Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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SUBVERSA DOUGLAS SIQUEIRA MARTA CORTEZÃO GABRIEL AUGUSTO TAYLANE CRUZ PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ TAÍS BRAVO MARCEL VIEIRA LEONARDO CAMARGO FERREIRA ALEXANDRA TORRES YURI CLARO Vol. 4 | n.º 10 |maio de 2016 ISSN 2359-5817 Ilustração | A. MIMURA

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Encerrando o Volume 4 e preparando os novos rumos!

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SUBVERSA

DOUGLAS SIQUEIRA MARTA CORTEZÃO

GABRIEL AUGUSTO TAYLANE CRUZ

PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ TAÍS BRAVO

MARCEL VIEIRA LEONARDO CAMARGO FERREIRA

ALEXANDRA TORRES YURI CLARO

Vol. 4 | n.º 10 |maio de 2016 ISSN 2359-5817

Ilustração | A. MIMURA

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 4 | n.º 10

© originalmente publicado em 01 de junho de 2016 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

A. MIMURA

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidade.

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ALEXANDRA TORRES | ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO

PASSADO | 6

DOUGLAS SIQUEIRA | CRIADOR | 8

GABRIEL AUGUSTO | SENSÍVEL CENSOR | 10

LEONARDO CAMARGO FERREIRA | INDECISÃO SOCIAL | 14

MARCEL VIEIRA | MEIO-DIA E MEIA | 16

MARTA CORTEZÃO | ALGOZ | 21

PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ | CONFESSO QUE MORRI | 24

TAÍS BRAVO | GUIA| 26

TAYLANE CRUZ | CLANDESTINO | 30

YURI CLARO | O PRAZER DE TERMINAR LIVROS | 35

A. MIMURA | 38

SUBVERSA

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EDITORIAL

“Escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre a fazer-

se, que extravasa toda a matéria vivível ou vivida. É um processo, quer dizer,

uma passagem da Vida que atravessa o vivível e o vivido.”

Gilles Deleuze "A literatura e a vida"

Todo o final anuncia um começo. A Subversa encerra mais um Volume

e mais um semestre de trabalho que trouxe novas ideias, novos autores e

leitores, sempre alcançando alguns pequenos objetivos e mantendo outros em

nossos planos, sonhos e aspirações mais altas. Daremos uma pausa nos

números, para descansar um pouco e avaliar como tem sido a nossa

experiência por aqui e os passos que a revista tem dado, sem deixar de

publicar os textos dos colunistas e algum material eventual.

Queremos dedicar esse número a todos que nos ajudam a fazer a

Subversa diariamente e que ajudam a torná-la uma revista de todos. Todo o

tipo de incentivo nos motiva e confirma a importância desse tipo de trabalho

em diversos contextos.

O número é ilustrado por A. Mimura, nosso colaborador visual

permanente, autor de obras belíssimas que já são parte da revista. Somos

muito felizes por essa parceria.

Esperamos anunciar, em breve, notícias que movimentem os ânimos de

todos e que a Sub seja a companhia de leitura na praia, na lareira, sob sol ou

chuva.

Desejamos uma ótima leitura a todos!

As editoras.

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6

ALEXANDRA TORRES | Lisboa, Portugal.

ARQUEÓLOGOS DO NOSSO PRÓPRIO

PASSADO

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Desenterrar e pincelar os fósseis da nossa própria história, dependendo

da era a que se referem, pode ser um exercício doloroso se estes

evocam memórias que preferiríamos ter soterradas para sempre ou

prazenteiro se celebramos ter vivido as experiências fossilizadas.

Se é recorrente descobrirmos memórias que nos inspiram mágoa,

pegadas jurássicas que moldaram a pedra - a natureza de um

comportamento - parece que perpetuamos a melancolia procedente

do passado.

Porém, se olharmos para essas peugadas como parte do nosso

crescimento - lições aprendidas - então, talvez possamos apreciar os

nossos fósseis como peças de museu, cuja história marcou um caminho

mas não a forma de caminhar. Porque caímos e soubemos erguer-nos,

e continuámos a andar.

A evolução tem sempre um ponto de partida. Por vezes, parte da dor.

Outras vezes, da alegria. Mas sempre, sempre, parte da vontade. E a

isso chama-se: sobreviver.

