REVISTA IMPULSO v.16 Set.dez.2005 Cem.anos de Jean.paul.Sartre

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Impulso, Piracicaba, 16(41): 9-12, 2005

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IMPULSO, Piracicaba, v. 16, n. 41, p. 1-111, set./dez. 2005

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Revista de Ciências Sociais e Humanas

Journal of Social Sciences and Humanities

INSTITUTO

EDUCACIONAL

PIRACICABANO

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Conselho de Política Editorial /

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41 (set./dez. • 2005)

"Cem Anos de Jean-Paul Sartre" /

"One Hundred Years of Jean-Paul Sartre"

Coordenação temática: M

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Scientific-Editorial Board

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A revista IMPULSO é uma publicação quadrimestral da EditoraUNIMEP (São Paulo/Brasil). Aceitam-se artigos acadêmicos, estudosanalíticos e resenhas, nas áreas das ciências humanas e sociais, e decultura em geral. Os textos são selecionados por processo anô-nimo de avaliação por pares (blind peer review). Para a apresentaçãodos artigos devem ser seguidas as normas da Associação Brasileirade Normas Técnicas (ABNT) [veja a relação de aspectos principaisno fim da revista].

IMPULSO is a journal published three times a year by the UNIMEPPress (São Paulo/Brazil). The submission of scholarly articles, analyticalstudies and book reviews on the humanities, society and culture ingeneral is welcome. Manuscripts are selected through a blind peerreview process. For the submission of articles, the preferred style guideare the Chicago Manual of Style (English) (Chicago, Chicago Univer-sity Press) [Please: give city, publisher and year of publication]; andRichtlinien für Manuskripte (German): Duden - Rechtschreibung derdeutschen Sprache (Stuttgart, Klett-Verlag, 2001) [Bitte Stadt, Verlagund Erscheinungsjahr angeben].

Aceita-se permuta / Exchange is desired.

Tiragem / issue: 1.000 exemplaresDisponibilizada em / available at:<www.unimep.br/editora>Impulso é indexada por / Impulso is indexed by

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Correspondência Editorial e Assinaturas / Editorial Correspondence and Subscriptions

Editora UNIMEP (<www.unimep.br/editora>)Rodovia do Açúcar, km 156 – 13.400-911Piracicaba, São Paulo / BrasilTel./fax: 55 (19) 3124-1620 / 3124-1621E-mail: [email protected]

Vol. 1 • N.º 1 • 1987Quadrimestral/Three times yearly

ISSN 0103-76761- Ciências Sociais – periódicos

CDU – 3 (05)

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Editorial

SARTRE

Jean-Paul Sartre teria completado cem anos em 21 de junho de2005. O fato de ele ter falecido em 1980 não impediu que várias ce-lebrações fossem realizadas em seu aniversário. Durante 2005, inte-lectuais, artistas e pessoas ligadas à academia em várias partes domundo têm dedicado simpósios, montagens teatrais, seminários, do-cumentários e até mesmo festas regadas a bolo e champagne em ho-menagem ao grande pensador francês. Também no Brasil, talvezcom menos pompa e circunstância, pode-se testemunhar algumasiniciativas, entre as quais a presente edição da revista Impulso.

A introdução da seção temática sobre Sartre, assinada pelos or-ganizadores deste número, Márcio Danelon e Sílvio Gallo, bem comoa nota biográfica de Michel Rybalka (curador dos escritos de Sartre),já nos dão um panorama geral sobre a vida e obra do filósofo francês.Aqui nos limitaremos, portanto, a conferir um panorama geral dessedenso número, apresentando rapidamente os textos e seus autores.

O núcleo temático se inicia com artigo de Juliette Simont, quebusca contestar a crítica feita a Sartre, segundo a qual seu livro Cri-tique de la Raison Dialectique “é a falência mais relutante da históriada filosofia”. Opondo-se a tal crítica, ela afirma ser necessário consi-derar o pensador francês como alguém que tenta articular o universale o particular de forma única e também contraditória. Em seu artigo,Luís Antônio Contatori Romano nos mostra o impacto da viagem deSartre e Simone de Beauvoir ao Brasil, em 1960, dedicando-se à aná-lise dos artigos publicados em jornais brasileiros e os debates suscita-dos durante sua visita. Mauricio Langon, por sua vez, dialoga comSartre de modo poético, mas também corajoso, ao tomar o caso emque o pensador francês procura por um amigo seu em um café paraquestionar a pretensão de intelectuais e filósofos de entrar em cena(nos cafés, na sala de aula, nas conferências), sem “colocar-se em seudevido lugar” e despirem-se de suas pretensões. Márcio Danelon cri-tica a concepção subjetivista de educação, a qual define o processo pe-dagógico como a formação do sujeito por meio da construção do seu

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Eu. Após uma detalhada leitura de La Transcendence de l’Ego em con-traponto com L'Être et le Néant, Danelon conclui que a consciênciaé sempre posicional e busca seu sentido fora dela mesma, o que, porsua vez, contradiz a primazia dada ao sujeito no processo educativo.Já Sílvio Gallo e Walter Matias Lima se dedicam à pergunta sobre oanarquismo de Sartre, respondendo-a positivamente com base na bi-ografia e em duas entrevistas do intelectual francês. Os autores real-çam as afirmações do filósofo francês contra o totalitarismo, a moralcristã e outras perspectivas totalizantes do ser e da existência, des-montadas em L'Être et le Néant. Concluem que Sartre não somenterefletiu, mas também agiu sob o moto de uma moral anarquista. Essaseção termina com o texto no qual o próprio Sartre, em entrevista aR. Fornet-Betancourt, M. Casañas e A. Gomes em 1979, estabeleceuma relação direta entre anarquia e moral. Agradecemos a Fornet-Be-tancourt, amigo de outras paragens e editor da revista Concordia, pelapermissão para a publicação dessa entrevista na Impulso.

A seção “Conexões Gerais” traz mais dois textos, distintos e aomesmo tempo complementares. Ao se dedicar a questões literárias eestéticas referentes ao fin-de-siècle – tanto o final do século XIX quan-to do século XX –, os dois, em certo sentido, dialogam com proble-máticas caras ao pensamento de Sartre. Em “Autodomínio e a formavariável”, Dale Wilkerson mostra que a palestra de Nietzsche sobreos fragmentos de Heráclito já antecipa o que o filósofo alemão en-contra depois em Platão: o paradigma grego na cultura e na filosofia.Em “A contemporaneidade da Matriz”, Marcelo Cizaurre Guiraurealiza uma leitura política da trilogia Matrix, amparando-se em Ja-meson, Zizek e críticos culturais. Conclui que, ao confundir escolhase fins, exagerar na abstração, buscar identificar um grande inimigocomum e tentar transcender o individualismo por meio de relaçõessentimentais, os filmes Matrix expõem os limites de nossa culturaatual, incapaz de criar uma consciência social coletiva.

Esta edição é fechada por Márcio Aparecido Mariguela e suaresenha do livro Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutórios,de Franklin Leopoldo e Silva. Na realidade, poderia também ser umponto de entrada para a leitura deste número, pois, em diálogo crí-tico com o livro de Franklin Leopoldo e Silva, Mariguela tece im-portantes considerações sobre a relação entre filosofia e literatura,demarcando e problematizando, assim, o movediço terreno sobre oqual o pensamento de Sartre e os artigos aqui publicados se baseiam.

AMÓS NASCIMENTO

Editor Científico da Impulso

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...............................Núcleo TemáticoThematic Section

Apresentação / ForewordSartre, Pensador MultitemáticoSartre, Multithematic Philosopher

MÁRCIO DANELON – UFU, Uberlândia/MGSÍLVIO GALLO – Unicamp, Campinas/SP 9

Nota BiográficaBiographical Note

MICHEL RYBALKA – WUSTL, St. Louis/MO 13

Indivíduo e Totalização: a dialética e seu restoIndividual and Totalization: dialectic and its rest

JULIETTE SIMONT – ULB, Bruxelas/BE 17

Literatura Popular: diálogos com Sartre no BrasilPopular Literature: dialogues with Sartre in Brazil

LUÍS ANTÔNIO CONTATORI ROMANO – FPM, Itu/SP 27

Filosofar en EscenaTo Philosophize in the Scene

MAURICIO LANGON – AFU, Uruguay/UR 39

A Crítica Sartriana à Subjetividade e suasImplicações no Conceito de Educação como

Formação do SujeitoSartre’s Critique on Subjectivity and its Implication inthe Concept of Education as Formation of the Subject

MÁRCIO DANELON – UFU, Uberlândia/MG 47

Sartre: anarquista?Sartre: anarchist?

SÍLVIO GALLO – Unicamp, Campinas/SPWALTER MATIAS LIMA – UFAL, Alagoas/AL 61

Anarquia e Moral: entrevista com Jean-Paul SartreAnarchy and Morality: interview with Jean-Paul Sartre 75

...............................Conexões Gerais

General ConnectionsAutodomínio e a Forma Variável: a palestra

de Nietzsche sobre HeráclitoSelf-mastery and the Variable Form: Nietzsche’s

Heraclitus LectureDALE WILKERSON – UNT, Texas/TX 81 Sum

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A Contemporaneidade da Matriz: sobre algunstemas políticos nos filmes da trilogia MatrixContemporaneity of the Matrix: on some political

themes in the Matrix trilogy moviesMARCELO CIZAURRE GUIRAU – USP, São Paulo/SP 89

...............................Resenhas & Impressões

Reviews & ImpressionsFilosofia e Literatura: tensão e interlocuçãoPhilosophy and Literature: tension and dialogue

Ética e literatura em Sartre: ensaios introdutóriosde Franklin Leopoldo e Silva

MÁRCIO APARECIDO MARIGUELA – UNIMEP, Piracicaba/SP 101

NORMAS PARA PUBLICAÇÃOEDITORIAL NORMS 105

NOSSOS CONSULTORES DE 2005OUR CONSULTANTS 111

Sum

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Núcleo TemáticoThematic Section

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ApresentaçãoForeword

Sartre, PensadorMultitemáticoSARTRE, MULTITHEMATICPHILOSOPHER

Comemora-se, em 2005, o centenário do nascimento do filósofofrancês Jean-Paul Sartre, certamente um dos mais significativos e repre-sentativos pensadores do século XX. Das correntes filosóficas entãoemergentes, destaca-se o existencialismo como, talvez, aquela que melhorsintetizou o contexto histórico-cultural da Europa em meados daqueleséculo. Sartre foi, com toda a certeza, um dos principais representantesdessa corrente, mas também aquele que melhor difundiu as teses exis-tencialistas, utilizando as mais distintas formas de linguagem: filosófica,literária e teatral. Dessa maneira, retirou o existencialismo da academia ecolocou-o na rua, em meio às pessoas que, embora distantes das discus-sões acadêmico-filosóficas, mostravam-se preocupadas com a própriaexistência.

Nascido em 1905, Sartre foi filho de um século (in)tenso até a me-dula, em que as contradições imanentes à condição humana produzirammovimentos instauradores de rupturas sociais. Emergiram das crises da-quele período situações que produziram movimentos sociais importan-tes, como a Revolução Russa, mas também projetos políticos que leva-ram a humanidade a duas guerras mundiais. Distante daquela revolução,mas carnalmente próximo dessas guerras, Sartre viveu o drama de pre-senciar a Europa e o projeto de uma civilização próspera – tese tão apre-goada no final do século XIX e início do XX – implodirem a partir do pró-prio umbigo.

O momento histórico de uma Europa duplamente destruída, mui-to menos em sua dimensão material, mas especialmente nas vidas coti-dianas de pessoas comuns, é particularmente profícuo às teses existen-cialistas de Sartre. Conceitos importantes na filosofia sartriana – comofacticidade, liberdade, projeto e situação – encontram, no drama exis-tencial do sujeito europeu burguês que presencia a destruição de seumundo, o cenário para o seu desenvolvimento. Peças de teatro como Ba-ríona e As Moscas retratam, por meio desses conceitos e com linguagem

MÁRCIO DANELONUniversidade Federal de

Uberlândia (UFU)[email protected]

SÍLVIO GALLOUniversidade Estadual de

Campinas (Unicamp)[email protected]

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camuflada para despistar a censura nazista, a situação da França ocupadae subjugada pelas tropas alemãs.

Sartre dedicou-se à filosofia, sobretudo à metafísica e à ética, bemcomo à antropologia, trabalhando no contexto do referencial teórico-metodológico da fenomenologia. Influenciado por Husserl, o fundadordo método fenomenológico, levou às últimas conseqüências o princípiode intencionalidade da consciência, instituindo a tese da nadificação daconsciência em oposição à substancialização da consciência, promovidapelo conceito husserliano de ego transcendental. Com uma perspectivabastante original no que tange à estrutura da consciência arquitetada nadualidade da consciência reflexiva e pré-reflexiva, o chamado Sartre fe-nomenólogo propõe uma saída ao problema de a regressão ao infinito daconsciência ser consciente de que é reflexiva do mundo. Ao apresentar aconsciência pré-reflexiva – intencional, portanto – como condição da re-flexão sobre o mundo, estanca essa regressão ao infinito, já que nada háantes dessa consciência pré-reflexiva.

Após a Segunda Guerra Mundial, volta-se para o problema da his-tória, num movimento que o aproxima do marxismo. Começa, então, odesenvolvimento de seu projeto de junção teórica do existencialismocom o marxismo, como um novo ferramental teórico na compreensãotanto do ser humano, como um ser individual, quanto do sujeito inseridonuma coletividade que se encontra nos meandros da história. Esse pro-jeto culmina com a produção da obra Crítica da Razão Dialética, na dé-cada de 1960, além de inúmeros artigos sobre suas visitas à União Sovié-tica e à Cuba.

Afora a sua dedicação à filosofia, Sartre foi também um importanteliterato do século passado, tendo se dedicado a escrever romances, nove-las e diversas peças teatrais – que ele mesmo montou e dirigiu –, além daobra Freud além da Alma, base para o roteiro de filme com o mesmo tí-tulo. Escreveu ainda diversas críticas literárias, depois organizadas e pu-blicadas nos dez volumes intitulados Situations.

Pode-se classificar Sartre como um pensador multitemático. Comoficou expresso anteriormente, ele transitou por diversas áreas das ciênciashumanas: com a filosofia, pela vertente fenomenológica e marxista; pela li-teratura, com romances como A Náusea e Caminhos da Liberdade; pelo te-atro, com a peça Entre Quatro Paredes, entre inúmeras outras. Produziu es-tudos biográficos sobre Genet e Flaubert, além de diversos comentáriossobre literatura, música e cinema.

Não tendo sido um filósofo acadêmico (jamais trabalhou na uni-versidade francesa, apenas um curto período como professor de liceu),tornou-se um fenômeno de mídia, sempre presente nos jornais franceses,por exemplo, na ocasião de sua influência marcante no movimento estu-dantil francês, em meados da década de 1960. Foi um dos responsáveispela fundação da revista de esquerda Les Temps Modernes. Laureado com

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o Prêmio Nobel de Literatura, recusou-se a recebê-lo, por considerá-loum empreendimento burguês e imperialista.

Na UNIMEP, a obra de Sartre tem sido foco de análise de uma sériede projetos de pesquisa, financiados pelo Fundo de Apoio à Pesquisa(FAP) da Universidade e pelo CNPq, entre 1999 e 2005. Desenvolvidospelos professores Márcio Danelon e Sílvio Gallo, contaram com váriosbolsistas de iniciação científica da Filosofia e de cursos afins. Da Licen-ciatura em Filosofia partiu também a iniciativa de propor à revista Im-pulso este número temático. Trata-se de fato de uma política, presente nocurso de Filosofia, de buscar parcerias, no interior da universidade e emespaços externos a ela, com o objetivo de consolidar uma cultura filosó-fica na UNIMEP.

Já compromissada com uma tradição de publicação de temas filosó-ficos – como os números temáticos sobre Freud, por conta do centenáriode publicação da obra Interpretação dos Sonhos, sobre Nietzsche, em vir-tude dos cem anos de sua morte, e sobre Kant, pelos dois séculos de seunascimento – e inspirada na obra deste pensador multitemático, a revistaImpulso apresenta este número em comemoração ao centenário de nas-cimento de Jean-Paul Sartre.

Esta edição da Impulso traz estudos sobre os diferentes temas abor-dados na trajetória intelectual do filósofo francês, com artigos sobre suafilosofia (tanto na fase existencialista quanto na marxista, discutindo in-clusive a pertinência de tal distinção), sua posição política, sua literatura,suas relações com a música e sua viagem ao Brasil. Merece ainda especialdestaque a publicação de uma entrevista concedida pelo filósofo, já ao fi-nal de sua vida, comentando suas concepções políticas e os aspectos éti-cos do anarquismo. Reúnem-se aqui textos escritos por pesquisadores daobra de Sartre, brasileiros e estrangeiros. A todos, os nossos agradeci-mentos por terem respondido ao nosso convite.

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Nota BiográficaBIOGRAPHICAL NOTE* 1

JEAN-PAUL SARTREParis, 21 de junho de 1905 / 15 de abril de 1980

“Velar nesta noite sobre todos os fronts da inteligência” (segundoAudiberti).2 Sartre foi, sem dúvida, durante o século passado, como o di-zia F. Mauriac, o contemporâneo capital, aquele que é encontrado em to-das as encruzilhadas da cultura. Dedicado incansavelmente à escrita desdea infância, ideologicamente criador, ele representa esse exemplo único deum homem que construiu, ao mesmo tempo, uma grande obra literáriae uma intensa produção filosófica, com base em sua existência pessoal esob o signo da liberdade. A inteira obra em sua diversidade está marcadapor essa coerência, sem que se possa falar de sistema. Sartre praticou qua-se todos os gêneros de escrita: ficção, filosofia, teatro, biografia, autobio-grafia, ensaios de todos os tipos, cadernos de anotações, jornalismo, cor-respondência... e se engajou forte e convictamente nos grandes debatesde seu tempo. Num plano geral, a comparação com Voltaire (sugeridapelo general De Gaulle) ou com Victor Hugo não é incongruente.

Seu pai, oficial da marinha, faleceu prematuramente. Sartre foieducado pela mãe e pelo avô, o qual fazia parte da família Schweitzer.Durante os anos de estudos no Liceu Henri-IV (Henrique IV) e, depois,na escola normal superior, Sartre liga-se a seus pequenos companheiros(petits camarades) Paul Nizan e Raymond Aron – que constituem tam-bém o objeto de uma comemoração nacional – e se encontra com Mau-rice Merleau-Ponty. Em 1929, tem uma aproximação capital com Simo-ne de Beauvoir e é recebido pela primeira vez no círculo filosófico. Emseguida, constitui, ao redor de si e de Simone de Beauvoir, uma família,da qual farão parte, entre outros, as irmãs Kosakiewicz, Jacques-LaurentBost, Michelle Vian e Arlette Elkaïm (que se tornará sua filha adotiva).Convocado pelo Exército, em setembro de 1939, foi feito prisioneiroem junho do ano seguinte. Após o retorno do cativeiro, funda o grupoSocialisme et Liberté (Socialismo e Liberdade) e se engaja na resistênciaintelectual. Mais tarde, buscando uma terceira via entre gaulismo e co-munismo, cria um partido, o Rassemblement Démocratique Révoluti-onnaire (União Democrática Revolucionária), que não teve êxito.

Nos anos 1940, aproxima-se de Albert Camus, com o qual, sob airrupção da Guerra Fria, rompe, em 1952, de modo estrondoso, antes de

1 Adaptado, com a autorização do autor, do site <http://www.jpsartre.org/article.php3?id_article=12>.Tradução do francês: FRANCISCO COCK FONTANELLA (UNIMEP/SP).2 Nota do Editor (N. E.): Jacques Audiberti (1899-1965), escritor e dramaturgo francês.

MICHEL RYBALKAWashington University in

St. Louis (WUSTL)[email protected]

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se separar também de Merleau-Ponty. Seis anos mais tarde, opõe-se à che-gada do general De Gaulle ao poder e denuncia as torturas na Argélia. As-sina, em 1960, o Manifesto dos 121 e, quatro anos depois, tendo publi-cado Les Mots (As Palavras), recusa o prêmio Nobel de Literatura. Parti-cipa dos acontecimentos de maio de 1968 e, durante algum tempo, en-coraja os movimentos esquerdistas. Seus últimos anos foram marcadospor uma cegueira crescente e pela enfermidade. Assim, não pôde mais seexprimir, a não ser por entrevistas. Sua morte, causada por edema pulmo-nar, aconteceu em 15 de abril de 1980. Seu cortejo fúnebre foi seguido, emParis, por cerca de 50 mil pessoas. Vários volumes importantes, particu-larmente os “Cadernos de anotações da guerra bizarra” e a correspon-dência com Simone de Beauvoir, sem contar o curto, mas precioso Véritéet Existence (Verdade e Existência), foram publicados após a sua morte.

Ataques virulentos atribuíram incansavelmente a Sartre erros polí-ticos. Entretanto, ele permanece o autor francês mais estudado e comen-tado de nossa época. Roland Barthes dizia ser necessário tomar o trem deSartre e, bem recentemente, escritores como Bernard-Henri Lévy, Jac-ques Derrida, Julia Kristeva, Alain Robbe-Grillet e Philippe Sollers ma-nifestaram interesse à sua obra. Textos de Sartre, em bom número, tor-naram-se clássicos. Em literatura: La Nausée, Le Mur e Les Mots (A Náu-sea, O Muro e As Palavras); em filosofia: La Transcendance de L’Ego,L’Être et le Néant e Critique de la Raison Dialectique (A Transcendência doEgo, O Ser e o Nada e Crítica da Razão Dialética). Huis Clos (A PortasFechadas) teve sucesso excepcional e foi encenado milhares de vezes, aopasso que peças como Les Mouches (As Moscas) e Les Mains Sales (AsMãos Sujas) continuam freqüentemente reapresentadas. A mise en scènepor D. Mesguich mostrou a grande força teatral de Le Diable et le BonDieu (O Diabo e o Bom Deus) e é possível descobrir, em edição daPléiade, a peça teatral Le Mystère de Noël, Bariona (O Mistério de Natal,Bariona), composta Sartre durante seu cativeiro na Alemanha. O estudosobre Flaubert, L’Idiot de la Famille (O Idiota da Família), é de granderiqueza, mas permanece como um continente a ser explorado, por causade suas dimensões. Fazemos ainda menção especial ao conto de fadas “Lechasseur d’âmes” (“O caçador de almas”), que Sartre inseriu em seu ro-mance juvenil Une Défaite (Uma Desfeita).

Simplificando, podem-se distinguir três grandes períodos na evolu-ção de Sartre. Até 1939, ele se vê como o homem solitário em sua liber-dade, na sua existência diante das coisas e das imagens. Influenciado porHusserl e Heidegger, descobre a fenomenologia. Porém, seguindo a tra-dição de seu país e se aproveitando do lado existencial da língua francesa(visível, por exemplo, na forte diferença gramatical entre pessoa e objeto),ele adapta a fenomenologia numa filosofia mais pública e aberta: o exis-tencialismo. Coloca, então, o acento na existência individual, consideradairredutível, na realidade humana e no vivido hic et nunc (aqui e agora).

Desde 1939 até 1968, Sartre aborda os problemas do indivíduo dian-te do grupo e proclama a necessidade do engajamento: “é preciso fazer al-

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guma coisa daquilo que os outros fizeram de nós”. Durante esse período,que pode ser definido como o da igualdade, torna-se o representante doexistencialismo francês em todo o mundo e empreende uma série de vi-agens: primeiro, aos Estados Unidos, depois, a URSS, China, Brasil, Japão,Oriente Médio etc. Assume posturas cada vez mais políticas e chega mes-mo a acompanhar posições do partido comunista, de 1952 a 1956, rejei-tando-as, em seguida, sem hesitação. Lê Marx e Freud, escreve biografias(Baudelaire, Genet, Mallarmé) e começa, ao mesmo tempo, seu estudosobre Flaubert e sua autobiografia. Opõe-se energicamente às guerras daIndochina, da Argélia e do Vietnã. Para ele, o engajamento torna-se tarefapermanente, assumindo-a com todos os instrumentos de protesto: ma-nifestos, apelos, petições, declarações públicas e manifestações de rua.

A partir de 1968, surge com uma filosofia da fraternidade, confir-mada em seus últimos entretenimentos com Benny Lévy, em L’EspoirMaintenant (A Esperança Agora), que permanece, porém, em grande par-te não articulada. Assim, Sartre terá seguido a evolução inscrita na divisada República Francesa: Liberté, Égalité, Fraternité (Liberdade, Igualdade,Fraternidade). Seu existencialismo é uma estética-filosofia em movimen-to para tempos de crise, com pontos comuns com o barroco, o roman-tismo e, nos dias de hoje, o pós-modernismo – contrário, desse modo,aos períodos da ordem, ou seja, o classicismo e o estruturalismo. Sartrenão renunciou a um profundo pessimismo: “Somos sub-homens à pro-cura de nossa humanidade”, nos diz. Esse pessimismo, entretanto, nãoexclui o realismo (por exemplo, aquele da famosa frase: “O inferno sãoos outros”) e dá lugar à esperança. São testemunhos disso: o seu ativismoincessante em favor dos direitos humanos e seus textos sobre a questãojudaica, negritude (Orfeu Negro), descolonização, Terceiro Mundo, oproblema basco, política etc. Por outro lado, sua colaboração com Simo-ne de Beauvoir o coloca em relação com o movimento feminista. Em2005, uma grande exposição na Bibliothèque Nationale e uma quinzenade colóquios na França e no estrangeiro buscam acentuar a contribuiçãohistórica de Sartre e discernir quais são as perspectivas abertas por suaobra para melhor compreendermos nossa pós-modernidade.3

Dados do autor

Doutor pela Universidade da Califórnia, Los Angeles, eprofessor de literatura francesa na Washington

University. É o principal curador dos escritos de Sartre,juntamente com Michel Contat, com quem, também,

escreveu e organizou a obra Les Ecrits de Sartre pelaEditora Gallimard, traduzida para diversas línguas.

Recebimento: 6/abr./05Aprovado: 3/jun./05

3 A respeito dessas atividades, cf. o site <www.jpsartre.org>.2

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Indivíduo e Totalização:a dialética e seu restoINDIVIDUAL AND TOTALIZATION: DIALECTIC AND ITS REST* 1

Resumo Bernard-Henri Lévy afirma, em Le Siècle de Sartre, a existência de doisSartres (um emergindo com a filosofia do sujeito, em La Transcendence de l’Egoe L’Être et le Néant; outro advindo da descoberta da história e da produção daCritique de la Raison Dialectique), criticando esse segundo e a dimensão dialéticade seu pensamento, caracterizada na tese de que a Critique de la RaisonDialectique “é a falência mais relutante da história da filosofia”. Tais argumentosjustamente são discutidos neste texto, na tentativa de transcendê-los, apontandoa complexidade dialética do pensamento sartriano. Apresenta-se, assim, umainterpretação de que os temas indivíduo/totalização têm, na concepção de Sartre,desde o começo, a mesma oscilação, se aprofundando e repartindo, sem,contudo, sofrer qualquer mutação radical. Por fim, propõe-se, contra a dualidadefilosófica de Sartre defendida por Lévy, o argumento da dialética conceitual nopensamento sartriano, ou um só Sartre – certamente contraditório (portanto, emequilíbrio instável) e que faz ouvir seus argumentos sobre, ao mesmo tempo, asingularidade do universal e a universalização do particular.Palavras-chave DIALÉTICA – HISTÓRIA – SARTRE – SUJEITO – TOTALIZAÇÃO –UNIVERSAL.

