Reykjavik- capital da Islândia - 11 de julho a 1º de ... · 3 Keywords: chess, “match of the...
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GRUPO DE TRABALHO 9
ESTUDOS SOCIOCULTURAIS DO ESPORTE
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DE UMA
FIGURAÇÃO DE TORCEDORES DURANTE O
“MATCH DO SÉCULO” EM 1972
Juliano de Souza
Fernando Renato Cavichiolli
Wanderley Marchi Júnior
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O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO SOCIAL DE UMA FIGURAÇÃO DE TORCEDORES
DURANTE O “MATCH DO SÉCULO” EM 1972
Juliano de Souza 1
Fernando Renato Cavichiolli2
Wanderley Marchi Júnior3
RESUMO
Quais fatores e pressões sociais permeiam a construção de uma figuração de torcedores durante
um evento esportivo? Essa é a inquietação central que nos motiva a desenvolver o presente texto e,
além disso, nos instiga a caminhar pelas linhas histórico-sociológicas de um esporte conhecido
mundialmente: o xadrez. Na tentativa de tornar inteligível esse problema, delimitamos como
universo empírico de análise o confronto final do campeonato mundial de xadrez de 1972
realizado no contexto da Guerra Fria e que ficou conhecido como “match do século”. A fim de
subsidiar a discussão aqui fomentada, buscamos, primeiramente, resgatar imagens dos
espectadores durante o “match do século” e, em seguida, realizar uma leitura sociológica do
cenário social retratado nas mesmas, à luz das contribuições teóricas de autores consagrados da
sociologia e que reservaram um espaço significativo para discussão do fenômeno esportivo em
suas obras.
Palavras-chave: xadrez, “match do século”, figuração de torcedores, sociologia.
ABSTRACT
Which factors and social pressures penetrated the construction of a figuração of supporters during
a sporting event? That it is the central restlessness that it motivates us develop the present text and,
beyond that, it instigates us walk for the historical-sociological lines of a known sport world: the
chess. In the attempt of become intelligible that problem, we delimit like empirical universe of
analysis the final confrontation of the world championship of chess of 1972 carried out in the
context of the Cold War and that stayed acquaintance as "match of the century". In order to
subsidize the argument here fomented, we seek, first, rescue images of the spectators during the
"match of the century" and, right away, carry out a sociological reading of the social setting
portrayed in the same, to the light of the theoretical contributions of consecrated authors of the
sociology and that reserved a significant space for argument of the sporting phenomenon in its
works.
1 Aluno do programa de pós-graduação (mestrado) em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná
Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade (CEPELS)
Asociación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte (ALESDE)
[email protected] 2 Doutor em Educação
Centro de Pesquisa em Esporte, Lazer e Sociedade (CEPELS)
Asociación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte (ALESDE)
[email protected] 3 Doutor em Educação Física
Centro de Pesquisas em Esporte, Lazer e Sociedade (CEPELS)
Asociación Latinoamericana de Estudios Socioculturales del Deporte (ALESDE)
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Keywords: chess, “match of the century”, supporters' figuration, sociology.
Reykjavik – capital da Islândia – 11 de julho a 1º de setembro de 1972
Nesse período de quase dois meses realizou-se uma das mais emocionantes e notórias
finais de campeonato mundial de xadrez. Em pleno palco conjuntural marcado pelo tenso clima
político-ideológico da Guerra Fria, se puseram diante do tabuleiro dois enxadristas que
protagonizaram num universo menor o embate construído entre soviéticos e norte-americanos. 4 De
um lado e representando a União Soviética, se situava então Boris Vasilievich Spassky – detentor
do último título mundial disputado em 1969. De outro e defendendo os Estados Unidos, Robert
James Fischer – desafiante do match.
Após derrotar, respectivamente, no torneio de candidatos em 1971, o pianista soviético
Mark Taimanov por 6-0, 5 o dinamarquês Bent Larsen por 6-0 e Tigran Petrosian, que por sinal
também era soviético, por 6,5-2,5, Fischer ganhou o direito de disputar a grande final contra
Spassky. 6 Para manter o título mundial e acumular a segunda conquista Spassky precisava somar
doze pontos na série de 24 partidas, enquanto Fischer para se consagrar campeão necessitava ganhar
doze partidas e empatar uma décima terceira.
O confronto terminou com a vitória do norte-americano por 12,5-8,5 colocando fim a
uma hegemonia soviética de 24 anos. 7 A série de 21 partidas realizadas entre os dois jogadores em
1972 pela disputa do título mundial foi divulgada e ficou conhecida como o “match do século”. É
necessário frisarmos, que o referido confronto obteve uma singular repercussão tanto no meio
enxadrístico quanto na sociedade mais ampla. E isso graças à atenção especial que fora dada ao
match pela imprensa e, também, pelo caráter mimético da guerra entre Estados Unidos (EUA) e
União Soviética (URSS) frente ao tabuleiro de xadrez.
Diante dessa conjuntura sumariamente exposta, identificamos a possibilidade de estudar
o “match do século” de 1972 na perspectiva de uma configuração social estruturada da seguinte
forma: jogadores, federações soviética, norte-americana e islandesa de xadrez, federação
4 O herói (e o pária) do xadrez. Veja, São Paulo, p. 69, 23 jan. 2008. 5 Para fins de esclarecimento, convém lembramos que o sistema de pontos adotado nos torneios e campeonatos
enxadrísticos obedece à seguinte convenção: vitória – 1 ponto; derrota – 0 ponto; empate – 0,5 ponto. 6 LIMA, R. “Quando éramos reis, bispos, cavalos...”, Digestivo cultural, 09 abr. 2002. Disponível em
<http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=493> acesso em 05 de junho de 2008.
Informações mais esmiuçadas podem ser encontradas na excelente biografia de Fischer: BJELICA, D. Reyes del ajedrez
– Bobby Fischer. Madrid: Zugarto Ediciones, 1992, p. 70-71. Ver ainda: GONZÁLEZ, J. M. (…) Y ahora “Bobby
Fischer Campeón del mundo. Edición especial de la Revista Jaque, 11 de julio a l 1 de septiembre de 1972. Reykjavik,
Islândia, p. 35. 7 As três vidas de Bobby Fischer. Época, Rio de Janeiro, n. 505, 19 jan. 2008. Disponível em
<http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG81205-9293-
505,00AS+TRES+VIDAS+DE+BOBBY+FISCHER.html>acesso em 11 de maio de 2008.
