os corpos se empilhassem no mato, e na frente da casa, sem se importar.

Durante vários dias, sentado na poltrona, com o copo na mão, pensou em sua mulher. E não importava a quantidade de álcool ingerida. Continuava pensando em sua mulher. Via-se a si mesmo entrando na cripta, levantando a tampa do ataúde.

Pensou que algo estava destruindo-se nele. Sentia-se tão paralisado, tão sereno e tão frio. Só isso ficaria dela?

Capítulo 9 Pela manhã. Uma ensolarada quietude amenizada pelo canto dos pássaros. Nem um

pouco de brisa que movesse os pequenos casulos ao redor das casas, os arbustos ou as cercas de folhas escuras. Uma silenciosa nuvem de calor suspenso sobre o ambiente.

O coração de Virginia havia parado.

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Neville olhava aquele pálido rosto, e acariciava timidamente os dedos de sua mulher. Sentado à borda da cama, imóvel, tinha ficado insensível como um bloco de carne e ossos. Não piscava, e respirava tão lentamente que parecia morta. Algo lhe havia passado pela mente.

Do instante em que deixou de pulsar o coração de Virginia sentiu a cabeça como se fosse de pedra. A calcificação tinha começado pelo cérebro, alastrando-se logo ás suas extremidades. Lentamente, com os membros afrouxados, havia-se afundado na cama.

E agora não entendia como agüentava sentado ali, como o desespero não o jogava ao

chão. Mas não podia ficar prostrado. Mãos tenazes continham o tempo. Tudo havia parado. A vida e o mundo tinham parado, junto com Virginia.

Passaram-se assim trinta minutos, depois quarenta. Logo, pouco a pouco, como se estivesse fazendo um descobrimento, sentiu que o

corpo lhe tremia. Não era um tremor localizado, um nervo aqui, um músculo lá. Tremia todo o corpo, convulsivamente, como um saco de nervos impossível de dominar. E sua mente, o que se tinha salvado da sua mente, soube, que isso era sua reação.

Permaneceu assim durante mais de uma hora, com o olhar fixo no rosto de Virginia. Em seguida, de repente, algo lhe sacudiu o peito, e aquilo terminou. Neville se levantou

da cama e saiu da casa. Ao servir o uísque derramou a metade na pia. Bebeu o resto de um gole. Apoiou-se

contra a parede. Tornou a encher o copo com mãos trêmulas e bebeu compulsivamente.

É só um sonho, disse. Foi como se uma voz pronunciasse as palavras em seu interior. —Virginia... Voltou a cabeça a ambos os lados. Seus olhos examinavam a cozinha como se tivesse

que descobrir algo, como se procurasse uma saída naquela casa de horror. Apertou as mãos nervosas, uma contra a outra. As formas dançavam diante de seus olhos. Sentiu que uma náusea lhe subia pela garganta e separou as mãos com força.

—Virginia. Deu um passo à frente e tropeçou. Escapou-lhe um grito. Sentiu uma forte dor no joelho

direito que logo se estendeu á toda a perna. Arrastou-se cambaleando até a sala. Ficou ali como um sobrevivente de um terremoto, com os olhos cravados na porta do quarto, voltando a presenciar aquela cena.

O incêndio com suas ferozes chamas vermelhas e amarelas, e a densa coluna de fumaça que subia para o céu. O corpo de Kathy em seus braços. E um homem que, aproximando-se, arrebatava Kathy e a levava como se fosse uma boneca de trapos. E ele ali, de pé, suportando aqueles golpes de terror.

De repente saltou para frente com um grito rouco: —Kathy! Uns braços o contiveram, uns homens com máscaras e avental. Levaram-no

arrastado; seus pés deixaram os rastros na areia. Em seguida, sentiu aquela dor na mandíbula, e a escuridão das nuvens noturnas

anularam o dia. O licor que lhe descia pela garganta, a tosse, o ofego, e logo o carro de Ben Cortman, e ele sentado ao volante, rigidamente, enquanto se afastavam. A intensa fumaça cobria o céu como o negro fantasma do desespero terrestre.

Recordou e fechou os olhos. —Não. Não permitiria que jogassem ali Virginia. Não, ainda que isso lhe custasse a vida. Chegou à porta e saiu ao alpendre. Cruzou a grama seca e amarelada e

caminhou em direção à casa de Ben Cortman. O resplendor do sol lhe cegava. Caminhava com os braços pendurados ao longo do corpo.

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A melodia tocava "Que seco estou". Neville sentiu desejo de quebrá-la. Lembrou-se de que Ben havia instalado as campainhas pensando que seria gracioso.

Esperou rígido diante da porta, sentindo ainda o pulso na cabeça. Não importa o que diga a lei, não importa que desobedecê-la signifique morrer, não a jogarei ali!

Golpeou a porta com o punho. —Ben! Silêncio. As cortinas brancas pendiam imóveis nas janelas da frente. Podia-se ver o sofá

vermelho e o abajur de pé com sua tela de franjas. Neville piscou. Que dia era? Havia esquecido, havia perdido a noção do tempo.

Deixou cair a cabeça sobre o peito. Uma fúria de impaciência lhe invadia o corpo. —Ben! Golpeou a porta de novo com os punhos. Maldição!, onde se meteu Ben? Apertou o

interfone com o dedo muito rígido e a campainha voltou a tocar a canção repetidamente: «Que seco estou, que seco estou, que seco estou...»

Ofegando empurrou com força a porta, que se abriu devagar. Estava sem tranca. Neville entrou no vestíbulo silencioso.

—Ben —exclamou—. Ben, preciso do seu carro. Ele e sua mulher estavam no dormitório, deitados na cama de casal, silenciosos e

imóveis em seu estado de coma diurno. Ben, de pijama; Freda, em uma camisola de seda. Ficou um momento olhando-os. No pescoço branco da Freda havia algumas feridas,

com umas crostas de sangue. Neville olhou Ben. Não mostrava feridas. Ouviu uma voz interior que dizia: Oxalá despertasse deste pesadelo.

Sacudiu a cabeça. Não, não era possível despertar. Encontrou as chaves do carro no escritório. Pegou-as e abandonou a silenciosa casa.

Seria a última vez que os via mortos. O motor roncou pesadamente, e Neville deixou-o esquentar alguns minutos

enquanto esperava sentado ao volante com os olhos fixos no poeirento pára-brisa. Uma mosca de corpo redondo voava ao redor de sua cabeça no quente e fechado interior do carro. Neville olhou a tapeçaria, de cor verde, sentindo no corpo os tremores do motor.

Ao fim colocou o carro em marcha e saiu à rua. A casa estava fresca e em silêncio. Neville pisou suavemente o tapete, e em seguida

seus passos ressoaram na sala. Deteve-se na soleira da porta e contemplou Virginia. Estava deitada de costas, com as

mãos estendidas para os lados, os dedos brancos ligeiramente fechados. Parecia dormir. Neville voltou para a sala. O que podia fazer? Uma coisa ou outra. Tudo era

igual. De qualquer modo, a vida deixava de ter sentido. Parou diante da janela com os olhos perdidos na rua banhada pelo sol. Para que fui procurar o carro, então?, perguntou-se. Não posso queimá-la. Não

quero. E que outra coisa é possível? Não há serviços fúnebres. Todos, sem exceção, devem ser levados ao fogo em seguida. Não havia outro sistema, a primeira vista, de evitar o contágio. Só as chamas podiam destruir as bactérias.

Neville sabia. Sabia que assim era a lei. Mas quantos a cumpriam? Quantos maridos jogavam ali a suas mulheres? Quantos pais incineravam a seus filhos?

Quantos filhos mandavam seus pais para aquela imensa fogueira? Não, embora não existisse mais nada a fazer, não queimaria a sua mulher.

Passou uma hora, e Neville se decidiu ao fim. Procurou agulha e fio. Costurou a manta até que só deixou aparecer o rosto de Virginia. Em seguida,

com dedos trêmulos e um nó no estômago, costurou a manta sobre a boca. Sobre o nariz e sobre os olhos.

Logo foi à cozinha e tomou outro gole de uísque.

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Voltou para dormitório cambaleando-se. Durante um bom momento ficou ali respirando pesadamente. Em seguida se inclinou e pegou-a em seus braços.

—Vamos, neném —murmurou. As palavras pareceram afrouxá-lo todo. Sentiu que estremecia, e que as lágrimas

caiam-lhe lentamente pelas bochechas. Atravessou a sala com o corpo nos braços e saiu à rua.

Colocou-a no assento de atrás e subiu no carro. Suspirou profundamente e procurou a chave de partida.

O carro correu alguns metros de marcha-ré e parou. Neville desceu e foi à garagem para procurar uma pá.

Sentiu que as forças lhe abandonavam. Cruzava a rua lentamente. Neville deixou a pá na parte traseira e entrou no carro.

—Espere! Foi um grito seco. O homem começou a correr, mas se deteve em seguida, ofegando. Neville esperou em silêncio até que o homem estivesse mais perto. —Você poderia... levar... a minha mãe? —disse o homem. —Eu... eu... A mente de Neville estava bloqueada. Pensou que começaria a chorar de novo, mas se

conteve, recompondo-se —Não vou para... lá —disse. O homem o olhou sem entender. —Mas sua... —Não vou á fornalha, eu disse! —explodiu Neville, e girou a chave de partida. —Mas sua mulher —disse o homem—. Sua esposa está... Neville pisou na embreagem. —Por favor... —suplicou o homem. —Não vou lá! —respondeu Neville sem olhá-lo. —Mas é a lei! —gritou o homem, furioso. O carro retrocedeu rapidamente e Neville virou para a Boulevard Compton. Enquanto se

afastava viu o homem de pé na calçada. Não, não vou jogar Virginia no fogo, disse a si mentalmente.

As ruas tinham ficado desertas. Dobrou à esquerda e se encaminhou para o leste. Não podia ir aos cemitérios porque estavam fechados e vigiados. Os homens que tinham tentado enterrar a seus familiares tinham morrido a tiros.

Virou à direita na rua seguinte, e logo depois de novo à direita, entrando em uma rua tranqüila que ladeava um terreno baldio. Aos cinqüenta metros desligou o motor e deixou que o carro seguisse em silêncio o resto do percurso.

Ninguém o viu descarregar o vulto e entrar com ele no terreno coberto de mato. Tão pouco alguém o viu quando depositava o corpo no chão e se inclinava, desaparecendo entre o matagal.

Cavou lentamente, cravando a pá na terra mole. O sol brilhante esquentava a pequena clareira e o ar era morno. O suor lhe corria em linhas pela cara. Sentiu o aroma úmido e penetrante da terra removida.

Por fim terminou a fossa. Deixou a pá a um lado e se ajoelhou. Havia temido tanto este momento.

Mas não podia perder mais tempo. Se o descobrissem, averiguariam o que fazia. Não importava a morte, mas não estava disposto que a queimassem. Apertou as mandíbulas. Não.

Suavemente, meteu-a na fossa, cuidando com que a cabeça não batesse contra o chão. Colocou-se em pé e olhou por um momento o corpo envolto na manta. Pela última vez,

pensou. Acabou-lhe as palavras, nunca mais meu amor... Onze maravilhosos anos enterrados em um buraco. Começou a tremer. Não, disse-se a si mesmo, não tenho tempo para isso.

Page 31: Richard Matheson   Eu Sou A Lenda

Umas lágrimas intermináveis ofuscaram o mundo e Neville jogou a terra cálida sobre o corpo imóvel.

Vestido e deitado na cama olhava o teto. Estava meio bêbado e na escuridão brilhavam os vaga-lumes.

Estendeu o braço direito sem olhar. A mão esbarrou na garrafa e os dedos reagiram muito tarde. Continuou deitado na escuridão da noite escutando como o uísque saía em ondas da garrafa e se derramava pelo chão.

Voltou a cabeça sobre o travesseiro e olhou a hora. Eram duas da manhã. Tinha passado dois dias desde que a enterrou. Dois olhos que olhavam o relógio, dois ouvidos que escutavam o zumbido elétrico, dois lábios apertados, duas mãos sobre a cama.

Sacudiu a cabeça para elucidar-se, mas o mundo inteiro parecia organizar-se de repente em um sistema de pares: duas pessoas mortas, duas janelas, duas escrivaninhas, dois tapetes, dois corações que...

Aspirou profundamente o ar noturno, reteve-o uns instantes, e em seguida expirou relaxando o corpo. Dois dias, duas mãos, dois olhos, duas pernas, dois pés...

Baixou as pernas da cama e ficou sentado. Colocou-se de pé no atoleiro de uísque e sentiu que lhe empapavam as meias. Um vento muito frio golpeava os vidros.

No meio da escuridão perguntou a si mesmo: O que fica ao fim de tudo? Levantou-se cansadamente e entrou aos tropeções no banheiro, deixando rastros

úmidos. lavou o rosto e procurou uma toalha. O que fica? O que...? Caminhou rigidamente na fria escuridão. Alguém estava abrindo a porta de rua. Sentiu um calafrio que lhe correu pela espinha. É Ben, disse. Veio pelas chaves do

carro. A toalha caiu no chão. Uns punhos golpearam a porta, fracamente, como se

estivessem tocando a madeira. Neville se dirigiu lentamente para a sala, o coração lhe golpeou o peito. O débil punho continuava golpeando a porta. O que está acontecendo?, pensou

Neville. A porta não está trancada!.Pela janela aberta entrava um ar gelado. —Quem...? —perguntou incapaz de abrir. Tropeçou, deu um passo para trás, virou-se e apoiou de costas na porta, respirando

ofegante. Não ocorreu nada. Neville se conteve. Em seguida sentiu que parou de respirar. Alguém se movia lá fora, murmurando. Neville

cruzou os braços sobre o peito e em seguida, de repente, abriu a porta de um puxão e os raios da lua iluminaram a soleira.

Nem sequer gritou. Ficou ali, cravado no chão, olhando-a inexpressivamente. —Rob...ert —disse Virginia.

Capítulo 10

O departamento de ciências estava no segundo andar. Os passos de Neville soaram a oco nos degraus de mármore da Biblioteca Pública de Los Angeles. Era 7 de abril de 1976.

Havia-o ocorrido, depois de passar vários dias perdido em bebedeiras, desgostos e investigações inconcretas, que estava perdendo tempo. Era incontestável que os experimentos isolados não levavam a nenhuma parte. Se havia alguma solução racional ao problema (e devia acreditar que sim) não a encontraria desse modo.

Em seu novo e ordenado programa, tinha decidido estudar o sangue. O primeiro passo era, pois, procurar alguns livros sobre o tema.

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Na biblioteca, o silêncio era total. Lá fora se ouvia às vezes o canto dos pássaros, e mesmo que estes se calassem, parecia continuar ouvindo alguma espécie de canto. Era inexplicável, mas o silêncio parecia mais fúnebre lá dentro do que fora.

Especialmente aqui, neste enorme edifício de pedra cinza que abrigava toda a literatura de um mundo morto. Possivelmente, pensou, estou rodeado meramente por muros psicológicos. Mas isto não era grande coisa. Não havia psiquiatras para tratar neurose sem fundamento e alucinações auditivas. O último homem do mundo estava absolutamente encarcerado em suas ilusões.

Neville entrou no departamento de ciências. Era um quarto de teto alto, com amplos vitrôs. Perto da porta se elevava o escritório onde

em outro tempo ficavam registrados os livros. Neville se deteve ali um momento, passeando o olhar pela silenciosa sala,

sacudindo lentamente a cabeça. Muitos livros, pensou: Testemunho da inteligência de um planeta, Migalhas de mentes fúteis, Mescla de sistemas inúteis para impedir a morte do homem.

Aproximou-se das estantes da esquerda e seus sapatos golpearam os escuros ladrilhos. Olhou as placas que classificavam os livros das prateleiras. Astronomia, leu, livros sobre o céu. Passou longe. Não lhe interessava já o céu. Aquela antiga curiosidade tinha morrido junto com as outras. Física, Química, Engenharia. Seguiu adiante e entrou na seção que ocupava seu interesse.

Parou e levantou os olhos. No teto havia duas fileiras de luzes apagadas, e estava dividido em grandes quadrados profundos, decorados com mosaicos indianos, aparentava. A luz do dia entrava pelas janelas poeirentas, e umas bolinhas cinzas ficavam suspensas nos raios de sol.

Observou as largas mesas de madeira e as fileiras de cadeiras. Tudo estava em seu lugar. No último dia, pensou, alguma bibliotecária solteirona tinha percorrido a sala colocando as cadeiras no lugar correspondente, com uma laboriosa precisão.

Imaginou a mulher que tinha morrido solitária para voltar, possivelmente, condenada a terríveis vagabundagens, e sacudiu a cabeça. Basta, disse, não há tempo para divagações românticas.

Passou diante de outros livros, até que chegou a Medicina. Esta era a seção que lhe interessava. Olhou os títulos e encontrou livros sobre higiene, fisiologia (geral e especial), terapêutica. Um pouco mais à frente, Virologia.

Tirou cinco obras de fisiologia geral e vários livros que tratavam temas relacionados com o sangue e os deixou sobre uma mesa. Interessavam-lhe também alguns textos sobre a bacteriologia? Durante um momento olhou indeciso os títulos.

Ao fim se encolheu de ombros. Bom, no que se diferenciavam? Tirou várias obras á esmo e as acrescentou ao montão. Tinha nove livros, suficientes para começar. Podia retornar em qualquer momento. Quando saía da sala olhou o relógio sobre a porta. Os ponteiros vermelhos do relógio pararam às sete e vinte e cinco. Neville se perguntou em que dia haviam parado. Meu Deus, que importância tem agora tudo isto? disse com desprezo. Aquela nostálgica preocupação pelo passado cada vez lhe irritava mais. Era uma debilidade, sabia, uma debilidade que não devia permitir-se. Entretanto, de quando em quando, surpreendia-se meditando amplamente sobre algum aspecto do passado recente.

De dentro, tão pouco pôde abrir as portas grandes. Estavam bem fechadas com chave. Teve que sair pela janela pequena, deixando cair os livros na calçada, um a um. Levou em seguida os livros ao carro.

Enquanto ligava o motor viu que tinha estacionado em local proibido, junto a uma calçada pintada de vermelho. Olhou acima e abaixo da rua.

—Polícia! —tirou o chapéu gritando—. Ei, polícia! Riu durante um quilômetro, surpreso de que aquilo lhe parecesse tão divertido.

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Deixou o livro. Estava relendo os temas referentes ao sistema linfático. Recordou vagamente tê-los lido meses atrás, durante o tempo que agora qualificava de «período congelado». Mas aquela leitura, sem uma aplicação possível, não havia interessado-o suficientemente.

Agora podia encontrar algo nessas páginas.

As finas paredes dos capilares permitiam que o plasma sangüíneo penetrasse nos tecidos junto com os glóbulos vermelhos e brancos. Estes elementos retornavam eventualmente ao sistema circulatório através dos vasos linfáticos, levados pelo claro líquido, chamado linfa.

Durante o caminho de volta, a linfa atravessava nódulos linfáticos que interrompiam o passo da corrente e filtravam as partículas de refugo, evitando que passassem ao canal sangüíneo.

Bem. Havia duas coisas que ativavam o sistema linfático: 1º, a respiração: o diafragma

comprimia o abdômen, fazendo subir o sangue e a linfa; 2º, o movimento físico: os músculos comprimiam os vasos linfáticos, fazendo circular a linfa. Um complexo sistema de válvulas impedia o retrocesso da corrente.