Abstract Bernard-Henri Lévi asserts, in Le Siècle de Sartre, the existence of twoSartres (one emerging with the philosophy of the subject, in La Transcendencede l’Ego and L’Être et Le Néant; and another arising from the discovery ofhistory and production of Critique de la Raison Dialectique), criticizing thelatter and the dialectical dimension of his thought, characterized in the idea thatthe Critique de la Raison Dialectique “is the most reluctant failure of the historyof Philosophy”. Such arguments are discussed in this article, in an attempt totranscend them, pointing out the dialectic complexity of Sartrian thought. Thus,it is presented an interpretation that the themes of individual/totalization have,in Satre’s conception, since the beginning, the same oscillation, deepening anddividing, without, nevertheless, suffering any radical mutation. Finally, it isproposed, against de philosophical duality of Sartre defended by Lévy, theargument of the conceptual dialectic in Sartrian thinking, or just one Sartre –certainly conflicting (thus, in an unstable balance) and that makes his argumentsheard, at the same time, about the singularity of the universal and theuniversalization of the particular.Keywords DIALECTIC – HISTORY – SARTRE – SUBJECT – TOTALIZATION –UNIVERSAL

1 Tradução do francês (Individu et Totalisation: la dialectique et son reste): FRANCISCO COCK FONTA-NELLA (UNIMEP/SP).

JULIETTE SIMONTUniversité Libre de

Bruxelles (ULB)[email protected]

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osso tempo gosta de escandir a passagem do tempo.Este ano, repetimos, Sartre teria completado seu cen-tésimo aniversário natalício. Faleceu há 25 anos. Tam-bém ressuscitou faz cinco: na passagem do milênio, emjaneiro de 2000, o livro de Bernard-Henri Lévy1 contra-dizia a famosa predição de Foucault (“O século será de-leuziano”) e defendia, com ímpeto e talento filosóficoscheios de sedução, que o século passado havia sido o de

Sartre. Fomos, então, seduzidos, mas também tomados por uma perple-xidade considerável: é que nós, sartrianos, aprendíamos junto com aressurreição de Sartre o longo eclipse ao qual ele acabava de dar fim. Se res-suscitava com estrondo, é porque “estivera morto”. Ingenuamente não nostínhamos dado conta disso. Para a minha geração, que não o conhecera vi-vo, no sentido empírico do termo – pois, nessa época, não estávamos emidade de filosofar, ou quase não –, ele não tinha mesmo estado jamais tãovivo quanto depois de sua morte: descobríamos, com efeito, graças ao tra-balho de Arlette Elkaïm-Sartre e de alguns outros, novos conjuntos mas-sivos de textos. A obra póstuma, imensa e multiforme, fazia nascer umnovo dia para os livros publicados pelo próprio Sartre, esclarecia sua gê-nese, permitia traçar entre eles continuidades mais refinadas e diferenciá-los por variações e tensões mais precisas. O tempo da filosofia, vida inin-terrupta do sentido, usando outras palavras, não coincidia com os fortesmotes com que a ocasião nos assaltava: morte empírica de Sartre, mortesimbólica de Sartre, ressurreição e retorno de Sartre... Não importa! O sé-culo de Sartre era bem-vindo e em mais de um aspecto sacudia salutarmen-te nosso repouso, talvez demasiado pacífico, no reino dos conceitos.

Amei o livro de Bernard-Henri Lévy, escrevi em outro lugar.2 Mashá uma dimensão do pensamento de Sartre que esse livro antes mata doque vivifica: a dimensão dialética. Lévy não se desliga dela e a repetiu bemrecentemente: a Crítica da Razão Dialética “é a falência mais relutante dahistória da filosofia”.3 É esse diagnóstico peremptório que eu gostaria dediscutir aqui.SINGULARIDADE DO UNIVERSAL, UNIVERSALIZAÇÃO DO SINGULAR

O penhor dialético é, por excelência, a relação do indivíduo à tota-lização. Sartre, desde que a historicidade se lhe impôs, isto é, desde aguerra de 40-45, manifestou a ambição de pensar juntamente a liberdadeindividual e a experiência coletiva da história, sem renunciar a nenhumdos dois termos. A historicidade é, a princípio, a consciência de ser arre-batado com os outros num período de agitações; dito de outro modo, aconsciência de que a existência individual é “governada até os mínimosdetalhes por forças obscuras e coletivas”.4 No entanto, essa noção deimpotência revela-se já uma superação, pelo menos possível, da impotên-

1 LÉVY, 2000.2 SIMONT, 2000. 3 LE POINT, n. 1.687, 13/jan./05, p. 138.4 “Qu’est-ce que la littérature?”. In: SARTRE, 1999, p. 227.

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cia, da qual ela é consciência. E Sartre martela,tanto quanto o nós, que, num primeiro momen-to, a constatação de despossessão coletiva, o eu, omeu, são retomada e assunção: “Se estou mobili-zado numa guerra, essa guerra é minha guerra”.5

Quanto à relação entre indivíduo e totali-zação histórica, a tese de Bernard-Henri Lévy,resumida grosseiramente, parece-me coincidircom seu conceito geral dos dois Sartres: o jo-vem, o bom era o Sartre individualista, que, namesma proporção da preponderância que ele re-conhecia à individualidade, compreendia a histó-ria de modo pessimista e cético, como “inter-minável e amplamente insensata”.6 O Sartre ma-duro, o da Crítica, o mau, cujos primeiros deli-neamentos podiam ser decifrados desde osCadernos para uma Moral, é o Sartre que cons-tata ter falhado quanto a Hegel, revirando, con-seqüentemente, todo o dispositivo: a História,de agora em diante decifrada de maneira otimis-ta, tem um fim, no duplo sentido da palavra: oteleológico de um objetivo e o conclusivo de umtérmino. Esse fim (nos dois sentidos do termo)é o encantamento da reconciliação e os indivídu-os, de agora em diante, não possuem outro des-tino senão o de se integrar ao processo e seapressar em realizá-la. Nessa perspectiva, Lévycita uma página das Questões de Método em que,segundo ele, Sartre assume que “somos integra-dos vivos à totalização suprema”, que “nossosdespedaçamentos, as contradições que causamnossa infelicidade, são momentos que se colo-cam para serem superados”.7 Na concepção deSartre, então, as maiúsculas se imporiam, espe-cialmente os grandes Hs, aqueles dos quais agoraestão providos a História e a Humanidade – “é oparti pris de o homem contra os homens”.8

Ora, as coisas não são tão simples assim.Desde os Cadernos por uma Moral, Sartre insistena impossibilidade de falar da Humanidade, ou daespécie humana, em tanto que universal: é que o“definidor faz parte do definido” e tal inclusão

cava uma linha de fuga no conceito universal queele pretende ultrapassar, exatamente como no ar-gumento do mentiroso introduz-se algo indizível,pelo fato de aquele que o sustenta pertencer aoconjunto por ele visado.9 Eis uma constante daobra, encontrada bem mais tarde no outro extre-mo, no terceiro tomo de O Idiota da Família: im-possível, diz Sartre, falar de uma História da Hu-manidade como história de um mesmo sujeito. Averdade é que a Humanidade “não existe”; “aqui-lo que existe é uma série infinita, cuja lei é a re-corrência, definida precisamente por esses ter-mos: o homem é o filho do homem”.10 Além dis-so, relendo-se por inteiro a passagem das Questõesde Método, da qual extraem-se as citações que aca-bo de evocar, percebe-se que Sartre não está se ex-pressando como hegeliano, tornando suas as ca-racterísticas do “sistema”, e sim que ele nos fala deHegel, e de modo bastante descritivo.

A respeito de Hegel, ao qual ele continua aopor Kierkegaard, que, longe de se achar integra-do sem remédio à totalização suprema, prosse-gue sendo uma alternativa, como Hugo, irre-cuperável em sua subjetividade: “Kierkegaardtem razão contra Hegel, tanto quanto Hegeltem razão contra Kierkegaard”.11 Dá-se o mes-mo em “O universal singular”: Sartre sugere re-conciliar Kierkegaard e Marx, e Lévy conclui que“claramente significa reinscrever o primeiro noespaço do saber absoluto e dar, pois, ‘numa boa’,a razão a Hegel contra ele”.12 Essa orientaçãounívoca e integradora da dialética é tão clara as-sim? A última palavra do texto, aqui também,possui antes um sentido duplo, ou dois gumes:“singularidade do universal e universalização dosingular”.13 Esse espaço de indizibilidade, essareversibilidade do arrazoado é precisamenteaquilo pelo qual me parece que Sartre não aban-donou “as dialéticas decapitadas”14 e os torni-quetes da sua juventude em proveito de umaAufhebung triunfal, como sustenta Lévy. Indiví-

5 SARTRE, 1994, p. 639.6 LÉVY, 2000, p. 578.7 SARTRE, 1986 e 1985a, p. 22.8 LÉVY, 2000, p. 529.

9 SARTRE, 1983, p. 73.10 Idem, 1988b, p. 433.11 Idem, 1986, p. 24.12 LÉVY, 2000, p. 573.13 “L’universel singulier”. In: SARTRE, 1972, p. 190.14 “Merleau-Ponty”. In: idem, 1964, p. 270.

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duo/totalização, na minha interpretação, é desdeo começo no pensamento de Sartre a mesma os-cilação, que nada faz senão precisar-se, aprofun-dar-se, repartir-se diferenciadamente às vezes,mas sem jamais sofrer mutação radical.

Gostaria de abordar essa indivisibilidade emdois níveis: primeiro, o do “não importa quem”,na medida em que é envolvido pela História e, aomesmo tempo, a ultrapassa, a totaliza e, por issomesmo, a destotaliza. Depois, o do indivíduo deexceção, no qual a História se envolve e se tota-liza ela própria, tornando-o, por essa razão, ex-cepcional e se fazendo acontecer por intermédiodele, segundo o movimento chamado por Sartre,a partir da Crítica, de encarnação, e da qual Staline Flaubert constituem dois exemplos distintos.

Tratando-se de “não importa quem” ou do“grande homem”, uma dialética se entretece for-temente, podendo anunciar-se da seguinte forma:o homem se faz fazendo a história que o faz.Gostaria de mostrar que esse tipo de fórmula cir-cular, que formiga na obra de Sartre, caracteriza-se justamente por isso: ela jamais se torna rotun-da – como exigiria a dialética de tipo hegeliana,que lhe imputa Lévy. Ela comporta, desde sempree para sempre, uma tensão indizível, resto e resí-duo inassimiláveis, falsa reciprocidade indutorade deformações.SOB A OCUPAÇÃO, UM HOMEM QUE VALE POR TODOS E QUE VALE POR NÃO IMPORTA QUEM

Ao falar de “não importa quem”, estamosnos referindo a Sartre sob a Ocupação. Esse Sar-tre ainda gloriosamente individualista (porque osefeitos do calor humanista, que, segundo Lévy,ele reencontra no Stalag não se manifestam ime-diatamente: são uma bomba de efeito retardado,um vírus de longa incubação). Esse Sartre escri-tor de um grandioso e estrondoso “carnaval doespírito”, intitulado O Ser e o Nada. Esse Sartrejá nos falava de liberdade situada, pois, segundosua própria interpretação, a irrupção súbita dahistoricidade o motivou a se afastar da influênciahusserliana e da fenomenologia pura, a assimilarHeidegger e escrever o tratado de ontologiafenomenológica. É normal que o por si, do qualtrata a mencionada ontologia, não seja uma pura

autonomia, uma lucidez atemporal e sem ancora-gem; esse por si está situado, inclinado pelas cur-vaturas de um mundo que não escolheu, ondeexiste com tal corpo, em meio a tais complexosde utensílios e envolvido por certas circunstânciashistóricas – parisiense para os ocupantes alemães,europeu para os asiáticos e negros, e patrão paraos trabalhadores, por exemplo.

Por sua vez, Lévy diria, sem dúvida: certa-mente, mas naquela época do pensamento sartri-ano, a situação não era outra que não a face dasombra da liberdade, sua parte de non-sens (semsentido), e ele não dependia senão de esclarecê-la,de lhe dar sentido e, por isso mesmo, de se livrardela. Uma situação como tela de fundo da liber-dade individual, como guarda-jóias da sua liber-tação. Com efeito, é dessa dimensão que dá tes-temunho a fórmula maravilhosamente provocan-te que abre “A república do silêncio”: “Jamais fo-mos mais livres que sob a ocupação alemã”.15

Acontece que a insuportável pressão histórica co-locava mais agudamente a questão da liberdade,de modo que “nós estávamos a bordo do conhe-cimento, o mais profundo que o homem pode terde si mesmo”.16 Entretanto, a outra face da rela-ção está também presente, não mais a de rompi-mento e lucidez, mas a de colagem desesperado-ra, de compromisso inevitável – que a Crítica daRazão Dialética irá mais tarde explorar sob a de-signação de contrafinalidade e de prático-inerte.Em “Paris sob a Ocupação”, essa idéia é ame-drontadora: “Não podíamos dar um passo, nemcomer, nem mesmo respirar, sem nos tornarcúmplices do ocupante... A menor das nossas ati-vidades servia ao inimigo, que se tinha abatido so-bre nós; colava suas ventosas em nossa pele e vi-via em simbiose conosco. Não se formava emnossas veias uma gota de sangue, sem que ele nãotomasse sua parte”.17

Essas duas dimensões são verdadeiras demaneira semelhante: 1. a liberdade do indivíduorevelava-se exemplarmente a ela mesma, nessa si-tuação de opressão exacerbada; 2. o inimigo avan-

15 “La république du silence”. In: SARTRE, 1999, p. 11.16 Ibid., p. 12.17 “Paris sous L’Occupation”. In: idem, 2003, p. 36.

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çava mascarado; a opressão, invisível, não aparen-te e difusa tirava-lhes o sentido das ações maisanódinas, mais embrionárias, e o simples fato desobreviver equivalia a colaborar. Em outras pala-vras, o indivíduo é envolvente e envolvido, a his-tória é envolvida e envolvente, sem que se possadecidir sobre a orientação dessa relação. Retomaras duas dimensões num só movimento é dizer oseguinte: não há situação senão para uma liberda-de totalizante, que dela se arranca, mas não hátotalização a não ser de uma situação multidi-mensional, fibrosa (retomando um termo de Sar-tre), com suas inércias, seus pesadumes, suasedimentação de escolhas passadas, que curva,cola e desvia a liberdade, tanto quanto a suscita.O SOCIALISMO NUM SÓ PAÍS

Deixemos os qüidans aprisionados pelocurso do mundo e que, ao mesmo tempo, o do-minam, jamais seguros de saber exatamentequando o dominam e quando são por ele domi-nados, talvez ocupados em colaborar, justamentequando se acreditam resistentes (como os em-pregados das linhas férreas, mencionados porSartre, em “Paris sob a Ocupação”, e cujo “zeloem defender nosso material servia à causa ale-mã”), oscilando sempre entre necessidade masca-rada e liberdade soberana. E defrontemo-nos auma outra configuração inteiramente diferente,aquela em que a História por si só se envolvenum indivíduo, chamada indiferentemente porSartre de sociedade diretorial ou ditatorial, nota-damente a URSS do stalinismo e do slogan “O so-cialismo em um só país”. Aqui, a relação do queSartre considera, na Crítica da Razão Dialética,entre a dialética constituinte (a práxis individual)e a dialética constituída (os conjuntos práticos,sem realidade ontológica própria, resultantes daimbricação da multiplicidade das práxis e da suainscrição na matéria trabalhada) parece inverter-se. A práxis constituída, ou seja, o devir da revo-lução, ameaçado de recaída na serialidade, tentarestituir uma unidade, “retornar à matriz que oproduziu”,18 isto é, à práxis constituinte ou indi-

vidual, a uma práxis constituinte, no caso, a deStalin, o “soberano”.

A defasagem e a inadequação do livre e donecessário, do individual e da totalização, do lú-cido e do alienado podem reduzir-se por essa si-tuação de integração máxima, pela unidade vo-luntarista, que vem de algo alto e exige que ocampo prático de cada um seja a especificação docampo total e que a liberdade individual (resis-tente ou aderente, maltratada ou encorajada pelosoberano) defina-se necessariamente em relaçãoao plano? O longo desenvolvimento consagradopor Sartre a Stalin visa, ao contrário, mostrar quequanto mais a dialética é aprisionada, mais ela éfurada. A associação do grande homem, ou dogrande monstro, à época que ele involucra, é deincompletude, deformação, reciprocidade falsa,exatamente como aquele do “não importa quem”para a conjuntura histórica que o envolve. Porque Stalin antes que Trotsky? Essa questão nãofica sem resposta, sem resposta compreensível.Stalin não é um acidente e não se pode dizer que,na situação a que chegou, a revolução não exigia,para fechar sua unidade, nada diferente, nada demais específico que um homem (qualquer quefosse ele), que um soberano indeterminado. Ascircunstâncias (o isolamento da URSS, cercadapelo capitalismo, seu estado de subdesenvolvi-mento etc.) requeriam, ao contrário, um tipo dehomem determinado, um militante oportunista edogmático, penetrado pela peculiaridade da expe-riência russa, antes que um intelectual radical einternacionalista.

Mas, nesse sentido, a ação dessa idiossin-crasia determinada sobre a história que o chama énela mesma indeterminada. Em outras palavras, osobreacréscimo de necessidade e de unidade queum processo histórico em via de desagregaçãotenta se dar por intermédio de um indivíduo (ou,o que dá no mesmo, a tomada que tal desagrega-ção histórica provida de certas características ofe-rece a esse indivíduo dotado de vontade de a reu-nificar e conferir-lhe uma necessidade) não atingesenão a contingência: “Stalin não é seu própriofundamento; sua facticidade o constitui comoum certo indivíduo entre outros, que não tira de18 Idem, 1985b, p. 224.

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si mesmo as razões de suas diferenças (em relaçãoaos outros); portanto, a práxis total de uma so-ciedade está penetrada, até as suas camadas maisprofundas, por essa contingência”.19 É a equaçãopessoal de Stalin que o conduz aos comandos daURSS (militante limitado, inculto e pragmático),mas é também ela (na medida em que provém detal infância, de tal meio) que, sedimentada numtraço de caráter – a inflexibilidade, cujo propósitoprimeiro e original não era promover a indus-trialização forçada de um país subdesenvolvido –, faz com que sua práxis “não possa ser adaptadaà sua tarefa, mas somente mais ou menos desa-daptada”. Stalin “faz demais ou nem tanto”; o fe-chamento efetivo da URSS “não exigia levar ao ab-surdo o isolamento cultural”;20 e “dez milhões detoneladas de ferro fundido obtidos pela ameaça epelas medidas de coerção sangrentas (execuções,campos de concentração etc.) não são em ne-nhum caso comparáveis a dez milhões de tonela-das de ferro fundido atingidas na mesma perspec-tiva e por um governo autoritário, mas semmedidas coercitivas”.21 Desse modo, Stalin, orealizador implacável da integração, revela-seigualmente o resíduo inassimilável, o inepto restocontingente que destotaliza a totalização pirami-dal da qual é o pico. Aqui também, no supostocúmulo do fechamento, a dialética escapa.CERTAS VIDAS QUEIMAM COMO SE FOSSEM O NYLON; OUTRAS, COMO O CARVÃO QUE CHOCA SUAS CINZAS

Nesse sentido, O Idiota da Família repre-senta um empreendimento mais radicalmente to-talitário, se, com efeito, a infância de Stalin nãodevesse, segundo Sartre, ser levada em conta, aoresponder à questão “por que Stalin?”, se somen-te tivesse de se considerar, nessa perspectiva, o“passado revolucionário da pessoa”, se a infância,em sua particularidade inassimilável, “separaçãoque se coloca por si”,22 era justamente o que ex-pulsava Stalin de seu empreendimento de unifica-ção da época. Segundo Flaubert, ao contrário, ébem pelo sabor insubstituível de um vivido sin-

gular, elucidado depois da proto-história da pri-meira infância, que se pode compreender “o lia-me de interioridade orgânica retido como indis-pensável, quando se diz de um escritor que ele ex-pressa seu tempo”.23 Criado sem amor por umamãe eficaz e frígida, que não o havia desejado, ob-jeto e não destino dos cuidados pelos quais cons-titui-se a relação primeira a outrem e ao mundo,Flaubert carece da valorização fundamental quetorna possível a ação – e o projeto. E eis que, des-de as origens, cai na passividade, no sentimentodesesperante da contingência, em poucas pala-vras, na desvalorização generalizada, que se tor-nará mais tarde, para o escritor maduro e ranco-roso, filho dessa primeira infância mal-amada, talraiva universal do gênero humano, expressa emMadame Bovary, e na qual a burguesia poderá di-luir e exorcizar seu crime (“O autor e o leitor seentendem como ladrões na feira; é que eles têm,um e outro, o mesmo cuidado: cada um quer es-quecer e fazer esquecer uma história, destruindoa historicidade das sociedades humanas”).24

A dialética é aqui absolutamente capciosa;não deixa escapar mais nada dos seus filamentos,ramificando-se até os recônditos quase indizíveisda existência para aí inserir a inteligibilidade naépoca e na compreensão que ela se dá de si mes-ma? Não. Aqui também há um elemento irredu-tível da singularidade: por mais compreensívelque seja essa última, por mais significante comoexpressão de sua época, por mais longe que sepossa ir na resposta à questão “O que se pode sa-ber de um homem hoje?” – com a qual Sartre ini-cia O Idiota da Família –, a sua singularidade, en-tretanto, difere irredutivelmente da época emquestão, e isso pelo regime próprio da sua tem-poralização. A época, ou o todo, não difere pornatureza do indivíduo ou da parte (ela é, comoele, finita, infinitamente finita, estilhaçada pelarecorrência ou pelas generalizações, como foi as-sinalada anteriormente). Daí uma dialética e umarelação recíproca; o indivíduo, como finitude,age na perspectiva de sua morte ou contra ela

19 Ibid., p. 214.20 Ibid., p. 233.21 Ibid., p. 217.22 Ibid., p. 227.

23 Idem, 1988b, p. 420.24 Ibid., p. 426.

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(assume os limites do seu empreendimento ou,ao contrário, doa-se a seus sucessores, toma comantecipação precauções para que ela continuepost mortem); e a época não é outra coisa a nãoser o modo segundo o qual esses empreendi-mentos se mesclam e sua relação à sua limitaçãonão significa senão a confluência e a divergênciadessas ações, senão os mortos que a perfuram eos vivos que a continuam.

Inversamente, como finitude fundada so-bre a finitude dos agentes históricos, ela [a dialé-tica] possui, como temporalização mais vasta quea deles, uma singularidade a influir sobre eles,aliená-los, liberá-los ou sugerir-lhes um destino.Uma vez que um indivíduo exprime sua época demaneira exemplarmente significante (como Flau-bert), isso significa que a temporalização indivi-dual e a da época têm uma mesma curva. Porém,não há razão para que essas temporalizações sedesenrolem ao mesmo tempo, nem no mesmoritmo. Flaubert foi, em razão da sua neurose sub-jetiva, oráculo de uma neurose objetiva, tornada,anos mais tarde, o pathos da época. Quando essepathos e essa época desaparecem na sua singulari-dade (com o advento da Segunda República), elelhes sobreviverá, e se sobreviverá, imbecil, conti-nuando a trajetória de uma temporalização desdejá inútil e sem respondente. Essas acelerações, es-ses retardos, essas não-coincidências são aquiloque faz a vida da dialética e, ao mesmo tempo, oque a impede de se constituir em instância inte-gradora das individualidades, pois ela não é outracoisa que a inclinação de suas acelerações e deseus retardamentos.EM TODO CASO, A DIALÉTICA FOGE, A INDIVIDUALIDADE RESISTE

Era hegeliano o itinerário de Sartre? For-malmente poderia parecer que sim. Trata-se departir da individualidade, e de uma individualida-de esvaziada de todos os pressupostos que aacompanham e a habitam comumente: a cons-ciência fenomenológica, esse nada, esse arranjocontingente em direção a um mundo igualmentecontingente (A Transcendência do Ego, o artigosobre a intencionalidade e A Náusea). Desse mo-do, A Fenomenologia do Espírito tomava por base

o ponto de partida, o menor possível e o maisdesnudado, a certeza sensível; e a Ciência da Ló-gica, do que há de mais magro entre os enuncia-dos filosóficos, a palavra ser, ser puro sem nenhu-ma determinação. Depois dessa fase tábula rasa,trata-se de construir, de dotar essa individualida-de minimal de estruturas, as quais, sem modificarna mesma medida seu estatuto ontológico, denada lhe dão consistência – em poucas palavras,desdobrar as categorias do Ensaio de OntologiaFenomenológica. Em seguida, cabe passar daí aoutro extremo, ao universal, ainda que no estudodas condições de possibilidade da história: comocompreender, em conseqüência, que a individua-lidade é a única realidade ontológica, que há, en-tretanto, conjuntos práticos em que as individuali-dades transbordam, se alienam, se perdem? En-fim, a síntese: manter junto o mais individual daindividualidade – aquilo compreendido de maisconcreto, com base nas categorias ontológicas – ea dialética histórica. Dito em outros termos, pôrem evidência como o gosto insubstituível de umvivido – o de Flaubert – pode “assinar” a história.TRÊS TEMPOS DE MARCHA HEGELIANA:A INDIVIDUALIDADE (TESE), A HISTÓRIA (ANTÍTESE), E A SUA CONCRETUDE RECÍPROCA – UM HOMEM, UMA ÉPOCA (SÍNTESE)

Tal movimento, no entanto, é também pro-fundamente anti-hegeliano, porque sem ultrapas-sagem, e da qual todas as mediações não têm porsentido, finalmente, a não ser validar a tese, apro-fundando-a: o indivíduo sempre irredutível, irre-cuperável. Como se Sartre houvesse percorrido,por sua própria conta, esse trajeto da verdade,cujo princípio resume em O Idiota da Família: “Averdade não é inteligível senão ao termo de umlongo erro vagabundo; administrado desde o iní-cio, não é senão um erro verdadeiro”.25 Em ou-tras palavras, será necessário produzir a inteligibi-lidade da história, esse monstro, para então che-gar ao ponto de partida: a liberdade individual.EPITÁFIO A UM AMIGO DESAPARECIDO

Um exemplo dessa história acontecida –hegeliana enquanto acontecida –, mas anti-hege-liana em seu teor próprio (inultrapassabilidade

25 Idem, 1988a, p. 142.

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do indivíduo)? Voltemos à querela Sartre/Ca-mus a propósito de O Homem Revoltado, mo-mento emblemático, segundo Lévy.26 Sartre, deacordo com Lévy, em sua “Resposta a Albert Ca-mus”, não tem razão nem humana nem politica-mente; são a arrogância e o desprezo que domi-nam politicamente o dogmatismo militante,além desse oportunismo de o fim justificando osmeios, contra o qual precisamente foi escrito OHomem Revoltado (é o que Camus chama derejeição do historicismo). Em contrapartida, eletem razão metafisicamente: uma filosofia do nãorevela-se mais propícia à revolta de uma filosofiado sim, um pensamento da antifysis é mais sub-versivo que um pensamento da feliz aquiescênciacósmica. A raiz do marronnier27 contra os ci-prestes de Alger, a náusea e o decaimento mornodos “viventes” contra os corpos das praias, sal-picados de sal, dourados pela alegria do sol. E ahomenagem vibrante a Camus, escrita por Sartrena ocasião da morte de seu amigo? Trata-se damarca, segundo Lévy, desse duplo Sartre: do pri-meiro, que prossegue vivendo sob o segundo, nosegundo, no mau, no militante, que continua aemitir em surdina uma amplidão diferente deondas, faz-se entender imediatamente e faz calaro outro Sartre. O primeiro Sartre renasce oitoanos após a querela, na qual o segundo haviaadotado a pior das posturas dialéticas, e ressurgenum epitáfio, num desses epitáfios para o amigodesaparecido, da qual tem “o segredo e o gos-to”.28 Reconhece, então, a Camus tudo aquiloque ele o havia recriminado cruel e injustamente,oito anos antes: a lucidez, a pureza, a intransi-gência, a exigência moral.