ALEXANDRA TORRES (1975, Lisboa) estudou Design de Moda no Citex e na

Academia de Moda, Artes e Técnicas do Porto. Durante o seu percurso

profissional nunca abandonou a sua verdadeira paixão, a escrita. É autora da

saga fantástica O Segredo dos Imortais, com as duas primeiras entregas,

Passado e Presente, publicadas; Ossos, um conjunto de poemas que

constituem pequenas reflexões sobre o pensamento, coração e alma; e de

participações nas antologias poéticas Enigma(s) I e II, e Utopia(s). |

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DOUGLAS SIQUEIRA | São Paulo, SP

CRIADOR

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de todo movimento necessário

uma dança leve com o acaso

do grito preso indignado

uma canção de seis minutos afiados

de cada instante transitivo e raro

o eterno em movimento capturado

dos devires em mim em ato

um absurdo e surreal quadro a quadro

entre Pina Dylan -Bresson Buñuel

estou eu potente e perdido

ansioso por riscar o infinito

no espaço em branco deste papel

DOUGLAS SIQUEIRA tem 31 anos, é bacharel em Comunicação Social com

habilitação em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas

(Unicamp). É idealizador e escritor da página (autor ensandecido) desde 2013

e, além de escrever poemas, atua na área de Produção Audiovisual como

professor e realizador. | [email protected]

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GABRIEL AUGUSTO| São Paulo, SP.

SENSÍVEL CENSOR

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Renato é um cidadão comum. tem vida comum habitação

comum família comum trabalho comum diálogos comuns costumes

comuns enfim, um cidadão comum. Renato tem um filho. Samuel.

Samuel não é comum. Samuel vê pequenezas.

Renato acorda cedo pra labuta. come seu matinal comum de

café com pão. disposição. margarina ou requeijão depende da

situação. vai para o trabalho. trabalho desses qualquer. porteiro

qualquer manobrista qualquer servente qualquer segurança qualquer

ou até vendedor de frutas, desses qualquer que ganha pouco pra

muita luta.

Renato enfrenta seu dia de maneira comum. o tempo de espera

na parada de ônibus depois da longa caminhada, já não incomoda.

viajar em pé na lotação, também. o nascer do sol durante esse

percurso passa despercebido. a ausência de dona Benedita

cantarolando diariamente ao amanhecer enquanto despeja litros e

mais litros de água na calçada, também. até o bom dia que bolinha lhe

abana enquanto futuca os lixos da rua se torna descabido. não por

maldade ou qualquer outro infortúnio, mas porque se tornou comum.

as horas de seu dia se arrastam de maneira comum. a disputa

pela sobrevivência também. hoje precisou dobrar as mangas da

camisa e sair na mão com um filho da puta que atravessou seu

caminho. mas nada de mais, apenas uma discussão comum. a marmita

fria comida na guia já nem é problema. o suco de limão amarga vida,

também. ouvir que seu trabalho pobre não presta já não importuna.

ficar até mais tarde sem extra, também.

os dias de Renato também terminam de maneira comum. a

viagem em pé na lotação. uns falam novela outros futebol e todos

televisão. tremenda falação. ontem precisou colocar pra fora um

vagabundo que entrou pela porta de trás dizendo não pagar a

passagem, onde já se viu andar de graça. hoje foi mais tranquilo. rolou

até samba na praça. nem percebe que dona Benedita cantarolando

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diariamente ao anoitecer enquanto despeja litros e mais litros de água

na calçada, já não está mais. nem parou pra ver o que a galera

juntada na rua falavam dela. os preços das coisas aumentaram

novamente. a cachaça barril de plástico já nem esquenta mais a

goela.

em casa o jantar é de arroz e feijão comum. a queda de energia

na hora do banho, também. hoje Renato precisou disciplinar sua mulher

que insistia em aporrinhar sua vida com a história de dona Benedita que

morreu não morreu depois do infarto. apenas uma palmada de leve

dessas comuns. nada demais, disse pra ela. reclamação é coisa de

novela.

e Samuel procura pedaços de papel. encontra e corre para seu

quase quarto no cantinho. Samuel procura restos de linha retalhos de

tecidos tampas de garrafa palitos de fósforo queimados. encontra e

corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum. incomum

altera a vida comum de Renato. Renato pergunta Samuel o que faz?