Mas os vampiros não respiravam; pelo menos os mortos. Isso podia significar que a metade da corrente linfática tinha ficado interrompida. E algo mais: que uma quantidade importante de produtos de refugo não ficavam liberados no sistema linfático do vampiro.

A Neville vinha à memória o aroma fétido daqueles seres. Seguiu lendo. «As bactérias passam à corrente sanguínea, onde... os glóbulos brancos

desempenham um papel importante na defesa contra as bactérias... A luz solar mata muitos germes e... algumas enfermidades humanas podem ser transmitidas por moscas, mosquitos... E ali, estimulados pelo ataque das bactérias, os produtores de fagócitos introduzem novos corpúsculos na corrente sanguínea...».

Neville deixou o livro sobre seus joelhos. Escorregou-lhe pelas pernas e caiu no tapete. Sempre parecia existir relação entre as bactérias e as enfermidades do sangue.Entretanto, ainda se questionava dos que tinham morrido denunciando os germes e rechaçando aos vampiros.

Levantou-se para preparar um copo. Mas, de pé diante do bar, ficou olhando fixamente a parede, enquanto golpeava com o punho a mesa do bar, lenta e ritmicamente.

Germes. Fez uma careta. Bom, em nome de Deus, disse desanimado, o perigo não reside nas

palavras. Respirou fundo. Bem, dirigiu-se a si mesmo, há algo que se oponha aos germes? Afastou-se do bar como se deixasse o problema ali. Foi à cozinha e sentou-se olhando a

cafeteira fumegante. Germes. Bactérias. Vírus, Vampiros. por que não aceito? pensou. É só uma teimosia reacionária, ou possivelmente é, que a tarefa excede meus limites? Não saberia dizê-lo. Poderia tentar um novo caminho: a da comprovação. Uma teoria

não era necessariamente contrária à outra. As bactérias podiam explicar a existência dos vampiros. E de repente tudo pareceu esclarecer-se. Era como se tratasse daquele menino holandês que tapando com o dedo o buraco do

dique, impede que entre o mar da razão. Ali ficou, de cócoras e satisfeito. Agora se levantou, desentupindo o buraco. E muitas respostas entravam nele.

A praga havia se estendido tão depressa que se perguntava se isso tivesse sido possível, só com a ação dos vampiros.

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Sentiu-se arrasado pela evidência da resposta. Só as bactérias podiam explicar a progressiva rapidez da praga, o aumento geométrico das vítimas.

Afastou a xícara de café, tinha o cérebro ocupado em uma dúzia de idéias diferentes. As moscas e mosquitos também eram responsáveis. Estendendo a enfermidade e

fazendo-a correr pelo mundo. Sim, as bactérias podiam ser a explicação de muitas coisas: o isolamento durante o dia

e o estado de coma provocado pelos germes para proteger-se da luz do sol. E ocorreu-lhe uma nova idéia: as bactérias podiam ser realmente a força do vampiro. Sentiu que um calafrio lhe percorria a espinha. Era possível que o mesmo germe que

matava os vivos animasse os mortos? Era imprescindível averiguá-lo. Deu um salto e saiu correndo da sala. Quando estava a

ponto de abrir a porta se deteve bruscamente, com uma risada nervosa. Meu Deus, pensou, estou ficando louco? Já é de noite.

Sorriu conformando-se e andou pela sala. Possivelmente a teoria não explicasse tudo.

O que acontecia com as estacas? Tratou de centrá-las em um quadro geral infeccioso, mas só podiam guardar relação com as hemorragias, e isso não explicava o caso daquela mulher. E com certeza que não era o coração.

Parecia que sua nova teoria começava a desmoronar-se. As bactérias não podiam explicar tão pouco o efeito das cruzes. O chão. Não, não havia nada ali. A água corrente, o espelho, os alhos...

Neville sentiu que não podia dominar seus nervos e desejou gritar e frear aquelas idéias exageradas. Tinha que descobrir algo! Maldição!, exclamou mentalmente.

Descobrirei-o! Sentou-se, trêmulo e tenso, tratando de deixar em branco a mente. Senhor, pensou ao

fim, o que há comigo? Tenho uma idéia, não posso explicá-lo tudo em um minuto, e se demorar mais de um minuto em me explicar isso tudo sinto pânico. Estarei ficando louco?

Pegou o copo; agora precisava disso. Elevou a mão até que o tremor cedeu. Bom, moço, acalme-se. Papai Noel virá esta noite lhe trazer todas as respostas. Já não será um solitário Robinson Crusoé em uma ilha deserta, rodeado por um oceano de morte.

Riu da idéia e se acalmou um pouco. Saiu-me uma frase genial, pensou. O último homem no mundo é Edgard Guest.

Bom, disse, agora vá se deitar. Não pense em vinte coisas distintas. Não pode continuar assim. É um desastre emocional.

O primeiro é conseguir um microscópio. O primeiro, repetiu enquanto tirava a roupa, ignorando aquele nó no estômago, o desejo de embriagar-se sem mais rodeios na investigação.

Não se sentia bem, deitado ali na escuridão e matutando uma só idéia. Sabia que devia ser assim. Um primeiro passo, maldição, um primeiro passo.

Sorriu com uma careta, na escuridão, consolando-se com a idéia de um trabalho bem definido.

Entretanto, antes de dormir permitiu uma nova reflexão. As picadas, os insetos, a transmissão de homem a homem... era isso suficiente para explicar a terrível rapidez com que se estendia a praga?

Dormiu com a pergunta na mente. E por volta das três da manhã despertou sentindo que outra tormenta de areia caía sobre a cidade. E de repente, em um segundo, encontrou a relação.

Capítulo 11

O primeiro que encontrou não servia. Qualquer vibração perturbava a imagem. Estava desajustado. O espelho, de pinos

frouxos, desequilibrava-se facilmente. Além disso, o microscópio precisava de

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condensadores e polarizadores. Tinha só uma porta-objetiva, e cada vez que queria variar os aumentos devia trocar a lente.

Mas era previsível. Não sabia nada de microscópios, e levou para casa o primeiro que havia encontrado. Três dias mais tarde o lançava contra a parede e o fazia em pedaços.

Em seguida, mais tranqüilo, foi á biblioteca e procurou documentação sobre microscópios.

Na próxima vez não o levou, até assegurar-se de que era um bom instrumento: três porta-objetivas, condensador e polarizador, boa base, movimentos precisos, diafragma, boas lentes. Uma amostra mais, disse a si mesmo, da estupidez de trabalhar embriagado. Sim, sim, repetiu de mau humor.

Obrigou-se a passar várias horas estudando o instrumento. Trabalhou com o espelho até conseguir dirigir um raio de luz sobre o objeto desejado em

poucos segundos. Familiarizou-se com as lentes, desde a de três polegadas até a de um doze-ávos de polegada. Quebrou treze platinas, até que aprendeu a colocar uma gota de óleo de cedro em cada uma e baixar em seguida a lente suavemente, até tocar a gota.

Depois de três dias de plena dedicação, aprendeu a manipular os estriados parafusos de ajuste, a manobrar o diafragma e os condensadores e iluminar a platina com precisão. Logo obteve assim imagens definidas e claras.

Em seguida deparou-se com o problema mais árduo. Apesar dos seus esforços não podia evitar a presença de alguma partícula de pó. Por isso às vezes lhe parecia estar estudando rochas.

Resolver isto era especialmente difícil, pois quase a cada quatro dias eclodia uma tormenta de areia. Finalmente instalou uns protetores de tule.

Aprendeu a trabalhar com método. Descobriu que a desordem (e o tempo que empregava em procurar as coisas) fazia que o pó se acumulasse nas platinas. Sem ajeitar, quase jogando, destinou logo um lugar para cada coisa: platinas, placas, provetas, pinças, pires, agulhas, produtos químicos.

Descobriu, surpreso, que a ordem lhe produzia um verdadeiro prazer. A herança do velho Fritz, ao fim de tudo, aprovou sorrindo.

Em seguida conseguiu uma amostra de sangue. Dedicou vários dias a preparar umas gotas e as pôr na platina. Durante um tempo não

confiava que o conseguiria. Mas ao fim de uma manhã, por acaso, como se fosse um assunto sem importância,

colocou a sua trigésima sétima amostra de sangue sob as lentes, concentrou a luz, ajustou os espelhos, e em seguida o diafragma e o condensador. Cada segundo parecia aumentar o ritmo de seus batimentos cardíacos, pois, de algum modo, intuía que esta vez sim. O momento chegou. Conteve o fôlego.

Ali, movendo-se delicadamente na platina, havia um germe. Nomeio-te “Vampirus”. As palavras lhe ocorreram enquanto olhava pela lente ocular.

Consultou um texto de bacteriologia e descobriu que uma bactéria cilíndrica era um bacilo, uma varinha protoplasmática que se movia no sangue por meio de uns fiozinhos, projeções da membrana celular. Estes flagelos agitavam vigorosamente o líquido ambiente e moviam o bacilo.

Durante um momento permaneceu olhando o microscópio, incapaz de pensar ou seguir adiante.

Fosse o que fosse que estava ali, na platina, era a origem do vampiro. Todos os séculos de superstição se desvaneciam naquele instante.

Os cientistas tinham razão então; tratava-se de bactérias. Havia restado a ele, Robert Neville, de trinta e seis anos, sobrevivente, completar a pesquisa e descobrir o assassino: um germe dentro do vampiro.

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De repente, uma profunda depressão lhe estorvou. Ali estava agora a resposta, mas era muito tarde. Tratou ansiosamente de animar-se à vista dos resultados, mas não pôde. Não sabia por onde começar. O problema parecia insolúvel. Como poderia curar aos que ainda viviam? Não sabia nada sobre bactérias.

Bom, saberei!, Prometeu interiormente. E se obrigou a estudar.

Algumas espécies de bacilos, quando as condições de vida se tornam desfavoráveis, são capazes de criar neles mesmos uns corpos chamados esporos.

Assim, condensam os conteúdos celulares em um corpo de forma oval e grossas paredes. O corpo se separa em seguida do bacilo e o esporo fica livre, e é resistente às mudanças químicas e físicas.

Mais tarde, quando as condições de vida melhoram, o esporo germina, conservando todas as qualidades do bacilo original.

Neville, de pé, com os olhos fechados, agarrava-se com força a borda da pia da cozinha. Encontraria algo ali, disse-se a si mesmo, algo. Mas o que?

Suponhamos, continuou, que o vampiro não consiga sangue. As condições estariam contra o bacilo vampirus.

Mas para proteger-se a si mesmo, o bacilo cria o esporo, pondo em coma ao vampiro. Logo, quando as condições ambientes mudam, o vampiro se reanima.

Mas como pode saber o germe aonde há sangue? Neville deu um murro na pia. Releu o capítulo. Tinha algo ali. Pressentia-o.

Quando as bactérias não se alimentam adequadamente, seu metabolismo se altera e produzem bacteriófagos (proteínas inanimadas, auto-reprodutoras). Estes bacteriófagos destroem as bactérias.

Quando não há sangue, o metabolismo será anormal, os bacilos absorverão água e se romperão no fim, destruindo as células.

Outra vez apareciam os esporos. Tinha que incluí-los no quadro. Bom, caso o vampiro não entre em coma e caso seu corpo se decomponha sem

sangue, o germe pode criar ainda seus esporos e... Claro! As tormentas de areia! Os esporos livres eram transportados pelas tormentas. O pó machucava a pele, e os

esporos se alojavam nessas pequenas feridas. Uma vez dentro, o esporo podia germinar e multiplicar-se por fissão, destruindo os tecidos. O bacilo passava assim dos corpos decompostos, venenosos, para tecidos sãos. Os venenos alcançavam eventualmente a corrente sanguínea.

O processo ficava completado. E tudo sem vampiros de olhos injetados em sangue, inclinados sobre formosas mulheres

adormecidas. Tudo sem morcegos que voam atrás das janelas. O vampiro era um ser real. Mas ninguém tinha averiguado sua verdadeira história.

Neville recordou então algumas pragas. A queda de Atenas foi similar à praga de 1975. Antes que pudessem reagir, a cidade já

havia perecido. Os historiadores falavam da peste bubônica. Neville, entretanto, acreditava que o culpado era o vampiro.

Não, não precisamente o vampiro. a partir de agora, aquele espectro assassino seria sobre tudo uma ferramenta do germe; seu papel seria o do vilão da história. O germe que havia propagado seu açoite enquanto o povo fugia aterrorizado.

E a peste negra, aquele mal espantoso que varreu a Europa, destruindo quase três quartos da população?

Vampiros também? Quando eram as dez da noite, a Neville doía a cabeça e sentia os olhos inchados

como globos. deu-se conta de que tinha fome. Tirou carne da geladeira, deixou-a no forno e tomou uma ducha.

Sobressaltou-se ao ouvir um golpe em um lado da casa.

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Em seguida sorriu aborrecido. Esteve tão abstraído durante todo o dia, que tinha esquecido a manada.

Enquanto se secava, tratou de recordar. Não distinguia, entre os vampiros da rua, os vivos, dos ativados pelos germes. Estranho, pensou. Devia haver alguma diferença entre as duas classes, pois seus disparos só destruíam a alguns, deixando incólumes a outros. Os mortos, presumivelmente, podiam resistir às balas.

E lhe ocorria outro problema. Por que só vinham os vivos? E por que só uns poucos e não todos os do bairro?

Neville tomou um copo de vinho com a carne e lhe surpreendeu o bom sabor de tudo. A comida habitual lhe tinha sabor de madeira. O trabalho me tem aberto o apetite, pensou.

Além disso, não estava interessado no uísque. Sacudiu a cabeça. Era dolorosamente óbvio o que procurava na bebida.

Da carne só deixou os ossos. Em seguida foi à sala com o resto do vinho, tocou uns

discos no toca-disco e se recostou na poltrona. Ficou ali escutando a primeira e segunda sonatas do Daphnis e Cleo, de Ravel, com as

luzes apagadas exceto os abajures da parede. Durante um momento se esqueceu totalmente dos vampiros.

Capítulo 12

No dia seguinte tudo se estagnou. A lâmpada solar destruía os germes da platina, mas isso não explicava grande coisa.

Neville fez uma mescla de sulfureto de alho com sangue contaminado e não ocorreu nada. O sulfureto foi absorvido pelo sangue, e os germes continuaram vivendo. Passeou

inquieto pelo dormitório. O alho os afastava, e o sangue era imprescindível para sua existência. Entretanto se, se

mesclavam estes dois elementos, nada ocorria. Neville apertou com fúria os punhos. Um momento..., disse. Esse sangue era de um vampiro vivo. Uma hora mais tarde trabalhava com outra amostra. Mesclou-a com sulfureto de alho e

olhou atento pelo microscópio. Nada. O almoço lhe engasgou. E as estacas, então? As hemorragias, ao parecer, não eram o mais importante.

Aquela maldita mulher... Passou meia tarde tratando de concentrar-se em algo. Ao fim, de um golpe

atirou o microscópio e se dirigiu aos tropeções para a sala. Jogou-se na poltrona e ficou ali, tamborilando com os dedos impacientemente.

Felicidades, Neville, é impossível, disse mordendo os punhos. Confrontemos o problema, pensou, conseqüentemente. Perdi a cabeça faz muito tempo. Não posso pensar mais de dois dias seguidos sem me aturdir. Sou um inútil, um estúpido, um trapo.

Bem, decidiu encolhendo-se de ombros. Voltarei ao problema. Há fatos indiscutíveis. Há um germe, contagioso, que a luz solar mata; o alho é uma

arma contundente. Alguns vampiros dormem na terra; as estacas cravadas no coração os destroem. Não se transformam em lobos ou morcegos, mas o contágio pode atingir a certos animais, que se convertem também em vampiros.

De acordo. Fez uma lista. Uma coluna começava com a palavra Bacilos; a outra, com sinal

de interrogação. Começou. A cruz. Não, isso não podia guardar relação alguma com os bacilos. Era

possivelmente algo psicológico. A terra. Haveria alguma substância no chão que afetava aos germes? Não.

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Como chegava a terra até o canal sangüíneo? Além disso, só eram uma minoria os que dormiam na terra.

A água. Podia ser absorvida pelos poros e... Não, isso era absurdo. Os vampiros saíam também com chuva. Outro conceito para a coluna da interrogação. Neville escreveu com o pulso tremente.

O sol. Tratou inutilmente de alegrar-se ao poder incluí-lo na coluna da esquerda. A estaca. Não. Tragou saliva. Atenção.

O espelho. Em nome de Deus, como podia guardar relação um espelho com os germes? A apressada escrita na coluna da direita era ininteligível.

O alho. Neville se deteve, batendo os dentes. Tinha que acrescentar mais conceitos a a coluna dos bacilos. Era quase uma questão de honra. O alho, o alho. Como devia afetar os germes. Começou a escrever na coluna da direita, mas antes de terminar sentiu que a raiva crescia em seu interior como a lava em um vulcão.

Maldição! Amassou a folha com raiva e a atirou a um canto. Levantou a cabeça subitamente,

olhando a seu redor. Queria quebrar algo, não importava o que fosse. Tinha concluído, acreditava, o período congelado! gritou-se a si mesmo correndo para o bar.

Deteve-se. Não, não vou começar de novo. Passou as mãos pelos cabelos. Um movimento convulsivo lhe colocou um nó na garganta. Estremeceu-se contendo sua fúria.

O gorjeio do uísque lhe incomodou. Colocou a garrafa de barriga para baixo e o uísque saiu em ondas golpeando as paredes do copo e espalhando-se na mesa.

Neville bebeu o uísque de um gole, jogando a cabeça para trás. Sou um animal!, gritou. Um estúpido e torpe ignorante! Esvaziou o copo e o atirou ao chão. O copo golpeou contra os livros e rodou pelo tapete.

Neville saltou, pisoteando-o até fazê-lo pedacinhos. Em seguida, girando sobre seus calcanhares, voltou para bar e se serviu outro

copo. Bebeu-o rapidamente. Encheu outro. Muito lento, maldição! Bebeu diretamente da garrafa, engasgando-se, queimando a garganta e sentindo desprezo de si mesmo.

Jogou a garrafa, que foi chocar-se contra o mural, fazendo-se em pedaços. O resto de uísque que ficou correu pelos troncos das árvores e o chão. Neville cruzou a sala, recolheu um pedaço de vidro e rasgou o mural de acima á abaixo.

Deixou cair o pedaço de vidro. Sentia uma dor persistente nos dedos. Olhou. Tinha feito um corte.

Muito bem! gritou alegremente, e apertou as bordas da ferida. O sangue caiu gotejando sobre o tapete.

Ao cabo de uma hora estava totalmente bêbado, deitado de costas no chão, sorrindo inexpressivamente.

O mundo se destruiu, pensou. Nada de germes, nada de ciência. O mundo foi vítima do sobrenatural, é já um mundo sobrenatural. Do Bizarro Harper, A Revista de Sábado das Bruxas, O Lugar Sinistro, O jovem doutor Jekyll, A outra mulher de Drácula, A morte pode ser formosa, Não seja cortado pela metade, e As Grandes Vendas de Ataúdes.

Neville seguiu ébrio durante dois dias, e havia decidido seguir assim até o fim do mundo, ou até o fim do uísque. E o teria cumprido se não tivesse sido por uma casualidade.

Ocorreu na terceira manhã, quando saiu cambaleando-se ao alpendre para saber se o mundo se mantinha firme.