Para explicar essa reviravolta, não há outromodelo que aquele proposto por Lévy, o dosdois Sartres, das duas freqüências de emissão,que não cessam de se perturbar uma a outra?Esse segredo e esse gosto dos epitáfios para o ami-go não significam outra coisa a não ser qua-lificações que fazem sofrer, tratando-se de Sar-tre? Lembremos as páginas consagradas à psica-

nálise existencial, em O Ser e o Nada: tratava-seaí de compreender a pessoa como totalidade, istoé, de jamais parar diante da facticidade dos dese-jos e das inclinações isoladas (meu amigo “gostade canoagem”29), mas de reencontrar “sob os as-pectos parciais e incompletos do sujeito a verda-deira concreção, que não pode ser senão a tota-lidade do seu élan em direção ao ser”.30 O gostopelas homenagens fúnebres e o gosto da canoa-gem não são a mesma coisa?

Sartre talvez seja duplo. Partilhado, incapazde, como indivíduo e totalização, escolher e,quem sabe, de modo paradigmático naquele anode 1952, vê serem publicados tanto a “Respostaa Albert Camus” e “Os comunistas e a paz” –dois textos atordoantes e militantes, se tanto –,como também o Santo Ginete, pelo seu teor, umhino à libertação individual. No entanto, mesmoquando duplo, é um, e sujeito a um devir, duran-te o qual os termos do despedaçamento se repar-tem diferentemente. Oito anos se passam, morreCamus e Sartre lhe escreve um epitáfio lumino-so. Por quê? Ele tinha um gosto para esse gênerode exercício? O jovem Sartre não havia aindamorrido e não inspirava remorsos no novo Sar-tre? Ou, outra hipótese, porque Sartre, duranteesses oito anos, chegou, porque escreveu a Críti-ca da Razão Dialética, elaborou a tecnologia con-ceitual, que lhe parecia faltar em O Homem Re-voltado. Porque essa técnica dos conceitos, du-rante o seu engendramento, funde em razão aintuição de Camus.

A história, essa entidade gigante, em pro-veito da qual o militante quer se despossuir de simesmo, não existe. Em vão ela insiste, monstruo-sa, inchada, desviante, ogra; em vão se metamor-foseia por meio de tantos e tantos avatares, nãopode fazer que não seja unicamente da práxis in-dividual em que ela busca sua consistência. E tal-vez seja porque fez a prova conceitual da impos-sibilidade do hiperorganismo, que Sartre está pre-sentemente a ponto de ver com outros olhos asproclamações veementes, às quais dedicava-se

26 LÉVY, 2000, p. 408s.27 Nota do Tradutor (NT): espécia de castanheira.28 LÉVY, 2000, p. 417.

29 SARTRE, 1994, p. 648.30 Ibid., p. 649.

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oito anos antes: nessa piscina cheia de lama e desangue que é a História, deve-se mergulhar decorpo e bens. Tatear a água com a ponta do pé,como faz Camus, é brincar de mocinha friorenta.Presentemente, Camus aparece como um símbo-lo, uma espécie de épura dessa individualidadeirrecuperável, a qual nenhuma História poderásuperar. E se sua morte parece a Sartre um escân-dalo, não é somente por seu caráter acidental eparticular – um homem jovem é contrariado ab-surdamente, uma desunião de amigos transfor-ma-se repentinamente em destino, em separaçãoirrevogável –, e sim porque, no segundo tomo daCrítica, no qual trabalha, terá refletido sobre amorte, “puro e simples déficit”,31 sobre esses mi-

lhões de mortos aos quais a História não cessa defazer água e se destotalizar sem remédio, sobreesses milhões de buracos que esburacam a His-tória e a impedem de jamais ser hegeliana.

Um só Sartre, certamente contraditório, emequilíbrio perpetuamente instável sobre essa linhada crista na qual se falam, ao mesmo tempo, a sin-gularidade do universal e a universalização do par-ticular. Mas vítima de uma contradição que nãocessa de se remodelar pela construção dos concei-tos. Para retornar à verdade daquilo que, na juven-tude de Sartre, era verdade administrada desde oprincípio – portanto, erro verdadeiro –, só existe,só importa a liberdade individual. E a de Camusfoi exemplar. Dizê-lo não é somente se compra-zer num exercício de estilo, nem se abandonar aosremorsos, na dor de uma perda por morte.

Referências BibliográficasLÉVY, B.-H. Le Siècle de Sartre. Paris: Grasset, 2000.

SARTRE, J.-P. Situations III. Paris: Gallimard, 2003.

______. Situations II. Paris: Gallimard, 1999.

______. L’Être et lê Néant. Paris: Gallimard, 1994.

______. L’Idiot de la Famille I. Paris: Gallimard, 1988a.

______. L’Idiot de la Famille III. Paris: Gallimard, 1988b.

______. Questions de Méthode. Paris: Gallimard, 1986.

______. Critique de la Raison Dialectique I. Paris: Gallimard, 1985a.

______. Critique de la Raison Dialectique II. Paris: Gallimard, 1985b.

______. Cahiers pour une Morale. Paris: Gallimard, 1983.

______. Situations IX. Paris: Gallimard, 1972.

______. Situations IV. Paris: Gallimard, 1964.

SIMONT, J. “‘Siècles, voici mon siècle, solitaire….’.. Réflexions sur Le Siècle de Sartre de Bernard-Henri Lévy ”. LesTemps Modernes, n. 608, mar./abr./maio, 2000.

Dados da autora

Doutora em filosofia e pesquisadora qualificada doFundo Nacional de Pesquisa Científica da Bélgica.

Autora de vários estudos consagrados aopensamento filosófico de Sartre publicados na

revista Les Temps Modernes. É autora, também, deJean-Paul Sartre. Un demi-siècle de liberté (Bruxelas:

De Boeck Université, 1998) e “Essai sur la quantité,la qualité, la relation chez Kant, Hegel, Deleuze. Les

fleurs noires de la logique philosophique”.

Recebimento: 13/abr./05Aprovado: 10/jun./05

31 SARTRE, 1985b, p. 322.

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Literatura Popular: diálogos com Sartre no BrasilPOPULAR LITERATURE: DIALOGUES WITH SARTRE IN BRAZIL

Resumo Este ensaio procura reconstituir a polifonia motivada pelas declaraçõesde Sartre sobre literatura popular e engajada, em algumas de suas comunicaçõescom intelectuais, estudantes e jornalistas, durante sua passagem pelo Brasil, em1960.Palavras-chave LITERATURA POPULAR – SARTRE – EXISTENCIALISMO – CRÍTICA

LITERÁRIA – TEORIA LITERÁRIA.

Abstract This essay attempts to reconstitute the polyphony motivated by thedeclarations of Sartre on popular and engaged literature, in some of hiscommunications with intellectuals, students and journalists during his visit toBrazil in 1960.Keywords POPULAR LITERATURE – SARTRE – EXISTENTIALISM – LITERARY

CRITIQUE – LITERARY THEORY.

LUÍS ANTÔNIOCONTATORI ROMANO

Faculdade Prudentede Moraes (FPM)

[email protected]

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INTRODUÇÃO

o propor um trabalho de doutorado, cujo objetivo era re-constituir a passagem de Sartre e de Simone de Beauvoirpelo Brasil, em 1960, deparei-me com um enorme volu-me de material bibliográfico, sobretudo periódicos. Co-mecei a pesquisa por arquivos da Unicamp e pela Biblio-teca Mário de Andrade, em São Paulo. Depois ela se es-tendeu por arquivos e bibliotecas do Rio de Janeiro, Re-cife e Salvador. Mais de cem matérias jornalísticas foram

localizadas em periódicos da época, além de textos mais recentes, quecontribuíram para a tarefa de reconstituição, à luz projetada pelo tempo,do significado dessa visita.

Dentre esse material jornalístico, alguns artigos de autores célebres,como Benedito Nunes, Sábato Magaldi, Gilles Granger, Alceu AmorosoLima, Adolfo Casais Monteiro, José Guilherme Merquior, Gérard Le-brun e Luiz Roberto Salinas Fortes, entre outros, discutem a fundo a re-cepção no Brasil que tiveram o teatro, a literatura, a filosofia e as idéiaspolíticas do pensador francês. Outros desses textos constituem materialinformativo sobre o itinerário de Sartre e de Simone de Beauvoir; os de-mais contribuem para preservar a memória de suas atividades mundanas,sendo, nesse sentido, essencialmente importantes crônicas de NélsonRodrigues para o jornal Última Hora, de Paulo Mendes Campos à revistaManchete, de José Condé para o Correio da Manhã e de Mauritônio Mei-ra para o Jornal do Brasil.

Talvez seja relevante destacar que o Brasil parecia exercer enormefascínio sobre o imaginário de Sartre e de Simone de Beauvoir, mesmoantes de surgir a real oportunidade de viajarem ao País, entre 12 de agostoe 21 de outubro de 1960. A viagem realizou-se a convite de Jorge Amado,que programou uma série de atividades para o casal de intelectuais fran-ceses no Brasil. Mas, como nada os prendia sem que o escolhessem, às ve-zes fugiam das garras do cuidadoso cicerone. Por exemplo, Sartre aceitoudeslocar-se para Araraquara, onde, numa então pequena Faculdade de Fi-losofia, fez sua única conferência no País sobre as relações entre existen-cialismo e marxismo, motivada por uma pergunta do professor FaustoCastilho. Ao se despedirem do cicerone Jorge Amado, viajaram solitáriospara a Amazônia e retornaram a Recife, onde Sartre desejava reencontraruma recente e fugaz paixão brasileira, Cristina Tavares.

Na correspondência de Simone de Beauvoir ao escritor norte-ame-ricano Nelson Algren, podemos encontrar uma amostra desse imagináriosobre o Brasil. Em carta de 14 de dezembro de 1950, diante dos perigosda Guerra Fria, ela considerava a possibilidade de viver aqui: “O Brasil,opulento, onde se admira a cultura francesa, talvez fique meio neutro. Se-ria um caso a considerar, como exílio”.1 Novamente, em 14 de janeiro de

1 BEAUVOIR, 2000, p. 383.

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1951, Simone escrevia sobre esse seu desejo:“Creio que no Brasil poderemos ganhar algumdinheiro dando aulas, conferências etc., pois osbrasileiros são ricos e muitos deles falam francês,mas sei que o começo seria difícil”.2 Esse ima-ginário, ao que tudo indica, nem sempre a reali-dade encontrada no Brasil chegou a confirmar.

O presente ensaio configura-se como umrecorte em meio à profusão de atividades dessesintelectuais franceses no Brasil para tratar de umdos temas mais debatidos por aqui, motivado pordeclarações de Sartre: a proposta de uma literatu-ra popular. Aliás, o pretexto de sua visita ao Brasilfoi participar, a convite de Jorge Amado, do ICongresso Brasileiro de Crítica e História Lite-rária, que se realizou em Recife. Porém, a despei-to de ser esperado para a sessão de abertura, Sar-tre apenas chegou para o fórum de encerramento.Além de sua participação durante esse congresso,o filósofo-literato procurou colocar em debate otema da literatura popular em conferências pro-nunciadas em Salvador e no Rio de Janeiro e emdebates com intelectuais e artistas em São Paulo.LITERATURA UNIVERSAL E LITERATURA POPULAR

Parece que, ao apresentar a proposta deuma literatura popular, Sartre não estava preocu-pado com sua permanência, com o valor que lheseria reconhecido através dos tempos. O que im-portava, naquele momento de seu pensamento,era a função prática da literatura, a orientação aser promovida para a ação das camadas populares.Tendo em vista esse objetivo, o homem de letras,engajado, pode, inclusive, lançar mão de temasclássicos, reelaborá-los – como ele próprio fez napeça As Moscas, ao transpor o mito de Orestespara a França ocupada.

Em seu pronunciamento no congresso deRecife, Sartre afirma que a literatura francesa é re-conhecidamente universal, pois o escritor francêsse preocupa com problemas do homem em geral,o que nem poderia ser diferente, pois consideravaque na França já não existia o povo:

Nós temos, pois, na França, uma literatura do tipouniversal. E o que se entende por isto? Quer dizer

que nós pensamos, quando escrevemos um livro,que poderemos realizar a concordância dos espíri-tos (...), sejam eles estrangeiros ou apenas nacio-nais, a respeito do que é dito, narrado, sobre a des-crição psicológica ou social que existe no interiordo romance que o escritor fez, do mesmo modoque, por exemplo, nas ciências, uma lei científica,experimentalmente provada, realiza a concórdiados espíritos. (...) A ele (ao livro) não pode interes-sar a realidade popular porque o povo já não maisexiste na França. Existem meios, classes, subgruposno interior das classes. Mas não existe povo. E nes-tas condições, (...) a maneira de pôr os problemasnum romance, na França, ou a maneira mesma deescrever ou abordar certas questões, é sempre nabase de um plano universal, como se existissem nãofranceses, brasileiros, ingleses, mas um homem uni-versal, em toda parte igual.3

Sartre coloca à assistência uma questão so-bre a possibilidade de que no Brasil exista uma li-teratura popular. Acreditava que aqui, diferente-mente da França e de outras velhas nações bur-guesas européias, o desenvolvimento industrial

não teve ainda tempo de criar zonas de separaçãoabsolutamente distintas entre certas camadas dopovo, e que, por conseguinte, existe ainda uma uni-dade popular, que esta burguesia menos desenvol-vida e menos velha não pode (porque não é prova-velmente ainda suficientemente numerosa) mono-polizar a literatura. Que, de fato, é necessário pro-curar uma literatura, procurar um público para oslivros que se escrevem no povo mesmo.4

UMA LITERATURA PARA O POVOPoderíamos então considerar que, ao falar

de literatura popular, o pensador referia-se a umaliteratura produzida “no povo mesmo”. Entre-tanto, percebemos, na seqüência de seu pronun-ciamento, que não podemos ter certeza disso –muito provavelmente Sartre também não a tives-se –, pois ele parece entender que a literatura deveser feita para o povo, falar de sua realidade con-creta e respeitar seus anseios:

Desse modo, no momento presente, o escritor seencontra em posição de procurar a realidade mesma

2 Ibid., p. 388.3 CRÍTICA e História Literária, 1964, p. 278-279.4 Ibid., p. 282.

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de seu público, e não de impor ao público o que ele,escritor, pensa sobre ele mesmo, suas tristezas, suasmisérias, suas ambições. Ele deve dar a este públicoo que este público pede que lhe seja dado, isto é,seus desejos populares, as infelicidades populares,as ambições populares, os seus mitos, os seus cos-tumes. O que significa, por conseguinte, algo de in-teiramente singular e concreto, ligado a toda a rea-lidade nacional brasileira.Do que resulta que a literatura popular, num casocomo este, é ao mesmo tempo uma literaturanacional – pois as duas caminham paralelamente.Trata-se de uma literatura com a qual se escrevepara o povo e sobre o povo, e que se torna marca-damente particular a este povo, no caso o povobrasileiro. Um povo em vias de se constituir nação.Em suma, a personalidade nacional torna-se o ob-jeto da literatura.5

Sartre ressalta que essa literatura encontra ouniversal por outro caminho, à medida que,numa sociedade na qual não houve tempo de secristalizar uma estratificação social nos moldesfranceses, o escritor pode se identificar com opovo, falar de seus problemas, pois na origem éainda povo. Nesse sentido, num país em lutacontra o subdesenvolvimento, a literatura teria afunção de mover esse público a tomar consciên-cia de seus problemas e de suas possibilidades. Se-ria esse o papel que o escritor começava a desem-penhar em Cuba,6 país visitado por Sartre e Si-mone, a convite de Fidel Castro e Che Guevara,poucos meses antes da vinda ao Brasil. Sartre pa-rece pactuar com a idéia de que deve haver umavanguarda a guiar o povo na compreensão de suarealidade até a dita revolução redentora.EXISTE UMA LITERATURA POPULAR NO BRASIL?

Depois da exposição de suas idéias em Re-cife, convencido de que os congressistas perten-ciam a um campo popular, Sartre propôs um de-bate sobre a existência, no Brasil, de uma litera-tura que correspondesse à expressão da realidadenacional, que fosse popular. Além disso, pediu es-clarecimentos sobre as solicitações do públicobrasileiro e da dimensão do nosso universo de lei-

tores, informações que os presentes não soube-ram precisar.7

Wilson Martins procurou ressaltar a com-plexidade da nossa literatura e a diversidade dopúblico: Jorge Amado e Érico Veríssimo, emborarepresentassem ambientes opostos, eram os es-critores mais lidos. Jorge Amado atribuiu ao per-nambucano Ariano Suassuna o mérito de ser umescritor que parte de temas populares e consegueatingir a burguesia, os trabalhadores e superar oregionalismo, pois, naquele momento, o Auto daCompadecida estava sendo representado na Ar-gentina, no Paraguai e na Tchecoslováquia.

Por sua vez, Adolfo Casais Monteiro levan-tou uma questão a respeito do sujeito dessa lite-ratura popular apregoada por Sartre. Para ele, oque poderia existir seria uma aspiração de escri-tores, sempre de formação burguesa, a se identi-ficar com o povo. Em três artigos, publicados naimprensa do Rio de Janeiro e de São Paulo, o crí-tico português retomou o tema da possibilidadede uma literatura popular.8 Na assistência, CléaBrasileiro trouxe o problema da literatura popu-lar para um plano mais concreto, ao questionar aresponsabilidade do escritor em relação a um pú-blico, como o brasileiro, ausente pelo analfabetis-mo e pela impossibilidade de adquirir livros. Essacolocação foi posteriormente referida e elogiadapelo próprio Sartre, durante conversa com os jor-nalistas, e retomada pela crítica na imprensa per-nambucana.9

A UTILIDADE DO CONGRESSO DE RECIFE É QUESTIONADA

A realização de um congresso de crítica lite-rária, com a presença de Jean-Paul Sartre, numatípica cidade de Terceiro Mundo como Recife, ge-rou larga polêmica na imprensa nacional. Nospróprios jornais pernambucanos surgiram críticasà sua organização e ao afinamento entre os seusobjetivos e as intenções que trouxeram Sartre aoBrasil. Aníbal Fernandes sugeriu que Sartre teriavindo ao País muito mais interessado em conhe-

5 Ibid., p. 282.6 “ESCRITOR deve atingir povo...”, 16/ago./60.

7 Ibid.8 MONTEIRO, 10/set./60 (republicado pelo Correio da Manhã, em24/set./60) e 8/out./60.9 “ESCRITOR deve atingir povo...”, 16/ago./60.

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cer novas paisagens do que em discutir temas lite-rários. Para esse autor, o interesse do filósofo na-quele momento voltava-se à grande reportagem,mencionando a série de artigos sobre Cuba pu-blicados no France-soir, jornal que, apesar de nãoter uma linha política afinada com a de Sartre,atingia um grande público. Este parecia, então,esperar uma nova seqüência de reportagens, des-sa vez sobre o Brasil, o que não se concretizou.10

Fernandes parte do raciocínio de Sartre so-bre Cuba11 para questionar a utilidade de umcongresso de crítica literária numa cidade em que50% da população era analfabeta – apesar da exis-tência de três universidades. E retoma a coloca-ção de Cléa Brasileiro, durante tal evento, acercada situação do autor em face do público12 paraapresentar a seguinte questão: “Se não temos pú-blico para ler os livros, como pensar primeironum Congresso de Crítica, antes de formar omaior número de leitores para esses livros?”.13

Diferentemente pensava o crítico portu-guês Casais Monteiro, que, em seus artigos, fala-va sobre a importância do evento como fator dedescentralização da cultura brasileira. Entretanto,reclamava da pouca cobertura dada pela imprensado Sul aos debates, atribuindo-o às rivalidades re-gionais e à incredulidade sobre a vinda de Sartreao Brasil. Alguns congressistas já haviam deixadoRecife quando o filósofo chegou, pois, próximo

ao encerramento, talvez acreditassem que a sus-peita geral tivesse se confirmado: Sartre não sedignaria a vir a uma pobre universidade “de pro-víncia”. Monteiro alegou que, justamente por serum congresso nessas condições, deve ter interes-sado ao filósofo. Disse ainda que, a despeito dopouquíssimo tempo que Sartre passou na reu-nião, sua participação foi o seu melhor momento,pois ele procurou integrar-se à realidade do País,levantando questões sobre literatura brasileira.Mas lamentou a ausência de diversos críticos quepoderiam ter enriquecido o debate, citando no-mes como Augusto Meyer, Amoroso Lima, An-tonio Candido, Sérgio Milliet, Álvaro Lins,Franklin de Oliveira, Otto Maria Carpeux e Ca-valcanti Proença.14

O fio condutor das preocupações de Mon-teiro era com a definição de literatura popular,proposta por Sartre aos escritores brasileiros. Noentanto, antes de tudo, procurou esclarecer a ex-pressão engagement,15 empregada por Sartre paradefinir o papel do escritor em face das questõessociais envolvendo o seu público. Alertou para ofato de que essa expressão não devia ser entendi-da no sentido de “compromisso” ou de “alista-mento”, tal como traduzida pela imprensa brasi-leira, e sim como “participação” do escritor na so-lução dos problemas da sociedade em que vive, naqual deveria tornar-se elemento ativo. Para Mon-teiro, a idéia de compromisso parecia ser o queSartre sempre combatera, haja vista sua condena-ção à agressão soviética à Hungria. O “compro-misso” implica pactuar, ao passo que o engage-ment, ou “participação”, pressupõe liberdade.Nesse sentido, o escritor deveria lutar pela liber-dade e pela revolução socialista.A LITERATURA POPULAR COMO “ARTE SUPERIOR”

Como vimos, durante o congresso de Re-cife, Sartre quis saber se existia uma literatura po-pular no Brasil. Wilson Martins nem Jorge Ama-do, ou qualquer um dos presentes, conseguiramlhe dar uma resposta satisfatória. Segundo Mon-teiro, não se sabia exatamente o que é uma lite-

10 “Parece que ultimamente a grande reportagem passou a interessá-lo,sobremodo, pois tendo passado um mês em Cuba (irá passar outro noBrasil, o que é quase nada) apressou-se a oferecê-la a um jornal de vastatiragem como France-soir, que lança na rua todos os dias mais de ummilhão de exemplares e não adota a sua linha filosófica ou política.Levando em conta, porém, a personalidade do autor, um dos maioresescritores contemporâneos, em torno de um assunto jornalístico pal-pitante, e ainda que divergindo dele, o popular vespertino parisiensenão hesitou em divulgá-lo, em nome daqueles mesmos princípios deliberdade, que nos Estados Unidos e nos países de índole democráticaleva escritores, jornalistas e homens públicos a comentar e a criticar,livremente, a política governamental” (FERNANDES, 17/ago.60).11 “Ora, falando de Cuba na sua grande reportagem do France-soir(Ouragan sur le sucre) o sr. Sartre, que é um filósofo, toma os ares deum propagandista da Liga contra o analfabetismo, ao dizer: ‘Aprendera ler é aprender a julgar. Para que o povo empobreça é preferívelmantê-lo na ignorância. Assim não lhe ensinaram nada. Para começar,não lhe deram sequer escolas’” (idem, 18/ago./60).12 “Muito se teria admirado o sr. Sartre se viesse a saber da pequena cir-culação dos jornais do Recife, levando em conta que esses jornais cir-culam também no interior e em outros Estados do nosso Nordeste”(ibid.).13 Ibid.

14 MONTEIRO, 3/set./60.15 Ibid.

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ratura popular, pois o assunto foi apresentadopor Sartre, mas não lhe foi perguntado o que o fi-lósofo realmente pensava sobre ele. Monteirotece reflexões sobre quem poderia ser o autordessa literatura e quem haveria de ser o seu pú-blico, pois “o povo”, da maneira como essa ex-pressão parece ter sido entendida pelos congres-sistas e pela imprensa, era uma realidade que nãoexistia no Brasil:

Há realmente uma questão de palavras a elucidar,antes de mais nada. Precisamos eliminar as associa-ções de idéias expressas, por exemplo, no sentidoque damos a “popularizar”, que vem a ser o de “tor-nar mais acessível”. Ora, não se trata de popularizara literatura, mas de saber o que seria a literaturadum povo inteiro, quer dizer, aceite, reconhecidapor um povo inteiro, e não apenas expressão dumaclasse, e só por ela consumida. Ora, nós estamos nafase em que o escritor burguês escreve sobre o povo– mas ele não é o povo. E em que, também, o povonão o lê, porque não sabe ainda ler; de onde só po-demos concluir que é cedo para se pôr realmente oproblema da literatura em termos socialistas.16

Monteiro parece remeter a possibilidade deuma literatura popular para o plano de uma so-ciedade ideal: seria a literatura possível num mun-do verdadeiramente socialista em que o leitormédio se tornaria mais exigente.

Em outro artigo,17 o crítico português con-sidera que o problema essencial para a definiçãode literatura popular está no fato de que não se as-sociou a idéia de popular à de arte superior. Ele pa-rece querer reforçar a colocação do tema no âm-bito de uma sociedade ideal, pois, se possível deser realizada, essa “arte superior” seria a expressãodos problemas de um povo inteiro e acessível aele como um todo; caso contrário, “não poderádeixar de haver uma literatura ‘de classe’, de e parauma classe – quer isso seja implicado por diferen-ças propriamente socioeconômicas, ou entãoporque, mesmo com identidade de educação, ha-veria sempre as diferenças de gosto para estabele-cer, pelo menos, classes... estéticas”.18

No artigo “Ainda Sartre”, Monteiro afirmaque o pensador francês se preocupava com a li-teratura popular por ser um problema que nãohavia sido resolvido pelo realismo socialista, tra-tado por Sartre como expressão do dogmatismostalinista.19 E em “Literatura e povo”, procuradiscutir os princípios da arte do realismo socia-lista. De acordo com ele, essa arte assume comoprincípio a idéia de que a solução dos problemassociais suprimiria tudo quanto não é “positivo”na literatura, que receberia sua validade da ex-pressão da “saúde social”. Os aspectos negativosda vida social ou individual apenas teriam lugarno romance histórico. Entretanto, obras antigasperduram, mas não pela expressão de uma reali-dade social, o que

pode fazer-nos prever que as grandes criações esté-ticas do futuro mundo socialista não serão funda-mentalmente (isto é, esteticamente) caracterizadaspela relação que mantenham com os “problemas”resolvidos por tal sociedade. O que nos permite, as-sim, pensar que a arte “superior” que podemos con-ceber, para quando o povo inteiro nela se ache ex-presso, e o povo inteiro a possa apreciar, estará mui-to longe de ser literatura “social” em que sempre (eerradamente) pensamos ao abordar tais questões.20

Prossegue o crítico português em suasconsiderações sobre literatura: “a literatura é umaexpressão do homem concreto, válida (ou seja,bela, pois é esta a espécie de validade própria dasobras de arte) somente quando exprime de fato aautenticidade da experiência humana – seja estaqual for”.21 Porém, suas reflexões não resolvemos problemas deixados em aberto por Sartre. Pri-meiramente, porque Monteiro admite que a vali-dade estética da obra possa existir mesmo quan-do o escritor exprime uma experiência pessoal,idéia que entra em conflito com as declarações deSartre, no Brasil, sobre os escritores francesesnada terem a dizer de novo, pois apenas se preo-cupam em tratar experiências individuais.