4
internacional de xadrez (FIDE), arbitragem, torcedores, patrocinadores, mídia. Cabe aqui
lembrarmos que as relações sociais vislumbradas entre os referidos agentes e instituições, não se
construíram de forma estática e estanque, mas, pelo contrário, como processos dinâmicos
constituídos numa perspectiva de interdependência social.
Dado o curto espaço reservado para um artigo, estabelecemos um exercício
metodológico de demarcação e resolvemos concentrar nossos esforços, pelo menos neste momento,
na figuração composta pelos torcedores, ou se preferirem, espectadores, consumidores e os termos
variam conforme as mais diversas interpretações. Nosso objetivo, nesse sentido, consiste em
apontar e problematizar sociologicamente alguns dos possíveis fatores e pressões sociais que
permearam a construção de uma figuração social de torcedores durante a final do campeonato
mundial de xadrez de 1972. Por conseguinte, tal percurso preliminar parece-nos extremamente
essencial para que em oportunidades futuras, possamos recompor, de uma maneira mais ampla, as
redes de interdependência evidenciadas durante aquele evento esportivo.
A fim de subsidiar a discussão fomentada neste artigo, partimos de uma abordagem
iconográfica, isto é, resgatamos imagens de espectadores durante o “match do século” e, em
seguida, procuramos discernir, no cenário social retratado nessas fotografias, a presença de alguns
elementos distintivos, tais como, classe social e gênero. Além disso, consideramos também a
singularidade dos papéis sociais investidos na figura de cada um dos agentes fotografados, o que, de
certo modo, lança algumas pistas sobre a distribuição potencial de poder naquela configuração. Para
auxiliar-nos na leitura sociológica da realidade empírica constitutiva da problemática sobre a qual
resolvemos nos debruçar, buscamos suporte e fundamentação teórica nas contribuições de Veblen, 8
Adorno & Horkheimer, 9 Bourdieu
10 e Elias & Dunning.
11
Deste modo, em Veblen vislumbramos uma explicação pautada na teoria da classe
ociosa, mais especificamente, nos seus insights teóricos sobre o consumo conspícuo. Em Adorno &
Horkheimer procuramos contextualizar os torcedores como sendo envolvidos pela indústria
cultural. Em Bourdieu tentamos compreender essas relações sob o crivo da economia dos gostos e
da distinção social. Finalmente em Elias & Dunning, visamos entender essa conjuntura a partir da
teoria das emoções, considerando as representações miméticas e as necessidades psicossociais dos
indivíduos.
8 VEBLEN, T. B. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições. São Paulo: Pioneira, 1965.
9 ADORNO, T. W & HORKHEIMER, M. A indústria cultural: o esclarecimento como mitificação das massas. In:
Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p. 113-156. 10
BOURDIEU, P. A metamorfose dos gostos. In: Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, pp. 127-
135; BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007a. 11 ELIAS, N. & DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
5
Veblen e o consumo conspícuo
Em 1899, Thorstein Veblen publica pela primeira vez seu livro “A teoria da classe
ociosa”, que, posteriormente, se tornou um clássico das ciências humanas e sociais. Embora Veblen
fosse um economista e na referida obra visasse, especificamente, realizar um estudo econômico das
instituições, relegou muitas contribuições para que pudéssemos pensar as regras de consumo
emergentes com o padrão de vida pecuniário e, de uma maneira mais densa, o tempo de lazer.
Na compreensão de Veblen, o padrão de vida pecuniário é resultado, ao mesmo tempo,
do surgimento da classe ociosa e da consolidação da propriedade privada. Por sua vez, o
aparecimento da classe ociosa não pode ser estudado separadamente do surgimento de uma classe
trabalhadora. Para Veblen, a ascendência destas duas instituições é cativa do mesmo processo
social. Além disso, o fulcro desta divisão entre a instituição ociosa e a instituição trabalhadora
remonta aos primeiros estágios do barbarismo, onde havia uma distinção entre o trabalho feminino
e masculino, que com o passar do tempo e com o advento de sociedades mais avançadas, começou a
ceder lugar a uma divisão social do trabalho e a uma fixação desproporcional da propriedade.
Segundo Veblen, a classe trabalhadora encontra no trabalho a sua principal fonte de
emulação, ao passo que a classe ociosa supre esta necessidade no envolvimento em atividades de
lazer e através do consumo conspícuo. Podemos citar, nesse sentido, as práticas esportivas,
participação em festividades e eventos chiques, a freqüência a lugares de prestígio, obtenção de
objetos raros e distintos, investimento na moda, no mobiliário, nas boas maneiras, no decoro, no
domínio das línguas mortas etc., e que conferem status e ostentação a classe ociosa.
Isso nos sugere, de uma forma mais específica, que muito mais que acumular riquezas
para ser reconhecida, a classe ociosa necessita assinalar, reafirmar e justificar sua posição através de
signos e atividades prestigiosas, ou seja, através da materialização de um estilo de vida condizente
com suas posses e possibilidades. Sobre essa condição, Veblen enfatiza: “Para obter e conservar a
consideração alheia não é bastante que o homem tenha simplesmente riqueza ou poder. É preciso
que ele patenteie tal riqueza ou poder aos olhos de todos, porque sem prova patente não lhe dão os
outros tal consideração”. 12
Contudo, é importante ressalvarmos que essa estratégia de “patentear a riqueza aos
olhos dos outros”, têm mais eficácia simbólica quando perspectivada no interior da própria classe
ociosa. E isso porque, possivelmente, a riqueza em si já basta para distinguir a classe ociosa da
classe trabalhadora, na medida em que numa luta entre frações de classe ociosa, a materialização
visual da riqueza, além de ser prazerosa, se caracteriza como o principal mecanismo de emulação e
demarcação social no interior da classe.