Havia um cão vagabundeando na calçada. Quando ouviu o ruído da porta da rua, deixou de farejar, elevou a cabeça e

saiu sacudindo suas magras patas. Por um momento Neville, surpreso, ficou imóvel, petrificado, com os olhos cravados no

cão. O animal se afastava com o rabo entre as pernas.

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Estava vivo! À luz do sol! Neville saltou para frente, afogando um grito e tropeçando. Recuperou o equilíbrio e pôs-se a correr atrás do cão.

—Ei! —gritou, e sua rouca voz rompeu o silêncio da rua—. Vem aqui! Cruzou a calçada. —Ei! —chamou de novo—. Vem aqui, criatura. O cão, pela outra calçada, corria com a pata esquerda no ar e as negras garras

arranhando as lajes. —Veem, criatura, não lhe farei mal! —chamou Neville. Sentiu dor no flanco e a cabeça estourando. O cão se deteve um instante e olhou para

trás. Logo se meteu entre umas casas e Neville o pôde ver bem. Era castanho e branco, mestiço, com a orelha esquerda rasgada e caída.

—Não se vá! Neville não percebeu o estremecido grito de histeria que lhe saía da garganta. O cão

desapareceu entre as casas. Gemendo, Neville correu mais depressa, sem ter em conta os efeitos da ressaca.

Mas quando chegou ao pátio o animal havia desaparecido. Correu até a cerca e olhou ao outro lado. Nada. Voltou-se. Possivelmente o cão estava

na rua. A rua parecia deserta. Durante uma hora vagou pelo bairro, procurando em vão e chamando de quando

em quando. Ao fim voltou para a casa seriamente deprimido. Cruzar-se com um ser vivo,

encontrar um companheiro depois de tanto tempo, e perdê-lo tão depressa. Embora só se tratasse de um cão. Só um cão? Para a Neville era o cúmulo da evolução planetária.

Não pôde tomar nada. Sentia-se tão débil e doente que teve que se deitar. Mas não dormiu. Permaneceu estirado, estremecendo febrilmente, agitando a cabeça a um lado e a outro, sobre o travesseiro.

—Vem, criatura —murmurava no delírio—. Vem, não lhe farei mal. Pela tarde, voltou a procurá-lo. Por duas horas examinou todos os pátios, todas as ruas,

todas as casas. Quando voltou, por volta das cinco, deixou um prato de leite e uma salsicha na calçada, e

os rodeou com um colar de alhos, com a idéia de que os vampiros não se aproximassem. Mais tarde lhe ocorreu que se o cão estava contaminado o alho o afastaria

também. Mas, então, como vagava pelas ruas à luz do dia? Possivelmente ainda não estava doente. Mas como havia sobrevivido aos ataques noturnos?

De repente, lhe ocorreu: e se vier esta noite atraído pelo leite e eles lhe atacarem? Não poderia suportar. Suicidaria-se, pensou.

Outra vez o inexplicável enigma de sua gana de viver. Agora se entretinha com alguns experimentos, mas a vida era ainda uma viagem estéril e sem sentido. Apesar do que lhe rodeava ou podia conseguir (exceto companhia humana), aquela vida não podia melhorar, nem sequer mudar. Sempre viveria como até agora. Durante quantos anos? Trinta, possivelmente quarenta, se não se destruísse antes, bebendo.

A idéia de agüentar quarenta anos mais nestas condições o estremeceu. E entretanto ainda não havia se suicidado. Na verdade, seguia sem comer, nem beber,

nem dormir adequadamente; a saúde não lhe ia durar muito tempo. Estava fazendo armadilhas com as percentagens, suspeitou.

Mas descuidar da saúde não era suicídio. Por que não havia tentado suicidar-se? Não sabia o que responder. Não havia se resignado ainda, nem aceitava aquela vida.

Entretanto, seguia ali, oito meses depois de que a praga tinha aniquilado a sua última vítima, nove meses desde que tinha falado pela última vez com um ser humano, dez desde que aconteceu a morte de Virginia. Ali estava, sem futuro e sem presente, mas ainda se mantinha na luta.

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Instinto de sobrevivência? Estupidez? Excesso de imaginação? Por que não havia se suicidado no princípio, quando estava absolutamente arrasado? O que o havia levado a entrincheirar-se na casa, instalar um refrigerador, um gerador, uma cozinha elétrica, um reservatório, construir um estufa, um ambiente de trabalho, destruir as casas vizinhas, colecionar discos e livros, e armazenar montanhas de latas de conserva, e até —parecia incrível— colocar um mural?

Era a vida algo mais que palavras, uma força incontrolável que governava a consciência? Tentava a natureza sobreviver á despeito dele?

Fechou os olhos. Por que tratar de raciocinar? Não havia resposta. Sua sobrevivência era um mero acidente. Muito obtuso, simplesmente, para terminar de repente.

Mais tarde reparou as partes rasgadas do mural. Os cortes ficavam dissimulados, se não se olhava de perto.

Tentou por um instante voltar a pensar no problema dos bacilos, mas lembrou que só

tinha na sua imaginação o cão. Assombrado, tirou o chapéu desejando humildemente que o animal não sofresse nenhum dano. Nesse momento sentia a desesperada necessidade de acreditar em um Deus protetor. Embora, de um momento a outro, começaria a desiludir-se de si mesmo.

Entretanto, conseguiu ignorar sua mente iconoclasta e seguiu rezando. Porque queria o cão, necessitava-o.

Capítulo 13 Na manhã seguinte, o leite e a salsicha tinham desaparecido. Neville olhou acima e abaixo na calçada. Havia duas mulheres, mas não o cão. Suspirou

aliviado. Graças a Deus, pensou. Em seguida, fez uma careta. Se fosse uma pessoa religiosa, pensou, diria que atenderam minhas preces.

Mas como era que não haviam vigiado a vinda do cão? Devia ter sido à alvorada, quando não ficava ninguém nas ruas. Conformou-se pensando que estava atraindo ao animal, embora só fosse pela comida. Mas possivelmente tinham-na levado os vampiros. Uma rápida olhada dissipou seus temores. A salsicha tinha passado por cima do colar de alhos e tinham ficado restos no cimento. E a saliva do animal estava espalhada ao redor do prato.

Antes de tomar o café da manhã preparou um pouco mais de leite e outra salsicha, e levou tudo à sombra para que o leite não estragasse. Pensou um momento, e acrescentou uma tigela com água fresca.

Em seguida, depois de comer, carregou as duas mulheres e as levou ao fogo; Na volta, parou em um supermercado e recolheu duas dúzias de latas da melhor comida para cão, caixas de bolachas para cão, talco anti-pulgas e uma escova de arame.

Cara, qualquer um diria que vou ter um bebê ou um algo parecido, pensou enquanto voltava ao carro com a carga. Um débil sorriso apareceu na cara. Por que se enganar?, Refletiu. O descobrimento do germe não o havia entusiasmado muito.

Retornou a toda pressa e não pôde evitar de expressar sua desilusão. A carne e o leite estavam no mesmo lugar. Bom, o que acreditava? perguntou-se. O cão não vai comer continuamente. Só voltará quando tiver fome.

Deixou os vultos na cozinha e olhou o relógio. Dez e quinze. Calma, disse-se a si mesmo. Conserve pelo menos esta virtude.

Saiu para examinar as janelas e a estufa. Tinha que pregar uma tábua solta e arrumar o teto de vidro.

Enquanto recolhia os alhos se perguntava, uma vez mais, por que os vampiros não tinham-lhe incendiado a casa. Temeriam o fogo? Ou simplesmente não os

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havia ocorrido? Ao fim de tudo, seus cérebros não podiam raciocinar como antes. O passo da vida normal a uma morte animada devia danificar os tecidos.

Não, a teoria não era exatamente esta, pois de noite vinham também alguns vampiros que nada os havia prejudicado em seus cérebros, provavelmente.

Deixou o assunto. Não estava inspirado para problemas. Passou parte da manhã preparando novos colares de alhos. Em uma ocasião recordou a lenda: só os casulos da planta eram eficazes. Encolheu-se de ombros. Em onde estava a diferença? Depois do almoço, sentou-se na frente do buraco espionando a tigela e o prato. Não se ouvia nenhum som, salvo o zumbido apenas perceptível do aparelho de ar condicionado.

O cão chegou cerca das quatro. Neville, meio sonolento, piscou e viu que cruzava lentamente a rua, vigiando a casa com olhos precavidos. Perguntou-se o que lhe passava na pata esquerda. Se conseguisse curá-lo, possivelmente ganharia seu afeto. Sombras de Androcles, pensou na penumbra.

Obrigou-se a permanecer imóvel e olhar. Era incrível. A visão do cão alimentando-se,

batendo as mandíbulas e estalando a língua satisfeito, devolvia-lhe uma cálida impressão de normalidade. Um amplo sorriso lhe desenhou na cara, um sorriso inconsciente. Era um cão encantador.

Sentiu um nó no estômago. O cão terminou de comer e se afastava. Saltou da banqueta e pegou a maçaneta.

Em seguida se conteve. Não, assim não, decidiu a contra-gosto. Assustarei-o se sair. Agora tenho que deixá-lo ir.

Retornou ao buraco e o seguiu enquanto cruzava a rua e se escondia de novo entre as casas. Está bem, conformou-se. Ele voltará.

Afastou-se do buraco e preparou um uísque com água. Sentado na poltrona e saboreando aos goles, se perguntou onde o cão passaria as noites. No dia anterior já havia-o intrigado e pensava que o animal devia esconder-se muito habilmente.

Era possivelmente, pensou, uma dessas exceções que confirmam a regra. De algum modo, por sorte, casualidade ou certa inteligência, o cão tinha sobrevivido à praga e as suas espantosas vítimas.

Então, se um cão, com todas suas limitações, havia conseguido subsistir, possivelmente um ser humano... Tratou de mudar de idéia. Era perigoso respirar esperanças. Tinha assumido, fazia tempo, sua solidão.

Na manhã seguinte o cão apareceu de novo. Neville abriu a porta sigilosamente e saiu. Em seguida, o animal se afastou de um salto e pôs-se a correr rua abaixo.

Neville pensou em persegui-lo, mas se freou. Aparentemente desmoralizado, sentou-se nos degraus do alpendre.

O cão desapareceu outra vez entre as casas. Neville esperou um quarto de hora e voltou a entrar.Depois de tomar um ligeiro café da manhã colocou lá fora mais comida.

Esta vez veio às quatro. Neville saiu quando o cão terminava sua comida. Escapou-lhe também. Mas percebendo que Neville não o perseguia, deteve-se

em meio da rua e se virou para olhá-lo. —Vem, não tenha medo —disse Neville, mas ao ouvir sua voz o animal se assustou e

saiu correndo. Neville ficou sentado no alpendre, rígido, apertando os dentes com força. Maldição, por

que fugiu?, perguntou-se. Maldito cachorro! Pensou então nas penúrias do cão, encolhido nas sombras, Deus sabia onde,

durante noites intermináveis, escondendo-se dos vampiros, que passavam muito perto dele. Faminto e sedento, lutando pela sobrevivência em um mundo sem donos carinhosos e protetores.

Pobre animal, pensou. Serei bom contigo. Não lhe serviu de consolo. Pois sempre, apesar de tudo, havia desejado encontrar a um

semelhante: homem, mulher, menino, não importava. Sem a incessante influência das

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massas, o sexo perdia rapidamente importância. Em troca, a solidão seguia em primeira linha.

Muitas vezes havia imaginado que se encontrava com alguém, se havia concedido esse luxo. Mas freqüentemente tentava resignar-se a inevitável realidade. Ele, Robert Neville, era o único sobrevivente do mundo. Pelo menos, do mundo que conhecia.

—Neville! Viu Ben Cortman, que atravessava a rua correndo, e se levantou de um salto.

Pensando no cão, tinha esquecido o crepúsculo. Entrou rapidamente na casa e fechou com chave. Em seguida trancou a porta com

mãos débeis.

Durante uns dias Neville saiu ao alpendre quando o cão terminava de comer. Escapava-lhe sempre, mas à medida que passavam os dias, detinha-se, mais crédulo, no meio da rua para olhar para trás. Neville não o perseguia nunca. Sentado no alpendre, olhava-o e esperava. Aquilo parecia um jogo.

Um dia, Neville sentou-se no alpendre antes que o cão chegasse. E quando apareceu na calçada em frente, permaneceu sentado.

Durante quase quinze minutos o cão passeou pela calçada, para cima e para baixo, sem aproximar-se da comida. Neville se afastou do prato, e o cão pareceu animar-se. Mas, de repente, quando Neville cruzou as pernas inconscientemente, retrocedeu com rapidez. Em seguida caminhou de um lado a outro, pela rua, sem saber o que fazer: olhava a Neville, a comida, e outra vez a Neville.

—Vamos, criatura —disse Neville—, se aproxime do prato. Mostre que é um bom cão. Passaram dez minutos mais. O cão estava agora na mesma calçada da casa,

movendo-se em círculos cada vez menores. —É assim que se faz —disse Neville brandamente. Esta vez o cão não parecia assustado, nem se afastou ao ouvir sua voz. Neville

esperou, sem mover-se. O animal aproximou-se ainda mais, com o corpo tenso e lhe vigiando. —Está bem —disse-lhe Neville. De repente o cão correu, arrebatou a comida e saiu a toda pressa. As gargalhadas de

Neville o seguiram através da rua. —Mau menino! —comentou carinhosamente. Contemplou o cão enquanto comia. Havia se estendido na grama amarela que tinha em

frente da casa, com os olhos cravados em Neville. Aproveite, pensou Neville. De hoje em diante terá comida de cão. Acabou-se a carne fresca.

Quando o cão terminou de comer, se levantou e cruzou a rua com menos medo. Neville sentiu que o coração lhe pulsava com força. O cão começava a confiar nele, e isso, de algum modo, emocionava-lhe.

—Vamos —ouviu dizer a si mesmo em voz alta—. Toma a água agora. Em seu rosto apareceu um repentino sorriso de deleite. O cão elevava a orelha sã.

Está escutando!, pensou Neville excitado. Entende o que digo, o sem-vergonha! —Vamos, criatura —seguiu dizendo—. Toma a água e o leite. Não lhe farei mal. O cão se aproximou da água e bebeu avidamente, levantando de vez em quando

a cabeça para vigiar. —Não lhe farei nada —disse Neville. Que estranha lhe soava sua própria voz. Um ano era muito tempo para viver sozinho e silencioso. Quando estiver comigo, disse-lhe ao cão mentalmente, falarei até lhe romper os

tímpanos. O cão acabou a água. —Vem, criatura —convidou Neville, golpeando-a joelho—. Vem aqui.

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O cão o olhou com curiosidade, levantando outra vez a orelha sã. Esses olhos, pensou Neville. Que mundos de emoções revelam esses olhos. Desconfiança, medo, esperança, solidão... tudo aí dentro. Pobre animal.

—Vamos, vem. Não lhe farei mal —disse docemente. Levantou-se e o cão pôs-se a correr desta vez também. Neville ficou ali, vendo como

fugia, sacudindo a cabeça contrariado. Passaram uns dias. Neville continuava sentando-se no alpendre às horas das

comidas, e não passou muito tempo antes que o cão voltasse de novo para aproximar-se do prato e à tigela sem hesitações, quase com audácia, com a segurança de quem tem consciência de suas conquistas.

E durante todo esse tempo, Neville lhe falava docemente. —Isso, criatura. Come. É boa comida, verdade? Claro que é. Sou seu amigo e

lhe dou comida. Come, bicho, come. Assim mesmo. É um bom cão. Neville falava sem cessar, adulando, vertendo palavras carinhosas na mente

temerosa do animal. Cada dia se sentava um pouco mais perto. Até que ao fim pudesse tocá-lo,

possivelmente estirando-se um pouco. Entretanto, não o fez. Não me arriscarei, disse a si mesmo.

Mas era difícil manter as mãos quietas. Quase podia sentir como lhe escapavam, desejando tocar aquela cabeça. Sentia tanta necessidade de amar a alguém, e o cão era um candidato tão belamente feio.

Seguiu-lhe falando até acostumá-lo devagar ao som de sua voz. O animal quase nunca o olhava. Ia e vinha sem hesitações, comendo e ladrando. Logo, pensou Neville, poderei lhe acariciar a cabeça. Os dias se converteram em semanas, e cada hora fazia menos longínqua aquela amizade.

Um dia, o cão não apareceu. Neville estava perplexo. Havia se acostumado tanto ás suas idas e vindas que

tinha chegado a organizar sua vida ao redor das comidas do cão. Tudo se reduzia ao desejo de vê-lo e tocá-lo.

Passou nervoso à tarde, percorrendo o bairro, chamando em voz alta ao animal. Mas não o viu por nenhuma parte. O cão não voltou ao entardecer, nem na manhã seguinte. Neville buscou-o de novo, mas desta vez com menos esperança. Encontraram-no, pensou, os sujos bastardos. Mas não podia acreditar realmente. Não queria acreditar.

O terceiro dia, à tarde, estava na garagem quando ouviu o ruído da tigela. Correu para fora, contendo o fôlego.

—Voltou! —gritou. O cão se assustou e deixou o prato bruscamente, com o focinho jorrando água. O coração da Neville deu um salto. O cão ofegava com a língua para fora. Os olhos

brilhavam. —Não! —disse Neville com a voz rota—. Oh, não!. O cão seguia retrocedendo pela grama, com as patas fracas e trementes. Neville

sentou-se em seguida nos degraus do alpendre e permaneceu ali, estremecendo-se. Oh, não!, pensou angustiado; Oh, Deus, não!.

Olhou o cão, que lambia a água. Não. Não. Não. —Não pode ser —murmurou sem pensar. Em seguida, instintivamente, estendeu a

mão. O cão foi para trás exibindo um pouco os dentes. —Está bem, criatura —disse Neville em voz baixa—. Não lhe farei mal. Não pôde impedir que o cão desaparecesse, e não viu onde se escondia. Dentro de

alguma casa, provavelmente, mas isso não era uma boa indicação.

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Neville não dormiu naquela noite. Passeou para cima e para baixo da sala, tomando café e amaldiçoando a lentidão com que passavam as horas. Tinha que atrair o cão. E logo. Ainda estava em tempo de curá-lo.

Mas como? Devia haver uma forma. Ainda com o pouco que sabia, devia encontrar a forma.

Na manhã seguinte sentou-se junto à tigela e observou estremecendo-se que o cão cruzava a rua devagar. Seus olhos estavam mais opacos que no dia anterior. Pensou em saltar e, agarrando-o pela força, colocá-lo na casa.

Mas sabia que se fracassasse perderia tudo e o cão não voltaria mais. Durante a comida tentou lhe acariciar, mas o cão se afastou grunhindo. Tentou

dominá-lo. —Não se mova! —disse com voz firme, mas o cão se assustou ainda mais, e se

afastou. Neville teve que lhe convencer durante quinze minutos, com sua voz rouca e tremente, antes que o animal voltasse para água.

Esta vez o seguiu e por fim viu o esconderijo. Podia pôr uma cortina metálica para lhe proteger, mas não o fez. Não queria assustá-lo.

E, além disso, não haveria jeito de chegar a ele a não ser através do chão, e isso levaria tempo. Tinha que capturá-lo rapidamente.

O cão não voltou á tarde e Neville levou uma tigela de leite e deixou debaixo daquela casa. Na manhã seguinte, a tigela estava vazia. Ia enchê-la de novo, mas deu-se conta de que desse modo o cão não deixaria sua toca. Colocou outra vez a tigela no alpendre de sua casa e confiou em que o animal tivesse forças para chegar até ele. Estava muito preocupado para reparar em outra coisa.