16 Idem, 10/set./60.17 Idem, 8/out./60.18 Ibid.

19 Idem, 24/set./60.20 Idem, 8/out./60.21 Ibid.

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Ademais, Monteiro desloca o tema da pers-pectiva assumida pelo filósofo: já havia sugerido22

que a literatura popular somente seria possívelnuma sociedade ideal e, em outro artigo,23 apre-senta-a como arte esteticamente superior. Assim,transfere a possibilidade de uma literatura popu-lar para a realidade de uma sociedade em processorevolucionário, quando fossem criadas condiçõespara tal literatura ser uma “literatura difícil”. Nes-se sentido, sua conclusão só poderia ser a de quea qualidade estética – e, portanto, a validade – deuma arte socialista não se poderia conhecer, pois“tal sociedade não existe em parte alguma domundo”.24

Apesar de o filósofo não ter definido, emseus pronunciamentos no Brasil, o que entendiapor uma literatura popular, afirmou que ela deve-ria ser nacionalista, no sentido de representar osproblemas do País e conduzir o público à açãotransformadora. Afinal, Sartre apresenta a pro-posta para o Brasil tal como ele o conheceu em1960, com suas graves contradições econômicas esociais e acentuada diversidade cultural. Para o fi-lósofo, a possibilidade de uma literatura popularnão estaria restrita a uma sociedade socialista,

mas parece ter sido apresentada como instru-mento de conscientização. Nesse caso, não po-deria ser “difícil”, mas teria de mostrar-se acessí-vel a um povo em condições ainda precárias deeducação. Parece, portanto, pertinente imaginarque essa literatura não poderia ser feita pelo pró-prio povo, mas pelo escritor burguês identificadocom ele.CRÍTICAS À PROPOSTA DE ENGAJAMENTO DO ESCRITOR

A proposta de que o escritor brasileiro de-veria fazer literatura popular de teor nacionalistafoi retomada por Sartre em vários de seus pro-nunciamentos no Brasil e também no diálogoque com ele manteve a inteligência nacional pormeio da imprensa. Parecem válidas as críticas fei-tas pelo poeta Ferreira Gullar e pelo romancistaCarlos Heitor Cony, ao censurarem-no por suaproposta conduzir ao juízo de que seria preferívelo mau romance com boa mensagem ao bom ro-mance apenas preocupado em falar do homem.

Ferreira Gullar percebeu a ingenuidade deSartre na sugestão de uma literatura popular e desoluções políticas em moldes cubanos para o Bra-sil, sem levar em consideração nossa diversidadecultural e nossas diferenças regionais. Afirma opoeta maranhense: “no Brasil, existe um contras-te flagrante entre as grandes cidades e o resto doPaís”.25 Por isso, o Brasil não cabe numa defi-nição tão simples de subdesenvolvimento comoCuba, pois, se grande parte do País vive em con-dições de miséria, outra porção dialoga com acultura contemporânea e está integrada à vidamoderna. Em conseqüência, também os escrito-res brasileiros não podem caber nesse modelo deuma literatura nacionalista – que Sartre receitavaaos escritores de países subdesenvolvidos.

Além disso, Ferreira Gullar coloca em dú-vida a eficácia prática da literatura nacionalista:“não seria mais útil ao homem entregar-se à açãopolítica de fato que fazer literatura?”.26 E cita oexemplo do teatro nacionalista que se pretendiafazer no Brasil, cujo público, na verdade, era bur-guês, porque o proletariado não lhe teria acesso

22 “O problema do Recife: a literatura ‘popular’. Por que interessa aSartre investigá-la? Porque, evidentemente, a sua consciência dumacrise na literatura francesa, e o predomínio de preocupações, digamos,sociológicas, na fase atual do seu pensamento, lhe impõe a busca deuma solução para o problema que não foi de modo algum resolvidopelo realismo socialista, o qual não passa duma expressão do dogma-tismo stalinista aplicado à estética; ao mesmo tempo, não vê, na litera-tura ‘burguesa’ (por exemplo, no ‘novo romance’ dos Robbe-Grillet,Butor etc.) maneira de se restabelecer a possibilidade dum romanceuniversal; isto é, do povo para o povo: não o romance expressão dumaclasse, e ‘feito’ por ela, mas o do ‘povo’ e feito por...Ora eis o obstáculo, parece-me: feito por quem? Eu podia ter escrito‘feito pelo povo’. Mas quer isso dizer alguma coisa? Quem é o povo?Mas a possibilidade de se dar resposta à pergunta de Sartre implicavaprecisamente que houvesse ‘o’ povo e uma literatura para ele implicavaprecisamente uma realidade que também no Brasil não existe, e porisso mesmo ninguém lhe deu resposta satisfatória. Se lhe tivesse dadoteria sido uma mentira. É que, de fato, a renovação do romance quepor exemplo a literatura dos Estados Unidos parecia constituir, de háquarenta para trinta anos, era uma literatura de ‘oposição’. Era a bur-guesia condenando as ‘maravilhas’ da suposta civilização americana.Não era talvez, e isso é da maior importância, uma revolta no individu-alismo, no sentido ‘liberal’ da palavra. Era, sem dúvida, uma reivindica-ção dos valores humanos contra a escravização ao tecnicismo. Mas nãoera uma literatura socialista, porque, se a palavra pode vir a ter sentido,será o que ganhe numa sociedade socialista, coisa que é ainda do domí-nio da utopia” (idem, 10/set./60).23 Idem, 8/out./60.24 Ibid.

25 GULLAR, 6/set./60.26 Ibid.

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cultural e econômico. O poeta discute também asimplicações estéticas da proposta de Sartre:

Além do mais, esse ponto de vista de Sartre podelevá-lo, logicamente, a preferir um mau romancenacionalista a um bom romance, que trate apenasdo homem, de sua vida, de seus problemas ínti-mos. Passaríamos a julgar as obras pela sua mora-lidade e voltaríamos às fábulas bem-pensantes.Mas Sartre já se ocupou amplamente de Faulknere Jean-Genet.27

Carlos Heitor Cony encarou a proposiçãode Sartre aos escritores brasileiros como uma ati-tude de colonialismo intelectual. Questionoutambém a supervalorização da responsabilidadeatribuída por Sartre ao escritor: a missão especialdo escritor teria como pano de fundo a idéia deque o intelectual é superior aos outros homens?De acordo com Cony, “ninguém pode ser res-ponsável no lugar dos outros, cada qual tem a suadose intransferível e (essa sim) inalienável”.28

LITERATURA POPULAR, FOLCLORE E REGIONALISMO NORDESTINO

Também durante a sua passagem pelaBahia, o principal tema tratado por Sartre foi a li-teratura popular. Ele voltou a considerar que a li-teratura deve refletir mais o meio que o indiví-duo. Contudo, parecendo preocupado com acolocação de Cléa Brasileiro no congresso de Re-cife, teria dito que antes é preciso alfabetizar opovo para que possa ler uma nova literatura, en-tão inteiramente popular: “É preciso ensinar opovo a ler para depois poder ler uma nova litera-tura que seria então inteiramente popular”.29

Atentemos para o fato de Sartre, a confiarna imprensa baiana, ter usado apenas o verbo ler,e não escrever, ao falar da relação entre povo e li-teratura. Essa visão do povo como leitor, e nãocomo produtor de literatura, é reforçada pelamatéria de outro jornal baiano, ao afirmar queSartre “não se afastou da tese de que a literaturadeve ser realizada em função do povo e jamaisafastada dele”.30

Em contraposição a essa literatura popularque receitava, o filósofo procurou definir a lite-ratura burguesa:

Os escritores da literatura burguesa que continuama insistir na sua tecla dão mostras de seu fracasso.Os temas já se esgotam. E eles não têm mais nadaa dizer. A formação própria de tais escritores já seapresentava viciada desde a origem em face ao quechamamos de “humanidades burguesas” a que osmesmos são levados a estudar. O mundo hodiernoreclama uma literatura de unidade do povo, exigidapelas condições do próprio país, afastando-seaquela denominada burguesa em virtude das me-lancolias e desesperos patenteados. A literaturaburguesa, em síntese, é a literatura da solidão, doindividualismo e do desespero que a nada conduz.A única solução, a literatura desejada só poderá seraquela arrancada do povo e sintonizada com os an-seios desse mesmo povo.31

Como se percebe nesse pronunciamento, achamada literatura burguesa tem suas caracterís-ticas delineadas por Sartre (o que já fora feito emQu’est-ce que la Littérature?). Porém, ele não de-finiu quem seria o autor dessa literatura “deseja-da”, “arrancada do povo”, expressão cujo sentidopermaneceu vago. Embora tivesse conhecido,em Pernambuco e na Bahia, formas de “literaturapopular”, como a oral dos repentistas e a de cor-del, teve, em Salvador, a preocupação de salientarque, apesar de ter notado “na Bahia um ambientemuito propício a esse gênero que aconselha,deve-se ter a cautela de não copiar o folclore, quetambém é falso”.32 Não era, portanto, a literaturafolclórica que ele preconizava como a literaturapopular “desejada”.

O crítico Nélson Werneck Sodré reconhe-ce, no romance regionalista nordestino, um gê-nero ancorado nas narrativas de tradição oral, no“causo”, de fácil compreensão. Entretanto, essegênero não deve ser confundido com a literaturafolclórica, que Sartre diz não corresponder à lite-ratura popular por ele proposta. Isso porque o re-gionalismo nordestino, que pretere a estética da

27 Ibid.28 CONY, 1.º/out./60.29 “SARTRE, na reitoria...”, 18/ago./60.30 “A LITERATURA popular...”, 18/ago./60.

31 Idem.32 “SARTRE, na reitoria...”, 18/ago./60.

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forma em função da narrativa documental, segueum plano consciente de denúncia, visando, por-tanto, à transformação da realidade social:

Como os outros romancistas nordestinos – salvoGraciliano Ramos – José Lins do Rego é um docu-mentarista, além de memorialista. O romance nor-destino do pós-Modernismo – que representoufase curiosa no desenvolvimento da literatura bra-sileira – foi acentuadamente documentarista: infor-mou sobre a vida regional, reconstituiu-a, denun-ciou suas mazelas, forjou um libelo, válido comotal, sem dúvida, mas frágil como arte literária. Essenível de documentário, em que o romance nordes-tino se manteve e de que se alimentou, era assimcomo uma espécie de estágio pré-artístico, de etapapreliminar, como se tivesse sido atribuída a algunsescritores a missão preliminar de reunir o materialbruto. Nota-se isso desde A Bagaceira, em que faltaaté a estrutura de romance. José Lins do Rego faz orelatório da vida no engenho e o da transformaçãodo engenho em usina; Jorge Amado faz o relatórioda vida na zona do cacau e em Salvador. São exce-lentes documentaristas. Sob certos aspectos, os ro-mances que escrevem servem ao estudo sociológicodas regiões indicadas; passagens, episódios, proble-mas, poderão até incorporar-se, como categoriashistóricas, à análise do desenvolvimento da socieda-de regional de que tratam: a transformação do en-genho em usina, a conquista, desbravamento, apro-priação das terras do cacau.33

Num processo de transformação social,numa sociedade em que o povo tem acesso res-trito à literatura, estaria Sartre querendo dizerque caberia ao escritor de origem burguesa iden-tificar-se com o povo para dele “arrancar” osproblemas e as possíveis soluções e elaborá-las?Afinal, o povo seria o objeto dessa literatura,como tema, e também sujeito, na medida em quese percebesse representado nela? Ou, poderiaconstituir, em países em luta contra o subdesen-volvimento, inclusive em sujeito, como autordessa literatura? Sartre não deu tais respostas; noentanto, como salientou Casais Monteiro, que

recolocou a questão no plano estético, tambémninguém lhe perguntou.34

SARTRE NO RIO: UM MODELO DE LITERATURA POPULAR PARA O BRASIL

Em entrevista coletiva à imprensa, na Fa-culdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro,ao ser indagado sobre a posição do escritor, Sartrevoltou a salientar uma diferença, já enunciada emRecife, entre o papel desse agente nos países sub-desenvolvidos, em luta pela emancipação, e naEuropa. Naqueles, os escritores deviam se liber-tar da influência estrangeira e voltar-se para osproblemas específicos e concretos de seus povos.A tarefa seria revelar ao público a sua real situaçãoe o seu campo de possíveis. Citou o exemplo deCuba, onde, dizia, a população das cidades se es-pantou com a miséria em que vivia o homem docampo, situação que, embora próxima, era desco-nhecida por aquela. O articulista Villela Neto re-sume a concepção de literatura revelada por Sar-tre na entrevista:

A verdadeira posição do escritor é mostrar, fazerconhecer as necessidades do país, pouco importa sesob o ponto de vista de um nacionalismo crítico ouse por obra nacionalista. Contar e descrever comovive o seu povo, revelar a verdade e desmascarar asmistificações que se criam sobre uma pretendida in-capacidade ou impossibilidade dos países se servi-rem por si mesmos de seus recursos e possibilida-des nacionais. E esses livros devem ir “partout” (portodos os cantos). Que no Brasil, por exemplo, oshabitantes do Rio Grande do Sul ou de São Paulosaibam como vivem os trabalhadores da Amazônia,ou os do cacau, em Ilhéus.35

Ainda no Rio de Janeiro, Sartre pronun-ciou a conferência “Estética da literatura popu-lar”, na Faculdade Nacional de Filosofia, em 26de agosto. Nela, voltou a afirmar, como já havia

33 SODRÉ, 1970, p. 102.

34 “O problema parece-me estar em que não se associou ainda, numesforço de esclarecimento, a idéia de ‘popular’ à de ‘arte superior’. Este‘superior’ não seria necessário, e só está aqui para ficar bem claro que éde arte ‘mesmo’ que se trata. Foi pena que, tendo-lhe perguntado tantacoisa, a imprensa não tenha querido saber de Sartre o que ele realmentepensava do problema. E por isso mesmo ele só aqui figura por terlevantado, e não como autor de nenhuma resposta, que não deu, por-que toda a gente lhe perguntou (fora os disparates) aquilo a que ele járespondera em toda a sua obra, mas ninguém quis saber o que aindanão disse” (MONTEIRO, 8/out./60).35 VILLELA NETO, 31/ago./60.

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feito em Recife e Salvador, que a literatura popu-lar tem no povo ao mesmo tempo o seu sujeitoe o seu objeto. Segundo ele, escrever para o povoé muito mais difícil do que para uma classe,como faz a literatura burguesa – o problema quese apresenta ao escritor é saber quais os meios deque dispõe para dar ao leitor a idéia de que o des-tino humano está, exclusivamente, nas mãos dopróprio homem.

Segundo Sartre, o povo busca na literaturaa expressão de sua realidade nacional e cultural.Arrisca outra receita para o caso do Brasil:

A literatura deve interpretar os acontecimentos po-pulares, mas na perspectiva histórica em que essesacontecimentos se desenvolvem. No Brasil, porexemplo, creio que uma literatura popular deve ex-pressar, necessariamente, os problemas e ascontradições do país em luta contra o subdesenvol-vimento. Fora disso não há literatura popular, poisse limitaria ao que é exótico, ao anedótico.36

Sartre pensava que a literatura popularapresenta problemas estéticos novos. A necessi-dade de exprimir a totalidade de uma realidadecontraditória era, para ele, um problema novo,não colocado pela literatura clássica ou burguesa:“Existe um problema estético da literatura popu-lar a que poderíamos chamar de horizontal, qualseja o de representar a totalidade de uma situação,e um outro problema, que poderíamos chamar devertical, não menos importante: o de buscar nopassado o condicionamento do homem presentee mostrar suas perspectivas futuras”.37

Sartre defendia que a literatura burguesanão pode representar essa dupla presença do pas-sado e do futuro no presente em transformação,porque se fixa a uma época estanque. Exemplificaesse raciocínio para o caso do Brasil: “É impossí-vel, por exemplo, que um brasileiro veja o que

quer que seja, sem sentir o seu prolongamento nofuturo. A dimensão do futuro deve ser, entretan-to, a mais próxima possível do presente. Essa éuma das tarefas da literatura popular, a única quelegitima hoje o papel do escritor”.38

INSUFICIÊNCIA DE INTERLOCUTORES SOBRE A LITERATURA BRASILEIRA

Embora a seqüência dos pronunciamentosde Sartre em Recife, Salvador, Rio de Janeiro eSão Paulo mostre interessante evolução de suapercepção sobre a complexidade da realidade bra-sileira, é pena que seu conhecimento de nossa li-teratura continuasse bastante restrito, pois pareceque os interlocutores que encontrou por aquipouco contribuíram para que ele o ampliasse. Tal-vez as rivalidades regionais tenham sido fatoreslimitadores à presença de críticos do Sul do Paísnos diálogos sobre literatura popular, desencade-ados no Recife, com base nos pronunciamentosde Sartre. Talvez hajam sido insuficientes os con-tatos com críticos literários no Rio de Janeiro eem São Paulo. Assim, não foram mencionadas aSartre as obras de um escritor como GracilianoRamos ou de poetas como Murilo Mendes, Car-los Drummond de Andrade ou João Cabral deMelo Neto. Ao menos em parte significativa deseus textos, esses autores inserem preocupaçõescom a identidade nacional39 e a questão da soli-dariedade40 – tão pertinentes ao pensamento deJean-Paul Sartre – ou representam, de forma tãocrua e tão bela (embora, naquele momento, o fi-lósofo não estivesse preocupado com a beleza), asolidão da paisagem e a miséria nordestina,41 coma qual ele teve contato em suas andanças por Per-nambuco, Bahia e Ceará.

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36 “SARTRE leva uma multidão...”, 27/ago./60.37 Ibid.

38 Ibid.39 Nesse contexto, a Canção do Exílio, de Murilo Mendes, foi publi-cada na década de 1930.40 De Carlos Drummond de Andrade: Sentimento do Mundo, publi-cado em 1940, e A Rosa do Povo, em 1945.41 Grande parte da obra poética de João Cabral de Melo Neto foipublicada nas décadas de 1940 e 1950, inclusive Morte e Vida Severina,que, poucos anos depois da visita de Sartre, iria se consagrar, inclusivena França, em montagem musicada por Chico Buarque de Holanda.

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Dados do autor

Doutor em teoria literária pela Unicamp, autorda obra A Passagem de Sartre e Simone de

Beauvoir pelo Brasil em 1960, originariamentetese de doutorado publicada, em 2002,pela Editora Mercado de Letras/Fapesp.

Professor nas Faculdades Hoyler e naFaculdade Prudente de Moraes.

Recebimento: 13/abr./05Aprovado: 18/ago./05

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Filosofar en EscenaTO PHILOSOPHIZE IN THE SCENE* 1

Resumen En un texto anterior, “De sabihondos y suicidas”,2 interrogué a esefilósofo (Sartre, 1943) que mira y escribe, para hacer actuar a otros, desde elespacio en que está para actuar. Aquí me pregunto por el fracaso en nosotros delproyecto del compromiso del intelectual, desde este futuro de Sartre en que losfilósofos latinoamericanos “somos invisibles”.3 Releo al Sartre que pasea sumirada nadificadora sobre un café, y propongo otro lugar para el filósofo: el deun parroquiano más, procurando transformar la escena para que puedaninteractuar todos. Quedarse donde se está y pensar con quienes se está.Ganaremos la escena real del lugar filosófico en que estamos, con los demásesclavos, ninguneados como fondo, en el fondo de la caverna, para pensar a fondoeste aquí y ahora, que incluye lo intempestivo y lo utópico, lo conflictivo y eldisenso, lo interior y lo exterior, lo particular y lo universal. Entonces, podremossalir de visita y dialogar con otros. Como en el café con Pessoa que imagino.Palavras-clave FILOSOFÍA – ESCENA – ESCENARIO – SARTRE, JEAN-PAUL –PESSOA, FERNANDO – PEREDA, CARLOS.

Abstract In a previous text, “De sabihondos y suicidas”, I questioned Sartre(1943), who looks and writes, from the space in which he is about to act, to makeothers act. Here, I ask about the failure, in us, of the intellectual compromiseproject, from this future of Sartre in which the Latin American philosophers “areinvisible”. A read again the Sartre that passes his nothingness look over a coffeeshop, and propose another place for the philosopher: the one of anotherparishioner, trying to change the scene so that everyone can inter-act, stay wherethey are, and think with whom they are. We will win the real scene of thephilosophical place where we are, with the other slaves, nenhuneados as a rear, inthe rear of the cavern, to think deeply this here and now, that includes theintempestive and the utopian, the conflictive and the dissent, the interior and theexterior, the particular and the universal. Hence, we can go out and dialogue withothers, as in the coffee shop with Pessoa that I imagine.Keywords PHILOSOPHY – SCENE – SCENARIO SARTRE, JEAN-PAUL – PESSOA,FERNANDO – PEREDA, CARLOS.

1 Tendo por base a comunicação ao Colóquio “Sartre y la cuestión del presente” (Montevidéu, 2-3/ago./04.Universidad de la República, Universidad de París-8). Revisão do espanhol: JUAN CARLOS BER-CHANSKY (UNIMEP/SP)2 LANGON, 2005.3 PEREDA, 2000.

MAURICIO LANGONAsociación Filosófica del

Uruguay (AFU)[email protected]

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En el “resumen” decía que me pareció interesante cuestionar alfilósofo desde el espacio, desde la escena en que está para actuar,al filósofo que primero mira y después escribe letra y música,para hacer actuar a otros en el modo del interpretar. Es decir,para que otros le sigamos, hablando, leyendo y escribiendo.Anunciaba, entonces, mi “interpretación” a partir de textos quetenían en común referirse al café, espacio íntimo y abierto, pri-vado y público. Mi intención era reflexionar sobre la dirección de

distintos puntos de vista intelectuales referidos a la sociedad, metafori-zada en el escenario del café.

Pero ocurre que ya hice eso. Está escrito. Ahora se trata de seguir...

2. Sigo, entonces,... con un “Cuento para niños futuros”, de CarlosVaz Ferreira: “Dios hizo el espacio y el Diablo hizo el tiempo. Dios creóel Universo con los seres felices y sanos; los astros brillando... Entoncesel Diablo hizo el tiempo y los seres empezaron a envejecer, los astros aapagarse, y vinieron la desarmonía, el dolor y la muerte”.3

Quisiera interrogar el apagamiento de la idea sartreana del compro-miso del intelectual, desde este futuro de Sartre (agregado por el Diablo)en que los filósofos en América Latina – según Carlos Pereda – “somosinvisibles”, ocupamos un “no lugar”.

Contra esa invisibilidad, se ha propuesto terapias. Que implicanpro-yectar hacia futuros escenarios la trayectoria previsible de las tenden-cias actuales a la invisibilización, para desviarla hacia un escenario desea-do, con filósofos visibles.

Pero se me ocurre necesario este análisis previo: preguntarnos porel fracaso del proyecto sartreano en nosotros, por los caminos que – des-de aquel afán de compromiso – nos han llevado a estos escenarios des-comprometidos, a estos escenarios sin filósofos, a estos escenarios nofilosóficos y aun antifilosóficos. Y que nos han llevado también a estosfilósofos sin escenario. Es decir, preguntarnos qué le hizo el diabólicotiempo al divino espacio de los intelectuales comprometidos de mediadosdel siglo XX. Preguntarnos el por qué y el cómo de la corrupción actualde sueños pasados, bien puede ayudarnos a prevenir desgastes futuros deproyectos actuales.

3. Retomo, pues, el texto de Sartre: aquél en que entra con retrasoal café, a buscar a su amigo Pedro, y organiza al café como fondo indi-ferenciado en que recaen y se diluyen personas y cosas para que la formaPedro pueda aparecer. Pero como Pedro no está, sobre el café nadificadocomo fondo se desliza la forma-nada Pedro. Y Sartre concluye: “mi es-pera ha hecho llegar la ausencia de Pedro como un acontecimiento real

3 VAZ FERREIRA, 1963, p. 470. Cierto que, para Vaz Ferreira, esto es “injusto con el tiempo”, el únicorecurso “para evitar la creencia en la mortalidad del alma”, pues bastaría suponer “que el tiempo estuvieraen distintos momentos para las distintas personas” (p. 471).

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concerniente a este café. Es un hecho objetivo,ahora, que yo haya descubierto esa ausencia”.4

Retomo mi lectura. El filósofo entra al es-cenario del café (digamos, de la sociedad, delmundo) precedido de una idea, plenamente cons-tituida en algún otro lugar. Como la realidad hadesairado su expectativa, como su idea no se ve-rifica, se venga nadificándolo todo. Cabe imagi-nar la salida airada y el portazo. Y la exclamaciónresentida: ¡Pero si yo he hecho llegar un aconte-cimiento real que les concierne a ustedes y que yohe descubierto!

Con esta nadificación de los otros, con estaafirmación propia que ningunea a los demás,oculta su decisión de desresponsabilizarse por elretraso que provoca el fracaso de su proyecto, yoculta su decisión de no procurar otro proyecto(como buscar a Pedro en otra parte, o decidir pe-dirle disculpas mañana, o sentarse a tomar un cafécon otros, o solo...).

Que no sorprenda, entonces, que el café (elmundo, la sociedad), ningunee a su vez al filósofoque sólo ha entrado para confirmar su idea, parareafirmarse, que no acepta contradicción alguna yque se va muy enojado porque las cosas no soncomo él quiere, porque le resisten...

Es que esa relación que establece Sartre conel café, esa propuesta de modo de entrar el filó-sofo en la sociedad, produce otra nadificación: lapropia exclusión. Y la exclusión de sus futuros,como lo somos nosotros, los filósofos latinoa-mericanos actuales, preocupados por nuestra in-visibilidad en la escena pública.

4. Nosotros, ¿acaso no seguimos tratandode entrar del mismo modo a diversos escenarios,demasiado a menudo?, ¿no vamos en el modo de“entrar de afuera”, para ser vistos, para ser ilumi-nados por las candilejas en nuestra actuación me-recedora de aplausos? ¿No es ése el modo en quequeremos entrar, demasiado habitualmente, a unarevista especializada, a las “conversaciones de lahumanidad”, a la comunidad filosófica interna-cional, a la televisión... caminos al reconocimien-

to y a la fama? ¿No es, por ventura, el modo enque solemos entrar a nuestras aulas? Con la me-jor intención del mundo, claro.