12 VEBLEN, 1965, p. 48.
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Na tentativa de aproximar esses conceitos para pensarmos um primeiro fator que,
possivelmente, explicaria a construção de uma figuração social de torcedores durante o “match do
século”, sentimos a necessidade de recorrer em imediato às seguintes imagens, num exercício de
inteligibilidade pautado na articulação entre a figuração social evidenciada na composição
fotográfica e as referidas contribuições teóricas de Veblen aqui introduzidas. Vejamos:
Imagem 113
Imagem 14
Ambas as imagens se referem ao cerimonial de abertura do “match do século”,
realizado no dia 1º de julho às 8 horas da tarde no teatro nacional de Reykjavik. A imagem 1, retrata
o momento da fala do ministro de educação da Islândia. Muito próximo ao palco, se situa um
potencial público de espectadores/torcedores, trajados rigorosamente para aquela ocasião. Na lateral
interna do teatro, em uma espécie de camarote (lugar distintivo), se acomodam o presidente da
Islândia, o senhor Kristjan Eldjarn, e a primeira-dama. Já a imagem 2, fornece uma visão mais
delimitada da platéia. Na primeira fila, temos a figura do enxadrista soviético Boris Spassky (o
primeiro de baixo para cima) e do embaixador soviético Rergei T. Astavin (ao lado de Spassky).
Tais imagens, no nosso ponto de vista, são bastante explícitas quanto à presença da alta
sociedade islandesa no cerimonial de abertura do “match do século”. Diante desta conjuntura
inferida, algumas questões nos incorrem: Porque a alta classe islandesa se fizera presente naquele
evento? Seria o fato dos islandeses serem aficionados pelo xadrez? Ou então, esses indivíduos
teriam sido motivados pelo prazer em participar de um evento de tamanha singularidade no mundo
esportivo?
Obviamente, que seria muito arriscado responder tais indagações em uma única direção
específica. Pelo contrário, acreditamos que vários fatores e pressões sociais definiram a formação
da figuração dos torcedores durante o “match do século” de 1972. Um destes fatores, que, inclusive,
mantém coerência com a realidade social que pudemos verificar nas duas fotografias evocadas,
13 Imagem extraída de GONZÁLEZ, 1972, p. 79. 14 Imagem extraída de GONZÁLEZ, 1972, p. 80.
7
seria a necessidade dos possíveis grupos ou indivíduos pertencentes à alta classe islandesa angariar
prestígio para si, estabelecendo uma concorrência acirrada, já que cada membro quando se depara
com essas situações esportivas ou festivas procura, segundo Veblen, dar sempre o maior lance
possível, isto é, o lance com potencialidade a arrematar sua vitória no cenário social em que está
inserido.
A partir desta idéia, podemos supor que se dois indivíduos e suas respectivas famílias
tiveram condições de ocupar as melhores cadeiras no teatro de Reykjavik para prestigiar aquela
cerimônia de abertura, o que teoricamente aloca ambos em situação social muito próxima, novos
critérios de distinção social, possivelmente, foram estabelecidos e entraram em jogo, como, por
exemplo, qual família estava mais bem trajada, qual indivíduo tinha a esposa mais bela e com os
melhores enfeites, quais objetos de uso eram mais valorosos e requintados, e daí por diante. Eis aí, o
que Veblen, em seu modo de encarar a sociedade, concebe como mesquinharia da vida social – uma
vida de fingimento altamente regulada pelos padrões pecuniários do gosto, do consumo e do
envolvimento nas atividades de lazer.
Adorno e a indústria cultural
Theodor Adorno foi um leitor acurado de Veblen, procurando não somente afirmar a
crítica deste autor ao padrão de vida pecuniário e ao consumo conspícuo da sociedade, mas
complementar e ampliar esses conceitos. Esse projeto foi concretizado por Adorno em parceria com
Horkheimer em 1947, quando criam o conceito de indústria cultural, que, de certo modo, contempla
e atende aquelas dimensões críticas inicialmente apontadas por Veblen em “A teoria da classe
ociosa”.
Indústria cultural para Adorno & Horkheimer não é uma entidade física, mas uma
expressão irônica daquilo que é produzido culturalmente e ofertado como uma mercadoria para os
indivíduos. Por sua vez, a indústria cultural tem potencialidade tanto para produzir o produto quanto
para criar a necessidade de consumo do mesmo, o que de antemão nos sugere, que a própria cultura,
na visão de Adorno & Horkheimer, seria reproduzida segundo os princípios de comercialização de
seus próprios produtos.
No que se refere, ao esporte e lazer, o conceito de indústria cultural nos permite
aproximá-los ou, até mesmo, contextualizá-los enquanto significativos elementos constituintes deste
processo que essa própria indústria fomenta na sociedade. A principal crítica traçada em relação ao
esporte, por esses autores da chamada primeira geração da Escola de Frankfurt, consiste naquilo que
entendem por massificação e mercadorização das práticas esportivas – processos que visam
primeiramente homogeneizar para, em seguida, nivelar e alienar intelectualmente os indivíduos
8
quer sejam praticantes, quer sejam espectadores. De uma maneira mais incisiva e nas palavras de
Gebara, “(...) a indústria cultural que, preliminarmente é definida como um sistema uniforme no
todo e nas partes, é um sistema universal, controlando o esporte e o lazer especialmente quando
estes são mercantilizados, e induzindo à obediência em massa de maneira não crítica”. 15
Isso quer dizer que a indústria cultural, enquanto um sistema organizacional do tempo e
do consumo na sociedade capitalista, muito bem se vale da suposta predisposição que o esporte
apresenta em integrar as grandes massas, sob um mesmo conjunto de signos, regras, e esquemas, os
quais, segundo Adorno & Horkheimer, refletem os valores imediatistas do capitalismo e se
distinguem pelo baixo esforço intelectual que suscitam nos agentes.