Passou a noite muito inquieto. Pela manhã, o cão não apareceu. Neville foi outra vez até a casa em frente. Escutou atento, mas não ouviu nenhum som. O animal estava muito longe, O...

Voltou para sua casa e se sentou no alpendre a esperar. Não tomou o café da manhã nem almoçou.

Pela tarde, o cão saiu dentre as casas, movendo-se lentamente sobre suas fracas patas. Neville esperou imóvel a que alcançasse a comida. Em seguida, rapidamente, inclinou-se e tomou-o pelo lombo. O cão tratou de mordê-lo, mas Neville lhe apertou a boca com a outra mão. O corpo fraco e quase sem pêlo opôs resistência. Uns gemidos de terror lhe estremeceram a garganta.

—Bom, bom —repetiu Neville—. Não acontecerá nada, cachorrinho. Entrou rapidamente na casa, dirigiu-se ao dormitório e colocou o cão sobre um leito de

mantas que havia preparado para essa ocasião. Logo que soltou as mandíbulas, o cão tentou morder, mas Neville afastou rapidamente a mão. O animal saiu correndo para a porta e escorregou pelo linóleo. Neville deu um salto e lhe bloqueou o caminho. O cão se escondeu debaixo da cama.

Neville se agachou e olhou. Viu os olhos, brilhantes como tições, e ouviu o entrecortado arquejo.

—Vamos, sai daí, criatura —rogou lastimosamente—. Não lhe farei mal. Está doente. Vou curá-lo.

O cão não se moveu. Neville se levantou suspirando e saiu do quarto, fechando a porta. Recolheu a tigela e o prato e os encheu com água e leite. Colocou-os no dormitório, perto das mantas.

Ao passar junto à cama, escutou os arquejos do animal. —Oh —murmurou, lamentando-se—, Por que não confia em mim? Estava jantando

quando ouviu aquele terrível lamento. Com o coração na boca, afastou-se da mesa de um salto e correu até o

dormitório. Abriu a porta e acendeu a luz. No cômodo, sob a mesa de trabalho, o cão arranhava o chão, tratando de abrir um

buraco. —Vamos, vamos! —disse Neville rapidamente.

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O cão se voltou bruscamente e recuou para a parede, mostrando os dentes amarelos, com um rugido na garganta.

De repente Neville compreendeu o que acontecia. Era de noite, e o animal, aterrorizado, tratava de cavar um esconderijo.

Neville lhe olhou sem saber o que fazer. Estava desanimado. O cão se escorreu debaixo da mesa.

A Neville lhe ocorreu ao fim uma idéia. Aproximou-se da cama e tirou a colcha. Voltou para a mesa e se agachou para olhá-lo.

O cão estava quase pego contra a parede. Tremia como uma folha, e uns grunhidos guturais lhe sacudiam a garganta.

—Bom, bom —disse Neville. Jogou a colcha debaixo da mesa e o cão tentou retroceder ainda mais. Neville se

levantou e aguardou uns momentos. Se pudesse fazer algo, disse. Mas nem sequer consigo me aproximar.

Bom, decidiu ao fim, que se não confiar em mim, recorrerei ao clorofórmio. Assim,

pelo menos, poderia lhe examinar a pata e tentaria curá-lo. Foi à cozinha, mas não pôde jantar. Ao fim atirou a comida no balde de lixo e tornou o

café à cafeteira. Já na sala se serviu um uísque e bebeu um bom gole. Não pensou em nada. Deixou o copo e entrou no quarto com o rosto sombrio.

O cão havia se escondido debaixo da colcha. Seguia tremendo e gemendo incessantemente. Impossível tentar algo, pensou Neville. Está muito assustado.

Aproximou-se da cama e se sentou. Passou a mão nos cabelos e cobriu o rosto. Cure-o, cure-o, dizia para si, e deu um débil soco contra a manta.

Voltou-se de repente, apagou a luz e se deitou de costas sem despir-se. Na mesma posição, tirou os sapatos deixando-os cair.

Silêncio. Cravou os olhos no teto escuro e começou a pensar: por que não me levanto? Por que não faço algo?

Virou-se. Trate de dormir, disse a si automaticamente. Sabia que não ia dormir. Escutou na escuridão os gemidos do cão. Está morrendo, vai morrer, não posso fazer nada.

Não pôde resistir mais e estirou um braço para acender o abajur da mesinha de cabeceira. Enquanto passeava pelo quarto ouviu que o cão tratava de livrar-se da colcha. Mas havia se enrolado e começou a uivar, possuído pelo terror.

Neville se ajoelhou e lhe colocou as mãos sobre o lombo para acalmá-lo. Lançou um latido entrecortado, e as mandíbulas estalaram sob a colcha.

—Bom —disse Neville—. Chega. O cão tratou de livrar-se, sem deixar de emitir aquele agudo gemido. Neville lhe

acariciou o corpo suavemente, lhe falando com voz calma e doce. —Bom, bom garoto. Ninguém vai fazer te machucar. Se tranqüilize. Vamos, se

tranqüilize. Isso. Descanse. Ninguém lhe fará mal. Cuidarei de você. Seguiu lhe falando assim, ininterruptamente, durante cerca de uma hora, com uma

voz baixa e monocórdia. E lentamente, aqueles tremores foram cedendo. Um sorriso animou o rosto da Neville.

—Muito bem, criatura. Se acalme. Cuidarei de você. O cão deixou de agitar-se. Neville lhe acariciou da cabeça até a cauda. —É um cão bom. Um cão bom —disse com doçura—. Vou cuidar de você. Ninguém poderá lhe fazer mal. Compreende? Claro que sim. Claro. Será meu cão, de acordo? Sentou-se com cuidado no chão sem parar de acariciar ao animal. —É um cachorro bom, um cão bom. A voz de Neville era tranqüila, relaxada. Passou cerca de uma hora mais e levantou o cão, que durante uns instantes resistiu e

começou a gemer. Mas Neville lhe falou de novo e o acalmou.

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Sentou-se na cama e colocou o cachorro, ainda envolto na colcha, sobre seus joelhos. Ficou assim durante horas, acariciando e falando. O cão ficou imóvel, respirando com mais facilidade.

Por volta das onze, Neville foi tirando lentamente a colcha e a cabeça do cão ficou descoberta.

Durante um momento o animal tratou de escapar das carícias. Mas Neville lhe conteve com uma mão no pescoço e com a outra o afagou e acariciou suavemente.

—Logo estará bem —murmurou—. Muito em breve. O cão o olhou com olhos tristes e doentes, e em seguida tirou a língua e lambeu a

palma de sua mão. Neville sentiu um nó na garganta. Olhou o cão silenciosamente. As lágrimas lhe correram pela face. Uma semana depois, o cão morreu. Capítulo 14 Não bebia exageradamente. Ao contrário. Em realidade bebia menos. Neville

estava convencido de que os últimos copos o tinham levado “para cima”, tinham-lhe afundado em uma desesperada frustração. Agora só podia subir.

Depois das últimas semanas, dava-se conta de que a esperança não era a resposta. Nunca havia se sentido assim. Naquele mundo de horror real não havia escapatória nos sonhos. Podia adaptar-se ao horror. Mas a monotonia era o pior obstáculo, compreendia agora. E essa descoberta o tranqüilizava; era como pôr todas as cartas sobre sua mesa mental e, as repassando, ordenar definitivamente o jogo.

A morte do cão não lhe havia alcançado o desespero que temia. De certo modo sentiu morrer as esperanças e as excitações vãs. Aceitando assim seu cárcere, sem tentar impossíveis fugas, nem golpear inutilmente os muros.

E assim, conformado, voltou para trabalho. Aconteceu quase um ano antes, ao cabo de uns dias de ter levado Virginia a sua

segunda e última morada. Débil, com o pensamento vazio, com a impressão de uma perda irreparável,

perambulava pelas ruas, pouco depois do meio-dia, com as mãos soltas dos lados, arrastando os pés. Seu rosto não expressava nada.

Tinha vagado pelas ruas durante várias horas, sem parar por onde passava. Sabia que não podia voltar para os cômodos vazios da casa, que não podia olhar as coisas que ambos haviam tocado, possuído e desfrutado juntos. Não podia olhar a cama vazia de Kathy, as roupas penduradas ainda nos cabides, as jóias e os perfumes da cômoda.

E caminhava assim, sem saber onde estava, quando viu aqueles grupos de gente e ao homem que o pegou pela manga lhe jogando na cara um fétido bafo de alho.

—Vem, irmão, vem —disse o homem com voz rouca. Neville observou ao homem: a garganta rosada, as bochechas com manchas vermelhas, os olhos febrís, o traje escuro, sujo e enrugado—. Venha e salve-se, irmão, salve-se.

Neville olhou-o fixamente. Não entendia nada. O homem puxava-lhe pela manga, com dedos esqueléticos.

—Nunca é muito tarde para arrepender-se —disse o homem—. A salvação chega a

todos os que... O resto da frase se afogou no murmúrio do lugar de onde se aproximavam. Era como o

som de um oceano que queria sair. Neville tratou de se desvencilhar do homem. —Não quero... O homem não escutava, arrastando-lhe. —Mas eu não...

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A igreja já o havia engolido, afundando-o em muitos gritos, esperneios e aplausos. Neville retrocedeu por instinto e sentiu que o coração lhe pulsava rapidamente. Estava rodeado por centenas de pessoas, que se fechavam como ondas sobre ele, e uivavam, e gritavam palavras ininteligíveis.

Por fim cessaram-se os gritos e ouviu-se uma voz que saía da penumbra, como um chicote do destino, chiando nos alto-falantes.

—Querem retroceder diante da sagrada cruz de Deus? Querem olhar no espelho e não ver a imagem deste rosto que Deus lhes deu? Querem sair das tumbas se arrastando como monstros saídos do inferno?

Falava em um tom de voz imperativo, vibrante, premente. —Querem se transformar em bestas negras e ímpias? Querem danificar o céu da noite

com demoníacas asas de morcego? Querem, digo, ser uma dessas criaturas eternamente condenadas, monstros noturnos abandonados pela mão de Deus?

—Não! —explodiu a multidão, sacudida pelo medo—. Não!, nos salve! Neville deu um passo atrás, chocando-se com adeptos que elevavam as mãos e

clamavam piedade aos céus. —Pois bem, escutem! Ouçam a palavra de Deus! O mal açoitará todas as nações, o

castigo do Senhor alcançará todo mundo! Na verdade lhes digo que se deixar de serem meninos, inocentes e puros aos olhos de Deus, se não cantarmos a glória do Senhor Todo-poderoso e de seu único filho, Jesus Cristo Nosso Senhor, se não nos fincarmos de joelhos e pedimos perdão por nossas ofensas, estaremos condenados! Ouçam, ouçam! Estamos condenados, condenados, condenados!

—Amém! —Nos salve! Gente se retorcia e gemia, golpeando o peito, e gritavam aterrorizados, proferindo

espantadas aleluias. Neville era transportado de um lado a outro, sacudido por uma tormenta de súplicas e

abandonado ao fogo cruzado de fanáticas devoções. —Deus castigou nossos múltiplos pecados! Deus deixou cair sobre nós o peso de sua

ira! Deus nos enviou o dilúvio em forma de corrente de criaturas infernais! Tem aberto as tumbas, tem descoberto as criptas; levantou os mortos de seus negros sepulcros, e os lançou contra nós! A morte e o inferno nos enviam seus cadáveres. Esta é a palavra de Deus! Oh, Deus, castigou-nos. Oh Deus, desmascarastes nossas faltas, flagelaste-nos com sua ira todo-poderosa!

Os aplausos soaram como uma descarga de fuzilaria, os corpos foram de um lado a outro como que empurrados pelo vento. Eram os gemidos dos que logo morreriam, dos que lutavam ainda pela vida. Neville abriu passagem entre os assistentes, as mãos estendidas para frente como mãos de cego que medem o caminho.

Conseguiu sair, fraco e tremente. Dentro da igreja, gente continuava gritando. A noite já tinha caído.

Sentado na sala, tomando um uísque suave, com um livro de psicologia sobre os joelhos, Neville recordou-se daquela tarde.

«A condição conhecida como cegueira histérica —leu— pode ser parcial ou total, e incluir uma ou várias pessoas».

Isto era um novo descobrimento. Até o momento, havia tentado atribuir aos

germes todas as características do vampiro. Se algumas dessas características não coincidiam com os germes, Neville as atribuía à superstição. Alguma vez tinha procurado explicações psicológicas, mas sem lhes dar muita importância.

Não havia motivos, pensava agora, para negar que em alguns fenômenos se dessem causas físicas e causas psicológicas. Parecia uma dessas evidências que nem um cego deixaria de lado. Bom, sempre resisti a evidências, refletiu.

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Se prestasse atenção à reação que tinham experimentado algumas vítimas, tudo era fácil de entender. Nos últimos dias da praga alguns jornais tinham reportado a epidemia dos vampiros a todos os lugares do país. Neville mesmo recordava a interminável sucessão de artigos pseudocientíficos: Tudo era parte de uma desesperada campanha para vender mais jornais.

Tinha sido algo realmente grotesco. Um frenético desejo de vender enquanto o mundo agonizava.

A imprensa escrita tinha mostrado sua verdadeira face naqueles dias. E a isto se somava uma busca desesperada para as respostas que muita gente tratava de achar nos cultos primitivos. Com pouco êxito. Não só morriam tão rapidamente como os outros, mas sim, faziam-no aterrorizados.

Logo, aquele espantoso horror que presumia-se a uma ressurreição. Recuperar a consciência clandestinamente, em uma terra úmida e pesada, e perceber que a morte não significava o descanso. Desenterrar-se com mãos, como garras, através da terra, impulsionados por uma estranha e irresistível força.

Feitos como estes podiam destruir o que ficasse da mente. E assim muitas coisas começavam a ter explicação. Por exemplo, a cruz.

O temor de serem repelidos por um símbolo adorado ressuscitava, estendendo-se assim o medo ao dito símbolo. Os vampiros arrastados por antigos temores se repugnavam a si mesmos, cobrindo com um denso véu suas mentes. Convertiam-se, pois, em escravos solitários da noite, almas perdidas e curvadas, que procuravam descanso na terra nativa para sentir-se unidos a algo, a algo...

A água? Só era a aceitação de uma lenda. Segundo a história de Tam O'Shanter, as bruxas fugiam da água. E, por conseguinte... todas aquelas criaturas que se relacionavam de algum modo, ficavam confundidas em lendas e superstições.

E como explicar os vampiros vivos? Isso também era simples. Em vida tinham sido os desenquadrados, os loucos. Como o vampirismo não ia

atraí-los? Neville se atrevia a dizer que, todos quão vivos vinham a sua casa, de noite, estavam loucos. Acreditavam-se verdadeiros vampiros, mas só eram dementes. E por isso não tinham-lhe queimado a casa. Não podiam pensar.

Recordou do homem que uma noite tinha subido em um poste, em frente à casa. E enquanto Neville espiava pelo buraco, ele havia se jogado no vazio, movendo os braços frenéticamente. Neville não lhe entendeu até então, mas agora a resposta era óbvia:

O homem se identificava como um morcego. Neville observou o copo quase vazio, e ficou com os lábios fixos em um sorriso. Assim, pensou, lentamente, pode ser que ao fim tenha descoberto algo. Tenho

descoberto que não são uma espécie invencível. Muito ao contrário. São uma espécie extremamente débil e vulnerável.

Deixou o copo sobre a mesa. Não preciso disto, pensou. Não necessito já excitar minha imaginação. Não preciso

beber para esquecer, ou me esconder em outro mundo. Não há nada que esquecer. Não agora.

Era a primeira vez, desde a morte do cão, que sorria quase satisfeito. Faltava muito a aprender, mas já não tanto. Curiosamente, a vida agora havia voltado suportável.

Vestirei os hábitos do eremita sem prantos, pensou. No toca-disco soava a música, serena e tranqüila. Lá fora, os vampiros esperavam.

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III - Junho de 1978 Capítulo 15 Havia saído para caçar Cortman. Este era agora seu principal entretenimento, uma das

poucas diversões. Nos dias em que podia deixar o bairro, e não havia reparações urgentes na casa, Neville procurava desesperadamente. debaixo dos carros, nos matagais, nas chaminés, nos armários, sob as camas, nas geladeiras. Em qualquer lugar onde um homem pudesse esconder-se.

Ben Cortman podia ser achado em qualquer um desses lugares, em um momento ou outro. Neville acreditava que Cortman trocava de esconderijo continuamente. Sentia, também, que amava o perigo. Se a frase não tivesse sido um contra-senso, poderia dizer que Cortman gozava da vida. Até havia chegado a pensar que agora era mais feliz que nunca.

Neville se dirigiu pausadamente para uma casa da Boulevard Compton. Era uma manhã como outra qualquer. Cortman não aparecia, embora não podia esconder-se muito longe. Pois sempre era o primeiro a chegar.

Enquanto avançava com passos rápidos, pensou outra vez o que faria se o encontrasse. Seu plano era o de sempre: eliminação imediata. Mas não seria fácil. Oh, não sentia mais o mínimo afeto por Cortman. Nem sequer representava, para ele, uma parte do passado. Porque o passado estava morto, e ele, Neville, tinha assumido essa morte.

Não, não se tratava disso. Possivelmente, pensou, não desejava terminar aquela atividade recreativa. Outros eram criaturas inanimadas. Ben, pelo menos, tinha mais imaginação. Podia ser, arriscava Neville, que Cortman tivesse nascido para ser vampiro e seguir vivo depois de morto. Com estes pensamentos ficou sorrindo.

Em um alpendre próximo se sentou emitindo um grunhido. Logo tirou lentamente o cachimbo, e preguiçosamente o encheu de tabaco. Pouco depois uns fios de fumaça flutuavam no ar quente e tranqüilo.

Nesta época Neville havia se convertido em um homem mais corpulento e mais sereno. A vida tranqüila de ermitão o havia feito ganhar alguns quilos, e agora pesava mais de noventa. Seu rosto havia arredondado; o corpo —sob as roupas largas— era forte e musculoso. Já fazia um tempo que havia deixado de barbear-se. Só de vez em quando aparava a barba espessa e loira. Estava com o cabelo comprido e solto. Contrastando com a escura cor morena do rosto, seus olhos azuis pareciam mais serenos e claros.

Apoiou as costas no degrau de tijolos, jogando umas lentas baforadas de fumaça. Naquele campo de em frente, no outro lado, ainda se conservava uma depressão onde

havia enterrado Virginia, e aonde ela havia se desenterrado. Mas esta lembrança não entristecia Neville. Havia se amenizado. O tempo tinha perdido sua projeção de passado e futuro. Havia só o presente. Uma luta cotidiana sem topos de alegria nem profundidades de desespero. Sou fundamentalmente vegetativo, pensava freqüentemente de si mesmo. E por isso lutava.

Permaneceu ali um momento, olhando uma mancha branca no meio do campo. de repente, percebeu que se movia.

Piscou. Os músculos ficaram rígidos. Um som de dúvida lhe saiu da garganta. Logo, erguendo-se, elevou a mão esquerda para evitar o ofuscamento do sol.