Es con la mayor convicción y con el másdecidido compromiso que entramos a “dar”nuestras clases para liberar a nuestros alumnos,público cautivo, atrapado en ese teatro al que en-traremos y al que usaremos para emanciparlos,enseñándoles los caminos del conocimiento y dela autonomía... Sin embargo, no los liberaremosde ese escenario ni de la seducción de nuestros li-bretos y actuaciones.

Aprendimos demasiado bien. Asumimosen nuestro mirar el ansia de ser vistos. Vemos losdiversos espacios sociales como lugares que nosson ajenos, como escenarios que nos necesitanaun sin saberlo, que esperan nuestra actuación,ésa que estamos dispuestos a regalarles. Tratamosde cubrir la distancia que nos separa de esos es-pacios, pero vamos a ellos a satisfacer necesidadesnuestras.

Sería bueno, entonces, preguntarnos por elmodo de ver nuestra relación con la sociedad queconsiste en “ir de afuera” y “querer entrar” paraque nos confirmen, nos reconozcan, nos escu-chen, nos sigan.

Modo que supone ocultar nuestro estado,supone no “ver” y no reflexionar sobre el lugardonde estamos cuando estamos afuera (“en eseazul de frío”) queriendo entrar. No pensamos ellugar desde donde pensamos cuando decidimosentrar a la sociedad para encontrar (o para negar)a nuestro “Pedro”. No es que el escenario en quese generan nuestras ideas, el espacio donde sur-gen nuestras expectativas y nuestras ansias de servistos, sea un no lugar, es, más bien, que lo pro-tegemos cuidadosamente de toda crítica. No seaque tengamos que analizarnos nosotros mismos,no sea que la falta sea nuestra y no de los espaciosy personas que nos son refractarios, que no nosdejan entrar, que no nos quieren escuchar.

5. Tal vez el café – ese espacio identitario enque interactúan en escena olores, colores, sabo-res, sonidos, sensaciones térmicas, cosas y perso-nas – se resiste a ser destruido, a hacerse escena-4 SARTRE, 1943, p. 44-45.

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rio para la actuación de otro, a amoldarse a las ex-pectativas de otro, a complacerlo. Se resiste a serPedro, a hacerse otro para satisfacer al filósofo.

Tal vez no está tan mal que nos rechace laescena pública. Tal vez se defiende en su identi-dad irreductible cada espacio social que se resistea ser utilizado como escenario para nuestra actua-ción. Tal vez nuestras clases son un constreñi-miento para los estudiantes, una camisa de fuer-za. Tal vez nuestras clases no sean problematiza-doras, pero quizás siempre son un obstáculo paranuestros alumnos, son un problema para ellos, aser disuelto, o resuelto, o eludido, o destrozado,o pisoteado... Y, por tanto, nuestro obstaculizar-los resulta ser fuente de otro filosofar, que se ejer-ce pese a nosotros, contra nosotros, que se ejercerechazándonos. Al menos en la medida en queese rechazo (esa nada a que se nos reduce) es re-sistencia y respuesta ante la nadificación que pro-ducimos nosotros, es respuesta al problemafilosófico que genera en otros nuestra ansia deprotagonismo. Y puede que resulte más filosóficasu resistencia que nuestra ansia. Al menos, ambaspartes resultamos indiferenciadas en nuestra na-dificación.. Esta escena conflictiva exige repensarel lugar del filósofo.

6. Carlos Pereda avanza en este camino alreflexionar sobre nuestras falencias cuando de-tecta que nuestra invisibilidad, además de causasexternas, tiene causas internas: “malos hábitos in-telectuales”, entre los que destaca “tres graves vi-cios de la razón arrogante”: el “fervor sucursale-ro”, el “afán de novedades” y los “entusiasmosnacionalistas”. No voy a explicar y discutir estosvicios: su mera enunciación es explícita.

Sí, quisiera subrayar la idea de razón arro-gante. Y preguntarme si efectivamente alcanzarápara superarla con portarnos mejor, superar vi-cios, expresarnos mejor (como, por ejemplo, lohacen los ensayistas). Preguntarme si realmentese trata de ser más “entradores”. Preguntarme siserá suficiente con que nuestros trabajos cum-plan condiciones de frescura, particularidad, pu-blicidad e interpelación. Preguntarme si no de-beríamos antes ubicarnos de otra manera; si

nuestro afán de visibilidad no es deudor tambiénde la razón arrogante. Preguntarme si con supe-rar esos vicios y cumplir con esas condicionespodremos reorientarnos en el sentido de la fór-mula con que Pereda las resume (pero que a míse me hace que las trasciende): “¡A los proble-mas, a los problemas mismos!”. ¿No será que,para poder enfrentar “los problemas mismos”,nos son necesarias más bien condiciones previasde ubicación y modestia, situarnos de otro modoen escena, menos preocupados por nuestra insig-nificancia y más dispuestos a encarar los proble-mas de todos?

7. Otros han sabido entrar. No deberíamostener celos de su éxito. No deberíamos envidiar alos visibles, a esos pulcros todólogos cuyos ros-tros iluminados vemos cotidianamente en laspantallas televisivas de nuestras casas, parlotean-do doctamente sobre cualquier cuestión, frente ala admirada mirada de algún periodista que learroja preguntas mudas para su lucimiento, comoflores a su paso. No deberíamos emular la acciónde estos visibles que han sabido construirse reno-vados pedestales, cátedras y púlpitos y han fabri-cado un auditorio mudo y sin rostro, ninguneadoreceptor pasivo de su sabiduría y pretendida jus-tificación de su poder.

No deberíamos envidiarlos ni imitarlosporque el escenario en que se constituyen hundea todos los demás en el fondo indiferenciado dela nada, porque hacen de los espacios públicos unlugar para el lucimiento privado, porque quedareservado a ellos el lugar de la palabra y la acción,y porque – al ignorar la palabra y la preguntabili-dad del público – resultan descomprometidos desus propias palabras y actos, que deben dejar caeren la nada, al desresponsabilizarse por sus even-tuales errores, fracasos o consecuencias.

Parecería que son herederos del Sartre quebusca a su Pedro. Pero no del Sartre que asumecompromisos y responsabilidades. Parece queheredan más bien una presunta misión que hundesus raíces en las profundidades más recónditas dela Colonia, que viene a descubrirnos para salvar-nos, y que – como nadifica y ningunea geografías,

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espacios, culturas y personas – genera su propianada o se condena a producir obras de domina-ción, de muerte o de suicidio.

Soy injusto con estos “intelectuales compa-triotas”, porque no inventan ellos la estructura derelaciones de poder en que necesariamente semueven para tener éxito, más bien ella los cons-tituye (o los lleva a tener que constituirse) en eselugar visible donde quedan ubicados en una po-sición tal que reclama la respuesta nadificadoradel “fondo” que los determina como “chantas”.Aunque no lo sean. Aunque muchos de elloscuenten con una sólida formación, tengan unaprolongada y notable actuación académica o unaimportante obra édita, que se hunden con ellosen la nada.

No se trata de emularlos. Se trata de gene-rar otras alternativas de posicionamiento en esce-na. No sólo para los filósofos. También para ellos.

8. Escenarios con filósofos visibles, no.Hay que poner en escena otras relaciones, másfilosófica.

El lugar del filósofo debe ser otro que el deuna visibilidad nadificadora. Y, de hecho, es otro.Pero no es el del profeta que vuelve como extran-jero a su tierra y es rechazado. No es el del maes-tro que ha asomado la nariz fuera de la caverna yvuelve con toda su iluminación a ser asesinado.No es el del resentido ni el del envidioso. Es el deun esclavo entre otros, desde siempre encadena-do. Es el de un parroquiano más, sentado en unamesa del café, compartiendo con los otros losobstáculos y procurando transformar filosófica-mente la escena de modo que en ella puedan in-teractuar todos en vistas a encarar los problemasrealmente.

La cuestión ha estado mal planteada, el pro-blema de nosotros, filósofos latinoamericanos,no es ser invisibles sino afanarnos por lograr vi-sibilidad. Si algún problema nos es específico esque no hemos sabido ubicarnos en nuestro espa-cio, instalar una escena filosófica en nuesto café,en nuestra sociedad. Nos hemos desubicado al

asumir una imagen falsa del filósofo; una imagenindeseable por antifilosófica. Hay que cambiaresa imagen. No es nuestro problema, competircon otros por ocupar el lugar de la visibilidad quenadifica, ésa es, más bien, nuestra tentación. Tan-to más fuerte y peligrosa cuanto más logra hacer-nos creer que no somos nadie si no ninguneamosa los demás; cuanto más logra hacernos creer quesólo podemos surgir del magma indiferenciadodel fondo y ser alguien a condición de ver a losdemás como si no fueran nadie.

Que si advertimos que ir a los problemasmismos es ir a los problemas que comparten laspersonas de determinada época y lugar, entonceslas angustias de la corporación de los filósofospor su falta de visibilidad, son un pseudo proble-ma que obstaculiza “ir a los problemas mismos”.

En esta perspectiva tal vez sea posible tam-bién reencontrarnos con el Sartre hombre decafé, que desde su ser nada descubre el poder des-realizante de la libertad, que sólo ubicada en larealidad compartida, nadificada como fondo,puede posibilitar la construcción de escenas pordonde pase la acción efectivamente transfor-madora.

Se trata de proponer y de ganar, para los fi-lósofos de hoy, otro modo de estar; que el entraro el salir. Un estar dentro que no obligue a dis-tinguirse, a separarse del fondo para ser el únicoactor entre tanta nada, y que no habilite la solu-ción emigrante. Quedarse donde se está y pensarcon quienes se está. Ser como los otros y con losotros; hacer actuar y actuarse. Aceptar el lugarfilosófico dónde está ahora el filósofo: tan ningu-neado, marginado, invisibilizado como cualquierotro parroquiano; tan en el fondo de la cavernacomo los otros esclavos... Menos mal: estamosganando una escena real.

Y esto obliga a reformular la escena. Mi-rarla desde otro punto de vista. Pensarla desde elfondo. Pensarse en el fondo. Verse evaluado poresa ojeada superficial y rápida de ese impertinen-te visitante que te desprecia al constatar, como sifuera un gran acontecimiento, lo que ya sabías

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desde siempre, que no sos Pedro; que no lo es-tabas esperando; que no te importa que se vaya.Aunque también podrías invitarlo a tu mesa yconsolarlo, ayudarlo a procesar su frustración, aver si se toma un café, si él también recupera unpapel de actor, no de autor o guionista; un papelde parroquiano.

Capaz que si filosofamos en escena, empe-zamos a superar esa ya vieja “invisibilidad antenuestros colegas e incluso ante los propios estu-diantes”, que proviene de que, como nos magni-ficamos, ni escuchamos ni leemos a nuestrosmaestros, ni a nuestros colegas, ni a nuestros es-tudiantes y por eso nos nadificamos y ellos nosnadifican y así sucesivamente, en una especie desólida no tradición. Porque al constituirnos todosen el fondo indiferenciado de un interior podría-mos colaborar en la construcción de las relacio-nes filosóficas de nuestra escena interior, que in-cluye el compartir con otros, no sólo todo eso dela convivialidad, sino también eso de “no pensarmás en mí” y empezar a pensar juntos, con todala fuerza de un buen debate filosófico, de esosque empiezan por respetarse y por buscar en co-mún alguna verdad y algún bien.

Y, entonces, capaz que alguien viene a visi-tarnos de afuera, y lo dejamos entrar, y lo mete-mos en nuestra discusión, que no es cosa de nodejarnos interpelar y de no vernos también conojos de otros. Porque no digo “vivir en contra decualquier ilustración, ignorando la ciencia y gol-peando a las mujeres”; digo, estar adentro cons-truyendo escenas filosóficas, incluyendo en esteaquí y ahora, por tanto, todo lo intempestivo y

todo lo utópico; lo conflictivo y el disenso; lo in-terior y lo exterior; lo particular y lo universal.

Y, entonces, se podrá salir. Para ir de visitay entrar en diálogos con otros. También con losque no están pero integran la escena. Como es-te...9. CAFÉ CON PESSOA

Recuerdo la sorpresa de encontrar en uncafé a alguien que yo no esperaba: Fernando Pes-soa, en persona, sentado a su mesa en su café deLisboa. Pessoa no está; y sin embargo yo, que es-toy de paso, y que no tengo ninguna relación pre-via con ese café, como infinidad de gente, estoyinvitado a tomar un café con él.

Pessoa está ausente para siempre del café ydel mundo, definitivamente fuera de todo espa-cio. En ningún lugar la presencia actual de Pessoaes plenitud de ser. La insistente ausencia de Pes-soa, esa ausencia que sólo tiene fuerza por la an-terior presencia – hoy imposible – del poeta quefrecuentaba ese café, esa ausencia dolorosa e irre-versiblemente recalcada por el bronce eterno dela estatua, funda la existencia y la persistencia deese café: le da consistencia, lo hace ser, lo organi-za como espacio humano.

Al mismo tiempo, afirma la existencia dePessoa. El metal no lo hace cosa: lo personificapara que su voz siga resonando en el café que per-sonaliza y que se resiste a reducirse a amontona-miento de cosas y se constituye como escenariopara lo humano.

La ausencia plena de Pessoa confirma miexistencia pasajera y me regala la libertad con queacepto su invitación y me siento a tomar, despa-cito, un café con Pessoa, a estar un rato juntos enescena.

Referências BibliográficasDISCÉPOLO, E.S. Cafetín de Buenos Aires (tango; música: Mariano Mores). Buenos Aires, 1948.

LANGON, M. “De sabihondos y suicidas”. Sofós, n. 49, año XVI, abr./05 (1.ª parte, p. 23-30; 2.ª parte, en prensa, n.º50).

PEREDA, C. “¿Qué puede enseñarle el ensayo a nuestra filosofía?”. Fractal, n. 18, año IV, v. V, jul./set./00, p. 87-105.

SARTRE, J-P. L'Être et le Néant. Paris: Gallimard, 1943.

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VAZ FERREIRA, C. “Cuento para niños futuros”. In: Obras Completas, t. XX, Inéditos. Montevidéu: Cámara de Repre-sentantes, 1963, p. 469-472.

Dados do autor

Professor de filosofia na Asociación Filosóficadel Uruguay e no Instituto de Profesores Artigas

(IPA/Montevidéu). Doutorando em filosofia naParis VIII/França.

Recebimento: 13/abr./05Aprovado: 3/jun./05

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A Crítica Sartriana à Subjetividade e suas Implicações no Conceito de Educação como Formação do SujeitoSARTRE’S CRITIQUE ON SUBJECTIVITY AND ITS IMPLICATION IN THE CONCEPT OF EDUCATION AS FORMATION OF THE SUBJECT* 1

Resumo Tomando por base a premissa da educação como formação do sujeitona construção do Eu, este texto tem por objetivo apresentar as reflexões deSartre, particularmente em A Transcendência do Ego, sobre o processo desubstancialização da consciência proposta pela filosofia de Descartes. Aconclusão sartriana, apoiada no princípio fenomenológico da consciênciaposicional, é a constatação do vazio absoluto da consciência, não havendo,portanto, um sujeito – substância – a ser formado pela educação.Palavras-chave CONSCIÊNCIA – EDUCAÇÃO – FORMAÇÃO – NADA – SARTRE.

Abstract From the premise of education as formation of the subject in theconstruction of the Ego, the aim of this paper is to present Sartre’s reflections,extracted mainly from La Transcendende de l’Ego, in which he talks about theprocess of substantialization of the conscience as proposed in Descartes’philosophy. The Sartrian conclusion, based on the phenomenological principle ofa positional consciousness, affirms the absolute emptiness of conscience.Therefore, there is no subject – substance – to be formed by education.Keywords CONSCIENCE – EDUCATION – FORMATION – NOTHING – SARTRE.

1 Este texto foi produzido no contexto de desenvolvimento do projeto de pesquisa “O Conceito deNada e a Ética dos Fins em Jean-Paul Sartre”, que contou com financiamento do FAP (Fundo de Apoio àPesquisa da UNIMEP), ao qual dirijo meus sinceros agradecimentos.

MÁRCIO DANELONUniversidade Federal de

Uberlândia (UFU)[email protected]

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INTRODUÇÃO

relação entre educação e subjetividade, entendida comoformação ou condensação no sujeito de um Eu, é alinha-vada pela tessitura da antropologia – já que o sujeito é oobjeto da educação – numa associação histórica entreeducação e antropologia, mediada pela noção de subjeti-vidade, constituindo um solo bastante profícuo para afundamentação da tese clássica de que a educação con-siste num processo de formação do sujeito. A formação

do sujeito implica a construção do Ego, caracterizado pelo conceito desubjetividade. Nesse caso, a educação significa esse processo em que sedará a formação do Eu do indivíduo inserido numa coletividade. Mesmoa etimologia da palavra educação1 guarda, em seu significado, a idéia detransição desde um lugar caracterizado pelo inacabado, pelo transitivo –momento ainda em que a pessoa não se formou como ser autônomo,consciente de si e de seu papel social ou mesmo dotado de uma raciona-lidade esclarecida – para o lugar da autonomia de si, da responsabilidade,da racionalidade capaz de produzir um saber de si e do mundo, da cons-ciência de si e de seu papel na coletividade. Em suma, as teorias da edu-cação se constituíram num processo de formação da imagem do homem:educar é formar uma imagem-ideal de homem.2

Podemos, também, encontrar a premissa da educação como forma-ção do sujeito naquilo que se convencionou chamar de romance de forma-ção, ou seja, obras de literatura que vinculavam idéias pedagógicas, presen-tes especialmente no iluminismo dos séculos XVIII e XIX. Nesse caso, osromances de formação representam um “aprendizado, na medida em queo herói constrói, a partir de um telos (uma meta) interior, a sua própriapersonalidade e seus princípios de ação moral”.3 É exatamente esse senti-do de formação da personalidade do sujeito que designamos pelo termoeducação como formação do Eu ou da subjetividade. A obra Emilio, deRousseau, talvez seja o exemplo mais acabado do romance de formação,já que o autor narra todo o percurso em que se forma o caráter ou a per-sonalidade do Emílio, desde o seu início, aos dois anos de idade, até os 25anos, quando, segundo Rousseau, Emílio está formado e pronto para ocu-par seu espaço na sociedade. Assim, etapa por etapa, Rousseau, na voz dopreceptor – condensando autor-narrador –, descreve de que maneira se dáa formação do indivíduo. Essa formação do sujeito Emílio condiz com aidéia de educação como condução, com o modo de levar de um lugar aooutro, já que Emílio efetiva a passagem4 de um estado de natureza para aracionalidade autônoma e a civilidade política.

1 Em sua etimologia, educação procede do latim ex-ducere, que significa o ato de levar, de conduzir de umlugar para o outro.2 Cf. GILES, 1983, p. 59-93.3 FREITAG, 2001, p. 68.4 Ibid., p. 75.

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O conceito de educação como formaçãohumana terá ligações bastante estreitas com a ciên-cia da educação, denominada pedagogia, que delese avizinharia em meados do século XIX. A educa-ção como formação do sujeito ganha o sentido deformação da subjetividade no contexto das ciên-cias humanas. Ou seja, com base na constataçãocartesiana do cogito, portanto, de um sujeito quepensa a si mesmo, e consiste em sujeito e objetodo saber, emerge o objeto de conhecimento queirá constituir as ciências humanas. Como a peda-gogia se inscreve no plano da busca pelo carimboda cientificidade, ela faz do sujeito moderno seuobjeto de pesquisa. Sua preocupação é, então, aformação do Eu, da personalidade ou da subjetivi-dade apoiada nas relações de ensino e aprendiza-gem, das quais faz uso de outras ciências humanas,notadamente a psicologia e a sociologia.

Assim, a importância, para a educação, dopapel desempenhado pelo pressuposto teórico dasubjetividade ou do Eu é reconhecida pelos teó-ricos dessa ciência. Tanto aqueles que entendemser a educação formadora, quanto os que, por ou-tro lado, denunciam-lhe a “formatação” exercidasobre o sujeito partem do pressuposto de um Euque assume o figurino de objeto desse processo.Assim, a perspectiva de um Eu representado emobjeto da educação não é indiferente. Muito pelocontrário, as áreas do saber utilizadas pela peda-gogia,5 como a psicologia da educação, a sociolo-gia da educação e até as metodologias, partem dapremissa de que há um sujeito da educação.

Nesse sentido, ao formular a teoria de umaconsciência pensante e, para além disso, substan-cializar tal consciência num sujeito que pensa eexiste, Descartes tornou-se um divisor de águas aformular as bases epistemológicas para aemergência das ciências humanas no século XIX.A teoria cartesiana do cogito instaura a possibili-dade de emergência do sujeito moderno, já que

ele se forma no bojo da possibilidade da cons-ciência que pensa a si mesma, ou seja, que realizao movimento de distanciar-se de si e produzir umconhecimento de si. É assim que, em Descartes, aconsciência se autotematiza. Tal processo instau-rado pelo cogito desemboca naquilo que caracte-riza o sujeito moderno: a sua subjetividade ou asubstancialidade da consciência na idéia de Eu.Essa subjetividade é o ponto fixo procurado porDescartes para fundamentar sua teoria: “Depoisque Descartes estabeleceu de forma indubitável aexistência do Eu pensante, o fundamento da ciên-cia, representado por essa certeza, parece ter sidoatingido de forma definitiva. A subjetividade ga-nha os contornos de um incondicionado que res-ponde às exigências de um ponto fixo e seguro”.6

O Eu pensante tornou-se, então, a premissateórica e o objeto de estudo das ciências huma-nas. A pedagogia como ciência da educação, porsua vez, se estabelece no bojo dessas ciências, ins-creve-se no território da vontade de verdade,7 en-tendida como aquela dos processos que se orga-nizam como educação. Tomando o sujeito mo-derno, portanto, a subjetividade, e suas relaçõesde ensino e aprendizagem, a pedagogia tornou-seum saber de cunho científico acerca do sujeito daeducação: “Para que a Pedagogia pudesse ousarreivindicar um estatuto científico, foi necessárioque os saberes se constituíssem enquanto repre-sentação do real e que o próprio homem se fizes-se alvo de representação, através das ciências hu-manas. Só quando ele próprio torna-se objetocientífico é que se pode arriscar fazer ciência so-bre sua formação”.8

A pedagogia emerge, nesse cenário, comoum saber científico sobre o sujeito moderno esuas relações ensino/aprendizagem. Esse sabersobre o sujeito é exatamente o processo de for-mação do sujeito, ou seja, a pedagogia produz umsaber sobre os mecanismos em que ocorre a for-mação do indivíduo. Tal qual os romances de for-mação, ela produz um saber sobre a formação dosujeito ou, em outras palavras, sobre a constitui-

5 “Quando um psicólogo investiga ou atua no campo educacional, eleaplica aí os conceitos e métodos da Psicologia e os resultados são deordem psicológica. O mesmo ocorre com a Sociologia, a Economiaetc. A Pedagogia integra os enfoques parciais dessas diversas ciênciasem razão de uma aproximação global e intencionalmente dirigida aosproblemas educativos e, nesse caso, os saberes dessas ciências conver-tem-se em saberes pedagógicos” (LIBÂNIO, 2004, p. 38).

6 SILVA, 1993, p. 58.7 GALLO, 1997, p. 112.8 Ibid., p. 97.

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ção da subjetividade. A escola manifesta-se, as-sim, como um espaço, por excelência, de forma-ção da subjetividade, de construção do sujeito, deprodutora de pessoas. Dito de outra maneira, decomo o sujeito, mediado pelo saber pedagógico,constrói um saber sobre si mesmo: “como a pes-soa humana se fabrica no interior de certos apa-ratos (pedagógicos, terapêuticos) de subjetiva-ção. A dimensão mais geral da educação que estetrabalho pretende reconsiderar tem a ver com aantropologia da educação, isto é, com as teorias epráticas pedagógicas enquanto produtoras depessoas”.9 Desse modo,

no vocabulário pedagógico (...) utilizam-se muitostermos que implicam algum tipo de relação do su-jeito consigo mesmo: “autoconhecimento”, “auto-estima”, “autocontrole”, “autoconfiança”, “autono-mia”, “auto-regulação” e “autodisciplina”. (...) to-dos esses termos se consideram como antropologi-camente relevantes na medida em que designamcomponentes que estão mais ou menos implícitosnaquilo que para nós significa ser humano: ser uma“pessoa”, um “sujeito” ou um “eu”.10

Propomos, neste opúsculo, resgatar tal pre-missa epistemológica de um Eu, tão caro à educa-ção, e colocá-la à luz da interpretação sartriana deum Eu desenvolvido pelo filósofo francês, notada-mente em A Transcendência do Ego, de 1936, con-siderada a obra que lançou Sartre como pilar noscírculos de estudiosos da filosofia fenomenológica.DO EGO TRANSCENDENTAL À TRANSCENDÊNCIA DO EGO: A CRÍTICA DE SARTRE À SUBJETIVIDADEE SUAS IMPLICAÇÕES NA EDUCAÇÃO

A reflexão sartriana em torno da problemá-tica do Eu inscreve-se numa elaboração filosóficacujo postulado é a consciência instância demarca-dora da natureza humana.11 Nesse sentido, o de-senvolvimento da desconstrução sartriana da no-

ção de Ego herda o problema da consciência, demaior amplitude, exatamente porque tal noçãoinsere-se na temática do Ego. Na abertura de ATranscendência do Ego, encontramos: “Para amaior parte dos filósofos,12 o Ego é um ‘habitante’da consciência. Alguns afirmam a sua presença for-mal no seio das Erlebnisse (experiência interna) co-mo um princípio vazio de unificação. Outros – psi-cólogos na maior parte – pensam descobrir a suapresença material, como centro dos desejos e dosatos, em cada momento da nossa vida psíquica”.13

Contra esse princípio de análise do Eu, Sartrepropõe sua desconstrução da possibilidade de umprincípio egológico infestar a vida humana. Nesse ca-so, o discurso sartriano, como veremos, inscreve-se,também, num cenário de reflexão sobre a consciên-cia, uma vez que nela está a argumentação da defesada existência do Ego. É a consciência, pois, o cenárioem que se dará a disputatio das argumentações sartria-nas de deslocamento da noção de Ego da consciênciapara o mundo.14

9 LARROSA, 1999, p. 37.10 Ibid., p. 38.11 A consciência como ser do ser humano: “A consciência não é ummodo particular de conhecimento, chamado sentido interno ouconhecimento de si: é a dimensão de ser transfenomenal do sujeito”(SARTRE, 1999, p. 22). “Reduzimos as coisas à totalidade conexa desuas aparências, e depois constatamos que as aparências reivindicamum ser que já não seja aparência. O ‘percepi’ (percebido) nos remeteua um ‘percipiens’ (aqueles sujeitos que percebem), cujo ser se nos reve-lou como consciência” (ibid., p. 29).