Outro ponto, a nosso ver, de extrema importância a ser destacado em Adorno &
Horkheimer é que eles, de forma preliminar, já denunciam uma divisão entre prática de esporte e
consumo esportivo, sendo essa última categoria, na visão dos autores, a mais inclinada a alienar os
indivíduos. Vejamos, em seus próprios termos:
O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto
prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida
em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que
pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada. Os
desenvolvimentos devem resultar tanto quanto possível da situação imediatamente
anterior, e não da idéia do todo. 16
Esse tom crítico e pessimista de Adorno & Horkheimer, pode ser transferido para
pensarmos o comportamento do público em Reykjavik durante o período de realização da final do
campeonato mundial de xadrez disputada entre Spassky e Fischer em 1972. Observemos algumas
imagens, nesse sentido:
Imagem 317
Imagem 4 18
15 GEBARA, A. Veblen, Adorno e as Bicicletas. In: VIII Congresso Brasileiro de História da Educação Física, Esporte,
Lazer e Dança. Cd rom. Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, dezembro de 2002, p. 04. 16 ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 128-129. 17 Imagem extraída de GONZÁLEZ, 1972, p. 94. 18 Imagem extraída de GONZÁLEZ, 1972, p. 125.
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A imagem 3, retrata um grupo de espectadores acompanhando, ao vivo, ante a um
tabuleiro mural (projetado em vídeo e que, inclusive, não aparece na imagem) a partida de abertura
do match realizada em 11 de julho de 1972. A imagem 4, por sua vez, diz respeito a uma
aglomeração de fãs e torcedores cercando o carro que levaria Fischer (em destaque na foto) para seu
hotel em 20 de julho de 1972, logo após este derrotar Spassky na quinta rodada e, assim, igualar o
match em 2,5 a 2,5.
Dado o conteúdo dessas imagens, trata-se de um exercício, no mínimo interessante,
olhar para as mesmas segundo o viés crítico sustentado em Adorno & Horkheimer, principalmente a
que retrata a conglomeração do público junto a Bobby Fischer. Dessa forma, ao mantermos
fidelidade a perspectiva crítica preconizada por esses autores, é possível supormos que a figuração
de torcedores/entusiastas identificadas nas referidas imagens, fora construída como um processo
imbricado à indústria cultural, cada vez mais presente na sociedade capitalista.
No entanto, e embora esse consumo massificado seja um indício de alienação, não
podemos esquecer que os espectadores de torneios e campeonatos de xadrez constituem um público
intelectualmente privilegiado, que têm acesso aos difíceis códigos de interpretação e leitura do jogo,
o que de antemão, talvez justifique seu interesse pelo jogo, pelo “match do século”, por Bobby
Fischer etc. Em outras palavras, queremos dizer que raramente alguma pessoa que desconheça ou
não saiba jogar xadrez irá se interessar por xadrez, embora no contexto histórico-social do “match
do século” haja o imperativo do confronto entre Estados Unidos e União Soviética transportado
para aquele microcosmo.
Passemos agora a interpretações sociológicas que não desconsideram a dinamicidade
dos agentes diante das estruturas sociais. E isso em função da capacidade dos indivíduos gostarem
de determinadas práticas (ainda que o seja por que tais práticas lhe conferem certa diferenciação
quo na sociedade) ou então porque sentem prazer ou emoção enquanto se envolvem como
praticantes ou espectadores nas mesmas.
Bourdieu e os lucros de distinção
Uma das principais contribuições relegadas por Bourdieu em seu conjunto de textos
referentes à compreensão do fenômeno esportivo 19
é a estruturação de um quadro de análise que
nos permite compreender devidamente a distribuição e orientação dos consumos e das práticas
19 BOURDIEU, P. Como é possível ser esportivo? In: Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983, pp.
136-153; BOURDIEU, P. Programa para uma Sociologia do Esporte. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp.
207-220.
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esportivas na sociedade. Para isso o sociólogo, nos apresenta basicamente uma economia cultural 20
dos bens esportivos pautado na relação entre, de um lado, a oferta – bens esportivos oferecido aos
agentes sobre a forma de práticas e consumos – e de outro, a demanda – orientada pelo gosto e pelas
transformações nos estilos de vida.
A partir dos pressupostos conceituais bourdieusianos pode-se entender por demanda da
prática de esportes o ato dos agentes estarem jogando voleibol, lutando boxe ou disputando uma
partida de tênis, dentre outras possibilidades. Já o consumo esportivo passivo, se evidencia quando
os agentes estão acompanhando uma partida de futebol pela TV, ou compram uma camiseta do time
que torcem, ou ainda, quando crianças e adolescentes passam a se comportar de acordo com os
estereótipos e padrões disseminados através da transmissão de espetáculos esportivos na mídia, e
que incitam modos de vestir, de falar, de se alimentar e de, uma forma mais específica, escolher
redes de sociabilidade e convivência.
Ao pensar nas formas como se apresentam os consumos e as práticas esportivas
Bourdieu procura estabelecer relação imediata com as posições sociais. Segundo o sociólogo, na
medida em que se desce na hierarquia social a probabilidade de um agente praticar esporte depois
da adolescência, isto é quando adulto ou idoso, diminui nitidamente. Já quanto à possibilidade de
assistir aos espetáculos esportivos mais populares, essa decresce na medida em que os agentes
sobem na hierarquia social. 21
Conforme Bourdieu:
Os lucros distintivos são dobrados quando a distinção entre as práticas distintas e
distintivas, como os esportes “chiques”, e as práticas que se tornaram “vulgares”,
devido à divulgação de vários esportes originalmente reservados à “elite”, como o
futebol (...) é acrescida da oposição, mais marcada ainda, entre a prática do esporte
e o simples consumo de espetáculos esportivos. 22
Podemos então perceber a formação de um campo esportivo substanciado pela tônica da
dicotomia entre esporte-prática e esporte-espetáculo; entre esporte de elite e esporte de massa.
Contudo, outras oposições também se vinculam a este campo, como as que seguem reiteradas:
amadorismo contra o profissionalismo; esporte de lazer versus esporte de competição; esportes de
contato direto e esportes à distância; esportes que requerem de maior atividade intelectual e menor
20 Segundo Mike Featherstone (1995), falar em uma economia dos bens culturais não significa reduzir ou subordinar a
produção de bens e estilos de vida à economia. Nas palavras do autor (1995, p. 125), “seguir a abordagem de Bourdieu
significa, antes, reconhecer a autonomia de práticas específicas que precisam ser compreendidas em termos da dinâmica
interna, processos e princípios estruturantes que operam no interior de um campo específico e funcionam de modo
análogo a economia”. Para um maior aprofundamento sobre a importância da sociologia bourdieusiana na leitura dos
estilos de vida e cultura de consumo ver: FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo:
Studio Nobel, 1995. 21 BOURDIEU, 1983, p. 143. 22 Ibidem, p. 143. Aspas no original.