Mordeu convulsivamente o extremo do cachimbo. Uma mulher. Abriu a boca e o cachimbo caiu ao chão, mas não se incomodou em recolhê-lo. Durante

um extenso momento ficou ali, de pé no alpendre, olhando. Fechou os olhos, voltou-os a abrir. Todavia continuava ali. Sentiu que o coração lhe

golpeava o peito. A mulher não o tinha visto. Cruzava o campo com a cabeça baixa. Neville conseguia

distinguir os cabelos avermelhados, que se moviam com a brisa, os braços que caíam frouxamente aos lados. Piscou outra vez, imóvel. Era uma visão tão incrível, depois de três anos. Não podia acreditar.

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Uma mulher. Viva. Sob a luz do sol. Olhou-a, boquiaberto. Estava mais perto e via-se que era jovem. Não teria muito

mais de vinte anos. Levava um vestido branco, enrugado e sujo. A pele era morena, o cabelo avermelhado.

—Estou ficando louco... As palavras surgiram espontaneamente. Levava tempo para se recompor de uma alucinação semelhante. O homem que morre

de sede vê um lago em uma miragem.

Por que um homem que deseja desesperadamente uma companhia não tem que ver uma mulher que caminha sob o sol?

Neville moveu a cabeça de um lado a outro. Não, não era isso. Podia ouvir até suas pegadas.

A mulher não era uma miragem. O movimento de seu cabelo, o dos braços. Seguia olhando o chão. Quem era? Aonde ia? Onde tinha estado?

Deixou de fazer perguntas. Algum instinto saltou por um instante as barreiras defensivas levantadas pelo tempo.

Levantou o braço esquerdo. —Ei! —gritou, dando um salto para a calçada—. Ei! Ei! Um instante de silêncio, repentino e absoluto. A mulher levantou a cabeça e ambos se

olharam. Neville queria gritar outra vez, mas não lhe saía a voz, ficou com a mente em branco.

Uma mulher viva. A palavra se repetia a si mesmo como um eco. Viva, viva, viva... Girando rapidamente, a mulher pôs-se a correr através do campo. Durante um instante, Neville não soube o que fazer. Ao fim sentiu que o coração lhe

sufocava e se lançou à rua. Suas pesadas botas golpearam o pavimento. —Espere! —gritou. A mulher seguiu correndo. Neville viu como saltava afastando-se pelo terreno irregular. E de repente se deu conta, compreendeu que não poderia detê-la com palavras. Pensou

em sua própria estupefação ao vê-la. Como ela devia ter se surpreendido ao ouvir aquela chamada no silêncio e ver aquele homem barbudo gesticulando!

Neville saltou à outra calçada e correu. Estava viva! Não podia acreditar. Viva. Uma mulher viva!

A mulher não podia correr tão depressa como ele. Neville logo chegou perto. Ela o olhou aterrorizada.

—Não lhe farei mal! —gritou Neville, correndo. De repente a mulher tropeçou e caiu de joelhos. Virou o rosto e Neville viu uma vez mais aquela expressão de terror.

—Não lhe farei mal! —gritou de novo. A mulher se levantou de um salto e correu. Não se ouvia mais som que o dos sapatos dela e as botas de Neville. Ele

começou a saltar sobre o mato, ganhando terreno. O vestido da mulher se enredava entre as plantas.

—Pare! —gritou Neville, embora temia que ela não o escutaria. Não o escutou. Correu mais depressa ainda, apertando os lábios. Neville fez um esforço

e correu ainda mais, em linha reta. A mulher corria em zigue-zague, com o cabelo ao vento.

Neville já estava tão próximo que podia ouvir a respiração agitada da mulher. Não queria assustá-la, mas tampouco podia perdê-la. Não havia nada no mundo, exceto ela. Tinha que alcançá-la.

Outra vez o campo aberto. Os dois ofegavam. A mulher se voltou e Neville viu o terror desenhado em seu rosto: um homem alto e barbudo, de olhos decididos, perseguindo-a.

Mas ao fim alcançou-lhe. Estirou a mão e agarrou-a pelo ombro. Sufocando um grito, a mulher se retorceu e se cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu de

lado. Neville deu um salto e tentou ajudá-la. Ela retrocedeu, arrastando-se, e tratou de ficar de pé, mas esta vez caiu de costas.

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—Tome —ofegou Neville, lhe estendendo uma mão. A mulher afastou a mão de Neville bruscamente e lutou para levantar-se. Neville a pegou pelo braço, mas a outra mão caiu sobre ele e suas afiadas unhas lhe cruzaram toda a testa e a têmpora direita. Neville gemeu e soltou o braço e ela se voltou rapidamente e pôs-se a correr de novo.

Neville saltou e a agarrou pelos ombros. —Não tema nada, por favor... Não pôde terminar a frase. A mão da mulher lhe tapou a boca, e se ouviu somente um

arquejo e uma luta e os pés que escorregavam no chão, sobre as ervas. —Basta! —gritou Neville enfurecido, mas ela não se importou. Saltou para trás, e a mão fechada de Neville rasgou-lhe o vestido, deixando descoberto

um ombro. A mulher quis arranhá-lo de novo, mas Neville a conteve pelos pulsos, enquanto recebia um pontapé no tornozelo.

—Maldita seja! Furioso, esbofeteou-a. A mulher baixou a cabeça e o olhou aturdida. De repente

desatou-se a chorar. Ficou-se de joelhos e cobriu a cabeça com os braços, como que protegendo-se de outros golpes.

Neville olhou ofegando a postura retorcida. Piscou e suspirou. —Levante-se —disse—. Não lhe farei mal! A mulher não levantou nem a cabeça. Neville a olhou confundido. Não sabia como lhe

falar. —Disse que não lhe farei mal —repetiu. Ela o olhou então, mas se moveu para trás, como se o rosto de Neville a assustasse.

Ficou assim, olhando-o atemorizada. —Por que tem medo? Neville não reparou que a sua voz era dura e estéril; a voz de um homem que perdeu

todo o contato humano. Não emanava amabilidade de nenhuma espécie. Deu um passo adiante e a mulher tornou a retroceder, gemendo. Neville lhe voltou a

oferecer a mão. —Tome, levante se. A moça se levantou lentamente, mas sem sua ajuda. De repente percebeu a

nudez de seu peito e se cobriu com o tecido rasgado. Passaram um momento se olhando, recuperando o fôlego com dificuldade. E agora que

havia superado o primeiro contato, Neville não sabia o que dizer. Havia sonhado esta cena durante anos. Mas seus sonhos não se pareciam com isto.

—Como... como se chama? —perguntou. A moça não podia falar. Olhava fixamente Neville, tremendo os lábios. —E então? —exclamou Neville, e ela se estremeceu. —R-Ruth —titubeou. Neville sentiu uma descarga que lhe corria por todo o corpo. A voz da mulher o havia

afrouxado. Qualquer pergunta agora era inútil. Sentia vontade de chorar. Estendeu uma mão, quase sem dar-se conta. O ombro tremeu sob sua palma. —Ruth —disse Neville com uma voz inexpressiva. Sentiu um nó na garganta. —Ruth —repetiu. Os dois ficaram se olhando no meio do campo, aberto e quente. Capítulo 16

A moça dormia. Eram quatro da tarde. Neville tinha entrado pelo menos vinte vezes no

dormitório para verificar se ela tinha despertado. Agora, na cozinha, tomava café e pensava.

E se estiver doente?, Perguntava a si mesmo.

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Começou a preocupar-se a umas poucas horas atrás e agora não podia deixar de pensar nisso. Não importavam as razões. Tinha a pele queimada pelo sol. Tinha-a visto à luz do dia. Também o cão tinha andado à luz do dia.

Os dedos de Neville não cessavam de tamborilar sobre a mesa. A simplicidade do princípio havia desaparecido. O sonho havia se convertido em uma

complexa história. Não tinha ocorrido abraços efusivos, nem doces palavras. Alcançar-lhe no campo havia sido um triunfo. Conseguir que entrasse na casa, um pouco mais difícil ainda.

Ela havia resistido lhe suplicando que não a matasse. Não escutava o que

Neville lhe dizia; só chorava e implorava. Neville tinha imaginado uma cena própria de Hollywood: Os dois entrariam abraçados, olhando-se aos olhos, e as imagens se perderiam nas sombras. Em vez disso, teve que brigar, discutir, e lutar.

Uma vez dentro, a mulher havia adotado a mesma atitude que o cão; encolhida em um canto. Não queria comer, nem beber nada. Finalmente, Neville decidiu arrastá-la ao dormitório e trancá-la sob chave.

Suspirou desanimado, brincando com a asa da xícara. Em todo esse tempo, pensou, sonhei em ter uma companheira. E agora, a primeira

coisa que faço é desconfiar e a tratá-la com impaciência e crueldade. E entretanto, não estava preparado para ter outro comportamento. Tinha vivido

muito só durante este último tempo. Não importava que ela tivesse uma aparência normal. Tinha visto muitos em estado de coma, e aparentemente pareciam tão sãos como ela. Aquela caminhada sob o sol não era suficiente. Havia duvidado muito. Não podia acreditar que houvesse mais pessoas normais. E depois da primeira impressão, o dogma aceito durante anos havia voltado a impor-se.

Neville se levantou com evidente cansaço e voltou para dormitório. A mulher seguia como antes. Possivelmente entrou em coma, pensou.

Deteve-se junto à cama, observando-a. Ruth. Havia tantas coisas que ele desejaria saber... E, entretanto quase temia saber. Pois se ela era como os outros, só havia uma solução. E de gente que alguém deve eliminar é melhor ignorar sua existência.

Neville retorceu as mãos, observando inexpressivamente à mulher. E se havia saído do coma por um tempo e tinha-se posto a caminhar? Parecia possível. E entretanto, havia estudado que os germes resistiam á qualquer coisa exceto à luz do sol. Por que isso não era suficiente para convencê-lo?

Bom, podia fazer algo para resolver a dúvida. Inclinou-se para ela e lhe colocou uma mão no ombro. —Acorde —disse sacudindo-a. A mulher continuou imóvel. A Neville ficaram rígidas as mandíbulas e os dedos se

fecharam sobre o ombro. E de repente percebeu a correntinha de ouro que a moça usava no pescoço. Neville a

pegou com pulso inseguro e a tirou de debaixo do vestido. Olhava ainda a cruz quando a mulher abriu os olhos, movendo lentamente a cabeça

sobre o travesseiro. Não está em coma, pensou Neville. —O que está fazendo? —perguntou a mulher com um fio de voz. Era mais difícil

desconfiar dela quando falava. O timbre de uma voz humana era algo tão especial que Neville não podia resistir.

—Estava... Nada —disse. Neville retrocedeu torpemente e se apoiou na parede. Olhou para a mulher durante um

momento. Em seguida lhe perguntou: —De onde você é? A jovem cravou nele um olhar inexpressivo. —Perguntei-lhe de onde você é —repetiu Neville. Tampouco agora houve resposta. Neville se retirou da parede com um olhar duro. —Inglewood —se apressou a dizer a mulher. —Certo —disse Neville—. Vivia... sozinha?

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—Com meu marido. —E onde ele está agora? —Está... morto —sussurrou ela entrecortadamente. —Quando? —Faz uma semana. —E o que você fez então? —Fugi. —A mulher se mordeu o lábio inferior—. Fugi. —Quer dizer que tem ido de um lado a outro desde então? —S-sim. Neville a olhou sem fazer mais perguntas. Em seguida se virou e foi para a cozinha.

Abriu a porta de um armário e pegou um punhado de dentes de alho. Colocou-os em um prato, cortou-os e os amassou. Um aroma acre brotou do interior.

Quando Neville voltou, a mulher estava meio levantada, apoiando-se em um cotovelo. Sem vacilar, Neville lhe aproximou o prato do nariz.

A mulher virou a cabeça protestando. —O que está fazendo? —perguntou, e tossiu uma vez. —Por que vira a cabeça? —Por favor... —Me diga por que vira a cabeça. —O aroma! —A voz da jovem se quebrou em um soluço—. É insuportável! Neville lhe colocou o prato ainda mais perto. Com uma visível náusea, a mulher

se afastou, apertando-se contra a parede e tirando as pernas da cama. —Chega! Por favor! Neville afastou o prato e observou que a mulher estava enjoada, levando as

mãos ao estômago. —Você é um deles —disse com um frio desprezo. A mulher se sentou de repente, levantou-se e correu ao banheiro. Deu uma portada e

Neville ouviu como vomitava. Apertando os lábios com raiva, colocou o prato no criado-mudo. Infectada. Com certeza.

Havia estudado há um ano, que os organismos infectados com o bacilo vampirus eram alérgicos ao aroma do alho. Os tecidos estimulados pelo tubérculo sensibilizavam as células, provocando reações anormais. Se lhes injetava sulfureto de alho nas veias, a reação era quase nula. Não ocorria o mesmo quando lhes submetia a aspirar o aroma.

Neville se sentou pesadamente na cama. A mulher tinha reagido negativamente. Depois de um momento, franziu o cenho. Se o que ela havia contado era certo, se havia perambulado durante uma semana, naturalmente estaria fraca e esgotada, e nessas condições qualquer pessoa podia vomitar tão somente com o aroma do alho.

Deixou cair o punho sobre a colcha. Então, não tinha nenhuma certeza, nada definitivo. E, objetivamente, sabia que não podia tomar decisão alguma. As provas

eram insuficientes. Havia aprendido forçosamente no trabalho, e não o podia ignorar. Continuou sentado na cama quando a mulher saiu do banho e ficou no corredor,

olhando-a. Logo voltou para a sala. Neville se levantou e a seguiu. Quando chegou à sala já a encontrou sentada no sofá.

—Está satisfeito? —perguntou-lhe a mulher. —Não importa —disse Neville—. É você quem está em observação, não eu. A mulher levantou o olhar irado como se fosse dizer algo. Em seguida, relaxou e sacudiu

a cabeça de um lado a outro. Neville sentiu um repentino impulso de simpatia. Neville se sentou em uma cadeira, contemplando-a. A mulher olhava o chão. —Escute —disse Neville—. Há indícios de que está infectada. Obviamente por sua

reação diante do alho. A mulher continuou em silêncio. —Não tem nada a argumentar? —insistiu Neville. A mulher ergueu os olhos. —Você acredita que sou um deles —disse.

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—Pode ser. —E o que acha disto? —perguntou a mulher mostrando a cruz. —Não significa nada —disse Neville. —Estou acordada. Não estou em coma. Neville não replicou. Era algo que não podia saber com certeza e não aliviava suas

dúvidas. —Estive em Inglewood muitas vezes —disse ao fim—. Como não ouviu o ruído

do motor? —Inglewood é muito grande —disse ela. Neville a olhou com atenção, golpeando com a mão a borda da cadeira. —Eu... eu adoraria acreditar —disse. —Sim? —perguntou a mulher. Em seguida se dobrou para frente, com os lábios apertados, o ventre contraído.

Neville não se alterou. Durante muito tempo só tinha contado com a companhia dos mortos. Sentia-se vazio e com as emoções bloqueadas.

Quando se recuperou, a mulher levantou os olhos. Olhou duramente a Neville. —Tive um estômago delicado durante toda a vida —disse—. A semana passada vi

morrer meu marido, feito em pedaços. Diante de meus próprios olhos. Perdi dois meninos por causa da praga. E nestes últimos dias vaguei que um lado a outro, me escondendo durante a noite e sem comer. Desequilibrada pelo medo, dormindo á intervalos. De repente ouço que alguém grita. Você me persegue, me golpeia e me arrasta. E logo, porque não tolero o aroma de um prato de alhos sob meu nariz, diz que estou infectada! —A mulher retorceu a mãos—. O que você esperava? —perguntou, e se apoiou contra o encosto do sofá, fechando os olhos, mexendo nervosamente no vestido. Por um momento tentou pôr em seu lugar o pedaço rasgado, mas o tecido tornou a cair, e a jovem deixou escapar um soluço de impotência.

Neville se inclinou para frente. Começava a sentir peso na consciência agora, apesar de suas suspeitas e dúvidas. Não podia evitá-lo. Tinha esquecido como soluçavam as mulheres. Levantou lentamente uma mão e a olhou, acariciando-a barba.

—Permitiria... —começou e se deteve. Tragou um pouco de saliva e continuou—:

Permitiria que lhe tirasse uma amostra de sangue? Eu... A mulher se levantou ofendida e cambaleando-se dirigiu para a porta. Neville se

levantou também. —O que está fazendo? —perguntou. A mulher não respondeu. Suas mãos procuravam torpemente como abrir a fechadura. —Não pode sair —disse Neville, alarmado—. Dentro de poucos minutos a rua estará

cheia deles. —Não vou continuar aqui —soluçou ela—. O que lhe importa se me matarem? A mão de Neville se fechou sobre o braço da jovem, que o rechaçou zangada. —Me deixe sozinha! —exclamou—. Não lhe pedi que me trouxesse aqui. Por que não

me deixa partir? Neville ficou a seu lado, sem saber o que dizer. —Não pode sair! —repetiu. Convenceu-a para que voltasse para sofá. Logo lhe serviu um pouco de uísque. Não

importa se está infectada ou não, pensou, não importa. Alcançou-lhe o copo. A mulher moveu a cabeça negativamente.

—Beba-o —disse Neville—. A tranqüilizará um pouco. A jovem o olhou com raiva. —Assim poderá me passar mais alho pela cara? Neville negou com um gesto. —Beba —disse. Passou um momento e no fim a mulher cedeu. O uísque a fez tossir. Deixou o copo no

braço do sofá, estremecendo-se. —Por que quer que eu fique? —perguntou chorosa. Neville a olhou sem saber o que

responder. Ao fim disse:

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—Embora esteja infectada não posso deixá-la sair. Não imagina o que lhe fariam. A mulher fechou os olhos.

—Não me importa —disse.

Capítulo 17

—Não posso entender —disse Neville depois do jantar—. Haviam passado quase

três anos, e alguns ainda estão vivos. As reservas de mantimentos acabaram. Pelo que pude observar, passam as horas de sol em estado de coma. —Neville sacudiu a cabeça—. Mas não estão mortos. Três anos, e não estão mortos. O que é que os mantém vivos?

Ruth tinha colocado o roupão de Neville. Por volta das cinco tinha começado a tranqüilizar-se, tinha tomado banho e trocado de roupa. Seu corpo fraco se perdia entre as largas dobras do roupão. Havia jogado o cabelo para trás, atando-lhe na nuca com um laço.

Ruth deu um soquinho no pires de café. —Nós os víamos freqüentemente —disse—. Temíamos de nos aproximar. Mas

acreditávamos que não eram perigosos. —Você sabia que eles retornam depois de mortos? Ruth moveu negativamente a

cabeça. —Não. —E não se perguntavam quem eram os que atacavam de noite? —Nunca pensamos que... —Ruth sacudiu a cabeça lentamente—. É difícil acreditar em

algo assim. —Acredito que sim —disse Neville. Ruth comia em silêncio, e Neville a contemplava. Parecia incrível que fosse uma mulher

normal. Parecia mentira que depois de tantos anos tivesse por fim uma companheira. Não só duvidava dela. Duvidava de que algo tão extraordinário pudesse ocorrer naquele lugar perdido.

—Me conte mais coisas sobre eles —disse Ruth. Neville se levantou e tirou a cafeteira do fogo. Serviu a Ruth outra xícara, serviu-se também, devolveu a cafeteira ao seu lugar e sentou-se.

—Como você está agora? —Melhor. Obrigada. Neville fez um gesto afirmativo e se serviu de uma colherinha de açúcar em seu café.

Sentiu que ela o observava. O que estará pensando? Suspirou perguntando-se como poderia dissipar suas dúvidas. Durante um momento tinha decidido que confiava nela. Agora já não estava tão seguro.