12 Os interlocutores fundamentais de Sartre, em A Transcendência doEgo, e que defendem o postulado de um Ego na consciência são, fun-damentalmente, Descartes, Kant e Husserl. Com relação a Descartes,Sartre toma a intuição cartesiana do cogito ergo sum como o princípioconstituidor do Ego na consciência. Assim, o pensar, atitude eminen-temente da consciência, pressupõe um Eu que pensa, sendo assim queo Ego habita a consciência cartesiana. Sobre isso, afirma Sartre: “Ocogito de Descartes e de Husserl é um fato. Ora, é inegável que ocogito é pessoal. No ‘Eu penso’ há um Eu que pensa. Atingimos aqui oEu na sua pureza e é precisamente do cogito que uma ‘Egologia” devepartir” (idem, 1994b, p. 49). Em O Ser e o Nada, ele diz: “O erro doracionalismo cartesiano foi não ver que, se o absoluto se define pelaprimazia da existência sobre a essência, não poderia ser substância. Aconsciência nada tem de substancial, é pura ‘aparência’, no sentido deque só existe na medida em que aparece” (idem, 1999 p. 28). Para Sar-tre, Husserl é, também, depositário dessa tese da existência de um Euna consciência, como verificamos na afirmação: “[Husserl] Depois deter considerado que o Eu [Moi] era uma produção sintética e transcen-dente da consciência, retornou, nas Ideen, à tese clássica de um Eutranscendental que estaria como que por detrás de cada consciência,que seria uma estrutura necessária dessas consciências cujos raios cai-riam sobre cada fenômeno que se apresentasse no campo de cada aten-ção” (ibid., p. 46-47). Quanto a esse mesmo aspecto, Consciência de Sie Conhecimento de Si traz: “Para já, é necessário entender que não hánada na consciência que não seja consciência. Não há conteúdo deconsciência; não há, o que, na minha opinião, é o erro de Husserl,sujeito por detrás da consciência, ou como uma transcendência naimanência” (idem, 1994a, p. 101).13 Idem, 1994b, p. 43.14 Sartre não nega a existência de um Ego, porém, o problema está nofato de situar esse Ego na consciência humana. Dessa feita, para ele, oEgo situa-se fora da dimensão humana, mais precisamente no mundocomo um objeto de apreensão da consciência transcendental dohomem: “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciên-cia nem formal nem materialmente: ela está fora, no mundo; é um serdo mundo, tal como o Ego de outrem” (ibid., p. 43). O Ego está maispara um objeto da consciência reflexiva do que para habitante da consci-ência.

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Para esse filósofo, a consciência não se de-fine como uma plenitude fechada em si, opaca emaciça, a ponto de ser uma realidade que sebasta. Pelo contrário, ele bebe, fielmente, doprincípio da fenomenologia husserliana, segun-do a qual a consciência manifesta-se como po-sicional: “Com efeito, a consciência define-sepela intencionalidade. Pela intencionalidade, elatranscende-se a si mesma, ela unifica-se escapan-do-se”.15 Ora, dizer que a consciência é posici-onal significa que ela toma o objeto que estáfora dela, no mundo, como objeto para a cons-ciência: “O objeto é transcendente às consciên-cias que o apreendem e é nele que se encontrasua unidade”.16

O mesmo princípio fenomenológico daconsciência posicional é retomado em 1947,numa palestra, à Sociedade Francesa de Filosofia,intitulada Consciência de Si e Conhecimento de Si:

Ora, se retornamos, num movimento perfeitamen-te cartesiano, ao próprio cogito para o interrogar arespeito de seu conteúdo, verificamos, por um lado,que toda consciência é consciência de qualquer coi-sa, o que significa que o objeto não está na consci-ência a título de conteúdo, mas que ele está foradela como algo intencionalmente visado. A consci-ência não é nem vazia nem plena; ela não tem nemde ser preenchida nem de ser esvaziada; ela é pura esimplesmente consciência do objeto.17

A consciência implica, assim, a premissa deque ela é posicional do mundo. Em outras pala-vras, a consciência é abertura para os objetos sol-tos no mundo, e o mundo todo está necessaria-mente fora da consciência. Nela nada existe se-não um atirar-se para fora, para os objetos, para omundo. A consciência é, portanto, consciênciado mundo.

Para Sartre, a proposição fenomenológi-ca husserliana de intencionalidade e aberturada consciência para o mundo é literariamenterepresentada pela idéia de estouro (éclate-

ment).18 Ou seja, a consciência posicional equi-vale a um estourar para o mundo, conforme“Uma idéia fundamental da fenomenologia deHusserl: a intencionalidade”:

Você sabe muito bem que a árvore não estava emvocê mesmo, que não podia fazer entrar em seu es-tômago sombras e que o conhecimento não podia,sem desonestidade, comparar-se com a posse. Aomesmo tempo, a consciência purificou-se, é claracomo um grande vento, e nada há nela, exceto ummovimento para fugir, um deslizamento fora de si;se por milagre você entrasse “dentro”de uma cons-ciência, seria arrastado por um turbilhão e lançadofora, perto da árvore, em plena poeira, pois a cons-ciência não tem “interior”; ela não é nada [mais]que o exterior dela própria, e é essa fuga absoluta eessa recusa a ser substância que a constituem comoconsciência.19

E, mais adiante, nesse mesmo texto, eleafirma:

Imagine de imediato uma série ligada de estourosque nos arrancam de nós mesmos, que não dei-xam sequer um “nós mesmos” o tempo necessá-rio para se formar atrás deles, mas que nos lan-çam, pelo contrário, para além deles, dentro dapoeira seca do mundo, sobre a terra rude, entre ascoisas; imagine que somos expulsos dessa manei-ra, rejeitados, abandonados pela própria naturezanum mundo indiferente, hostil e teimoso; vocêterá, assim, compreendido o sentido profundo dadescoberta que Husserl exprime nessa frase fa-mosa: “Toda consciência é consciência de qual-quer coisa”.20

A reflexão ontológica sobre o princípiofenomenológico da intencionalidade da cons-ciência é também descrita em O Ser e o Nada, pu-blicado em 1943. Nele encontramos o resultadoda maturação filosófica de Sartre, quando ele in-sere a intencionalidade numa dimensão da onto-

15 Ibid., p. 47.16 Ibid., p. 47.17 Idem, 1994a, p. 99.

18 Nas palavras de Sartre: “A consciência e o mundo surgiram simulta-neamente: exterior por essência à consciência, o mundo é, por essên-cia, relativo a ela. É que Husserl considera a consciência um fatoirredutível que nenhuma imagem psíquica pode representar. Exceto,talvez, a imagem rápida e obscura do estouro” (idem, 1998, p. 10).19 Ibid., p. 10.20 Ibid., p. 10-11.

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logia antropológica21 do ser do ser humano. É nocontexto, então, de uma análise antropológicaque Sartre recupera o princípio da intencionalida-de de Husserl, ao afirmar, em O Ser e o Nada:“Toda consciência, mostrou Husserl, é consciên-cia de alguma coisa. Significa que não há consci-ência que não seja posicionamento de um objetotranscendente, ou, se preferirmos, que a consci-ência não tem ‘conteúdo’”.22 Posteriormente, eleconclui: “Toda consciência é posicional na medi-da em que se transcende para alcançar um objeto,e ela esgota-se nesta posição mesma: tudo quantohá de intenção na minha consciência atual está di-rigida para o exterior, para a mesa; todas as mi-nhas atividades judicativas ou práticas, toda a mi-nha afetividade do momento transcendem-se, vi-sam a mesa e nela se absorvem”.23

Quanto a esse aspecto, Sartre parte do prin-cípio de intencionalidade proposto pela fenome-nologia de Husserl, mas dele faz uso para efetivara sua crítica ao fundador do método fenome-nológico, notadamente a conclusão husserlianasobre a substancialização da consciência por meiodo conceito de Ego transcendental.24 Assim é que,para além do Ego transcendental, de Husserl,Sartre propõe uma transcendência do Ego, ou seja,um ego que se efetiva no atirar-se para fora de si,no transcender-se, no ultrapassar a si rumo aospróprios projetos. A transcendência do Ego é, exa-tamente, o estouro da consciência para o mundofundado no princípio de intencionalidade. Nessecenário de crítica, Sartre introduz sua premissa da

não-substancialização da consciência, ou de que aconsciência é vazia de todo conteúdo.

Se, de acordo com o princípio da fenome-nologia, a consciência é sempre posicional, entãoela sempre tem por seu ser um objeto que não éela mesma. Dito de outra forma, ao visar os ob-jetos que estão no mundo, a consciência deflagraa percepção de que em-si ela nada pode encontrar,exatamente por estar todo o mundo fora dela. Éisso que implica a lei da intencionalidade da cons-ciência: a existência no mundo da consciênciapressupõe a possibilidade de ela ser. “Como aconsciência não é possível antes de ser, posto queseu ser é fonte e condição de toda possibilidade,é sua existência que implica sua essência. Eis oque bem exprime Husserl falando de sua ‘neces-sidade de fato’.”25

Para Sartre, a intencionalidade da consciên-cia traz em seu bojo o fato de o mundo estar forada consciência, ou de que ela é sempre ausência:“Toda consciência é falta de... para”,26 ou, ainda,de que ela não tem conteúdo por ser aberturapara o mundo atrás de sua essência: “O primeiropasso de uma filosofia deve ser, portanto, expul-sar as coisas da consciência e restabelecer a ver-dadeira relação entre esta e o mundo, a saber, aconsciência como consciência posicional domundo”.27 Em A Transcendência do Ego, a cons-ciência, ao ser abertura para o mundo, entende osobjetos como realidades transcendentes a ela, porestarem fora dela. Nessa medida, é também cons-ciência de si mesma: “Com efeito, a existência daconsciência é um absoluto porque a consciênciaestá consciente dela mesma. Isso quer dizer que otipo de existência da consciência é o de ser cons-ciência de si. E ela toma consciência de si enquan-to ela é consciência de um objeto transcendente”.28

O objeto não está na consciência comoconstituindo uma realidade que a habita; pelocontrário, ele está no mundo.29 O fato de a cons-ciência ser abertura para o objeto pressupõe to-mar consciência de que é consciência desse objeto

21 Sobre a perspectiva de Sartre ter desenvolvido uma antropologiaexistencial de bases fenomenológicas, pode-se conferir, no estudo deIstván Mészáros, A Obra de Sartre: busca da liberdade: “Pois, em suafilosofia, estamos envolvidos diretamente com o homem que se inter-roga a respeito de seu próprio projeto que tenta ocultar de si mesmo,com todas as ambigüidades, subterfúgios, estratégias de má-fé e circu-laridade implicadas. Por isso é que a ‘ontologia fenomenológica’ sartre-ana deve ser concebida como uma antropologia existencial que sefunde com preocupações morais e psicanalíticas práticas nesse ‘novotratado das paixões’ e, assim, ‘circularmente’, enrosca-se em si mesmafundamentando-se precisamente pelas mesmíssimas dimensões exis-tenciais que afirma fundamentar. Em conseqüência, tentar eliminar aantropologia existencial da ontologia fenomenológica de Sartre, a fimde torná-la ‘formalmente consistente’, seria equivalente à futilidade eao absurdo de tentar a quadratura do círculo” (MÉSZÁROS, 1991, p.172-173).22 SARTRE, 1999, p. 22.23 Ibid., p. 22.24 Sobre a crítica sartriana à subjetividade transcendental de Husserl,conferir as reflexões de Juliette Simont, Jean-Paul Sartre: um demi-siècle de liberte (SIMONT, 1998, p. 25-28).

25 Ibid., p. 27.26 SARTRE, 1994b, p. 153.27 Idem, 1999, p. 22.28 SARTRE, 1994b, p. 48.29 Segundo Sartre, “Uma mesa não está na consciência, sequer a títulode representação. Uma mesa está no espaço, junto à janela etc.” (idem,1999, p. 22).

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transcendental: “o objeto está face a ela com a suaopacidade característica, mas ela, ela é pura e sim-plesmente consciência de ser consciência desseobjeto, é a lei de sua existência”.30 Torna-se impe-rativo sublinhar a necessidade de a consciência serconsciência do objeto, na medida em que a apre-ensão ontológica do objeto mundano pela cons-ciência reflexiva é possível, se souber que é cons-ciência desse objeto. É isso que mais tarde Sartrequer dizer, quando afirma, em O Ser e o Nada:

Contudo, a condição necessária e suficiente paraque a consciência cognoscente seja conhecimentode seu objeto é que seja consciente de si como sen-do este conhecimento. É uma condição necessária:se minha consciência não fosse consciência de serconsciência de mesa, seria consciência dessa mesasem ser consciente de sê-lo, ou, se preferirmos,uma consciência ignorante de si, uma consciênciainconsciente – o que é absurdo.31

Por outro lado, o fato de a consciência de-ver ser consciência de si, ou seja, ter consciênciade que é consciência do mundo impõe que sejanão posicional a si mesma. Em outras palavras, aconsciência é posicional do mundo, mas, por sê-lo, é consciência de si, ou consciência não posicio-nal de si mesma.32 Nas palavras de Sartre: “é pre-

ciso acrescentar que esta consciência de consciên-cia [...] não é posicional, o que quer dizer que aconsciência não é para si mesma seu objeto. O seuobjeto está, por natureza, fora dela e é por issoque, por um mesmo ato, ela o põe e o apreende”.33

Em O Ser e o Nada, esse filósofo expõe amesma tese: “Em outros termos, toda consciên-cia posicional do objeto é ao mesmo tempo cons-ciência não-posicional de si”.34 Posteriormente,em Consciência de Si e Conhecimento de Si, en-contramos: “Mas a consciência de qualquer coisaimplica necessariamente, sob pena de cair no in-consciente, uma consciência de si. Permito-meaqui indicar-vos que porei sempre este ‘de’35 en-tre parênteses; é um sinal36 tipográfico”.37 E ain-da: “Designaremos tal consciência como cons-ciência do primeiro grau ou irrefletida”.38 O mes-mo argumento da necessidade de uma cons-ciência não-posicional de si, ou irrefletida, édesenvolvido também em O Ser e o Nada:

Se conto os cigarros dessa cigarreira, sinto a revela-ção de uma propriedade objetiva do grupo de cigar-ros: são doze. Esta propriedade aparece à minhaconsciência como propriedade existente no mundo.Posso perfeitamente não ter qualquer consciênciaposicional de contar os cigarros. (...) E, todavia, no

30 Ibid., p. 48.31 Ibid., p. 23.32 Isso explica por que, se a consciência fosse posicional do mundo ede si mesma, deveria haver outra consciência que não fosse posicionalde si, e, assim, cairíamos numa regressão ao infinito, de uma consciên-cia de consciência, de consciência etc. É o que atesta Sartre: “Se, aocontrário, nós consideramos que eu ignoro neste momento que existo,que estou tão absorto que, ao interromperem a minha leitura, me per-guntarei onde estou, mas que a minha leitura implica talvez a consciên-cia da minha leitura, a consciência da minha leitura não pode entãopôr-se como a consciência do livro diante de mim. Diremos, portanto,que se trata de uma consciência não-condicional ou não-tética. É indis-pensável manter esta consciência se queremos evitar o regresso ao infi-nito” (idem, 1994a, p. 100). Quanto a esse aspecto, podemos ver,também, as análises de Pedro M. S. Alves, na introdução à edição por-tuguesa de A Transcendência do Ego: “E esta tese da principialidade eda autonomia do nível irrefletido tem, na verdade, alguma plausibili-dade. Ela permite, nomeadamente, resolver o clássico problema daregressão ao infinito que está supostamente envolvida em toda e qual-quer consciência de si. É que, se não operarmos a distinção entre cons-ciência atemática ou não-tética de si e reflexão, ou consciência tética desi mesmo, torna-se então impossível compreender como é que algumavez algo como uma consciência de si se pode efetivar. E isto porque, seconsciência de si significasse já um estar em face de si como objeto deum ato de reflexão, então o próprio ato reflexivo, na exata medida emque é consciência de um objeto que lhe faz face mas não ainda consci-ência reflexiva de si mesmo, seria novamente um ato irrefletido queexigiria uma outra reflexão dotada da mesma estrutura e assim sucessi-vamente, de tal modo que a completa consciência de si exigiria umnúmero infinito de condições para se consumar” (ALVES, P.M.S.“introdução”, in: idem, 1994b, p. 11).

33 Ibid., p. 48.34 Idem, 1999, p. 24.35 “Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova cons-ciência, mas o único modo de existência possível para uma consciênciade alguma coisa” (ibid., p. 25).36 Esse artifício tipográfico utilizado por Sartre para diferenciar a cons-ciência pré-reflexiva da consciência reflexiva não deve ser visto superfi-cialmente, como mero detalhe que não afere qualquer novidadesubstancial na filosofia sartriana. Muito pelo contrário, é um pormenorque exerce papel diferenciador no estudo sobre a consciência humana.Vejamos: como vimos, a consciência intencional é abertura para omundo. Isso quer dizer que ela é consciência do objeto que está nomundo. Porém, mais do que isso – e esse é o ponto nevrálgico de talartifício tipográfico –, essa consciência é consciência de si mesma, ouseja, é consciência de que é consciência do objeto. O fato de ser cons-ciência de consciência não significa que ela seja objeto reflexivo para simesma ou, então, que existam duas consciências. Diferentemente, atese da consciência de significa, por um lado, que ela é ao mesmotempo consciência do objeto e de si mesma, e, por outro, transparentepara si mesma, translúcida, ou seja, não tem conteúdo. Vejamos a inter-pretação de Moutinho: “Sartre utiliza um artifício para referir-se a essefato: ele fala em consciência de algo que é também consciência (de) si,colocando esse último entre parênteses. Com isso indica que não setrata de uma consciência que põe a si mesma como tema, que visa a simesma reflexivamente, duplicando-se a si própria, mas sim daquelamesma consciência de algo que é afinal translúcida para si” (MOUTI-NHO, 1995, p. 48).37 SARTRE, 1994a, p. 99.38 Idem, 1994b, p. 48.

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momento em que estes cigarros revelam-se a mimcomo sendo doze, tenho consciência não-tética deminha atividade aditiva. (...) Ao mesmo tempo, aconsciência não-tética de contar é condição mesmade minha atividade aditiva.39

Mais à frente nesse texto, ele afirma que“toda existência consciente existe como cons-ciência de existir. Compreendemos agora porquea consciência primeira de consciência não é posi-cional: identifica-se com a consciência da qual éconsciência”.40 Para ele, a consciência não-téticade si é a condição de possibilidade para que aconsciência seja consciência do mundo. Em ou-tras palavras, para que a consciência seja aberturareflexiva ao mundo, ela precisa da consciêncianão posicional para se constituir. Essa é a lei daconsciência e a única possibilidade de ela ser algo:“Esta consciência (de) si não deve ser considera-da uma nova consciência, mas o único modo deexistência possível para uma consciência de algumacoisa”.41 Em A Transcendência do Ego, lemos:“Chegamos, portanto, à seguinte conclusão: aconsciência irrefletida deve ser considerada autô-noma. É uma totalidade que não tem necessidadenenhuma de ser completada”.42

Demarcado o terreno da antropologia sar-triana, verificamos que a consciência é sempreposicional, ou abertura para o mundo. Mas essaconsciência do mundo apresenta, como condiçãoà sua constituição, uma consciência de ser cons-ciência do mundo ou, na terminologia de Sartre,a consciência posicional necessita de uma consci-ência não-posicional (de) si. Dito isso, podemosvoltar à nossa questão inicial: haveria, nessa cons-ciência não-posicional, um Eu? Teria essa cons-ciência pré-reflexiva, que é a nossa condição deser, um Ego objeto da formação educacional?Essa consciência não-tética seria dotada de umEu constitutivo do objeto da educação? Sabemoso quanto a educação prescinde de um Eu a sereducado, exatamente porque ela repetitivamentese coloca a pergunta sobre “quem se deve edu-

car”? Muitas vezes, a educação pressupõe um Euque deve receber os conhecimentos necessários àformação do sujeito. Assim, a finalidade da edu-cação é, invariavelmente, a constituição de um su-jeito autônomo, cidadão e capaz de usar suas ha-bilidades na vida cotidiana. Com base nesse pre-ceito, enfim, a formação do Eu e a aquisição doconhecimento representam dois pilares do obje-tivo da educação.

A despeito disso, para Sartre não há umEu43 a habitar a consciência: “Nós perguntamos:há lugar para um Eu numa tal consciência? A res-posta é clara: evidentemente que não”.44 Vistadesde o olhar fenomenológico de Sartre, a possi-bilidade de um Eu habitar a consciência traz emseu bojo a própria destituição da consciência.Isso porque o Eu, sendo uma estrutura internafechada45 em si, sendo pura identidade, a pontode o sujeito autodefinir-se pela forma “Eu sou as-sim, calmo, nervoso, solitário etc.”, institui naconsciência uma densidade fechada que não é lheprópria, pois arranca dela aquilo que tem de maisprecioso: sua abertura para o mundo e sua possi-bilidade de ser. Em outras palavras, a possibilida-de de um Eu, com sua demarcação identitária quefaz com que a consciência seja exatamente “isso”:plena, cheia de si mesma, engessada e delimitadaà sua condição de estourar para o mundo. É issoque Sartre quis dizer com a afirmação de que umEu habitando a consciência significa um centrode opacidade46 na consciência.

A concepção fenomenológica da consciência tornatotalmente inútil o papel unificante e individuali-zante do Eu. É, ao contrário, a consciência que tor-na possível a unidade e a personalidade do meu Eu.

39 Idem, 1999, p. 24.40 Ibid., p. 25.41 Ibid., p. 25.42 Idem, 1994b, p. 57.

43 Sobre o postulado sartriano de uma consciência sem Ego, podem serobservadas as análises de MOUILLIE, 2000, p. 32-40.44 SARTRE, 1994b, p. 48.45 Diferente da consciência que é abertura para o mundo.46 O Eu é um centro de opacidade na consciência, pois, para Sartre, éum Em-si que invade e infesta a consciência com seu princípio de iden-tidade, sua opacidade. O Eu, por ser um Em-si, é maciço: “como pólounificador, o ego é Em-si e não Para-si” (idem, 1999, p. 156). Sobre oEm-si, O Ser e o Nada, Sartre afirma: “Nesse sentido, o princípio deidentidade, princípio dos juízos analíticos, é também princípio regionalsintético do ser. Designa a opacidade do ser-Em-si. (...). O ser-Em-sinão possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a umjuízo, uma lei, uma consciência de si. O ser-Em-si não tem segredo: émaciço” (ibid., p. 39).

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O Eu transcendental não tem, portanto, razão deser. Mas, além disso, este Eu supérfluo é nocivo. Seele existisse, arrancaria a consciência de si mesma,dividi-la-ia em cada consciência como uma lamelaopaca.47

E mais adiante nesse texto, Sartre continua:

Com efeito, o eu, com a sua personalidade, pormais formal e abstrato que o suponhamos, é comoque um centro de opacidade. (...) Se, por conse-guinte, se introduz essa opacidade na consciência,destruímos com isso a tão fecunda definição que hápouco dávamos, cristaliza-mo-la, obscurecemo-la,ela já não é uma espontaneidade, ela traz nela mes-ma como que um germe de opacidade.48

Assim, a opacidade do Eu é nociva à cons-ciência, pois congela a abertura e, portanto, a pos-sibilidade de a consciência ser, numa definição to-talizada que a aprisiona num modo de ser impró-prio ao ser da consciência. No texto Consciênciade Si e Conhecimento de Si, Sartre sustenta anoção de opacidade do Eu na consciência, ao afir-mar: “O fato de dizer que ela não é habitada porum Ego tem essencialmente o significado seguin-te: é que um Ego, como habitante da consciência,é uma opacidade na consciência”.49 A instauraçãode um Eu na consciência traz a ela a fissura emseu ser abertura para o mundo, num estratagemacoagulado ou numa identidade que desvirtua aconsciência de seu ser. Em síntese, se um Eu épossível na consciência, aponta Sartre, então apremissa fundamental do existencialismo de quea existência precede a essência esvai-se na densi-dade do Eu, que, portanto, a desvirtua, transfor-mando-a na premissa do idealismo de que a es-sência – aqui o Eu – precede a existência.

Em A Transcendência do Ego, Sartre dá-nosexemplos de que o Eu é impossível à consciênciapré-reflexiva:

Por exemplo, eu estava, mesmo agora, absorvido naminha leitura, a minha atitude, as linhas que eu lia.Vou assim ressuscitar não só estes detalhes exterio-res, mas uma certa espessura da consciência irrefle-

tida, já que os objetos não puderam ser percepcio-nados senão por esta consciência e lhe permanecemrelativos. Quanto a esta consciência, não se devepô-la como objeto da minha reflexão; ao contrário,é preciso que eu dirija a minha atenção para os ob-jetos ressurgidos, mas sem a perder de vista, man-tendo com ela uma espécie de cumplicidade e in-ventariando o seu conteúdo de modo não-posicio-nal. O resultado não oferece dúvidas: enquanto lia,havia consciência do livro, dos heróis do romance,mas o Eu não habitava esta consciência, ela era so-mente consciência do objeto e consciência não-po-sicional dela mesma.50

Ele avança, então, na idéia sobre a não exis-tência de um Eu na consciência irrefletida:

Visto que, portanto, todas as recordações não-refle-xivas da consciência irrefletida me mostram umaconsciência sem eu, visto que, por outro lado,considerações teóricas baseadas na intuição de es-sência da consciência nos levaram a reconhecer queo Eu não podia fazer parte da estrutura interna das“Erlebnisse”, temos, portanto, que concluir: não háEu no plano irrefletido.51

Esse texto traz ainda a mesma conclusão:“Assim, o estudo puramente psicológico da cons-ciência ‘intramundana’ leva-nos as mesmas con-clusões que nosso estudo fenomenológico: o eunão deve ser procurado nem nos estados irrefle-tidos de consciência nem por detrás deles”.52 To-mando por base essas considerações sartrianas,faz-se jus afirmar que não existe um Eu para aeducação, ou melhor, não há um Eu habitante emnossa consciência que se constituiria no objetodo processo educacional. Se a educação pressu-põe, como condição de possibilidade, um sujeitoa ser educado e formado numa certa quantidadede habilidades, então ela é um processo estéril,pois não há um Eu a ser educado e formado.

Por outro lado, conforme vimos, a cons-ciência pré-reflexiva é condição de possibilidadede a consciência apreender, pela reflexão, o mun-do que se abre para a intencionalidade: “Assim,não há primazia da reflexão sobre a consciência

47 Idem, 1994b, p. 48.48 Ibid., p. 49.49 Idem, 1994a, p. 101.

50 Idem, 1994b, p. 51.51 Ibid., p. 52.52 Ibid., p. 58.

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refletida: esta não é revelada a si por aquela. Aocontrário, a consciência não-reflexiva torna pos-sível a reflexão: existe um cogito pré-reflexivoque é condição do cogito cartesiano”.53 Em se-guida, Sartre afirma: “A reflexão é o Para-si(consciência) consciente de si mesmo. Como oPara-si já é consciência não-tética (de) si, costu-mamos representar a reflexão como uma cons-ciência nova, que surge bruscamente, apontadapara a consciência refletida e vivendo em simbi-ose com esta”.54

Em A Transcendência do Ego, ele descreve amesma estrutura dual da consciência: “Ora o in-teresse desta tese parece-nos ser o de pôr em re-levo um erro muito freqüente dos psicólogos:consiste ele em confundir a estrutura essencialdos atos reflexivos com a dos atos irrefletidos.55

Ignora-se que há sempre duas formas de existên-cia possível para uma consciência”.56 E concluí-mos, então, com Sartre: “Neste caso a estruturacompleta da consciência é a seguinte: há um atoirrefletido de reflexão sem Eu que se dirige parauma consciência reflexiva”.57 É da parte da cons-ciência reflexiva que podemos apreender aquiloque habita o mundo.58 É graças a uma consciên-cia não-tética, ou seja, que não coloca a si mesmacomo objeto, que a consciência de segundo grau,

a consciência reflexiva, pode abstrair todo omundo que está fora da consciência.