11
dispêndio físico versus esportes que solicitam de maior uso da força e de uma menor capacidade de
reflexão, e os exemplos se multiplicam.
Sinteticamente falando, o esporte é, portanto, tratado na sociologia bourdieusiana como
um estilo de vida distintivo e complacente com a lógica das posições sociais, isto é, como um
campo onde estão em jogo às próprias definições legítimas da prática esportiva e dos usos
diferenciados que se pode fazer do corpo nos esportes. Além disso, é nesse mesmo espaço social
configurado que se definem os gostos dos agentes, através de uma alquimia das classificações
imanente ao jogo, e que muito mais que indicar que “o motor de todas as condutas humanas seria a
busca da distinção”, o que, “não seria nenhuma novidade se pensarmos, por exemplo, em Veblen e
em seu “consumo conspícuo”, 23
demonstra que existir em um espaço é diferir; é ser diferente; é ser
classificado e, ao mesmo tempo, classificante. Dessa forma, é perfeitamente compreensível que para
haver gostos,
(...) é preciso que haja bens classificados, de "bom" ou "mau" gosto, "distintos" ou
"vulgares", classificados e ao mesmo tempo classificantes, hierarquizados e
hierarquizantes, e que haja pessoas dotadas de princípios de classificações, de
gostos, que lhes permitam perceber entre estes bens aqueles que lhes convém,
aqueles que são "do seu gosto". 24
Essa capacidade de percepção, apreciação, enfim, de escolhas de práticas, equivale a ter
o sentido do jogo – habitus – impresso, tatuado no corpo, ou seja, incorporado nas formas de
determinado agente, agir, encarar e se situar no espaço social. O gosto então enquanto conjunto de
práticas e de propriedades de uma pessoa ou grupo funciona como “(...) operador prático da
transmutação das coisas em sinais distintos e distintivos (...)”, 25
possibilitando que as diferenças de
ordem material se convertam em diferenças de ordem simbólica e vice-versa.
Tais constatações nos autorizam a encarar o gosto como sendo o produto do encontro de
duas histórias – uma objetivada e outra incorporada. História objetivada porque está diretamente
relacionada à exposição de bens e práticas nos campos de produção cultural, ou em palavras
semelhantes, à exteriorização da oferta, segundo sanções de uma economia não econômica que
apresenta objetos e produtos propriamente classificados. E história incorporada porque se interioriza
nos agentes os sistemas de classificação que lhe permitem escolher, dentro dos limites impostos
pela estrutura e de maneira não consciente (embora não possamos descartar as intenções e
transições conscientes), entre os bens e práticas disponíveis e precedentes ao gosto em si.
23 BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 8. ed. Campinas: Papirus, 2007b, p. 22-23. Grifos no
original. 24 BOURDIEU, 1983, p. 127. Aspas no original. 25 BOURDIEU, 2007a, p. 166.
12
O esporte é uma dessas práticas classificadas, classificantes e classificadoras. Não
obstante, os próprios eventos esportivos também o são; definem posições distintivas a serem
antecipadas por agentes dotados do senso de percepção e apreciação requisitada. E isso
essencialmente porque o esporte – inclua-se aqui a oferta dos eventos esportivos, como, por
exemplo, o cerimonial de abertura do “match do século” ou as partidas correspondentes – se trata de
uma prática objetivamente classificada e com potencialidade a se converter em prática
classificadora, isto é, a se tornar um lucro e expressão simbólica da condição de classe.
Deste modo, não seria equivocado dizer que as diferentes posições ocupadas pelos
agentes no espaço social, correspondem a estilos de vida mais ou menos ajustados, e, além disso,
que os gostos de classe são a conseqüente incorporação da estrutura do espaço social através da
experiência dóxica desses mesmos agentes em uma região determinada do referido espaço. 26
Na definição dos estilos de vida, ou melhor, na “estilização da vida” é que residem,
portanto, as variações que balizam os gostos. Por sua vez, o gosto pode se exprimir de duas formas
complementares, ou seja, contemplando as exigências impostas pela necessidade dos agentes e
grupos, ou então, como estratégia cuja expectativa é suprir a vida luxuosa (distintiva) condizente
com as posições ocupadas. Dessas impressões, sucessivamente, derivam dois conceitos chaves
desenvolvidos por Bourdieu no livro “A distinção”: consumo cultural distinto e consumo cultural
vulgar.
No primeiro caso, o consumo é entendido exatamente pela raridade e distinção social
que engendra. Já no segundo caso a banalidade e o fácil acesso ao produto, bem ou prática,
representa o código de vulgaridade investido no jogo. Assim, o consumo distinto pressupõe um
acúmulo razoável de capital econômico e cultural, ao passo que o consumo vulgar, geralmente, está
desprovido do volume desses capitais. No entanto, seria muito equivocado de nossa parte pensar
que esses dois pólos funcionam de maneira mecânica, o que, conseqüentemente, camuflaria a
existência de uma posição intermediária. Para Bourdieu esse projeto não é válido, já que entre o
consumo distinto e vulgar existem zonas intermediárias povoadas por práticas pretensiosas e pela
discordância dos agentes. 27
Dadas essas considerações teóricas, se faz pertinente, portanto, observamos novamente
as quatro fotografias anteriormente evocadas e, com um olhar de conversão, recuperar a
dinamicidade dos agentes dissolvidas na abordagem de Adorno & Horkheimer e tratada de maneira,
no mínimo, secundária em Veblen. Nesse exercício exploremos tanto as generalidades quanto as
particularidades explicitadas nas referidas imagens.
26 Para uma discussão mais aprofundada ver: BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, R, (org.). A
sociologia de Pierre Bourdieu. São Paulo: Olho d’Água, 2003, pp. 73-111. 27 BOURDIEU, 2007, p. 167.
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Do lado das generalidades, temos o argumento de que o fulcro norteador dos processos
sociais ilustrados nas quatro fotografias foi também, incondicionalmente, o gosto. Nesse sentido, a
presença diretamente participativa da sociedade islandesa durante o “match do século”, o que
abrange desde o cerimonial de abertura até a definição do match na 21ª partida, pode ser
interpretada como uma prática balizada pelo gosto – um gosto despertado tanto pelas necessidades
psicossociais dos agentes, quanto digerido como consumo distintivo, isto é, como gosto que atrai
vantagens não necessariamente conscientes e planejadas aos adeptos.