nada, responde amiúde. na novela nada além do comum. a mulher

chorando no quarto, também. e Samuel continua seu trabalho,

quietinho. o que faz Samuel? nada, responde amiúde. como nada?

deixa eu ver. não está pronto, diz Samuel com a autoridade de sua

quase década de vida. Renato tenta manter a todo custo o conforto

que o comum lhe proporciona. Samuel continua procurando plásticos

usados cadarços de sapatos rebentados e, pedaços de papel.

encontra e corre para seu quase quarto no cantinho. isto é incomum.

quando o conforto é comum o incomum incomoda. muito perguntar e

ouvir está quase pronto, também. Renato rompe a barreira do comum

e caminha em direção a Samuel que arduamente se dedica a

convencê-lo aguardar um pouco mais, pois ainda não está pronto. no

incomum, empurrar uma criança já não afeta. ouvir o choro depois,

também. Renato retira bruscamente a tenda de tecido improvisada

que cobre o quase quarto no cantinho.

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Samuel constrói vidas. palitos de fósforo queimados com pedaços

de plástico morto dão vida a lindos cisnes. castelos caixas de leite se

erguem grandiosos com bandeiras reais e poderosos soldados tampa

de garrafa guardando a porta. formosos cavalos toco de vela galopam

a todo vapor por entre as camponesas moedas que colhem flores

tecido pelos campos verdejantes. frondosas árvores retalhos formam

densas florestas. mas, nada é tão belo quanto a revoada de pássaros

origami. centenas de todas as cores tamanhos texturas, livremente pelos

céus. uns rasantes outros altíssimos todos voantes. e Samuel acompanha

a mãe chorando em coro. Renato é convidado a voar. aceita. Renato

voa pela primeira vez. entre altos e rasantes convida Samuel e a mulher

a voar juntos. voam juntos.

Renato não é mais uma pessoa comum.

GABRIEL AUGUSTO, natural de São José dos Campos/SP, iniciou-se

artisticamente como músico da Orquestra Jovem da Fundação Cultural

Cassiano Ricardo. Designer Gráfico formado pelo SENAC, exerceu esse ofício

por vários anos. Em 2010, mudou-se para São Paulo para estudar teatro,

cursando HUMOR pela SP Escola de Teatro. Atualmente propõe como artista

projetos onde música, teatro e literatura se entrelaçam e constituem obra que

dialoga com a cidade em sua movimentação cotidiana. É ator no Coletivo

Nós, Palhaços!, músico e poeta das ruas. | [email protected] |

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LEONARDO CAMARGO FERREIRA | Vila Nova de Gaia, Porto,

Portugal.

INDECISÃO SOCIAL

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Na violenta cidade,

Que projetos se encontram

Na multidão desamparada?

Há sempre mau governo, má política,

Assim como nula é a consistente votação.

Cada vez mais, trabalha-se na impressão

Das vontades que não as próprias:

O papel sai tudo, exceto original.

E a cada dia, o medo das personalidades alastra-se,

Sem fim definido.

Mas numa outra dimensão dentro do próprio planeta,

O pensamento de retaliação é persistente, vicioso,

Parecendo nunca acabar revogado.

E assim vamos destruindo os que permanecem à nossa volta,

E os que seguem por arrasto.

"Todos, a não ser eu, são inúteis.", a simples reflexão diária.

Afinal, somos importantes,

Ou não passamos de escravos-sombra para os "superiores"?

Isto, sem nenhuma dúvida, é a indecisão social.

LEONARDO CAMARGO FERREIRA tem 16 anos e vive em Vila Nova de Gaia, no

distrito do Porto, Portugal. Frequenta a escola secundária Almeida Garrett.

Sempre adorou escrever e o mundo da literatura. Iniciou seu percurso nesta

fantástica arte aos 14 anos. Tem muitos escritos realizados. Continuará a

escrever até a sua respiração cessar. | LEONARDO-CAMARGO-

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MARCEL VIEIRA | João Pessoa, PB.