A consciência pré-reflexiva tem como es-trutura dever ser consciência de ser consciênciado mundo, o que, por sua vez, implica ser cons-ciência (de) consciência, condição de possibilida-de da consciência reflexiva. Essa é, da ótica sartri-ana, a consciência que apreenderá conceitualmen-te o mundo dos objetos. Podemos, então, per-guntar se não seria essa consciência reflexiva olugar no qual encontraremos o Ego, matéria-pri-ma dos saberes pedagógicos e necessários, por-tanto, para a formação do sujeito?59

De fato, para Sartre, o Eu é objeto unica-mente da consciência reflexiva: “Ninguém sonhanegar que o Eu apareça numa consciência refleti-da”.60 Ele também afirma: “O Ego aparece à re-flexão como um objeto transcendente que realizaa síntese permanente do psíquico”.61 E, finalmen-te, “O Ego é um objeto apreendido, mas tambémconstituído pelo saber reflexivo. É um foco virtualde unidade e a consciência constitui-o no sentidoinverso ao que a produção real segue: o que é pri-meiro realmente são as consciências, através dasquais se constituem os estados, depois, atravésdestes, o Ego”.62 Nesse sentido, a possibilidade daemergência de um Eu na interioridade humanacircunscreve-se na dimensão da consciência quereflete e apreende o mundo pela reflexão.

Mas voltemos à questão anteriormente ela-borada: é possível, então, um Eu na consciênciareflexiva? É possível à nossa consciência reflexivaapreender um Eu em sua interioridade? De novo,a resposta de Sartre é negativa, ou seja, a consci-ência reflexiva não pode apreender em si um Euque habite essa consciência. Isso porque a refle-xão é fraturada em sua possibilidade de abarcar atotalidade do objeto, ou seja, é incapaz de produ-zir um conhecimento sobre a realidade mundanae, muito menos, portanto, do próprio sujeito. Poroutro lado, a consciência reflexiva não pode

53 Idem, 1999, p. 24.54 Ibid., p. 208.55 A despeito de postular a existência de dois modos possíveis de aconsciência se manifestar, Sartre estipula uma certa hierarquia entreeles. Ou seja, para Sartre, a primazia é sempre da consciência pré-refle-xiva sobre a consciência reflexiva, pois ela é condição de possibilidadepara a reflexão. “A definição do refletido não é o ser ele posto por umaconsciência? Mas, além disso, como admitir que o refletido é primeirocom relação ao irrefletido? Sem dúvida, pode conceber-se, em certoscasos, que uma consciência apareça imediatamente como refletida.Mas mesmo então o irrefletido tem prioridade ontológica sobre orefletido” (idem, 1994b, p. 57). Além do irrefletido ter autonomiasobre o refletido, é também condição de possibilidade da reflexão,conforme Bornheim: “Mas se se compreender o homem como umser-no-mundo, esse mundo não pode ser esquecido nem mesmo pro-visoriamente; e se o cogito reflexivo está condicionado pelo pré-refle-xivo, então o plano do pensamento deve ceder o seu lugar a umaexperiência existencial concreta – uma experiência que permita atingiro sentido da existência em seu ser-no-mundo” (BORNHEIM, 2000,p. 19).56 SARTRE, 1994b, p. 56.57 Ibid., p. 55.58 A este respeito, segundo Sartre: “O Estado aparece à consciênciareflexiva. Ele dá-se-lhe e constitui o objeto de uma intuição concreta.Se odeio Pedro, o meu ódio de Pedro é um estado que posso apreenderpela reflexão. Este estado está presente diante do olhar da consciênciareflexiva, ele é real” (ibid., p. 59).

59 A esse respeito, Sartre levanta a questão: “Temos, portanto, razõespara perguntar se o Eu que pensa é comum às duas consciências sobre-postas ou se ele não é antes o da consciência refletida” (ibid., p. 50-51).60 Ibid., p. 52.61 Ibid., p. 65.62 Ibid., p. 69.

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apreender o Eu simplesmente porque o Eu nãoestá na consciência – nem na pré-reflexiva quan-to, como agora vemos, na reflexiva –, e sim nomundo, como um objeto.

Diante de uma realidade que habita o mun-do – o ódio, por exemplo –, a consciência refle-xiva irá apreender os estados desse ódio, ou seja,irá produzir conceitos e conhecimento sobre oódio. Nesse sentido, pergunta Sartre, seria a mes-ma coisa dizer, pela consciência reflexiva, o que oódio é, e pronunciar a seguinte sentença: “Euodeio Pedro”? Evidentemente, na segunda sen-tença está implicada uma transposição para o in-finito que o ódio em si não corrobora.

Quanto à reflexão, afirma Sartre: “Não épreciso mais nada para que os direitos da reflexãosejam singularmente limitados: é certo que Pedrome repugna, mas é e ficará para sempre duvidosoque eu o odeie. Com efeito, esta afirmação extra-vasa infinitamente o poder da reflexão”.63 E pros-segue: “Desse modo, a reflexão tem um domíniocerto e um domínio duvidoso, uma esfera de evi-dências adequadas e uma esfera de evidências ina-dequadas”.64 Para ele, não há um Eu que habite anossa consciência reflexiva e que possa vir a seraprendido por algum tipo de reflexão.

Ora, nós perguntamos: quando uma consciênciareflexiva apreende o Eu penso, entrega-se ela à apre-ensão de uma consciência plena e concreta agluti-nada num momento real de duração concreta? Aresposta é clara: o Eu não se dá como um momentoconcreto, como uma estrutura perecível da minhaconsciência atual; ele afirma, ao contrário, a sua per-manência para lá desta consciência e de todas asconsciências e – se bem que, certamente, ele não separeça com uma verdade matemática – o seu tipo deexistência aproxima-se muito mais do das verdadeseternas do que do da consciência.65

E mais à frente nesse texto:

Por exemplo, posso ver com evidência que sou co-lérico, invejoso etc., e, no entanto, posso enganar-me. Dito de outro modo, posso enganar-me ao

pensar que tenho um tal Eu (Moi). O erro não secomete, aliás, ao nível do juízo, mas antes já no ní-vel da evidência pré-judicativa. Esse caráter duvido-so de meu Ego – ou mesmo o erro intuitivo que co-meto – não significa que tenho um Eu (Moi) ver-dadeiro que ignoro, mas somente que o Ego visadotraz em si mesmo o caráter da dubitabilidade (emcertos casos o da falsidade).66

A partir daí, fica claro que para Sartre o Eunão habita nem a consciência pré-reflexiva, comovimos, nem a consciência reflexiva. A despeitodisso, o Eu é real, ou seja, existe, para Sartre.67

Nesse sentido, o problema do Eu não é sua aexistência, mas o lugar em que podemos situá-lopara a consciência reflexiva. O eixo de análise emtorno da temática do sujeito muda, então, de fo-co. Não é no sujeito que devemos procurar o Eu,mas no mundo,68 como um objeto do mundo,pois o Eu é um habitante do mundo, como qual-quer outro objeto. “Tal qual é o Eu (Moi) perma-nece-nos desconhecido. E isso pode compreen-der-se facilmente: ele dá-se como um objeto.Portanto, o único método para o conhecer é aobservação, a aproximação, a espera, a experiên-cia.”69 E mais adiante: “O Ego não é proprietárioda consciência, ele é o objeto”.70 Em O Ser e oNada, encontra-se o mesmo argumento:

Não posso ser objeto para mim mesmo porque souo que sou; abandonado aos meus próprios recursos,o esforço reflexivo rumo à dissociação resulta emfracasso; sempre sou recuperado por mim. E quan-do afirmo ingenuamente que é possível que eu sejaum ser objetivo sem me dar conta disso, pressupo-nho implicitamente, por isso mesmo a existência dooutro; porque, como eu poderia ser objeto se nãofosse para um sujeito.71

63 Ibid., p. 60-61.64 Ibid., p. 60-61.65 Ibid., p. 53.

66 Ibid., p. 67.67 Em suas próprias palavras: “Devemos concordar com Kant que ‘oEu Penso’ deve poder acompanhar todas as nossas representações”(ibid., p. 43). E mais adiante: “O cogito de Descartes e de Husserl é averificação de um fato” (ibid., p. 49).68 “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciêncianem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser domundo, tal como o Ego de outrem” (ibid., p. 43).69 Ibid., p 72.70 Ibid., p. 78.71 Idem, 1999, p. 347.

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Se o Eu não está na consciência como umhabitante, e sim no mundo, o lugar em que é pos-sível apreendê-lo é no outro sujeito, ou melhor, omeu Eu está no outro na medida em que ele tema posse desse Eu.

Serei eu preguiçoso ou trabalhador? Decidirei, semdúvida, se me dirigir àqueles que me conhecem elhes perguntar sua opinião. (...) Mas seria inútil di-rigir-me diretamente ao Eu (Moi) e tentar benefici-ar de sua intimidade para o conhecer. Pois é ela, aocontrário, que nos barra o caminho. Assim, “co-nhecer-se bem” é, fatalmente, tomar sobre si o pon-to de vista de outrem, quer dizer, um ponto de vistaforçosamente falso.72

Isso leva a crer que o homem está conde-nado à impossibilidade de conhecer seu próprioEu, pois este foi-lhe arrancado de sua própriaconsciência e jogado no mundo. Além disso, esseEu do sujeito que está jogado e habita o mundoé, também, objeto para uma outra consciênciaposicional e abertura para, entre outras coisas,meu Eu, objeto dessa consciência.

No capítulo sobre a alteridade, em O Ser eo Nada, Sartre desenvolve essa temática da cons-tituição do meu Eu pelo outro.73 Assim, os ho-mens que transitam pela rua não passam de ob-jeto para a consciência: “Estou em um jardim pú-blico. Não longe de mim há um gramado e aolongo deste gramado, assentos. Um homem pas-sa perto dos assentos. Vejo este homem e capto-o ao mesmo tempo como um objeto e como umhomem”.74

Como sou habitante do mundo, e desti-tuído de um Eu, estou, por princípio à mercê dooutro. Desse outro do qual emergirá o meu Eu,exatamente porque este é objeto da consciênciareflexiva do outro: “com efeito, meu ego está se-parado de mim por um nada que não posso pre-encher, posto que o apreendo enquanto não épara mim e existe por princípio para o outro; por-

tanto, não o viso como se pudesse ser-me dadoum dia, mas, ao contrário, como algo que mefoge por princípio e jamais me pertencerá”.75 Econtinua: “Assim, sou meu ego para o outro nomeio de um mundo que escoa em direção ao ou-tro”.76 O outro é quem fornece os elementos pa-ra, da minha consciência reflexiva, emergir umEu: “E a presença sem intermediário desse sujeitoé a condição necessária de qualquer pensamentoque tento formular a meu respeito”.77

Por fim:

O outro detém um segredo: o segredo do que sou.Faz-me ser e, por isso mesmo, possui-me, e estapossessão nada mais que a consciência de meu pos-suir. E eu, no reconhecimento de minha objetivida-de, tenho a experiência de que ele detém esta cons-ciência. A título de consciência, o outro é para mimaquele que roubou meu ser e, ao mesmo tempo,aquele que faz com que ‘haja’ um ser que é o meu.78

No entanto, além de esse sujeito estar des-tituído de sua identidade, de seu Eu, ele é refémdo outro, na medida em que o outro detém o se-gredo do Eu do sujeito. Isso dificulta ainda maisa possibilidade de substancialização do Ego, pre-so ao olhar do outro, por excelência aquele quedetêm o segredo do ser do ser humano.

Um Eu estabelecedor do sujeito da Educa-ção não poderia ser encontrado no interior dohomem. Este está fadado a conviver com o nadade seu ser. Se existe a possibilidade, mesmo queseja um mito, de educar instituindo uma subjeti-vidade ou formando um Eu, este deveria ser bus-cado no mundo, como um objeto. Nesse caso, aeducação deveria buscar no outro o Eu do sujeitoque está passando pelo processo educativo, po-rém, isso é um absurdo. Como resultado, o ob-jeto da educação se desmancha no ar, esvai-se,perde-se no mundo como um sopro.CONCLUSÃO

Exposto o itinerário sartriano de descons-trução do sujeito efetivado, particularmente emA Transcendência do Ego, constatamos que a pos-

72 Idem, 1994b, p. 73.73 O outro é o constituidor de meu Eu que está no mundo porque o “outro é o ser ao qual não volto minha atenção. É aquele que me vê eque ainda não vejo; aquele que me entrega o que sou como não-reve-lado, mas sem revelar a si mesmo” (idem, 1999, p. 346).74 Ibid., p. 329.

75 Ibid., p. 336.76 Ibid., p. 336.77 Ibid., p. 348.78 Ibid., p. 454-455.

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sibilidade de um Eu habitar a consciência humanaé estéril. A condição humana é a de ser um ser-do-mundo, jogado em meio ao mundo, engolin-do-o por meio da consciência reflexiva.

O ser humano deve, então, conviver com onada de seu ser, com a sua consciência, que, sen-do posicional, é cheia de nada. O nada é a marcapatente existência humana. Assim, o homem estácondenado à perpétua busca de preenchimentodesse ser, pura nadificação, pois está destituído desua identidade, de seu Eu, de seu Ego. Diantedesse nada que desertifica a realidade humana, ohomem toma atitudes que materializam a tenta-tiva de ser um ser diferente do ser que é, ou seja,um ser pleno de si, uma identidade absoluta aomodo do ser-Em-si.

De acordo com Sartre, em face das nega-ções daquilo que o homem é, este toma uma ati-tude: “As atitudes de negação com relação a sipermitem nova pergunta: o que deve ser o ho-mem em seu ser para que lhe seja possível negar-se?”.79 Ante o nada de seu ser, o homem toma a“atitude de má-fé”.80 “Aceitemos que má-fé sejamentir a si mesmo”, propõe o autor.81 A má-féaparece na realidade humana exatamente porqueo homem é estéril de um Eu e não consegue vivera facticidade de seu ser ter sido roubado pelo ou-tro. Se a identidade fosse real na vida humana, aatitude de má-fé não teria função de existir: “Se ohomem é o que é, a má-fé seria definitivamenteimpossível”.82

Diante do nada de seu Eu, o sujeito tomauma atitude de ser alguma coisa, uma atitude demá-fé, uma vez que ele nada é e projeta ser algo.Em outras palavras, mente para si mesmo, comonesse exemplo:

Vejamos este garçom. Tem gestos vivos e marcados,um tanto precisos demais, um pouco rápidos de-mais, e se inclina com presteza algo excessiva. Suavoz e seus olhos exprimem interesse talvez dema-siado solícito pelo pedido do freguês. Afinal volta-se, tentando imitar o rigor inflexível de sabe-se lá

que autômato, segurando a bandeja com um espé-cie de temeridade de funâmbulo, mantendo-a emequilíbrio perpetuamente estável, perpetuamenteinterrompido, perpetuamente restabelecido por li-geiro movimento do braço e da mão. Toda sua con-duta parece uma brincadeira. Empenha-se em enca-dear seus movimentos como mecanismos regidosuns pelos outros. Sua mímica e voz parecem meca-nismos, e ele assume a rapidez e presteza inexoráveldas coisas. Brinca e se diverte. Mas brinca de quê?Não é preciso muita coisa para descobrir: brinca deser garçom (...). Vemos quantas precauções são ne-cessárias para aprisionar o homem no que é, comose vivêssemos no eterno temor de que escape, ex-travase e iluda sua condição. Acontece que, parale-lamente, o garçom não pode ser garçom, de imedi-ato e por dentro, à maneira que esse tinteiro, essecopo é copo. (...) E é exatamente o sujeito que devoser e não sou. Não porque não o queira ou seja ou-tro. Sobretudo, não há medida comum entre o serda condição e o meu.83

Sartre afirma que essa é uma atitude de má-fé, exatamente porque o sujeito é destituído deuma identidade e, portanto, povoado pelo nada,mas ele mente para si, brincando de ser algumacoisa.

Com base nesse instrumental sartriano, po-demos levantar as seguintes questões: não seria aeducação uma atitude marcada, em seu bojo, demá-fé? O processo educacional, quando visa for-mar um sujeito, quando os saberes pedagógicosproduzem uma subjetividade ou um Eu, não es-taria agindo de má-fé, fazendo a pessoa enganar asi mesma? Ou, ainda, em face do nada do sujeito,a educação não contribuiria para a má-fé, ao sepropor como caminho para a formação de um su-jeito? O homem que se propõe pela educação for-mar seu ser – a subjetividade do ser advogado, porexemplo – não age de má-fé, e a educação não serevelaria, nesse caso, o fiel da balança dessa má-fé?

Voltemos a Sartre: “O aluno atento quequer ser atento, o olhar preso no professor, todoouvidos, a tal ponto se esgota em brincar de seratento que acaba por não ouvir mais nada”.84 Não

79 SARTRE, 1999, p.9280 Ibid., p. 92-93.81 Ibid., p. 93.82 Ibid., p 105.

83 Ibid., p.105-106.84 Ibid., p. 107.

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estaríamos agindo de má-fé, ao brincar de ser es-tudante, por exemplo, de filosofia? O professor,diante do nada de seu Eu, não estaria atuando

com má-fé, ao brincar de ser professor? E a edu-cação não seria o fio condutor da proliferação damá-fé?

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Dados do autor

Graduado em filosofia, mestre em filosofia pelaPontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas) edoutor em educação pela Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp).

Recebimento: 15/abr./05Aprovado: 11/ago./05

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Sartre: anarquista?SARTRE: ANARCHIST?

Resumo Sartre foi um dos mais influentes filósofos do século XX. Militante decausas políticas e sociais, não se filiou a nenhum partido político. O que esteartigo faz é buscar em sua obra, tanto no período existencialista quanto nomarxista, indícios de sua aproximação com o anarquismo. A razão disso é que,por duas vezes, em entrevistas, o filósofo afirmou-se anarquista. E tais indíciossão encontrados, seja em sua defesa de uma moral autônoma e libertária seja emsua discussão em torno da revolta.Palavras-chave SARTRE – ANARQUISMO – POLÍTICA.

Abstract Sartre was one of the most important philosophers of the 20th century.Militant of political and social issues, he was never a member of any politicalparty. This paper aims to search in Sartre’s works, both in the existentialist andMarxist periods, evidences of his proximity with Anarchism. The reason is thatin two moments, in interviews, he presented himself as an anarchist. Theseevidences are found, both in his defense of a moral and libertarian autonomy, andin his discussion on the subject of revolt.Keywords SARTRE – ANARCHISM – POLITCS.

SÍLVIO GALLOUniversidade Estadual de

Campinas (Unicamp)[email protected]

WALTER MATIAS LIMAUniversidade Federal de

Alagoas (UFAL)[email protected]

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O homem é livre para comprometer-se, masnão é livre a menos que se comprometa

a ser livre.

SARTRE, 1960

ean-Paul Sartre foi, sem dúvida alguma, um dos mais im-portantes intelectuais militantes franceses do século XX.Próximo dos comunistas, com toda a agitação da políticafrancesa desde os anos 1930, jamais se filiou ao partido,tendo sido duro crítico do stalinismo. A partir dos anos1960, aproximou-se dos grupos maoístas.

Assim, podemos identificar uma filiação política deSartre? Anarquista, talvez? É certo que ele também nun-ca se engajou no movimento anarquista francês. No en-

tanto, em pelo menos duas oportunidades, declarou-se anarquista: umadelas, logo no início dos anos 1970, quando gravou uma longa entrevista,em seu apartamento – apresentada aqui no Brasil pela TV Cultura, anosatrás, com o título Sartre por Sartre. Em certo momento dessa longa en-trevista, Sartre e Simone de Beauvoir, relembrando sua militância política,dizem-se anarquistas, uma vez que tinham em mente uma sociedade semEstado e jamais haviam se filiado ao Partido Comunista Francês (PCF),rumo seguido pela quase totalidade dos intelectuais franceses de esquer-da. A segunda vez em que Sartre assumiu-se como anarquista foi numadas últimas entrevistas concedidas próximo de sua morte, quando já es-tava bastante doente, meses antes de seguir para o hospital e do qual ja-mais sairia. Essa entrevista vem publicada, ao fim deste artigo, nesta edi-ção da Impulso.

O pensamento sartriano é afirmador da liberdade e contrário a to-dos os totalitarismos. Mostra ao homem como ele é submisso – lembre-mos que Sartre viveu no entre-guerras, foi combatente na II GrandeGuerra e participou da Resistência Francesa e de todos os grandes acon-tecimentos políticos do pós-guerra –, mas não que ele deva ser submisso.A obra de Sartre é uma constatação da condição abjeta do homem, nãoum sistema moral. O reconhecer-se submisso, inútil, sem sentido podeser o primeiro passo para que o indivíduo se engaje na existência, assu-mindo uma práxis libertária como ser-no-mundo. Neste artigo, procura-remos destacar, das diversas fases da obra sartriana, pontos capazes dejustificar filosoficamente sua filiação ao anarquismo ou, pelo menos, suascontribuições filosóficas importantes para pensar o anarquismo e a açãopolítica libertária em nossos dias.UMA MORAL AUTÔNOMA E LIBERTÁRIA

Em princípio, trabalharemos com os conceitos desenvolvidos emL’Étre et le Néant (O Ser e o Nada), que teve sua primeira edição francesa

JJJJ

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em 1943, quando Sartre possuía 38 anos de idade.No entanto, nos cadernos de seu diário de guer-ra,1 escritos entre 1939 e 1940, já notamos os te-mas fundamentais, o núcleo conceitual a gestar aobra, que, segundo o próprio Sartre, já estava sen-do escrita. Ela apresenta como subtítulo Ensaiode Ontologia Fenomenológica, mostrando de an-temão que o objetivo do filósofo é o estudo doser, e seu caminho, a fenomenologia. Nosso des-taque será para a questão da moral e da liberdade,da qual parece ser possível extrair importantes as-pectos para o anarquismo.

A moral cristã ocidental funda-se, genealo-gicamente, no decálogo de Moisés. Com basenessas leis, toda formulação adquire autoridadedivina; os valores na moral cristã são, pois, valoresabsolutos com uma fundamentação metafísica.Ao ter de agir individual e socialmente conformeregem esses valores, o homem vê sua existênciacondicionada e não é, portanto, livre. Jean-PaulSartre insurge-se contra esses valores absolutos,afirmando que a liberdade deve ser o único e su-premo valor do homem.

A conhecida afirmação de Dostoievski, emOs Irmãos Karamazovi, de que “Se Deus estámorto, tudo é permitido” parece fundar a éticasartriana, embora uma análise mais apurada mos-tre que sua reflexão não passa por aí. Deixando delado a discussão em torno da existência de Deus,Sartre mostra que a questão moral não é uma re-alidade do âmbito da divindade – supondo suaexistência concreta –, por ser um problema estri-tamente humano, com existência apenas emmeio a homens.

Para compreender a fundamentação dessamoral humana, faz-se necessária, como preâmbu-lo, uma brevíssima incursão pela antropologiasartriana que aparece em O Ser e o Nada. Valen-do-se da terminologia hegeliana, Sartre apresen-ta-nos o ser do homem dividido em um corpoopaco a si mesmo, que não se percebe, habitando

o mundo dos objetos – o ser “em-si” – e numaconsciência, transparente, reflexiva – o ser “para-si”. Não vejamos aqui, entretanto, o dualismopsicofísico a cortar a filosofia clássica de Platão aDescartes, com sua res cogitans e sua res extensa;na perspectiva sartriana, o meu “eu” como cons-ciência absoluta não possui ou habita um corpoque lhe serve de prisão, mas eu sou um corpo, namesma medida em que sou uma consciência.

O em-si está cheio de si mesmo, é aquiloque é, absoluta identidade. Desse modo, nãopode conhecer a alteridade: jamais verá algo quenão seja ele mesmo; o em-si jamais perceberá ooutro como outro. O para-si, por outro lado, éaquilo que não é; em outras palavras, o para-siafirma-se pela negação. Sua consciência de simesmo advém do fato de perceber o outro comonão sendo ele mesmo. O para-si não conhece aidentidade, nunca será idêntico a si mesmo, poisseu reconhecimento dá-se na negação da imagemalheia como a sua própria. É um ser que só se co-nhece como reflexo, jamais como “si-mesmo”:ele não conhece aquilo que Sartre chama de ipsei-dade, o ser si mesmo. Em-si e para-si existemcomo distância, mas nunca separados: ser reflexi-vo por excelência, o puro em-si é a negação dohomem; por outro lado, também a idéia de umaconsciência pura, desencarnada, absoluta nãoprocede – seria justamente o conceito de Deus.

O homem é um ser bisonho, uma aberra-ção da natureza. O absurdo de sua situação sópode ser expresso por um paradoxo: o homem éuma “unidade dual”; não é nem apenas corponem somente consciência, e a exclusão de qual-quer uma dessas duas instâncias seria a negaçãode sua própria condição de homem. Seu ser éuma união de contrários: a consciência é o ser danegação, o em-si é o ser da afirmação; dialetica-mente, o homem é uma síntese, mas uma sínteseainda não resolvida, uma perpétua luta internasem possibilidade de trégua e, não conseguindotranscender essa luta, ele se angustia.

Mas qual a razão dessa inglória batalha semtrégua e sem possibilidade de vencedores? Porque o ser humano não aceita sua condição cindi-da e tenta selar a cisão? O que distancia em-si e

1 Nem todos os cadernos desse diário escrito pelo filósofo no front daII Guerra Mundial, servindo como oficial de comunicações, foramencontrados e uma coletânea irregular daqueles disponíveis foi publi-cada no Brasil sob o título Diário de uma Guerra Estranha. Cf. SAR-TRE, 1983a.

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para-si? O que preenche a brecha entre o corpo ea consciência? A resposta é simples: em-si e para-si são distanciados pelo nada que jamais permiteseu encontro. Nesse sentido, Sartre afirma que épelo ser do homem que o nada vem ao mundo;é apenas pelo ser do homem que aparece a nega-ção, por ser ele um “vazio de ser”. Fonte da ná-usea diante da existência e da angústia de ser, ohomem desespera-se, quando percebe jamais po-der preencher esse vazio. O desejo secreto e irre-alizável do humano é ser Deus: em-si/para-si,consciente/inconsciente de si ao mesmo tempo;um ser sem espaços. Na inútil e desesperançadabusca de preencher o vazio, de negar a negação,sendo afirmação plena, o homem faz-se projeto,lança-se ao futuro. Pensar e agir são duas formas,ou melhor, duas tentativas de anular o angustian-te nada de seu ser.