—Ainda não confia em mim —disse Ruth como se lesse seus pensamentos. —Não... não é isso —disse. —É sim —disse Ruth pausadamente. Suspirou—. Oh, bem. Se você quer analisar

meu sangue, analise-o. Neville a olhou perturbado, perguntando se, se trataria de um truque. Bebeu um gole de

café, tentando reprimir o movimento convulsivo de sua garganta. É absurdo, pensou, ser tão desconfiado.

Deixou a xícara na mesa. —Bem —disse—. Muito bem. Olhou a jovem, que tinha os olhos fixos no café. —Se estiver você infectada —lhe disse— tratarei de curá-la por todos os meios. Ela o

olhou nos olhos. —E se não puder? fez-se um silêncio —Bebamos primeiro —disse ao fim Neville.

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Os dois beberam. Em seguida Neville perguntou: —Vamos tentar agora? —Por favor —disse a jovem—. Amanhã pela manhã. Sinto-me ainda... Amanhã pela

manhã. Terminaram o café em silêncio. Não sentia uma grande satisfação sabendo que

ia lhe analisar o sangue. Temia descobrir que estivesse infectada. Enquanto isso passariam uma noite juntos. Ficariam mais perto, e possivelmente se sentissem atraídos um pelo outro. Quando no dia seguinte, tivesse que...

Mais tarde, na sala, tomaram um pouco de Porto olhando o mural e escutando a quarta sinfonia de Schubert.

—Nunca acreditaria —disse Ruth, mais animada—. Nunca teria acreditado que voltaria a escutar música. Que beberia vinho. —Olhou a seu redor—. Tem feito um excelente trabalho.

—Como era sua casa? —perguntou Neville. —Não se parecia em nada a isto —disse Ruth—. Não tínhamos um... —Como protegiam a casa? —interrompeu Neville. —Oh —A jovem pensou um momento—. Tínhamos trancado as janelas, é obvio.

E usávamos cruzes. —Nem sempre dá resultado —disse Neville serenamente, depois de olhá-la

um momento. Ruth ficou surpreendida. —Não? —Por que um judeu tem que temer a cruz? —disse Neville—. Por que um vampiro que

foi judeu tem que temê-la? Quase todos que temem converter-se em vampiros. A maioria tem cegueira histérica diante dos espelhos. Mas a cruz... Bom, não acredito que nem um judeu, nem um hindu, nem um maometano, nem um ateu temessem a cruz.

Ruth ergueu o copo de vinho e continuou escutando Neville em silêncio. —Por isso as cruzes nem sempre dão resultado —continuou Neville. —Não me deixou terminar a frase —disse Ruth—. Utilizávamos alhos também. —Acreditei que isso lhe provocava náuseas. —E me provoca. Perdi mais de dez quilos neste último tempo. Estava doente. Neville moveu a cabeça convencido. Mas enquanto ia à cozinha em busca de

outra garrafa de vinho pensou que ela já devia estar habituada ao alho depois de tanto tempo. Também podia não ter conseguido acostumar-se. Por que desconfiar agora? Na manhã seguinte examinaria o sangue. Estive sozinho muito tempo, pensou. Tornei-me tão incrédulo que duvido de tudo, a não ser que o veja no microscópio. Sou um bom filho de meu pai, maldita seja sua imagem.

De pé na escuridão da cozinha, desarrolhando a garrafa, Neville olhou para a sala. Ruth tinha o corpo de uma adolescente. Não parecia que tivesse tido dois filhos.

E o mais insólito em todo este assunto, pensou, é que não me provoca nenhuma excitação.

Se nos tivéssemos encontrado dois anos antes, possivelmente tudo tivesse sido diferente. Tinha passado momentos terríveis naqueles dias, momentos que obrigavam a aceitar qualquer solução, por mais espantosa que fosse.

Felizmente, tinha começado com os experimentos, e algo havia se acalmado em seu interior. A salvação do monge, refletiu Neville.

Agora não sentia quase nada. Só um leve movimento, sob os abruptos estratos da abstinência. Estava contente de que sucedesse assim. E, além disso, não podia estar seguro de que Ruth fosse a companheira esperada. Nem sabia tampouco se na manhã seguinte poderia continuar vivendo.

Curá-la? Era algo quase impossível.

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Voltou para a sala com a garrafa aberta. Ruth sorriu delicadamente enquanto Neville lhe servia vinho.

—Estive contemplando o mural —disse a jovem—. Primeiro, acreditaria-se, que em vez de uma parede, há um bosque.

Neville emitiu um grunhido. —Deve lhe haver custado muito acondicionar assim a casa. —Você pode imaginar —disse Neville—. Você passou pelo mesmo. —Não tínhamos nada semelhante —disse ela—. Era uma casa pequena. Em

nossa geladeira não cabia quase nada. —Deve-lhes ter faltado comida —disse Neville olhando-a atentamente. —Comíamos conservas —disse a jovem. Neville moveu a cabeça. Era uma resposta lógica, devia reconhecê-lo. Mas não

gostava. Era só uma suspeita, sabia, mas não gostava. —E a água? —perguntou. Ruth o olhou em silencio durante um momento. —Não acredita uma só palavra do que conto, não é mesmo? —Não é isso —disse Neville—. Interessa-me conhecer sua forma de vida. —É inútil, não pode dissimular. Esteve sozinho muito tempo. Perdeu a capacidade

de mentir. Neville grunhiu. Tinha a impressão de que a jovem zombava dele. É ridículo,

argumentou. É só uma moça. Certamente tem razão e a casa era um esconderijo escuro e desgraçado.

—Me fale de seu marido —disse de repente. A sombra de uma lembrança cruzou a cara da jovem. Aproximou-se o copo aos lábios. —Não agora —disse—. Por favor. Neville se recostou na poltrona, sem saber por que se sentia irritado. As palavras da

mulher podiam ser verdade. Também podiam ser mentira. Mas o que ganharia mentindo? Perguntou-se. Amanhã lhe analisarei o sangue. Do que

lhe serviria mentir agora se em seguida conhecerei a verdade? —Sabe —disse Neville tratando de distender aquela rigidez—, Estive pensando que, se

três pessoas puderam sobreviver à praga, por que não mais? —Você acredita que pode ser? —perguntou a jovem. —Por que não? Haverá outros como nós. —Me conte coisas sobre o vírus —disse ela. Neville vacilou um momento, logo deixou o vinho sobre a mesa. E se lhe dissesse tudo?

E se ela fugisse e voltasse da morte conhecendo tudo o que ele sabia? —É muito complicado. —O que disse a respeito da cruz? —recordou a jovem—. Como tem certeza? —Lembra o que lhe contei de Ben Cortman? —perguntou Neville, contente de voltar

para algo que a mulher já sabia, e esquivando sua curiosidade. —Este homem que você... Neville fez um sinal afirmativo. —Sim. Venha —disse levantando-se— Lhe mostrarei. Quando estava junto a ela,

atrás do buraco, Neville sentiu que o aroma do cabelo e a pele da jovem não o agradavam. Por que? Perguntou-se em seguida. Sou como Gulliver depois de visitar os cavalos lógicos, o aroma humano me ofende.

—É o que está ao lado do poste —disse. A jovem assentiu. —Por que são tão poucos? —Matei a quase todos —disse Neville—. Só faltam esses. —Como é que está aceso o poste? —perguntou Ruth—. Acreditei que tinham

destruído os circuitos elétricos. —Sim, mas liguei o poste com meu gerador —disse Neville—. Assim posso vê-los bem. —Não quebram a lâmpada?

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—Protegi-a bem com arames. —Não se empoleiram e tentam quebrá-la? —Untei o poste com alho. Ruth sacudiu a cabeça. —Não lhe escapa um detalhe. Neville deu um passo atrás e a olhou um momento. Como pode olhá-los tão friamente,

pensou, perguntar com tanta curiosidade, fazendo só uma semana que viu como destroçavam a seu marido? Mais dúvidas. Alguma vez elas cessariam?

Sabia que não, até saber definitivamente a verdade. Ruth se afastou do buraco. —Me dá licença um momento? —disse. Neville a seguiu com o olhar enquanto ela ia para o banho, e ouviu como fechava a

porta com chave. Em seguida fechou o buraco e voltou para poltrona. Um sorriso fatigado lhe apareceu nos lábios. Olhou o fundo do copo e coçou distraidamente a barba.

«Me dá licença um momento?». As palavras da Ruth tinham soado grotescamente divertidas. Restos de uma

educação esquecida. Conselhos de Emily Post para quem vivia na tumba. Etiqueta para vampiros adolescentes.

Cortou-lhe o sorriso. E agora o que? O que proporcionaria o futuro? Estaria ela ainda ali uma semana

depois, ou no poço de fogo? Neville sabia que se ela estava infectada trataria de curá-la por todos os meios. Mas e

se não tinha o bacilo? De certa forma esta possibilidade era ainda mais enervante. No primeiro caso já sabia o que empreender, sem abandonar esquemas e normas. Mas se a jovem ficasse, teriam que estabelecer uma relação determinada, possivelmente ser marido e mulher, ter filhos...

Sim, isto era mais difícil. De repente compreendeu que nestes anos se havia transformado em um solteirão

obstinado e mal-humorado. Não pensava já em sua mulher, sua filha, nem seu passado. Bastava o presente. E temia as responsabilidades e os sacrifícios. Temia entregar-se de novo. Temia amar de novo.

Quando a jovem saiu do banho, Neville continuou na sala, pensando. O toca-disco deixava ouvir somente o ruído da agulha.

Ruth deu a volta ao disco. Começou o terceiro movimento da sinfonia. —Bom, e o que há com o Cortman? —perguntou sentando-se. Neville a olhou surpreso. —Cortman? —Ia me contar algo sobre ele e a cruz. —Ah. Sim, uma noite o fiz entrar e lhe mostrei a cruz. —O que aconteceu? Matarei-a agora? Matarei-a e queimarei sem esperar a análise? Neville sentiu que lhe faltava o ar. Pensamentos semelhantes davam testemunho

do mundo que havia agregado; um mundo terrível onde era mais fácil assassinar que esperar. Bom, não fui tão longe ainda, pensou. Sou um homem, não um animal destruidor.

—Tem algo errado? —disse a jovem nervosa. —Por que? —Crava-me o olhar. —Desculpe-me —disse Neville friamente—. Estou... pensando. A jovem não discutiu. Levantou o copo e Neville viu que tremia. Devia tomar cuidado.

Não queria que ela suspeitasse o que ele sentia. —Quando lhe mostrei a cruz —continuou, Cortman desatou em risadas. Ruth fez um

gesto de compreensão. —Mas quando lhe mostrei o Torá diante dos olhos, reagiu violentamente. —O que lhe colocou diante dos olhos? —O Torá. O livro da lei, acredito que esse é seu nome. —Mas como... que reação lhe produziu?

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—Tinha-o atado à cadeira, mas quando o viu se desatou de repente e me atacou. A jovem parecia ter recuperado a confiança.

—O que aconteceu? —Golpeou-me na cabeça com algum objeto contundente. Não recordo com que. Mas

utilizei o Torá para subjugá-lo e fazer retroceder até a porta. —Oh... —Entende? A cruz não tem o poder absoluto que lhe confere a lenda. Quando a lenda

apareceu na Europa, a cruz se converteu naturalmente em um símbolo defensivo por tratar-se de um continente católico. A cruz lutando contra o poder das trevas.

—Não podia ter disparado contra Cortman? —perguntou Ruth. —Como sabe que eu tinha uma arma? —Bom... imaginei. Nós tínhamos uma pistola. —Então, já sabe que as balas não surtem efeito sobre os vampiros. —Não... não tínhamos a certeza —disse a jovem, e acrescentou rapidamente—: Você

sabe por que? Por que as balas não os destroem? Neville negou com a cabeça. Ficaram em silêncio, escutando a música. Em realidade sabia, mas preferia não dizer-lhe. Experimentando com vampiros mortos

tinha averiguado que os bacilos provocavam a secreção de um líquido pegajoso que selava rapidamente as feridas de bala. O líquido envolvia as balas, as isolando, e os germes seguiam ativando o corpo. Disparar contra os vampiros era como lançar pedras à água. O líquido pegajoso impedia que as balas destruíssem qualquer órgão vital.

Olhou a jovem, que estava arrumando-se nesse momento as dobras da saia. Neville vislumbrou uma coxa morena, mas em vez de se excitar, irritou-se. Aquele era um típico truque feminino, pensou, um movimento forçado.

À medida que passava o tempo, sentia que ia afastando-se dela. Em certo sentido, até desejava não havê-la conhecido. Tinha alcançado certo equilíbrio com os anos, havia assumido a solidão, havia se acostumado a ela, e agora...

Para acalmar a ansiedade procurou seu cachimbo e o tabaco. Preparou o cachimbo e acendeu. Por um instante, pensou: Pergunto-lhe se incomoda a fumaça? Não, não pergunto.

O disco terminou. A jovem se levantou e Neville viu como olhava as capas. Parecia uma

adolescente, tão magra. Quem é?, pensou. Quem é realmente? —Posso pôr isto? —perguntou a jovem mostrando um álbum. Neville respondeu sem

olhar. —Ponha o que quiser. A jovem se sentou e começaram para ouvir os primeiros compassos do segundo

concerto de Rachmaninoff. Seus gostos não são notavelmente atrevidos, pensou Neville olhando-a expressivamente.

—Me conte algo sobre você —disse a mulher. Outra frase tipicamente feminina, pensou Neville. Em seguida acusou-se de suscetível.

Por que sua irritação aumentava? —Não tenho nada que dizer. A moça sorria de novo. Por acaso se enganava? —Esta tarde me assustou terrivelmente —disse ela—. Com esse aspecto desalinhado.

E esse olhar selvagem. Neville lançou uma baforada de fumaça. Olhar selvagem? Que ridículo comentário. O

que pretendia? Reduzir as distâncias com joguinhos? —Que segredos esconde debaixo dessas barbas? Neville tratou de sorrir, mas não

pôde. —Um rosto comum, simplesmente. —Que idade tem, Robert? Neville sentiu um nó na garganta. Era a primeira vez que lhe chamava por seu nome.

Ouvi-lo dos lábios de uma mulher, depois de três anos, era estranho e inquietante. Não me

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chame assim, esteve a ponto de dizer. Não queria confiança. Se a mulher estava infectada e não podia curá-la, desfaria-se dela como de um estranho.

A jovem voltou a cabeça. —Não tem por que responder se não quiser —disse serenamente—. Não lhe

incomodarei mais. Irei embora amanhã. Neville se colocou rígido. —Mas... —disse. —Não quero mudar sua vida —disse ela—. Não tem por que sentir-se obrigado...

porque somos... os únicos. Neville a olhou fixamente e sentiu um calafrio de culpa. Por que não confio nela?,

perguntou-se. Se está infectada, não sairá daqui com vida. O que posso temer? —Perdão —disse—. Tenho... passado muito tempo sozinho. A mulher não levantou a

vista. —Se quer saber algo sobre mim —continuou Neville— Tratarei de agradá-la. A mulher

duvidou. Em seguida olhou Neville com olhos profundos. —Eu gostaria de saber algo sobre a enfermidade —disse ao fim—. Perdi as minhas

duas filhas. E também a meu marido. Neville a observou e logo disse: —É um germe. Uma bactéria cilíndrica. Introduz no sangue uma solução isotônica. A

circulação do sangue fica lenta. O bacilo vive no sangue. Sem ele os bacteriófagos o matam, ou passa ao estado de esporo.

A moça o olhou assombrada. Neville advertiu que não tinha informação de nada. —Bom —continuou—, não importa. O esporo é um corpo de forma oval, com os

elementos básicos do bacilo comum. Se o vampiro se decompuser, os esporos, transportados pelo vento, germinam em outros corpos e os infectam.

A mulher moveu a cabeça, incrédula. —Os bacteriófagos são proteínas inanimadas. Neste caso o metabolismo anormal

destrói as células. Em seguida Neville explicou, simplificando, os danos que o germe causava no sistema

linfático. Citou o alho como elemento alérgico e outros sintomas da enfermidade. —Por que acredita que somos imunes? —perguntou a jovem. Durante um momento Neville a olhou sem responder. Ao fim se encolheu de ombros, e

disse: —Não sei nada sobre você. Quanto a mim, quando estava no Panamá, durante

a guerra, mordeu-me um morcego. E embora não possa demonstrar-lhe, acredito que havia mordido antes a algum vampiro, contraindo assim a doença. O germe lhe obrigou a consumir sangue humano. Mas, felizmente, era um germe débil, e embora estivesse terrivelmente doente, não cheguei a morrer. Meu corpo então ficou imunizado. Esta é minha teoria. E, por hora, não encontro uma explicação melhor.

—Mas... não existirão outras pessoas que lhes ocorreu o mesmo? —Não sei —disse Neville serenamente—. Matei o morcego. —encolheu-se de ombros—

Possivelmente não tinha atacado a mais ninguém. A mulher olhou-o sem dizer uma palavra, e Neville se sentiu incômodo. Começou a falar

de novo, mas esta vez sem vontade. Referiu-se sumariamente às dificuldades com que tinha deparado em seus estudos. —No princípio acreditei que as estacas deviam atravessar o coração. Era a

lenda. Descobri depois, que não era imprescindível. Atravessava-lhes qualquer parte do corpo e morriam igualmente. Pensei então que a hemorragia matava-os, mas um dia...

E Neville lhe contou o caso da mulher que se tinha desintegrado diante dos seus olhos. —Então me dava conta de que não era a hemorragia —continuou Neville recordando

satisfeito seu descobrimento—. Não sabia o que fazer. No fim, um dia encontrei a solução. —Que solução? —perguntou a jovem. —Experimentei com um vampiro morto. Pus-lhe o braço em uma câmara pneumática e

cravei-o no vazio. Saiu sangue. —Neville fez uma pausa—. Isso foi tudo.

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A mulher o olhou fixamente sem compreender. —Não entendeu —disse Neville. —Eu... não —admitiu ela. —Quando entrou ar na câmara, o braço se decompôs. A moça seguiu escutando

atentamente. —O bacilo —disse Neville— é um organismo saprófito e pode viver com ou sem

oxigênio, mas no sangue é anaeróbico e vive em simbiose com o vampiro. O vampiro o alimenta com seu sangue, e o germe lhe proporciona energia.

—Sim? —disse a jovem. —Quando entra o ar —prosseguiu Neville—, a situação do germe troca:

transforma-se em aeróbico e a simbiose se interrompe. O bacilo fica em situação de parasita, e com sua particular violência, devora o hóspede.

—Então a estaca... —começou a dizer a mulher. —Deixa entrar ar, naturalmente. E mantém a abertura na carne. O líquido

pegajoso não fecha as feridas como no caso das balas. O coração, pois, não é essencial. Basta abrir os pulsos —Neville sorriu fracamente—. Quando penso no tempo que investi fazendo estacas!

Ela manifestou sua compreensão. O copo que tinha ainda na mão, o deixou na mesa. —Por isso aquela mulher —disse Neville— se decompôs tão depressa. Tinha

estado morta muito tempo, e quando entrou o ar, o germe provocou uma desintegração imediata.

Um estremecimento percorreu o corpo da jovem. —É horrível —disse. Neville a olhou surpreso. Horrível? Era curioso. Não o havia ocorrido pensá-lo durante

anos. Para ele a palavra «horrível» carecia de significado. Um horror acumulado termina por converter-se em costume. Para Neville a situação se reduzia a simples feitos, nada mais. Não se qualificavam.