MEIO-DIA E MEIA

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O avô assiste de longe a tevê, sentado numa cadeira de balanço junto

à porta do quintal, o cabo Robério explicando o caminho da

perseguição, primeiro o meliante assaltou o mercadinho e na saída a

viatura da PM passava no local, vagabundo, o avó rumina do seu

canto, e houve então uma troca de tiros entre os soldados e o meliante,

que conseguiu ainda fugir na garupa da moto do comparsa, ferro

nesses vagabundos!, o avô grita mais excitado, e da sala a menina

responde, é o quê, vô?, deitada no sofá calorento com as pernas pra

cima e os dedos no celular, hj vai ter a festa, né ;), mas o avô retruca,

ainda mais alto, é nada não, abestalhada, a ronda seguiu a moto até

interceptar os dois já na descida da Tancredo Neves, sentido

Mandacaru, e os dois foram presos e agora estão à disposição do

delegado, o avô rosna insatisfeito, falando grosso, oxe, e não matou

essas pragas?, uma decepção que toca fundo dentro dele, uma raiva,

a cadeira indo e vindo nervosa, empurrada pelos pés enrugados numa

havaiana azul encardida, vagabundos, o repórter agora explicando os

procedimentos, depois de interrogar, o delegado vai dar baixa no

flagrante e encaminhar os bandidos para o presídio do Roger, ao que o

avô contesta, ainda mais indignado, mata logo esses porras!, e tá

falando comigo, vô?, a menina berra da sala, sem se mover do sofá, no

fundo até achando graça do esperneio do velho, meu vô tá ficando

doido, kkk, escreve na mensagem, rindo consigo mesma, e o avô,

irritado, brada a plenos pulmões, uma voz grave e engasgada, né

contigo não, sua miséria, e a menina acha mais graça, escrevendo pra

Maikesuel, to com saudade, mlk, e espera ansiosa a resposta, o

celular imóvel, silencioso, e a tela brilhante de repente se apaga, a

menina cansada de esperar, impaciente, começam então os

comerciais, bicicleta caloi de doze marchas, de quinhentos e noventa e

nove, por apenas quatrocentos e noventa e nove, em doze vezes no

carnê, só no armazém paraíba, o avô então se apoquenta, o controle

remoto em cima da mesa, lá longe, isso é uma merda!, ainda se queixa

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acabrunhado, e pra espanar o desconforto grita pra sala, ei, sua

quenguinha, venha preparar o meu almoço, e a menina, já habituada

aos xingamentos, aproveita aquela demanda pra acalmar a

ansiedade, Maikesuel, to com saudade, mlk, e calça então as sandálias

cor de rosa, o desenho da hello kitty já desgastado, e põe o celular no

bolso de trás do shortinho jeans, ei, bora, preguiçosa!, o avô continua

nas exigências, mas a menina se irrita, vixe, tenha calma, vô, e o velho

revida rabugento, quem já viu, sua maleducada, não me arremede

não, e a menina avança pela cozinha, soltando num muxoxo a sua

indiferença, pega então um prato do armário, põe duas conchas de

feijão, arroz branco, uma rodela de inhame, pedaços miúdos da

galinha guisada, pescoço e asa, e um punhado de alface, rodelas de

tomate, cenoura ralada, e mais uma banana madura ainda com

casca, e põe então na cabeceira da mesa, oxe, venha me ajudar aqui,

infeliz, o avô exige, apoiando com esforço as mãos nos braços da

cadeira, e a menina se achega junto e pelo braço levanta o velho, mas

o avô, uma vez erguido, empurra a menina pra longe, agora precisa

mais não, e então segue numa passada lenta, sem equilíbrio,

procurando logo no que se apoiar, e a menina fica olhando de perto,

torcendo no fundo pro avô cair, enquanto lá fora passa barulhento o

caminhão de gás, e o programa do Samuka volta do intervalo, e a

menina irritada vê o avô sentar-se à mesa, na cabeceira, e lamenta

consigo a queda que não houve, velho miséria, faz ela também o seu

prato, mas pouco, to com saudade, mlk, e senta na outra ponta da

mesa, de costas para a tevê, pega o celular e repara não ter nada

novo, só a hora acesa no alto, meio-dia e meia, e no fundo uma foto

dela e Maikesuel, da primeira vez juntos, a menina olha a foto e se

agonia, bloqueia o celular e devolve pro bolso, mlk, mlk, to com

saudade, vejam agora esse caso extraordinário, o padrasto acusado de

violentar as filhas da esposa, e uma música tensa, sombria, cresce no ar,

vagabundo, a menina se vira e olha por um instante a tevê, a polícia

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evitou que ele fosse linchado pela população, e o avô se revolta, um