Já do lado das especificidades, nos incorre uma suposta diferenciação entre os agentes
que acompanharam o “match do século” pela ótica do consumo cultural distinto e aqueles que se
envolveram como componentes do chamado consumo cultural vulgar. As duas primeiras imagens
nos remetem aos traços mais distintivos do consumo; enfim, ao consumo de agentes providos de um
alto capital econômico, seguidos da posse de um capital cultural e simbólico razoavelmente
significativo. A terceira e quarta imagem, por sua vez, nos levam a crer na efetivação de um
consumo mais vulgarizado, já que o contato corporal desordenado se constitui como um traço (ou
conduta) que as classes mais privilegiadas tendem a repudiar. Some-se a esses indicativos ainda, o
fato dos agentes retratados, especificamente, na composição fotográfica 3, ocuparem uma posição
de acompanhamento das partidas mais compatível com seu capital econômico, já que os ingressos
para ver as partidas no salão principal onde se encontravam Fischer e Spassky eram limitados e
extremamente caros. Logo, tal situação evidenciada nos leva a concluir que os referidos agentes
identificados na imagem 3, estavam sendo movidos pela necessidade de provimento tanto do seu
gosto pelo xadrez quanto de se envolver, ainda que segundo os parâmetros de uma condição mais
vulgarizada, num evento de singular importância no universo enxadrístico.
Explorada razoavelmente essa economia dos bens simbólicos e dos lucros de distinção
em Pierre Bourdieu convém finalmente passarmos a economia das paixões, dos afetos e das
emoções desenvolvidas na sociologia configuracional de Norbert Elias.
Elias e a mimesis social
No primeiro volume do processo civilizador, o sociólogo alemão Norbert Elias compõe
uma rigorosa descrição dos manuais de condutas que foram escritos sobre a sociedade cortês.
Destacamos principalmente a análise do tratado de Erasmo de Roterdã, intitulado “Da civilidade
pueril” – manual dedicado a um garoto nobre, filho de príncipe e que foi redigido por Erasmo
pensando estritamente na educação de crianças. Para Elias o referido tratado funcionou como um
importante indicador sociológico para construção de suas teses, já que “nele praticamente
14
reaparecem todas as regras da sociedade cortês. (...) Este tratado é, na verdade, uma coletânea de
observações feitas na vida e na sociedade”. 28
Mais especificamente, o tratado de Erasmo, dentre outros, foram úteis a Elias no sentido
de lhe permitir mapear os mais diversos padrões de comportamentos humanos presentes naquela
sociedade e que, segundo suas observações, estavam sendo modificados em uma direção muito
específica e marcados pelo aumento dos níveis de autocontrole, sensibilidade e repugnância. Em
suma, os tratados utilizados como fontes empíricas, permitiram ao sociólogo demonstrar a transição
dos hábitos durante a Renascença, bem como o aumento das pressões exercidas sobre os indivíduos
no intuito de que se comportassem em função dos padrões de comportamento emergentes e
civilizados. Conforme Elias, tais pressões tendiam a transformar no indivíduo “a economia das
paixões e afetos rumo a uma regulação mais contínua, estável e uniforme dos mesmos, em todas as
áreas de conduta, em todos os setores de sua vida”. 29
Segundo Elias, tais modificações no comportamento dos indivíduos em direção a um
maior autocontrole lhes moldaram o curso de suas vidas de modo a se diferenciarem ligeiramente
dos padrões antigos de comportamento. Além disso, essa nova “couraça social” vinha carregada de
um significado: comportar-se seguindo aquelas condutas, agora tidas como bárbaro-primitivas,
poderia ser comprometedor para melhor inserção do indivíduo na sociedade, bem como para seu
acesso a distribuição potencial de poder naquela configuração.
Podemos verificar a sustentabilidade dessa tese eliasiana, quando ele, exemplificamente
aborda no segundo volume do estudo, o processo de transformação progressiva dos guerreiros em
cortesãos. Conforme consta em seus escritos, a vida dos guerreiros antes dessa imposição severa as
emoções era mais livre, menos regrada, mais exposta às paixões e as tensões cotidianas. Seus
sentimentos eram menos controlados e suas ações menos restringidas, sobretudo no que compete ao
uso da força física e da violência. Tinham autonomia para amar, odiar, matar, defender afinco seus
interesses.
No Renascimento, com a ascensão dos principais estados principescos europeus e com a
crescente monopolização tributária, militar e da violência na figura do absolutista, os guerreiros
perdem sua autonomia e passam a depender firmemente do poder centralizado pelo monarca. Este
poder impõe medos e, por conseguinte, restrições aos antigos hábitos da classe guerreira que, nesse
sentido, se sujeita a um controle mais severo das emoções. Passa-se a vigorar uma nova regra na
vida dos guerreiros: se relacionar na corte, controlar as emoções, entrar em um jogo político de
interdependência.
28 ELIAS N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994a, p. 83. 29 ELIAS N. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1994b, p. 202.
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Desta forma, podemos inferir que é exatamente nas teias de interdependência em corte
que há o redimensionamento dos hábitos da classe guerreira, já que a referida configuração “(...) é
uma espécie de bolsa de valores e, como em toda “boa sociedade”, uma estimativa do “valor” de
cada indivíduo está continuamente sendo feita”. 30
Por isso é que a melhor integração dos guerreiros
naquela sociedade dependia do grau de adaptação aos valores e costumes emergentes na vida em
corte, bem como do juízo feito pelos demais sobre a natureza e a direção destes ajustes.
Para Elias, o processo civilizador não tem um início e um fim passível de ser
determinado. Trata-se de um curso lento de transformações psicogenéticas e sociogenéticas no
sentido de um refinamento das condutas e monopolização da violência. A propósito, uma das
críticas dirigidas a Elias é que o processo civilizador europeu que estudou no recorte de espaço e
tempo de cinco séculos já teria se completado. Além disso, o holocausto e as grandes guerras
travadas durante o século XX poderiam ser confrontados com sua teoria da civilização, colocando
em xeque suas premissas. No entanto, esse argumento, se trata de uma leitura, no mínimo,
apressada da obra de Elias.