—E o que acontece com aqueles... que ainda continuam vivos? —perguntou ela. —Bom —disse Neville— quando lhes cortam as veias, o germe atua como lhe expliquei.

Mas a maioria morre simplesmente por hemorragia. —Simplesmente por hemorragia —repetiu a jovem, e voltou a cabeça. —O que houve? —perguntou Neville. —Nada. Nada. Neville sorriu. —Uns se acostumam a estas coisas —disse—. É obrigado. A jovem voltou a

estremecer-se. —Acredite em mim —disse Neville—. Não há outro caminho. Seria melhor deixá-

los morrer da doença, para que depois voltem convertidos em vampiros? Ela se apertou as mãos. —Mas você disse que há muitos ainda vivos —recordou nervosamente—. Como sabe

que não seguirão assim? —Sei —disse Neville—. estudei o germe. Sei como se reproduz. O organismo luta, mas

ao fim o germe sempre ganha. Empreguei antibióticos, mas não servem de nada. É inevitável. As vacinas não imunizam tampouco nos casos avançados. Não se pode

lutar contra os germes e de uma vez elaborar anticorpos. É assim, acredite. Se não os mato, cedo ou tarde morrerão, e então virão me buscar. Não há mais alternativa.

Neville e a jovem calaram-se e na sala só se ouviu o som da agulha roçando os sulcos interiores do disco. Ela tinha o olhar fixo no chão. É curioso, pensou Neville, justificar agora o que ontem parecia necessário. Nunca havia pensado que podia estar equivocado. A presença da mulher despertava agora outros pensamentos. Pensamentos estranhos.

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—Acredita que estou equivocado? —perguntou Neville com voz incrédula. A jovem se mordeu o lábio inferior e evitou a resposta.

—Ruth —disse Neville. —Eu não posso julgá-lo —disse ao fim. Capítulo 18 —Virginia! O dilacerador grito de Neville rompeu a silenciosa escuridão e a silhueta negra

se apertou contra a parede. Neville saltou da cama e olhou ao seu redor com olhos sonolentos. O coração lhe

pulsava no peito, como um prisioneiro que golpeia as paredes de um calabouço. De pé, ainda em estado de sonolência, não sabia que hora era, nem onde estava.

—Virginia? — perguntou fracamente, estremecendo—. Virginia? —Sou... sou eu —respondeu a voz na escuridão. Neville avançou á passos inseguros para o débil raio de luz que entrava pela fresta

aberta. Piscou devagar. Estendeu uma mão e ouviu um ofegar. —Sou eu, Ruth. Ruth —disse a silhueta em voz baixa. Neville ficou ali, cambaleando-se na escuridão, com a expressão de que não

compreendia. —Sou eu, Ruth —repetiu a silhueta em voz mais alta. Neville despertou completamente. Algo frio lhe retorceu no peito e no estômago. Não era

Virginia. Sacudiu a cabeça e esfregou os olhos com os dedos intumescidos. Ficou olhando a jovem durante um bom momento, sentindo o grande peso de

uma repentina depressão que lhe esmagava. —Oh! —murmurou fracamente—. Oh, eu... A névoa que o havia envolvido se desvaneceu. Observou a fresta e em seguida, Ruth. —O Que está fazendo? —Perguntou com voz sonolenta, e acendeu o abajur. —Nada —disse ela, nervosa—. Não podia dormir. Neville piscou diante da luz. Logo sua mão soltou o interruptor do abajur e se

voltou. A mulher estava apoiada contra a parede, com os braços pendurados e os punhos apertados.

—Por que se vestiu? —perguntou Neville, surpreso. A jovem respirava ruidosamente, olhando Neville. Ele esfregou os olhos e passou a

mão sobre as têmporas. —Estava... estava olhando —disse ela. —Mas por que se vestiu? —Não podia conciliar o sono. Neville a olhou, ainda um pouco chocado, mas sentiu que o coração lhe acalmava.

Através do buraco se ouviam os uivos da rua, e por conseguinte escutou o grito de Cortman:

—Saia, Neville! Neville se aproximou da porta e fechou o buraco. Em seguida voltou-se para a Ruth. —Perguntei-lhe por que se vestiu. —Vesti-me, simplesmente. —Ia partir enquanto eu dormia? —Não, eu... —Ia? A jovem deixou escapar um gemido. Neville tinha agarrado seu pulso apertando-lhe. —

Não, não —se apressou a dizer—. Como poderia fazê-lo, com eles aí fora? Neville olhou o rosto aterrorizado da jovem. Estremeceu-se ao recordar a sensação que

o tinha invadido ao despertar, acreditando que era Virginia.

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Bruscamente, soltou-lhe o braço e se afastou. Estava convencido de que o passado estava morto. Mas se perguntava: Quanto demora para morrer o passado?

A jovem não disse nenhuma palavra. Neville se serviu um pouco de uísque e o tomou de um gole. Virginia, Virginia, pensou desesperando-se, ainda em minha mente. Fechou os olhos e apertou as mandíbulas.

—Chamava-se assim? —perguntou ela. Neville ficou tenso, mas relaxou-se em seguida. —Bom —disse com voz cansada—. Volte para a cama. A jovem deu um passo atrás. —Lamento —disse ela. De repente, Neville compreendeu. Em realidade, não queria que ela se deitasse. Queria

que ficasse com ele lhe fazendo companhia. Não sabia por que, mas não queria estar sozinho.

—Confundi-a com minha mulher —ouviu-lhe dizer—. Despertei de súbito e acreditei... Bebeu outro gole de uísque, engasgou-se e começou a tossir. Ruth o olhava da

penumbra. —Ela voltou uma vez —disse Neville—. A enterrei, mas uma noite voltou. Era como...

como você esta noite. Uma sombra, um contorno. Estava morta. Mas voltou. Tratei de tê-la comigo, mas não podia ser a mesma de antes. Só queria...

Neville conteve um soluço. —Minha própria mulher —disse com voz tremente—, voltando só para me beber

o sangue! Golpeou com o copo a mesa do bar. Voltou-se, caminhou rapidamente até o buraco e

retornou outra vez ao bar. Ruth não abriu a boca. Continuou na escuridão, escutando. —Levei-a outra vez —disse—. Tive que tratá-la como os outros. Minha própria mulher.

Uma estaca —acrescentou com voz terrível—. Tive que lhe cravar uma estaca no coração. Até então, não sabia outro método. Eu...

Não pôde terminar. Calou-se por um longo momento, estremecendo dos pés á cabeça, apertando as pálpebras com força.

Ao fim falou outra vez: —Aconteceu faz quase três anos. E eu ainda lembro, é como se tivesse acontecido

ontem — deu um murro sobre o bar—. Todo esforço é inútil. E não posso me acostumar, me esquecer...

Mexeu nervosamente nos cabelos e continuou: —Sei o que você sente. Sei. No princípio não me dava conta. Não confiei em você.

Sentia-me protegido e tranqüilo em meu refúgio. Agora... —sacudiu a cabeça lentamente, derrotado—. Em um segundo tudo desapareceu. A rotina, a segurança, a paz...

—Robert. —A voz da jovem parecia tão angustiada e triste como a sua—. Por que nos castigaram assim? —perguntou.

Neville suspirou entrecortadamente. —Não sei. Não há resposta. Não há motivo aparente. Simplesmente, é assim. A jovem havia se aproximado. E de repente, sem hesitações, sem resistências, Neville a

apertou contra ele e se transformaram em dois seres que se fundiam na profunda solidão da noite.

—Robert. Robert. As mãos da Ruth acariciavam os ombros da Neville, uma e outra vez, e Neville a

apertava contra ele com força e fechando os olhos se perdia naqueles cabelos mornos e suaves.

Beijaram-se por um longo momento, e suas mãos abraçavam com força o pescoço de Neville. Sentaram-se em seguida, a tênue luz da sala.

—Sinto muito, Ruth —disse Neville. —Sente mesmo?

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—Sim. Sinto ter sido tão cruel quando te encontrei, não ter acreditado em você. Ela calou.

—Oh, Robert —disse logo—. É tudo tão injusto. Tanto! Por que continuamos vivos? Por que não morremos como outros? Seria melhor que todos tivéssemos desaparecido.

—Quieta, quieta —disse Neville, sentindo que já não podia controlar as emoções que o

invadiam—. Tudo ficará bem. Um calafrio percorreu o corpo da jovem. —Sim, sim. Tudo ficará bem —repetiu Neville. —Mas como? —Ficará —disse Neville, embora não estava seguro de nada e sabia que as

palavras brotavam só graças aquela tensão liberada. —Não —disse ela—. Não. —Sim, Ruth. Sim. Neville ali, no sofá, tinha perdido a noção do tempo. Havia esquecido tudo, o tempo e o

lugar. Estava com ela, estavam sozinhos no mundo e necessitavam-se; eram os únicos sobreviventes de um obscuro terror.

E de repente sentiu a necessidade de ajudá-la o quanto antes. —Vêm —disse—. Vou lhe analisar agora. O corpo da jovem ficou tenso. —Não, não —disse Neville rapidamente—. Não tema nada. Se encontrarmos algo, lhe

curarei. Juro que lhe curarei, Ruth. Mas verá como não encontraremos nada. Ruth o olhava na escuridão, sem dizer uma palavra. Neville se levantou e a pegou na

mão. Sentia uma excitação totalmente distinta. Queria curá-la, ajudá-la. —Me permita —disse—. Não vai doer. Prometo-lhe isso. Quero que estejamos seguros.

Assim poderemos planejar nossa vida e trabalhar. Salvarei você, Ruth. Ou morrerei contigo.

A jovem resistia, com o corpo tenso. —Vem, Ruth. Agora que tinha revelado suas emoções, Neville não tinha no que se apoiar e não

podia controlar seus tremores. Levou-a ao dormitório. E quando viu pasmado o terror naquele rosto, aproximou-a dele e

acariciou-lhe o cabelo. —Tudo ficará bem. Não entende? Ajudou-a sentar-se na banqueta. A jovem estava pálida. Neville desinfetou a agulha

queimando-a com um isqueiro Bunsen. Em seguida se inclinou e a beijou na bochecha. —Tudo ficara bem —disse docemente—. Tudo ficará bem. Não se preocupe. Ruth fechou os olhos e Neville cravou a agulha, sentindo a dor como se tivesse cravado

no seu próprio dedo. Extraiu o sangue e o colocou na platina. —Aqui está —disse, e passou um algodão com álcool pela ponta do dedo, tremendo.

Não conseguia controlar-se. Quase não podia preparar o microscópio, e olhava a Ruth e sorria, tentando lhe apagar do rosto aquela expressão de terror.

—Não tenha medo —disse—. Por favor. Curarei-lhe se estiver doente. Farei-o, Ruth, prometo-lhe isso.

A moça se sentou em silêncio, olhando-o trabalhar com os olhos perdidos, movendo nervosamente as mãos no colo.

—E o que fará se... se eu estiver? —disse ao fim. —Não sei ainda —disse Neville —. Não tenho certeza. Mas há muitas coisas. —Que coisas? —Vacinas, por exemplo. —Disse que as vacinas não dão resultado —comentou a jovem com voz fraca. —Sim, mas... —Neville se interrompeu para colocar a platina no microscópio. —Robert, o que poderá fazer? A jovem se levantou da banqueta e se aproximou da Neville, que se inclinava já sobre o

microscópio.

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—Robert, não olhe! — suplicou de repente. Mas era tarde: Neville já havia visto. Sem dar-se conta-se o havia entrecortado o fôlego. Olhou a jovem, confundido.

—Ruth —sussurrou apenas. A estatueta lhe golpeou em plena testa. Neville sentiu que a cabeça lhe explodia de dor e caiu de lado, sobre o

microscópio. Surpreso, olhou aquele rosto contraído pelo medo. A estatueta golpeou outra vez. Neville gritou e caiu de joelhos para diante. A mil quilômetros de distância, ouviu um soluço contido.

—Ruth —murmurou. —Supliquei-lhe para que não o fizesse! —gritou a jovem. Neville a agarrou pelas pernas e a jovem deixou cair a estatueta pela terceira vez, agora

na nuca. —Ruth! As mãos de Neville perderam força. Caiu de bruços e fechou convulsivamente os

dedos no ar, afundando-se nas sombras.

Capítulo 19

Quando voltou a si, o silêncio reinava na casa. Durante um momento seguiu ali, deitado, olhando confusamente o chão. Em

seguida, com um lamento de dor, levantou-se. Sentiu como se um milhão de agulhas lhe atravessassem a cabeça, e tornou a cair sobre o chão frio, agarrando a cabeça com as mãos.

Minutos depois tratou de se levantar lentamente agarrando na borda da mesa. O chão se movia sob seus pés, e Neville teve que fechar os olhos. Esperou um momento.

No fim conseguiu chegar rastejando até o banheiro. Lavou a cara com água fria e se

sentou na borda da banheira, com uma toalha úmida envolta da testa. Que tinha acontecido? Olhou piscando para os brancos ladrilhos do chão. Levantou-se e chegou até a sala. Estava vazia. A porta da rua estava aberta

permitindo a entrada da luz cinza da manhã. A jovem tinha ido embora. Começava a se lembrar. Retornou ao dormitório, apoiando-se nas paredes. Sobre a mesa, junto ao derrubado microscópio, tinha uma carta. Pegou o papel com

dedos intumescidos, e aproximando-se da cama, sentou-se. Ergueu o papel até os olhos. Mas lhe dançavam as letras. Sacudiu a cabeça brandamente e voltou a fechar os olhos. Ao final de um momento pôde ler:

“Robert: Agora já sabe. Já descobriu que lhe espionava e sabe que quase tudo o que

disse era falso”. “Escrevo-lhe esta carta porque quero te salvar, na medida do possível”. “Quando me pediram que lhe espionasse, não me interessava sua vida. Porque

eu tinha um marido, Robert, e você o matou”. “Mas agora as coisas são diferentes. Eu sei agora que você não escolheu este modo de

vida, como nós não escolhemos o nosso. Estamos infectados. Mas apesar de suas descobertas, continuaremos vivos. Descobrimos um modo, e vamos criar uma nova sociedade, sem pressa, mas sem tardar. Nos livraremos desses miseráveis castigados pela morte. E embora eu não o queira, decidimos lhe matar, a você e a seus semelhantes.”

—A meus semelhantes?, pensou Neville, aturdido. Mas seguiu lendo. “Tentarei lhe salvar. Explicarei-lhes que está muito bem protegido para que o

ataquemos agora. Aproveite o tempo que lhe dou, Robert. Saia da casa, fuja para as

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montanhas e se salve. Agora somos uns tantos. Mas nos aumentaremos cedo ou tarde, e então não poderei impedir sua destruição. Repito-lhe isso Robert, salve-se enquanto pode!”

“Sei que lhe custará acreditar. Não acreditará que podemos viver à luz do sol, embora só o seja durante curtos períodos. Não acreditará que minha cor é natural e não produto da maquiagem. Não acreditará que podemos viver com o germe no sangue”.

“Por isso lhe deixo uma de minhas pílulas”. “Todo o tempo que passei aqui as estive tomando. Escondi-as em meu cinto.

Descobrirá que estão compostas por sangue coagulado e uma droga. Não sei exatamente qual. Mas sei que o sangue alimenta o germe e a droga impede sua reprodução. O descobrimento desta pílula freou nossa eliminação, nos ajudando a reconstruir o mundo. Acredite-me, tenho certeza. E por favor, fuja!”

“Me perdoe também. Não queria lhe fazer nenhum mal. Mas me aterrorizava pensar o que faria quando soubesse a verdade”.

“Me perdoe por lhe haver enganado tanto. Mas, por favor, acredite só uma coisa: quando estávamos abraçados, na escuridão, não estava lhe espionando. Eu lhe queria”.

“Ruth.” Neville leu outra vez a carta. Em seguida deixou cair a mão, abatido, e ficou olhando o

chão. Não podia acreditá-lo. Movia a cabeça, tentando compreender, mas era difícil. Aproximou-se da mesa com passos inseguros. Pegou a pílula alaranjada, sustentou-a

na palma, e a cheirou. Sentia que a segurança o havia abandonando. Como podia, entretanto, negar a evidência? A pílula, o encontro à luz do sol, sua reação

diante do alho. Sentou-se na banqueta e olhou a estatueta caída no chão. Lentamente, as lembranças

foram amontoando em sua mente. Quando se encontraram no campo, a jovem tinha fugido assustada. Estava-o

enganando? Não, assustou-se seriamente. Seu grito a havia surpreendido sem dúvida, embora ela estivesse esperando-o. Logo, mais tarde, controlando mais a situação, havia argumentado que sua reação perante o alho se devia a um estômago delicado. E tinha mentido, fingindo uma aceitação sem esperança, e o havia surrupiado habilmente toda a informação possível. E quando queria ir embora, não podia, por culpa de Cortman e dos outros.

Tinha despertado naquele momento e se abraçaram, e... Neville deu um murro na mesa. “Eu lhe Queria”. Mentira. Mentira! Amassou a carta e a

jogou longe. A dor cresceu com a raiva e teve que segurar a cabeça entre as mãos, fechando os

olhos. Ao cabo de um momento se recuperou e colocou o microscópio em seu lugar. O resto da carta não era mentira, devia reconhecer. Até sem a pílula, até sem

aquelas lembranças, devia reconhecer. Ficava algo que Ruth e os seus amigos pareciam ignorar.

Olhou pelo microscópio um longo momento. Sim, havia-o encontrado. E admitir o que via, mudou todo seu mundo. Que estúpido e incapaz se sentia! Como não o tinha previsto? E entretanto, havia lido a frase cem, mil vezes. E nunca se havia detido a entender todo seu significado. Era uma frase muito simples:

As bactérias também podem ser mutantes.

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IV - Janeiro de 1979 Capítulo 20

Apareceram de noite. Chegaram em carros escuros, vinham providos de lanternas,

rifles, tochas e paus. Chegaram da escuridão com um rugir de motores, e os fachos de luz largos e brancos dos faróis virando a esquina procurando a rua.

Neville nesse momento estava espionando pelo buraco. Tinha parado de ler e olhava com curiosidade quando os raios de luz enfocaram as caras descoloridas. Os vampiros se voltaram assustados, com os escuros olhos selvagens cravados nas luzes.

Neville retrocedeu bruscamente, afastando-se do buraco. Durante um momento permaneceu ali, nas sombras da sala, tremendo, indeciso. O rugido dos motores atravessou as paredes acústicas Pensou nas pistolas da cômoda, no rifle, a metralhadora da mesa de trabalho, pensou em entrincheirar a casa.

Mas não. Tinha-o decidido. Havia planejado tudo, escrupulosamente, durante os últimos meses. Não os confrontaria. Aproximou-se outra vez da porta, e olhou.

A rua era um contínuo de cenas violentas e rápidas, iluminadas pelo potente resplendor dos faróis. Homens que perseguiam a outros homens, ruídos de saltos sobre o pavimento. Em seguida um disparo, o eco do disparo, e logo mais disparos.

Dois vampiros caíram pelo pavimento. Quatro homens os sujeitaram com os braços em cruz e outros dois lhes afundaram no peito as brilhantes pontas de umas lanças. A noite se encheu de uivos. Neville sentiu que se sufocava.

Os homens vestidos de negro tinham uma clara idéia do que faziam. Havia sete vampiros na rua; seis homens e uma mulher. Rodearam-nos a todos, sujeitaram-nos pelos braços, e afundaram em seu corpo as lanças afiadas como facas. O sangue corria como mar pela rua, e os vampiros foram morrendo, um a um. Neville se estremeceu.