soco na madeira da mesa, mas olha, salvaram o vagabundo!, e a

menina retorna pro seu prato, mais uma, mais outra garfada e desiste

de comer, levanta e deixa o prato na pia, o repórter agora entrevista o

acusado, e o avô interrompe a colherada no ar, grãos de arroz tingidos

da graxa da galinha caem na mesa, e a menina também se interessa,

olha pra tevê, o sujeito de cabeça baixa, sem camisa, hematomas nos

ombros e curativos nos braços, o acusado resistiu à prisão, prossegue o

repórter, e deu uma sorte do cão que a polícia salvou o teu rabo, heim,

e põe o microfone junto à boca dele, mas nada sai, a cabeça baixa,

sem camisa, e a menina logo se desinteressa, olha o celular e, de novo,

nenhum sinal, o avô aguardando a voz do acusado, o silêncio, e o

repórter diz, desse sorte, mas agora na cadeia a história é outra, quase

rindo na cara do sujeito, e o avô rindo também, crioulo vagabundo, vai

ser a namorada do presídio, e riu mais alto, satisfeito, dando um talho

na banana, a menina ainda na cozinha, olhando com repulsa tanto o

acusado quanto o avô, velho miséria, e sem resposta do celular sai da

cozinha, vou no banheiro, viu vô?, e o repórter segue insistindo,

querendo que o homem assuma o crime, querendo do homem que

saiba o que lhe espera, a namorada do presídio, o avô ri, e sem muito

mais volta pro estúdio, é com você, Samuka, mas o velho está saciado,

com um gesto enfadonho empurra o prato, se levanta com dificuldade

e, se apoiando na mesa, vai na direção do corredor, com dificuldade,

se apoiando no armário e nas paredes, trombando, tropeçando, um

traste, e a menina encosta a porta do banheiro, só encosta, mlk, to com

saudade, e então se dá conta de que menstruou, eita, merda, e abaixa

a calcinha e vê o lastro de sangue no fundo, eita, merda, eita, eita, e

assim, em pé com o short arriado, calcinha suja no meio dos joelhos,

abre a gaveta e vasculha lá dentro, eita, tá sem modess, eita, a menina

pingando sangue pelas pernas, vira o corpo pra pegar o papel

higiênico e vê o avô olhando pelo vão da porta, oxe, vô, tá doido?, a

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menina se agita, quase tropeça, e num pulo empurra a porta na cara

no velho, ainda gritando, tá doido, vô, e o velho fala pra si, quenguinha,

e sorri, e segue sua vida.

MARCEL VIEIRA é escritor, professor e pesquisador. Professor do Curso de

Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-graduação em Comunicação

da Universidade Federal da Paraíba, onde trabalha com Roteiro, Narrativa e

Dramaturgia. Autor de "Adaptação Intercultural: o caso de Shakespeare no

Cinema Brasileiro" (EDUFBA, 2013), vencedor do Prêmio de Melhor Tese do Ano

pela Associação Nacional de Programas de Pós-graduação em

Comunicação (COMPÓS). Possui contos e poemas publicados em Revistas e

Suplementos Literários, como a Revista Continente e o Correio das Artes. |

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MARTA CORTEZÃO| Tefé, AM /Segóvia, Espanha.

ALGOZ

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Era um dia gris

Ele grasnou palavras vis

Saiu batento a porta.

Ela, com a alma torta,

As pedras do seu triste pesar

Se pôs a juntar.

Seu coração desconsolado

Destroçou-se em mil pedaços.

Sua fraqueza agigantou-se,

Sua dignidade esfacelou-se

No presente do verbo amar...

E todas suas culpas foi chorar...

O gris se enegreceu do fel da noite

Convidando a morte, a foice...

Um grito silenciado de lágrimas

Segurou o fio da vida amarga.

Ele jurou amores pretéritos para o futuro.