A fim de reafirmar sua teoria do processo de civilização, Elias em parceria com Eric
Dunning começam a estudar os processos civilizadores esportivos. Para Elias, a gênese do esporte
moderno é uma das principais evidencias de que o processo de civilização que descrevera durante a
Idade Média não estaria encerrado. O autor procura demonstrar esse “impulso civilizador” dos
esportes pelo viés da “esportização”, ou seja, da crescente passagem ou, até mesmo, substituição
dos jogos antigos e tradicionais pelas práticas esportivas modernas.
Conforme Elias o processo civilizador impôs e continua impondo normas às sociedades
e aos seus comportamentos, fazendo com que suas emoções sejam reprimidas em tudo aquilo que se
julga e se encara como atividades sérias da vida. É o que acontece, por exemplo, no trabalho, no
ônibus ou no supermercado, onde ninguém em sã consciência tem coragem de “dar um pulo” e um
“tamanho grito”. Elias bem adverte que “as pessoas que se agitam demasiado, sob o domínio de
sentimentos que não podem controlar, são casos para hospital ou para prisões”. 31
Entretanto, o sociólogo também ressalva, que existem locais, momentos e circunstâncias
que se permitem libertar uma espécie de “excitação agradável” sem ser necessariamente, taxado de
louco, anormal, insano. Ele fala de situações como: torcidas no estádio de futebol; indivíduos
envolvidos em práticas esportivas sejam como jogadores ou como espectadores; ou ainda,
estendendo esses elementos para nossa discussão, um grupo de pessoas reunidas em volta de Bobby
Fischer ou então acompanhando uma partida entre Fischer e Spassky sendo reproduzida em um
telão.
30 Ibidem, p. 226. Aspas no original. 31 ELIAS & DUNNING, 1992, p. 69.
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Observemos, nesse sentido, novamente as quatro imagens anteriormente introduzidas.
Seria muito reducionismo de nossa parte pensar que aquela figuração social de torcedores
estruturada durante o “match do século” em 1972 tenha se construído apenas em função da busca
por prestígio social no interior de uma classe, ou então graças ao movimento de alienação resultante
da indústria cultural na qual os eventos esportivos poderiam ser alocados.
Pelo contrário, é importante consideramos também os aspectos miméticos e catárticos
do jogo competitivo conforme sugeridos por Elias & Dunning. Para os autores, quando os
indivíduos se encontram em situações de jogo, lhes é permitido vivenciar uma luta sem tantos
perigos físicos que uma batalha real representaria. Trata-se, portanto, daquilo que eles chamaram de
combates miméticos, isto é, “(...) confrontos realizados por meio do jogo num contexto que pode
originar uma excitação agradável, desencadeada pelo combate, com o mínimo de ferimentos nos
seres humanos”. 32
Essas nuanças podem ser digeridas mais satisfatoriamente quando reportadas em
relação ao contexto histórico-social da Guerra Fria, transferido mimeticamente, se nossa hipótese
estiver correta, para o confronto entre Bobby Fischer e Boris Spassky frente ao tabuleiro de xadrez.
Exploremos melhor esse argumento.
Antes mesmo do “match do século” se realizar em 1972, Estados Unidos e União
Soviética já disputavam uma longa “partida de xadrez” que se iniciara após a Segunda Guerra
Mundial. Essa partida que aqui encaramos como Guerra Fria, se possibilitou através de uma série de
movimentos, cada um desses, a saber, dotados de significância histórica e, por isso, cruciais para a
compreensão do que teria posto em contraste URSS e EUA num confronto que transcendeu aos
campos de batalha, ou melhor, que nem se chegou a se delinear diretamente neles.
O historiador Paul Kennedy fornece uma possível conjuntura explicativa para o que
teria colocado em movimento a chamada Guerra Fria. 33
Para tanto, e segundo este autor, é
oportuno pensar em uma série de eventos e fatores que vinham se desenhando nas políticas internas
de Estados Unidos e União Soviética, assim como na ordem global anterior.
Kennedy enfatiza que durante o período da Segunda Guerra Mundial, as diferenças de
princípios políticos e ideológicos entre os Estados Unidos e a União Soviética foram
provisoriamente deixadas de lado, ante a necessidade de se unir forças para combater o nazismo e
fascismo em ascensão. 34
Com o fim da Segunda Guerra e a vitória dos Aliados (Estados Unidos, Grã-Bretanha e
União Soviética) essas divergências políticas, econômicas, culturais e ideológicas, já então
existentes, são trazidas à cena sob o viés do que ficou conhecido como Guerra Fria. Bem na
32 Ibidem, p. 95. 33 KENNEDY, P. Ascensão e queda das grandes potências: Transformação econômica e conflito militar de 1500 a
2000. Rio de Janeiro: Campus, 1991. 34 Ibidem, p. 355.
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verdade, a visão de harmonia, liberdade e paz mundial visada pelos Estados Unidos com o fim da
Segunda Guerra ainda era comprometida pelo regime soviético.
Mais especificamente, algumas posturas soviéticas desagradavam aos Estados Unidos,
tais como, a eliminação da democracia na Polônia e na Tchecoslováquia; o desejo da elite soviética
de isolar seus países satélites e seu povo das idéias e riquezas do ocidente; enfim a resistência
soviética a influência norte-americana suscitada pela intensificação do papel da ideologia naquele
bloco. 35
Eric Hobsbawm também se ateve à problemática da Guerra Fria. Em seu texto sobre o
breve século XX, o autor defende que esse período que vai desde o lançamento das bombas
atômicas a queda da URSS, não representou um período homogêneo, único e linear na história.
Hobsbawm apresenta alguns norteios importantes: o primeiro deles é a existência de no mínimo
duas fases para a referida guerra – primeira Guerra Fria que transcorreu até aproximadamente 1970,
e segunda Guerra Fria, depois de 1970 até a queda do muro de Berlim e a desfragmentação da
União Soviética.