Era esta a nova sociedade da qual Ruth havia falado? E tinham que atuar assim, enfurecendo-se de um modo tão cego e brutal? Por que vinham de noite, quando era muito menos violento matá-los de dia?

Apertou os punhos. Não gostava daquela metódica carnificina. Esses homens pareciam assassinos, e não seres que defendiam sua existência. Havia percebido uma expressão de maligno triunfo nos rostos iluminados pela luz dos faróis. Eram rostos cruéis, sem emoção. De repente Neville se deteve a pensar. Onde estava Ben? Olhou para acima e para baixo da rua, mas não viu nenhum rastro dele. Não queria que matassem Ben Cortman, não queria que o destruíssem dessa maneira. Estupefato, deu-se conta de que sentia mais simpatia pelos vampiros que por esses seres.

Agora os sete vampiros jaziam inertes em seus atoleiros de sangue. Os faróis, sem pararem de mover-se, iluminavam a noite. Um raio cegante enfocou o buraco. Neville se retirou. Em seguida a luz se afastou, e olhou de novo.

Ouviu-se um grito. Os olhos de Neville seguiram a luz. Ficou tenso. Cortman estava no telhado da casa em frente. Subia lentamente tratando de alcançar a chaminé, com o corpo esmagado contra as telhas.

Neville compreendeu de repente que aquela alta chaminé tinha sido o esconderijo de Cortman durante todo este tempo. Apertou as mandíbulas. Cortman não merecia morrer em mãos daqueles desconhecidos. Objetivamente, era um absurdo; mas assim o sentia. Aqueles seres não podiam apropriar-se do descanso de Cortman. Mas ele, Neville, não podia fazer nada.

Com um olhar de desalento, viu que os focos apontavam para o corpo encolhido de Cortman. As mãos pálidas procuravam lentamente algum apoio. Movia-se lentamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. Se apresse!, pensou Neville, mas não o disse em

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voz alta. Sentiu que lhe contraía o corpo, que lutava junto com Cortman, imitando aqueles movimentos de agonia.

Os homens, sem pronunciar ordem alguma, elevaram de repente seus rifles e o ruído

dos disparos rasgaram a noite. Neville sentiu como se as balas entrassem em sua própria carne. Cortman se retorceu

sob os impactos e Neville se estremeceu convulsivamente. Cortman continuou retorcendo-se. Neville viu a cara branca e tensa. Chegou o fim do

Oliver Hardy, pensou, a morte das comédias e as risadas. Não ouvia já o ruído dos disparos. Nem sequer notava como as lágrimas lhe corriam pelo rosto.

Ben Cortman estava de joelhos agora, e tratava de agarrar-se à chaminé com dedos inseguros. Retorceu-se ainda mais, alcançado por outras balas. Seus olhos escuros brilhavam à luz dos faróis; sua boca deixava escapar um gemido silencioso.

Ao fim se colocou de pé, apoiado na chaminé, e Neville, empalidecendo, viu como erguia a perna direita.

Nesse instante ouviu-se o ruído da metralhadora. Durante um momento, Cortman recebeu de pé os impactos, com as mãos em alto e com expressão de desafio em sua cara branca.

—Ben... —murmurou Neville entrecortadamente. O corpo de Cortman se dobrou pela cintura e caiu para frente. Perdeu o equilíbrio e

rodou lentamente pelo telhado inclinado, e por fim caiu ao vazio. Seguiu um silêncio, e Neville ouviu o corpo estatelando-se contra a rua. Fechou os olhos. Os homens se aproximavam de Cortman empunhando suas lanças.

Outra vez o ruído de botas sobre o pavimento. Neville retrocedeu para a escuridão. De pé no meio da sala, esperou que os homens o chamassem e lhe convidassem a sair. Tratou de recuperar a calma. Não vou lutar, disse. Embora queria fazê-lo, embora odiasse suficientemente a esses homens com suas armas e suas ensangüentadas lanças.

Mas não ia lutar. Tinha-o bem decidido. Os homens atuavam como lhes parecia necessário, apesar daquela violência inútil e aquela sanha. Ele, Neville, havia matado a muitos e agora eles tinham que capturá-lo. Não lutaria para salvar-se. entregaria-se à justiça daquele novo mundo. Quando o chamassem sairia e se renderia.

Tinha-o bem decidido. Mas não o chamaram. Neville retrocedeu ofegando para ouvir o ruído das tochas na

porta da rua. O que faziam? Por que não o chamavam e lhe convidavam a sair? Não era um vampiro, era um homem. Por que se comportavam assim?

Deu meia volta e olhou para a cozinha. Derrubavam também a porta dos fundos.

Ficou nervoso no meio do corredor. Olhou alternadamente a uma e outra porta. Não entendia o que estava acontecendo! Não entendia!

Ouviu uns disparos. Assustado, correu ao vestíbulo e comprovou que os homens tinham feito saltar a balaços a fechadura da porta da rua. Um disparo mais, com ecos que ressoaram pela casa.

E, de repente, entendeu. Não iriam levar-lhe diante de seus tribunais para julgá-lo. Foram lá acabar com ele.

Aterrorizado, correu ao dormitório e procurou, aturdido, na gaveta da cômoda. Voltou-se, tremendo, com as pistolas nas mãos. Mas e se na verdade só queriam

capturá-lo? Não podia incomodar-se porque não o haviam chamado. A casa estava às escuras. Possivelmente pensavam que não estava ali.

Ficou no dormitório, sem acender a luz e sem saber o que fazer. Por que não tinha escapado? Por que não tinha escutado os conselhos de Ruth? Que idiota havia sido!

A porta da rua cedeu ao fim, e uma das pistolas caiu da mão de Neville. Um ruído de passos pesados cruzou a sala. Neville retrocedeu, empunhando a outra pistola. Não iam matar-lhe tão facilmente! Lançou uma maldição. Havia tropeçado em sua escrivaninha.

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No vestíbulo um homem dizia algo que Neville não pôde entender. Em seguida cintilou a luz de algumas lanternas. Neville conteve a respiração. Sentiu que tudo a seu redor começava a girar. Assim, este é o fim. Não podia deixar de pensar. Este é o fim.

Os passos ressoaram no corredor. Os dedos de Neville apertaram com mais força o

punho da pistola, os olhos seguiam cravados na soleira. Dois homens entraram. Os raios das lanternas dançaram pelo quarto até dar com a cara de Neville. Os homens

retrocederam imediatamente. —Ele tem uma pistola! —gritou um deles, e disparou. Neville ouviu como a bala se incrustou na parede, por cima de sua cabeça. Em

seguida a pistola começou a disparar, lhe iluminando a cara com breves lampejos. Não apontava. Só apertava o gatilho como um autômato. Um homem lançou um grito de dor.

Em seguida Neville sentiu um golpe no peito. Cambaleou-se, disparou uma vez mais e caiu de bruços soltando a pistola.

—Já o pegamos! —Ouviu que alguém gritava. Tratou de recuperar a pistola, mas uma bota lhe esmagou a mão. Neville a afastou gritando e ficou olhando o chão.

Umas mãos o agarraram com brutalidade por debaixo dos braços para levantá-lo. Perguntou-se por que não lhe davam um tiro de misericórdia. Virginia, pensou, Virginia, logo estarei contigo. Sentiu uma terrível dor no peito, como se alguém lhe orvalhasse com chumbo fundido. Ouviu o sapateio de outras botas, e se dispôs a morrer. Ao menos, vou morrer em minha casa, pensou. Os homens o arrastaram até a rua. Neville tratou de lutar quase sem forças.

—Não —disse—. Não! Outro golpe. Desta vez na cabeça. Perdeu o mundo de vista. —Virginia —murmurou Neville debilmente. E os homens de negro arrastaram o corpo inconsciente para fora da casa. À

solidão da noite. A aquele mundo que lhes pertencia e que já não seria nunca mais, o mundo de Neville.

Capítulo 21

Um confuso murmúrio no ar. Neville tossiu fracamente, com uma careta de dor.

Moveu a cabeça de um lado para outro do travesseiro. O ruído se intensificou. Era como uma soma de ruídos. Levou lentamente as mãos ao peito. Por que não lhe apagavam aquele fogo que lhe ardia em cima? Alguém continuava lhe colocando carvões acesos na carne. Outro gemido, de agonia esta vez. Em seguida abriu os olhos.

Contemplou, sem piscar, o teto de gesso. A dor crescia e diminuía intermitentemente. Neville tornou a contrair o rosto, resistindo à dor. Se se relaxasse, estava perdido. Durante uns minutos lutou contra a dor. Logo, como uma máquina que começa a funcionar, ofegando, detendo-se, movendo-se outra vez, sentiu que começava a despertar.

Onde estou?, Perguntou-se. A dor era espantosa. Olhou no peito e viu uma ampla atadura, com uma mancha vermelha e úmida. Fechou os olhos. Estou ferido, disse. Ferido gravemente. Sentia a boca e a garganta ressecadas. Onde estou, onde estou...

Então lhe veio à memória o ataque à casa e os homens de negro. E soube onde se encontrava, antes de ver a janela com barras de ferro que havia de um lado. Olhou pela abertura um bom momento. O confuso ruído vinha de fora.

Deixou balançar a cabeça sobre o travesseiro e continuou olhando o teto Era difícil compreender que não se tratava de um pesadelo. Três anos de solidão na casa, para terminar assim.

Mas aí estava essa terrível dor no peito, e a mancha de sangue empapando a atadura. Fechou os olhos. vou morrer, pensou. E entretanto, não parecia que chegaria o momento.

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Apesar de ter vivido com a morte, de ter passado tantas vezes sobre ela, como por uma pirueta, não parecia real. A morte própria escapava de sua capacidade de compreensão.

Estava ainda deitado de costas quando se abriu uma porta. Não podia virar-se. A dor era insuportável. Ouviu passos que se aproximavam da cama

e detinham-se junto a ela. Levantou os olhos, mas não viu ninguém. Meu executor, pensou, a justiça desta nova sociedade. Fechou os olhos e esperou.

Ouviu as pegadas em outra vez. Neville tratou de tragar saliva, mas tinha a garganta muito seca. Passou a língua pelos lábios para umedecer-lhes

—Tem sede? Abriu os olhos e olhou, e o coração acelerou seus batimentos. A dor aumentou. Gemeu

e virou a cabeça sobre o travesseiro, mordendo os lábios e apertando a manta com força. A mulher estava a seu lado, ajoelhada, lhe secando a testa, umedecendo os lábios com

um trapo frio e úmido. A dor se abrandou, e Neville viu ao fim, o rosto da mulher. Ficou olhando-a, com olhos entrecortados pela dor.

—Vá —disse finalmente. A jovem não respondeu. Levantou-se do chão e se sentou na borda da cama. Secou-lhe

outra vez a testa. Em seguida estendeu um braço e Neville ouviu um ruído de água. A jovem sustentou-lhe a cabeça, ajudando-o a beber. A dor aumentava e agora

era cortante e fria. Provavelmente isto é o que sentiam eles, pensou, quando as lanças lhes atravessavam o coração. Esta agonia cortante e mordente. A vida que escapa com o sangue.

Deixou cair a cabeça no travesseiro. —Obrigado —murmurou. A jovem o olhou com uma curiosa expressão mesclada de simpatia e desprendimento

desta vez. Penteava-se agora para trás, com o cabelo preso em rabo-de-cavalo. Parecia muito mais segura de si mesmo.

—Não acreditou em mim, não é verdade? —disse. A secura da garganta lhe fez tossir. Abriu a boca e aspirou uma baforada de ar úmido. —Sim..., sim, acreditei —disse. —Por que não se foi então? Neville tratou de falar, mas lhe confundiram as palavras. Voltou a tomar fôlego. —Não... não pude —murmurou ao fim—. Quis ir... várias vezes. Uma vez... até recolhi

minhas coisas e... deixei a casa. Mas voltei... Não podia... não podia ir... Estava muito habituado... à casa... Era realmente isso, um... hábito. Como o hábito de viver. Estava... acostumado.

Os olhos da mulher olharam o rosto de Neville. Secou-lhe outra vez a testa, apertando os lábios.

—Agora é muito tarde, sabe? —Sei —disse Neville. Tratou de sorrir, e deixou escapar uma careta. —Por que resistiu então? —Disse Ruth—. Tinham a ordem de lhe trazer aqui sem

machucá-lo. Se não tivesse enfrentado eles, não lhe teriam acertado. Um espasmo sacudiu Neville. —Isso não mudaria nada —disse. Fechou os olhos e apertou os dentes, lutando com a dor. Quando os abriu outra vez, ela

estava ali ainda. A expressão de seu rosto era a mesma. Neville sorriu fracamente. —Você..., sua sociedade... é realmente algo fantástico —ofegou—. Quem eram

esses assassinos que destroçaram... minha casa? O... conselho de justiça? O olhar da mulher era frio e sereno. Ela mudou , pensou Neville de repente.

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—Todas as sociedades novas são primitivas —replicou a jovem—. Você sabe. São... como grupos terroristas que transformam a sociedade à base da violência. É inevitável. Você mesmo utilizou a violência, Robert. Matou. Muitas vezes.

—Só para... sobreviver. —Nós temos as mesmas razões —disse Ruth tranqüilamente—. Para sobreviver. Não

podemos permitir que os mortos persigam os vivos. Devem ser destruídos. Assim como quem mata os mortos e os vivos.

Neville respirou fundo, e a dor mordeu-lhe dos lados. Um calafrio lhe percorreu o corpo. Isto terminará logo, pensou. Não posso resistir muito mais. Não, não temia à morte. Não entendia por que, mas não o assustava.

A dor diminuiu. Neville olhou o rosto sereno da jovem. —De acordo —disse—. Mas... viu a expressão dos seus rostos quando matam? —Um

movimento compulsivo—. Alegria —murmurou—. Alegria pura. O sorriso de Ruth parecia irônico. Ela mudou realmente, pensou Neville. —Viu alguma vez sua cara? —perguntou a jovem lhe refrescando a testa. Eu vi,

lembra? E nem sequer matava até então. Simplesmente me perseguia. Neville fechou os olhos. Por que a escutou?, pensou. É uma nova convertida, uma nova

militante desta religião da violência. —Possivelmente viu alegria em seus rostos —seguiu ela—. Não é de se estranhar. São

muito jovens. E são assassinos pagos, assassinos legais. Se os respeita porque assassinam,

os admira. O que esperava deles? São homens. E os homens chegam a gozar matando. É uma velha história, Robert. Você a conhece bem.

Neville a olhou. O sorriso da Ruth era o sorriso duro e tirante da mulher que quer continuar na abnegação e no sacrifício.

—Robert Neville —disse—, o último representante da velha raça. O rosto de Neville mudou.

—O último? —murmurou, sentindo de repente sobre ele o peso de uma profunda solidão.

—Assim parece ao menos —disse ela indiferente—. Realmente é o único. Quando desaparecer, não ficará ninguém como você em nosso mundo.

Neville olhou pela janela. —Há... gente... fora —disse. A mulher moveu a cabeça afirmativamente. —Minha morte? —Sua execução. Neville levantou o olhar para ela sentindo que lhe punham rígidos os músculos. —Agradeceria se apressassem-se —disse, sem medo, com voz desafiante. Olharam-se nos olhos. Logo algo pareceu ceder nela. Estava muito pálida. —Sabia —disse—. Sabia que não teria medo. Impulsivamente acariciou a mão de

Neville. —Quando ouvi que foram lhe buscar, pensei em te prevenir. Mas me ocorreu que

se ainda estava ali, nada lhe faria mudar de idéia. Em seguida pensei em lhe ajudar a escapar. Mas me disseram que estava ferido gravemente, e uma fuga seria impossível. —Um sorriso lhe cruzou o rosto—. Alegra-me que não tenha medo. É muito valente, Robert —acrescentou com voz mais suave.

Calaram, e Neville sentiu a pressão de sua mão. —Como... você pôde vir? —perguntou. —Sou oficial de carreira na nova sociedade —disse a jovem. Neville moveu a mão sob

seus dedos. —Não deixe... não deixe... —Tossiu, e apareceu um fio de sangue—. Não deixe

que sejam muito brutais... muito cruéis. —O que posso... —começou Ruth, e calou. Sorriu em seguida—. Cuidarei para que

assim seja —disse.

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Neville não pôde responder. A dor aumentava. Retorcia-se e convulsionava como um animal dentro de seu corpo.

Ruth se inclinou para ele. —Robert —disse—. Escute-me. Querem lhe executar. Embora esteja ferido. Têm

que fazê-lo. O povo esteve esperando lá fora toda a noite. Eles têm medo de você, Robert, odeiam-lhe. E querem que pague com sua vida.

Desabotoou a blusa e procurou no corpete. Tirou ao fim um pacotinho e colocou-o na mão direita de Neville.

—É o melhor que posso fazer por você, Robert —sussurrou— Para que seja mais breve. Adverti-lhe. Disse-lhe que fugisse —a voz lhe tremeu ligeiramente—. Não pode lutar contra todos, Robert.

—Já sei… As palavras de Neville se converteram em sons guturais. Ruth se inclinou e roçou com

seus lábios frescos os de Neville. Logo a seguir, se levantou e fechou a blusa. —Tome logo —disse olhando a mão direita da Neville. Neville ouviu seus passos afastando-se para a porta e em seguida o ruído de chaves.

Fechou os olhos, e umas lágrimas ardentes correram pela face. Adeus, Ruth. Adeus ao mundo. Logo, de repente, apoiando-se em um braço, sentou-se na cama. A dor era

espantosa, mas Neville não se acovardou. Com as mandíbulas apertadas, tirou as pernas da cama e se colocou de pé. Sentindo apenas o movimento de suas pernas, e cambaleando-se, cruzou o calabouço.

Caiu contra a janela, e olhou à rua. Estava cheia de gente. Agrupavam-se à luz cinzenta da manhã. O som de suas vozes chegava a ele como o zumbido de abelhas. Neville os olhou, agarrado com a mão esquerda nas barras de ferro e com os olhos febris.

Então alguém o viu. Durante um momento as vozes se elevaram um pouco. ouviram-se alguns gritos. Mas logo o silêncio se estendeu sobre suas cabeças como uma pesada capa.Todos

voltaram seus rostos pálidos para Neville. Neville os observou serenamente. E de repente raciocinou: Eu sou o anormal. A normalidade é um conceito majoritário. Norma de muitos, não de um sozinho.

E compreendeu a expressão que refletiam aqueles rostos: angústia, medo, horror. Tinham-lhe medo. Eles lhe viam como um monstro terrível e desconhecido, de uma maldade mais odiosa que a da praga. Um espectro invisível, que como prova de sua existência semeava o chão com os cadáveres sangrados, de seus seres queridos. E Neville os compreendeu, e deixou de odiá-los. A mão direita apertou o pacote de pílulas. Pelo menos o fim não seria violento, pelo menos não haveria uma carnificina...

Neville observou os novos habitantes da terra. Não era um deles. Semelhante aos vampiros, era um anátema e um terror obscuro que deviam eliminar e destruir. E de repente nasceu a nova idéia, divertindo-o, apesar da dor.

Tossiu pigarreando. Virou-se e se apoiou na parede enquanto tomava as pílulas. O círculo se fechava.De sua morte nascia um novo terror, uma nova superstição penetrava a inexpugnável fortaleza da eternidade.

Eu sou lenda.

FIM