Ela, de tempo presente, ainda suja,

Empapada de medo e pranto,

Rosto gélido, braços lânguidos,

Perdida de si em tantos nós,

Oportunizou ao seu cruel augoz

Seu único e cansado suspiro,

Entregando-lhe seu resto de vida.

Porque presa em tantos labirintos

Se joga aos leões famintos.

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MARTA CORTEZÃO nasceu em Tefé/AM/BR e é cidadã do mundo. É membro

da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-amazônicos (ABEPPA) e

professora da rede pública do Estado do Amazonas. Lecionou também, de

2001 a 2010, na Universidade do Estado do Amazonas (UEA/CEST/TEFÉ) e na

Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em 2011. Atualmente, cursa o

Mestrado em "Mundo Clásico y su proyección en la cultura occidental", em

Segovia (Espanha). Em novembro de 2014, estreou no mundo da escrita com

“Atreva-se”, na Subversa, onde também publicou outros quatro textos. Desde

setembro de 2014 escreve poemas e pequenas reflexões no seu blog

www.tefetupeba.wordpress.com e em sua página Banzeiro Manso, no

Facebook. | [email protected]

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PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ| Muriaé, MG.

CONFESSO QUE MORRI

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Como Neruda, confesso que vivi.

Mas para mim não houve mérito,

Que podia confessar que morri

Pois viver só se deu no pretérito.

Quando menino, não tinha tormento,

Era pipa a soltar pela rua,

Com enorme doçura e candura,

Mimo, proteção e alento.

Ah! Quando eu era pequeno...

Quantos sorrisos trazia...

Tinha de palpável o vento

E no suor – alegria!

Já não vejo as estrelas

Como noutrora as via

Apenas contemplo as cadeiras

Da copa e da sala, vazias.

E assim confesso “viver”,

Sem aquela vetusta doçura

Espalhada com as pipas nas ruas,

Que guardei e esqueci em Terê.

PAULO ENRIQUE FREITAS CRUZ é advogado atuante na zona da mata mineira.

Músico amador, escritor de poesia e prosa. Ganhador de diversos prêmios

literários. | [email protected]

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TAÍS BRAVO | Rio de Janeiro, RJ.

GUIA

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Introdução:

depois de tanto

te escrever

guardei

em segredo

os prints

só para íntimos

recortes de vontades

suspensas em palavras

mesmo cravadas

as sílabas soam

como fluxo

de alguma certeza

depois de tanto

não te esperar

invento desmedidamente

além do oceano

a volta

Primeira imagem:

no seu rosto passar protetor

indicar o perigo

as ruas expostas

seguras apenas ao alcance

das minhas mãos

Page 28: Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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são todas possíveis

marcas, amor

Segunda imagem:

te dar

Caldinho de Feijão

Pão de Queijo

Caipirinha

Brigadeiro

Essa Cidade

se conhece pela ponta

dos dedos até

a boca

Terceira imagem:

reparar se

a velocidade

o risco

a falta

de saneamento

e estrutura

os transbordamentos

as tempestades

o caos

te emocionam ou afastam

da parte de mim

antes de você

Page 29: Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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Por último:

calcular se fomos aquele continente

ou somos criação de outro lugar

fora das cartografias oficiais

e de propósito

ou por ser de humanas

errar as contas

e te deixar

em casa

TAÍS BRAVO é escritora e tradutora. Apesar de formada em filosofia,

sente pontadas no estômago quando alguém a apresenta como

filósofa. É colaboradora da Editora Alpaca e das revistas Capitolina e

Ovelha. Criou, junto com Natasha Ísis, a newsletter colaborativa

Mulheres que Escrevem. Gosta mais de ir à praia do que de existir. |

[email protected]

Page 30: Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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TAYLANE CRUZ | Aracaju, SE.

Gorda sempre foi a pedra no meu sapato. Mesmo sabendo

que eu não a queria, me quis. Fico preso a esta condição de

filho adotivo, a este teto de carne, osso e obeso coração que

insiste em me abrigar. Sou um cão mamando desesperado

nas tetas de uma vaca. É Gorda a culpada por eu ser assim.