Mais um ponto enfatizado pelo autor é que a Guerra Fria possivelmente não se originou
na Europa, mas nos Estados Unidos, e em função do temor que o governo norte-americano tinha de
uma expansão socialista pela Europa central e demais países. Outro aspecto que Hobsbawm aborda
diz respeito ao constante estudo e atenção que uma potência exercia sobre a outra, sem a qual se
inviabilizava jogar o jogo da corrida armamentista, tecnológica, cientifica, ideológica e por aí vai. 36
Diante de tal conjuntura pintada pelos autores citados, podemos entrever que durante a
Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética formaram aquilo que Elias chamou de
interdependência funcional onde “(...) os movimentos de um grupo determinam os movimentos do
outro grupo e vice-versa”. 37
Um lance que pode elucidar melhor isso foi, por exemplo, a retirada
dos mísseis norte-americanos na Turquia em 1962, e como resposta a desativação dos mísseis
soviéticos instalados na Cuba de Fidel Castro no mesmo ano. 38
Assim sendo, o “match do século” pode ser encarado como um confronto mimético –
uma disputa revestida de todo uma indumentária simbólica e que possivelmente gerou nos
torcedores/espectadores uma carga de excitação fornecida pelo quadro imaginário de uma guerra
entre dois extremos, a qual não se realizou em campos de batalha real, mas em palcos alternativos.
De outro modo, o “match do século” se caracterizou de fato como uma guerra protagonizada num
tabuleiro de xadrez, ou melhor, um capítulo de uma guerra, já que o embate entre capitalistas e
socialistas também abrangera demais esportes, além de outros setores da vida social.
35 Ibidem, p. 349. 36 HOBSBAWM, E. A era dos extremos: O breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 37
ELIAS, N. Introdução a Sociologia. Lisboa: Edições 70, 1970, p. 83. 38 HOBSBAWM, 1995, p. 227.
18
Considerações finais
Ao elencarmos quatro abordagens teóricas distintas para compreender a problemática
sociológica sobre a qual resolvemos nos debruçar, corremos o sério risco de ser enquadrados, a
priori e efetivamente, como adeptos de um ecletismo perigoso, quando senão de um relativismo
acadêmico.
No entanto, e já resguardados contra esse tipo de ataque, reiteramos que nosso intuito,
nesse artigo, não foi ir além de demonstrar que teorias tidas como concorrentes e, até mesmo,
inconciliáveis no campo da produção sociológica podem, a fim de substanciar a devida construção
de um objeto de pesquisa, caminhar conjunta e relacionalmente, fomentando um produtivo
exercício epistemológico que permite compreender como se estrutura determinada realidade social,
assim como tornar inteligíveis alguns mecanismos e desdobramentos adjacentes.
Como deixamos claro já de início, a questão central que norteou e motivou a construção
desse texto foi saber quais fatores e pressões sociais permearam a construção de uma figuração
social de torcedores durante a final do campeonato mundial de xadrez de 1972. Com esse objetivo
em mente, e pautados nas contribuições teóricas de autores consagrados da sociologia e que
reservaram um espaço significativo para discussão do fenômeno esportivo em suas obras, chegamos
a algumas conclusões, que de modo algum são definitivas e, além disso, serão retomadas com um
maior grau de acuidade em oportunidades futuras.
Amparados em Veblen, pudemos perceber que a participação da alta sociedade
islandesa no cerimonial de abertura e nas partidas pertinentes ao chamado “match do século”,
dentre outras contingências, conservava no fundo o desejo das classes mais abastadas patentearem a
riqueza aos olhos dos outros e angariar prestígio para si. De certo modo, essa economia da distinção
também foi confirmada pelos pressupostos teórico-conceituais bourdieusianos, não obstante, com
algumas ressalvas.
Para Bourdieu, os gostos enquanto propriedades definidas em relação a determinado
espaço social, expressam a dinamicidade dos agentes diante das estruturas sociais. Seja o gosto
distintivo ou vulgar, da ostentação ou da necessidade, os agentes de forma alguma são passivos, o
que, no entanto, não significa que devamos encarar esses mesmos agentes como calculadores
racionais.
Por sua vez, o consumo mais vulgarizado – resultante da alquimia das classificações
objetivas e objetivantes dos bens culturais – constitui-se como uma entrada bastante promissora
para problematizar os efeitos supostamente alienantes pertinentes à ação da indústria cultural.
Conforme vimos anteriormente, o gosto vulgarizado para Bourdieu está relacionado aquele
consumo mais banal e de fácil acesso, ao passo que a indústria cultural, para Adorno &
19
Horkheimer, se consolida como um processo que tende, primeiramente, a alienar as massas segundo
os valores e signos imediatistas do sistema cultural capitalista e, em seguida, conduzi-las
homogeneamente à obediência. E isso, dentre outros fatores, pelo baixo esforço intelectual que essa
indústria cultural suscita nos agentes.
Em Elias & Dunning, novamente os indivíduos são trazidos ao cerne do debate. A
propósito, seria muito ingênuo descartar o elemento da excitação na vida dos
espectadores/torcedores envolvidos em torno do “match do século”. Em outras palavras, seria
extremamente descabido de nossa parte rejeitar a incessante busca dos indivíduos por uma
economia emocional nos esportes. Além disso, é necessário considerarmos o imperativo de que o
“match do século” de fato se caracterizou como um confronto mimético e que, possivelmente, gerou
nos espectadores/torcedores, conforme dissemos anteriormente, uma carga de excitação fornecida
tanto pelos traços de prazer inerentes a prática enxadrística quanto pelo quadro imaginário de uma
guerra transferida mimeticamente para aquele microcosmo.
Á guisa de fechamento, convém frisarmos que esses sentidos e significados capazes de
explicar a construção social de uma figuração de torcedores em torno do “match do século” não se
tratam de abstrações teóricas, mas, ao invés disso, de impressões resgatadas a partir de uma
abordagem empírica teoricamente direcionada. Além disso, estamos plenamente convencidos de
que as facetas explicativas para o consumo esportivo engendrado naquele microcosmo não puderam
ser exploradas em sua totalidade aqui, e nem era essa nossa pretensão. Contudo, cremos ter dado
um passo importante para que em momentos mais oportunos possamos recompor, de maneira mais
ampla, as redes de interdependências sociais evidenciadas durante o “match do século” em 1972.
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