O modo como mexe a colher no tacho, pondo no meu prato

caldos grossos que não pedi, faz com que eu liberte ainda

CLANDESTINO

Page 31: Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

31

mais meu lado mau. Ela sabe disto, me provoca

descascando uma banana e enfiando a fruta na goela sem

nem mastigar. Bato a colher no prato com ódio de Gorda

que se engasga diante de mim. Nunca pedi por uma mãe,

muito menos uma como ela, com pelos brancos brotando do

queixo como raízes de falsa mulher.

Gorda é feia. Sinto nojo de sua gula, da sua bunda que incha

mais a cada dia com as bolotas de pão engolidas com

desespero. Odeio todas as suas doenças: a diabetes, a

pressão alta, o seu problema no coração. Desprezo quando

me pede para passar na farmácia e comprar seus remédios,

tirando do pacotinho de plástico um dinheirinho sujo e

merrequento que juntou a custa de muito troco de pão.

Burra, Gorda acha que preciso do dinheiro dela. Disfarça, isso

sim, para não ter de me perguntar de onde venho todas as

tardes. Sabe que no bolso trago tudo que não me pertence;

sabe que fui capaz de furar muitos, tomando à mão armada

os pertences de alguém. Pouco me lixo, Gorda, digo a ela,

quando entro pela porta enfeitada de cupins, tiro um pouco

de cada um, pois gente com excessos é o que não falta por

aí. Gorda não me ouve. Está deitada no sofá, cochilando

após uma manhã de labuta na cozinha. Sua boca aberta

deixa sair o ronco cansado, esvaziando sua preguiça numa

baba grossa que escorre às duas da tarde, enquanto o pano

de prato ainda pinga pendurado na torneira da pia.

Page 32: Revista subversa vol 4 nº10 jun2016

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Quando acorda, já não me encontra em casa e corre à

esquina com uma latinha cheia de arroz e mortadela. Grita

meu nome na esperança de que eu volte para aceitar a sua

marmitinha de ternura. Mas o mal já está em mim pronto para

mais um recolhimento coletivo. É hora de sair e tomar os

excessos do mundo, tolher a ordem, aliviar minha raiva de

Gorda. Subo a ladeira, deixando a vaca que me criou na

esquina com sua saia roxa de bolinhas. Ela fica na esquina

pendida pelo peso de peitos que desafiam a capacidade de

equilíbrio humano, com sua latinha de falso alimento

esperando que eu volte. Não quero, Gorda, não quero nada!

E ela grita meu nome outra vez, erguendo a latinha que vai

escapando da minha vista à medida que me afasto. Não

quero a latinha com arroz e mortadela, Gorda; não quero

esse fedor que você tem quando sua; não quero precisar ler

a bula dos remédios para você, nem mijar na sua presença,

nem dividir um colchão fedorento com você. Pare, Gorda, de

dizer que sou inteligente, que leio bem e produzo frases

bonitas! Pare de me mandar produzir livros! Pare de sonhar

com livros que, se fosse para escolher, iria querer ser aviador.

Pare de ser tão burra, Gorda!

Livre da presença de Gorda, que ficou em casa cozinhando

alguma bosta de comida, vou pelas ladeiras, pelos morros,

pelas canais, como um bicho se escondendo. Inclinando o

corpo e flexionando a engrenagem para me armar, me

escondo pelas brenhas, camuflado por verdes medos, o fino

metal guardado e preparado na bermuda. Pego no cabo de

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madeira com a mesma confiança que tinha ao manipular

brinquedos de marcenaria na infância e ergo o metal afiado

sem a inocência com a quail erguia as espadinhas de pau ao

desafiar meu amigo Otávio para um “dulelo”. Manipulo com

vocação a arma branca que de branca só tem o nome

porque nela brilha uma luz vermelha que, confesso, me causa

mais transtorno fazer brilhar. Diante de mim alguém grita,

alimentando o buraco que a comida imunda de Gorda não

pode saciar. Recebo, de mão beijada, tudo que peço, sendo

fotografado por câmeras de olhos seletivos, que escolhem o

ângulo menos arriscado para, à noite, poderem dormir com

um registro menos explícito. Uma fotografia embaçada é o

que sou diante daqueles que, depois de gritarem, correm na

direção contrária à minha.

De volta a casa, vejo Gorda comendo pipoca diante da

televisão. Ela se entala, tosse, a garganta arranhando com os

pedacinhos do milho. Ri toda abestalhada de algum bobo

fazendo piada às onze da noite numa TV que chia. Perco a

paciência. Ela manipula o controle com seus dedos cheios de

anéis de plástico, fala para eu comer alguma coisa, tem

janta na geladeira, tá fria, mas serve. Quero nada não,

respondo, retirando dos bolsos coisas que agora me

pertencem. Gorda levanta, desliga a televisão, ajeita a alça

da camisola cheia de furos. Vou até a cozinha, tomo um gole

de água fria. Gorda grita: “Vem deitar, menino!”. Tiro da

bermuda a faca que gorda usa para cortar galinha,

deixando exatamente no lugar de onde tirei. Sei que,

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fazendo deste jeito, Gorda nem vai perceber e evito aqueles

momentos de ter mãe que não pedi. Vou deitar. Num

colchão fedorento, Gorda dorme virada com a cara para a

parede e sua alma flatulenta. Eu do lado, olho o teto até

adormecer. Durante a madrugada fedor e ternura se

confundem. Mas durmo tranquilamente, tenho sono de

menino.

TAYLANE CRUZ é graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de

Sergipe e escritora. Natural de Aracaju, SE, em 2015, lançou seu primeiro livro

de contos, "Aula de Dança e Outros Contos". Tem textos publicados em sites e

blogs literários. Apaixonada pela poesia de Adélia Prado e pelas narrativas da

escritora neozelandesa Katherine Mansfield, tem verdadeira obsessão pelos

temas que permeiam o cotidiano e é deles que nascem as personagens de

seus contos. | [email protected]

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YURI CLARO | Santo Antônio da Platina, PR.

O PRAZER DE TERMINAR LIVROS

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O prazer de terminar livros

é o mesmo êxtase

primitivo

de destruir um crânio

à assaltos de pedra

e se banhar com o sangue

entre pedaços de osso céreo

como se dissesse

eu venci

O prazer de terminar livros

vem do deleite

que Átila tinha ao cortar cabeças

e Tepes, ao deliciosamente empalar

seus inimigos, sorvendo um cálice

de vinho

O prazer de terminar livros

é da mesma violência pueril

de desalojar um osso

aos socos

em fratura exposta

para que todos vejam sua obra

O prazer de terminar livros

é como sempre

martelasse o dedo

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de seu próprio pai

e cuspisse-lhe na cara

O prazer de terminar livros

é recusar-se a dizer a verdade

mesmo que enfiem-lhe farpas

por baixo das unhas

arranquem dentes

chutem-lhe o estômago

furem-lhe os olhos

E matem-lhe, afinal.

É tudo um grande prazer profano

o genocídio da alma

adoração a morte

e a todos os fins.

YURI CLARO, estudante, totalmente inócuo, adora palavras difíceis e queria

saber usá-las em conversação diária sem parecer pretensioso, também tem

uma namorada com bochechas muito grandes. | [email protected]

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A grande questão é: somos nós todos dignos da complacência do outro, do

sorriso do outro na felicidade nossa, que a si lhe está vedada e a si não lhe diz

respeito_ sabendo nós naturalmente que a infelicidade de um sujeito é a

felicidade e a oportunidade do outro?

Paradoxalmente, sim; racionalmente, de modo algum. E é talvez neste circuito

labiríntico que a inteligência arvora a sua espessa cabeleira de animal

selvagem e sussurra as suas sábias, belas e indecifráveis palavras ao ouvido

versado no seu sussurro. Ou, talvez, não seja assim de todo. (trecho de

Bucéfalo, de A. Miyajima, nome pelo qual A. Mimura assina suas obras

literárias)

A. Mimura é o nosso colaborador permanente e um grande

incentivador da Revista; ainda um pouco misterioso, tanto para nós,

editoras, como para os leitores. Contudo, ao mesmo tempo já é "da

casa", de modo que, ao navegar pelo site da Rveista, o leitor poderá

encontrar seus desenhos ardiz e perspicazes. Como afirma Daniel Tomaz

Wachowicz, que também é um colaborador frequente da Subversa, “As

obras de Mimura são muito instigantes e nos fazem refletir

profundamente". Para conhecer um pouco mais de A. Mimura, leia a

ENTREVISTA que ele nos concedeu.

Sobre A. MIMURA

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]