Outra característica da consciência é a fa-culdade da imaginação, a capacidade de escapar asi mesma, de projetar-se no futuro, em meio aseus outros possíveis. Segundo Sartre, essa parti-cularidade da consciência de poder sair de si fazcom que exista a vontade. A estrutura da vonta-de, por seu lado, fundamenta-se no ato datranscendência, no ir além de si e do objeto.Como transcendência, a vontade só pode ter lu-gar no mundo, em meio a uma infinidade de ob-jetos, pois o ato de transcender pressupõe algo aser transcendido. A vontade apresenta-se, pois,como um ser-no-mundo, mas como um “ser-pa-ramudar-o-mundo”, pois implica uma transfor-mação ou, pelo menos, um desejo de mudança.

A existência, no homem, da faculdade davontade ampara-se no fato de ele constituir umser imperfeito, que busca na transcendência, noir-além, a sua realização, a sua plenitude. O fun-damento da vontade é a necessidade humana depreencher-se, de buscar sua identidade constru-indo-se, fazendo-se homem a cada momento, lu-tando desesperadamente contra sua bisonha con-dição de ser fraturado. A vontade original é o de-sejo de cobrir as distâncias que a consciência ins-taura em nosso ser.

A ação humana aparece, pois, como impli-cação direta da vontade, tentativa encarnada de

satisfazê-la. Como exteriorização, ela se dá porcertos meios, visando alguns fins, que são o pró-prio assunto do debate acerca da moral. Em seudiário de guerra, Sartre anota a questão: sendo amoral um sistema de fins, a que fim deve dirigir-se a ação do homem? A um fim seu, próprio, in-terno ou a um fim determinado exteriormente?Em outras palavras, a moral como fundamenta-ção da ação humana deve ser autônoma ou hete-rônoma?

Os fins como tais são devir, têm sua exis-tência apenas como futuro; mas, ao mesmo tem-po, são como que atirados, lançados para a reali-dade humana presente, reclamando sua realizaçãoimediata, aqui e agora. Desse modo, só a realida-de humana pode ser ela mesma seu próprio fim,pois torna-se realidade concreta apenas no devir,no contínuo realizar-se, nunca estando pronta eacabada (isso se deve ao fato de ser o homem umser que se faz a si mesmo). A realidade humanaestá sempre no futuro, ela é seu próprio sursis, seupróprio distanciamento.

Por ser a moral decorrente, ação que, porsua vez, se fundamenta na vontade só possível deexistir em seres finitos e limitados, apenas temsentido falar em uma moral estritamente humana,nunca numa moral divina ou numa moral de ani-mais; no primeiro caso não há a finitude humana,ao passo que aos segundos falta a transcendênciada consciência. A moral é uma realidade “humana,demasiado humana”, para parafrasear Nietzsche,e é um problema exclusiva e especificamente hu-mano. Assim, Sartre responde à questão posta nodiário: a ação humana só pode dirigir-se para umfim interno, puramente humano. A única moralpossível é a moral da autonomia.

Em O Ser e o Nada, Sartre desenvolve umaanálise do ser do valor. De fato, essa análise éuma retomada do trabalho já desenvolvido emsuas anotações no diário de guerra, em especialdos conceitos em torno do problema da vonta-de. Em sua concepção, valor e vontade apresen-tam a mesma estrutura ontológica. Se nós se-guirmos as trilhas dos moralistas clássicos, quevêem no valor algo que, ao mesmo tempo, é in-

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condicional e não é, o ser do valor parece esca-par-nos, sendo incaptável:

O valor é, pois, incaptável: se o tomamos como ser,corre-se o risco de desconhecer totalmente sua ir-realidade e fazer-se dele, como os sociólogos, umaexistência de fatos entre outros fatos. Neste caso, acontingência do ser mata o valor. Mas, ao contrário,se não se tem olhos senão para a idealidade dos va-lores, deles será tirado o ser; e, sem o ser, desmo-ronam.2

Sartre defende que a consistência do ser dovalor não está em ser posto, ser dado, e sim, poroutro lado, ser aquilo através de que um sertranscende seu próprio ser. Poderíamos dizer,então, que o valor é o ser que permite a vontade,é o seu motor e, em conseqüência, o impulso daação humana. Não sendo o valor algo dado, ab-soluto, com o qual nos defrontamos, mas o mo-tor da transcendência e veículo da vontade, per-cebe-se, mais uma vez, a impossibilidade, naperspectiva sartriana, de uma moral heterônomaque vise fundar normas e leis em valores absolu-tos e abstratos, como a moral cristã; só podemosfalar em moral autônoma, libertária, apoiada naação individual.

O valor é, para Sartre, a ausência da totali-dade que preencheria o ser, ou melhor, a falta paraque seja alcançada a realidade e a plenitude de ser.Assim, o para-si, a consciência não existe diantedo valor, como acontece ante o objeto na relaçãode conhecimento (sujeito-objeto), pois o valorfaz parte da própria estrutura do ser da consciên-cia, é uma característica interna de seu ser. Essefato aparentemente simples traz conseqüênciasextremamente importantes para o terreno moral,porque não pode existir uma consciência reflexi-va que seja, em seu desvelamento, consciênciamoral pelo simples fato de ser consciência, umavez que seu próprio aparecimento é o desvela-mento do valor – falta absoluta – como consti-tuição de sua estrutura. Os valores podem, pois,ser ou não objeto da atenção de minha consciên-cia – contemporaneamente sendo sua estrutura –

, mas nenhuma consciência será moral pelo sim-ples fato de ser consciência.

Por outro lado, sendo parte da estrutura daconsciência, os valores nunca poderão ser abso-lutos universais, mas serão sempre criações parti-culares, individuais. Sartre diz que é preciso aban-donar aquele “espírito de seriedade” que nos faztomar os valores como dados e transcendentes,absolutos, bons em si mesmos e, portanto, cau-sadores do bem. Uma moral fundada nesses va-lores é uma moral de “má-fé”, pois estamos rece-bendo uma orientação externa, estamos enganan-do a nós mesmos. A “má-fé”, para Sartre, é oauto-engano, é agir segundo uma imagem abstra-ta e alheia, e não de acordo com a afirmação donosso próprio ser. A “má-fé” pode ser vista comoo veículo pelo qual as ideologias nos dominam;resulta do terror da consciência que se percebecomo falta, sem identidade, e consiste no assumirde identidades falsas que nos dão uma tran-qüilidade enganosa.

Os valores não são abstratos, transcenden-tes: nós próprios os inventamos. Isso quer dizerque somos nós mesmos que damos sentidos àsnossas vidas; e esse sentido por nós escolhido énosso valor: a falta que buscamos completar paraa nossa realização, nos vários momentos de nos-sa existência. Impossível não perceber, aqui, umeco de Nietzsche e de sua Genealogia da Moral.O único valor para o homem é, então, a realida-de humana, pois tudo o que ele faz é a constru-ção de sua realidade, de sua vida. Por querer serseu próprio fundamento – não poderia ser ne-nhum outro –, a realidade humana é profunda-mente moral.

Sem o mundo, sem o homem, nunca have-rá valor: eis a nossa conclusão básica. As conse-qüências políticas são bastante claras: o valormetafísico é uma abstração irreal usada com fina-lidades ideológicas de manipulação das consciên-cias e da realidade humana. Desde a aurora dostempos históricos, legisladores morais de todosos matizes nada mais fizeram do que aviltar a li-berdade humana em nome de um poder absolutoe da exploração. Sua ação sempre foi facilitadapela angústia existencial que sentimos diante do2 Idem, 1981a, p. 145.

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nada de nosso ser e, para fugir a ele, aderimos –de “má-fé” – a qualquer identidade externa quenos é oferecida pelos ideólogos de plantão. Emnosso íntimo, porém, sabemos que essatranqüilidade conseguida com a identificação so-cial – heterônoma – é falsa, e é a coragem deabandoná-la que fundamenta algumas revoluções– não todas, pois muitas são uma nova forma deexploração ideológica externa – e resgata a digni-dade humana em nossa autonomia.LIBERDADE E AÇÃO: UMA MORAL CONCRETA

O sentido por nós escolhido para a vidaserá o nosso valor, e a escolha é a própria afirma-ção do valor escolhido. Obviamente, escolhemossempre o bem, ou melhor, aquilo que julgarmosser o nosso bem. Mas escolhemos a nós mesmos,tomamos a nossa própria realidade como nossovalor. Afirmamos, dessa maneira, que nosso bemé a nossa própria realização. Mas o fato de eu es-colher a mim mesmo como homem implica mi-nha escolha por toda a humanidade, pois nãoexiste homem abstraído do mundo e da socieda-de. Ao me realizar, estou realizando toda a huma-nidade e, assim, o bem que escolho para mim de-ve, necessariamente, ser o bem para o outro, pois,se não realizo a humanidade, estou negando amim mesmo como homem.3

A ética sartriana significa uma revolução naética tradicional. Nesta, os fins definem os atoshumanos, devendo ser fundados em valores ab-solutos; na visão do filósofo francês, por outrolado, são os atos humanos que definem os seusfins e os seus meios; a ação (decorrente da esco-lha) nada mais é do que a expressão da liberdade.Se os fins, os valores são definidos pelos atos (li-berdade), então podemos afirmar que a liberdadeé a própria fundamentação dos valores. Devemosatentar aqui para o fato de que, em Sartre, a liber-dade não é uma essência, mas simplesmente

aquele nada existente no miolo do ser do ho-mem, esse nada que faz com que a realidade hu-mana seja um perpétuo devir: o homem não é, ohomem faz-se a cada momento.

O ser do homem apresenta-se como a en-carnação da liberdade. Não um livre-arbítrio con-cedido por Deus, mas liberdade como o funda-mento mesmo, como estrutura de ser, modo deser. Não importa se existe ou não um Deus: jámostramos que mesmo que ele exista, nunca po-derá ser o nosso legislador moral. O homem estásó, abandonado, solto no mundo; não tem nadanem ninguém em que se apoiar; nada há que le-gitime o seu comportamento, tirando-lhe a res-ponsabilidade; há apenas sua liberdade, sua esco-lha e a responsabilidade pelos seus atos também étoda sua.

Essa existência em meio a outros, o fato deser um ser-com-os-outros traz, porém, novas im-plicações. Por um lado, minha auto-imagem é omeu aparecer-para-o-outro, e a forma pela qual ooutro me percebe é uma preocupação constante.Na famosa peça teatral Hui-Clos – Entre QuatroParedes, no Brasil –, há a famosa conclusão exis-tencialista de que “o inferno são os outros”. Po-demos dizer que essa subjetividade nos remete aum “modo fascista de ser”: de repente, fazemosuma imagem do outro e tentamos impor-lhe queaja de acordo com essa imagem subjetiva por nósconstruída. Por outro lado, fica a questão da res-ponsabilidade e da escolha: escolhendo-me, esco-lho a todos, e sou responsável não apenas pormim, mas também pelos outros. Na verdade, ocomplicador da questão é, novamente, a “má-fé”e a utilização ideológica dessa fraqueza de ser queé o homem; num contexto de autonomia coletivae de um desenvolvimento social das liberdadesindividuais, ela tende a ser diferente, embora Sar-tre não a tenha examinado.

Mas, voltando, pode-se afirmar que nenhu-ma moral estabelecida pode, na verdade, dar indi-cações de uma decisão a priori, indicações sobre oque e como fazer. Sartre diz que o mundo nãonos manda sinais, nós é que temos de descobrir osinal em nossa escolha: o sinal é a nossa liberdade.Na conferência que acabou publicada sob o título

3 O humanismo radical de Sartre aproxima-se muito de um “retornocrítico” ao humanismo renascentista. Essa concepção da escolha indi-vidual como escolha coletiva por toda a humanidade lembra bastanteum poema do poeta inglês John Donne, que sintetiza a posição renas-centista, For whom the bells tolls. Ela começa afirmando que “homemalgum é uma ilha” e termina com algo mais ou menos assim: “cadahomem que morre deixa-me diminuído/pois sou parte da humani-dade/portanto nunca perguntes/por quem os sinos dobram/elesdobram por ti”.

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O Existencialismo é um Humanismo, o filósofomostra o exemplo de um estudante que o procu-ra pedindo conselhos. O rapaz está atormentadocom a idéia de ir para a guerra, pois, ao mesmotempo em que se sente impelido a fazê-lo, preo-cupa-se com a situação da mãe, que lhe é muitoapegada e depende dele. O jovem procura indica-ções de como agir e justificativas morais para asua ação; tenta, inconscientemente, abdicar desua responsabilidade para com a mãe, para com apátria e para consigo mesmo, em nome de valoresexternos justificadores de sua ação. De formaaparentemente rude, Sartre responde-lhe que aúnica coisa a ser dita é que ele aja de acordo coma sua liberdade; escolha o que escolher, essa op-ção será o seu valor, e a responsabilidade pela suaação e pelas conseqüências que ela poderá susci-tar será também única e exclusivamente sua.

Nessa “rudeza” do filósofo, e mesmo emsua “não-resposta” – a rigor, ele não deu uma res-posta, não no sentido esperado pelo jovem –, re-side um respeito básico por este. Sartre recusa-sea ser um legislador moral, pois estaria contribuin-do para que o jovem agisse de “má-fé”, além de es-tar também, ele próprio, agindo de “má-fé”, ao as-sumir-se como algo que não é. No incitar o jovemà escolha reside a verdadeira moralidade concreta.

Não havendo valores absolutos, não existesentido em criticar uma moral de base divina epretender fundar uma nova moral em valores ou-tros, mas também apriorísticos e absolutos. Nes-sa mesma conferência, Sartre critica um grupo delaicos franceses que, em 1880, pretenderam supri-mir Deus, mas fundaram uma nova moral abso-luta em outros valores absolutos, criando uma so-ciedade policial com uma série de normas a seremseguidas. Destruíram uma farsa, colocando outrano lugar, cuja máscara diferia da anterior apenaspela decoração; o sujeito a usá-las permanecia omesmo. A moral será sempre libertária, ou nãoserá moral, pois seu fundamento único residenessa ausência de ser a que chamamos liberdade.

Segundo Sartre, construir uma moral écomo pintar um quadro: o que há a fazer seráaquilo que for feito, nada existe a priori. Os va-lores estéticos, como os morais, serão aqueles de-

correntes da própria obra. Estética e moral sub-traem-se, assim, ao reino dos apriorismos parafundarem-se na posterioridade.

Uma questão importante: não existindo va-lores e padrões morais preestabelecidos, comopodemos determinar o valor dos atos e das esco-lhas? A resposta está, novamente, na liberdade.Se for a liberdade a fundamentar a escolha, estaserá mais valiosa quanto mais livre tiver sido o atode escolher. Ou seja, o grau de liberdade implica-do nos atos é que determina o seu valor.4

Se a vida é um compromisso constante, umsuceder contínuo de escolhas, ser moral não ésubmeter-se às regras, mas transgredi-las, fundare afirmar a liberdade. A obra literária de Sartreestá farta de exemplos dessa moralidade libertáriaimpregnando a existência cotidiana. Talvez umdos melhores seja o que é representado por Ma-thieu Delorme, um dos personagens centrais datrilogia Os Caminhos da Liberdade, na cena quefecha o primeiro romance da série, A Idade daRazão. Delorme, um jovem e confuso professorde filosofia, perambula pela vida ao longo do ro-mance e descobre, nos lances finais, que Marcele,sua amante, está grávida. Sucede-se uma série depressões sociais, da família, dos amigos, mesmodos desconhecidos, para que ele se case com ela.O problema é que ele não sabe se a ama ou se suarelação é apenas uma comodidade. Quando to-dos estão certos de seu casamento, repentina-mente ele rompe com Marcele, sai da cidade elança-se à vida, contrário a tudo e a todos, cons-ciente da imagem que os outros terão dele, masfundando a sua liberdade nessa escolha inusitada.

4 Parece estranho falar, no contexto sartriano, em grau de liberdade,posto que esta é ausência de ser. A escolha é, por definição, resultadoda liberdade... Talvez fosse melhor falar de grau de consciência comque a escolha é feita, mas como a consciência é liberdade, acaba dandono mesmo. É o psicopedagogo Michel Lobrot quem faz uma distinçãointeressante acerca das formas de liberdade, em seu livro A Favor ouContra a Autoridade (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977), que, decerto modo, parecem complementar Sartre. Distingue ele três tipos deliberdade: a basal, a adaptativa e a criativa. A primeira seria aquela deque fala Sartre, e não existe em graus; já as duas outras dependem dascondições materiais em que as escolhas são feitas, levando em conta osdeterminantes sociobiológicos, e podem ser mais ou menos livres.Infelizmente, não há espaço aqui para discorrer sobre as concepções deLobrot – o leitor interessado pode procurar a obra aqui citada.

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Estar na “idade da razão” não é assumiruma suposta maturidade e agir no seio de umamoral estabelecida, sendo reconhecido social-mente por seus pares, mas agindo na mais pura“má-fé”. Estar na “idade da razão” é negar o es-tabelecido, fundar sua liberdade e sua própriamoral. Outro exemplo interessante encontra-seno conto “A infância de um chefe” (da obra OMuro), no qual Sartre desenvolve algo assemelha-do a uma psicanálise da construção de uma per-sonalidade autoritária, desde a infância.

Já em O Ser e o Nada, vemos o caso do be-bedor solitário e do condutor de povos. O que osdiferencia? Nada mais do que o grau de liberdadecom que foi escolhido esse modo de ser. Desdeque tenha livremente escolhido viver dessa ma-neira, o bêbado pode ser mais autêntico que o lí-der. Por outro lado, o líder, em sua vã agitação,poderá estar negando sua liberdade e a si próprio,ao negar a liberdade de seus seguidores, ao passoque o beberrão responde apenas por si.

Tais são, muito resumidamente, as con-siderações de Sartre sobre a moral. Delas pode-mos extrair importantes conseqüências no âmbi-to político. A principal, pensamos, é a seguinte:se a realidade humana é moral, e essa realidade éa liberdade, serei profundamente imoral se agircontra as escolhas, se tentar negar a liberdade dooutro. Assim como já sustentava o anarquistaMikhail Bakunin, no século XIX, Sartre assumeque minha liberdade só é capaz de se dar em meioà liberdade dos outros.5 Desse modo, podemos

afirmar que as ditaduras, os totalitarismos e, deresto, a própria “democracia moderna”, enquantolimita a escolha ao domínio do voto e da repre-sentatividade e defende a submissão das mino-rias, são, todos, absolutamente imorais. Um sis-tema político moral deveria fundar-se na convi-vência libertária de todos os indivíduos da comu-nidade; obviamente, tal sistema é ainda devir –para não dizer utopia... –, estando ainda por serconstruído com a existencialização de nossas li-berdades.MORAL E REVOLTA

O existencialismo, notadamente o de Sar-tre, inventou um estilo: a recusa de sínteses dou-trinárias. Tal atitude será mantida em toda aconstrução da Crítica da Razão Dialética. ParaSartre, trava-se um combate duvidoso no âmbitoda política; contudo, uma tomada de posição énecessária para a construção de uma práxis quecontenha um mínimo de coerência e leve a umaatividade, na política empírica, caracterizada peladenúncia resoluta de tudo o que fira a dignidadeda liberdade da pessoa, como sujeito singular oucoletivo.

Trata-se, agora, de buscar o sentido da his-tória, isto é, desvendar a verdade manifestada pormeio de ações inevitavelmente livres dos homens.No entanto, no que diz respeito à Critique de laRaison Dialectique, essa busca não será feita pelainserção única no cogito existencial, muito menospela recusa da filosofia da história em seu conjun-to, como expresso em O Ser e o Nada. É a buscados princípios que determina a inteligibilidade dahistória.

Pode-se afirmar que a descoberta da histó-ria por Sartre começa a ser esboçada a partir de1947, quando ele escreve Qu’est-ce que la Littéra-ture?. Essa descoberta é marcada por vários acon-tecimentos da época, que levarão à temática dosentido da história. Esta torna-se a questão pre-mente nas décadas de 1940 e de 1950, na França.Intelectuais engajados em torno da revista LesTemps Modernes, como Raymond Aron, Simonede Beauvoir, Michel Leiris, Maurice Merleau-Ponty, Jean Paulhan, Albert Camus, Claude Le-fort e Jean-Paul Sartre, elaboram uma constante

5 Bakunin polemiza com Rousseau, que vê na liberdade um fator natu-ral, procurando demonstrá-la como fator socialmente construído.Assim, a sociedade – o outro – não é um empecilho à minha liberdade,mas o único meio de seu desenvolvimento. Um pequeno trecho deBakunin: “Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres huma-nos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liber-dade é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação.Apenas a liberdade dos outros me torna verdadeiramente livre, deforma que, quanto mais numerosos forem os homens livres que mecercam, e mais extensa e ampla for sua liberdade, maior e mais pro-funda se tornará minha liberdade. Ao contrário, é a escravidão doshomens que põe uma barreira na minha liberdade ou, o que é a mesmacoisa, é sua animalidade que é uma negação de minha humanidade por-que, ainda uma vez, só posso considerar-me verdadeiramente livre,quando minha liberdade, ou o que quer dizer a mesma coisa, quando aminha dignidade de homem, meu direito humano, que consiste emnão obedecer a nenhum outro homem e a só determinar meus atos deacordo com as minhas próprias convicções, refletidos pela consciênciaigualmente livre de todos, me são confirmados pela aprovação detodos. Minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade detodos, se estende ao infinito” (BAKUNIN, 1983, p. 32-33).

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crítica de desconfiança a tudo o que se aproximede doutrina, buscando na ação comprometida oempenho em descobrir a verdade do tempo emque estão inseridos. São intelectuais distantes –em oposição – do pensamento cristão e da dialé-tica marxista, no sentido da dogmática em que omarxismo tornou-se no interior do PCF. São,também, intelectuais que não contam com oapoio de forças sociais institucionalizadas, porexemplo, organizações políticas.

Com a deflagração da Guerra Fria, a partirde 1950, a situação mundial endurece, levando ospensadores a tomar posição diante dos aconteci-mentos, o que provoca uma dissensão na revistaLes Temps Modernes. A repercussão do macar-thismo nos Estados Unidos, a crise desencadeadapela Guerra do Vietnã, a repressão colonial emMadagascar, a descoberta de campos de trabalhoforçado na União Soviética e o comportamentoagressivo do PCF contra o poder da IV Repúblicaem todas as instâncias tornam árdua e arriscada adefesa da verdade e da liberdade. Os membros darevista assumem posturas diversas em relação aosacontecimentos da época, o que justifica as dis-sensões e os rompimentos de várias amizades,como a de Sartre/Camus ou a de Sartre/Merleau-Ponty.

Em 1958, após cinco anos da morte de Sta-lin, desencadeia-se a prática da “coexistência pa-cífica”, em substituição à Guerra Fria. Contudo,o que ficou conhecido por “processo de desesta-linização” não significou necessariamente nenhu-ma mudança política de base, podendo ser exem-plificado pela investida das tropas soviéticas con-tra a insurreição popular húngara de 1956, o con-tinuado partidarismo do PCF e a política desubmissão à URSS no problema com a Argélia.Tais acontecimentos marcam a necessidade, emSartre, de escrever sobre os fundamentos teóri-cos do “marxismo prático”, resultando na elabo-ração da Crítica da Razão Dialética. Esse texto étambém uma resposta a Maurice Merleau-Ponty,por seu livro As Aventuras da Dialética, tantoquanto o despertar de Sartre de seu “sono dog-mático”, proporcionado também por Merleau-Ponty na leitura de Humanismo e Terror.

Sartre procura construir uma crítica queofereça conteúdo ao vazio em que caíra a esquer-da não comunista. A atitude de comprometimen-to como “companheiro de viagem” dos comunis-tas torna tal crítica uma avalanche de textos queconfluirão em torno do marxismo, como enten-de Sartre, e na busca da inteligibilidade da históriacomo a tendência de uma sociedade que se quertransparente e realiza a história pelo exercício deuma liberdade situada.

Na Crítica isso é possível, porque o pontonodal em que se processa todo conhecimento re-ferido por toda ação, no qual se elabora toda in-teligibilidade teórica e prática, é o sujeito ou, me-lhor, a intersubjetividade e a reciprocidade. E osujeito não é uma substância, no sentido meta-físico, mas um devir, isto é, todo existente é umamálgama de imanência e transcendência: cons-tante superação de si e invenção diária, ação ne-gadora, porque objetivo de si por meio do outroque não é ele. Ou seja, o sujeito é liberdade e luta,é revolta contra a alienação e a reificação.

Para Sartre, a alienação atinge todos os do-mínios da sociedade moderna, pois o não reco-nhecimento de si que o trabalhador tem diantedo produto de seu trabalho causa o alheamentodo homem como espécie e o estranhamento nonível da intersubjetividade. Isso porque o homemperde sua condição de homem para tornar-se,como trabalhador alienado, um indivíduo quenão encontra condições imediatas para a supera-ção da escassez e, conseqüentemente, não conse-gue exercer a liberdade como projeto, nem indi-vidual nem coletivo. Assim, a alienação opõe-se àpráxis, ao reduzir o indivíduo à própria condiçãode prático-inerte (objeto), ou melhor, de utensí-lio. Alienado, o indivíduo não encontra espaçopara a liberdade e, uma vez que a práxis é em simesma dialética, não há liberdade onde não seluta para a construção de relações de compreen-são da própria ação, isto é, não pode haver dialé-tica sem liberdade e, por conseguinte, não existeliberdade onde não se luta contra a escassez.

Sartre aponta para a caracterização do fazerhistórico, no qual os relacionamentos humanosnão podem determinar-se exclusivamente pelas

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interpretações economicistas, pois a ação dosindivíduos está vinculada a uma apreensão funda-mental do encontro entre os sujeitos (do reco-nhecimento e da reciprocidade). Isso o leva amostrar que os indivíduos estão inseridos numarelação primeira de reconhecimento, isto é, aexistência do ser humano coloca-o numa asso-ciação imediata com os outros seres humanos,primeiramente de reconhecimento, em que oindivíduo não pode tratar o outro como objetosem antes reconhecê-lo como sujeito, isso acon-tecendo antes de toda relação de reificação.

O prático-inerte insere o sujeito numa re-lação de alienação, inclusive na vivência intersub-jetiva, pois desde o momento em que o trabalho,entendido como o desenvolvimento dialético einteligível da práxis humana, é apenas vividocomo o produtor – isto é, o trabalhador – de prá-ticos-inertes, até mesmo os valores, no sentidoético e, também, moral, são vividos inseridos noprocesso de alienação:

o valor não é a alienação do fim ou da objetividaderealizada, é o da práxis mesma. Ou, se se prefere, éa práxis descobrindo a inércia sem reconhecê-la,inércia da qual está afetada pelo ser prático-inertedo agente prático. O que significa, segundo o pon-to de vista da ética, que os valores estão unidos àexistência do campo prático-inerte. (...) Todo siste-ma de valores repousa sobre a exploração e a opres-são; todo sistema de valores é negação efetiva da ex-ploração e da opressão (inclusive os sistemas aris-tocráticos, se não explicitamente, pelo menos porsua lógica interna); todo sistema de valores confir-ma a exploração e a opressão (inclusive os sistemasconstruídos pelos oprimidos, se não pela intenção,ao menos na medida em que são sistemas); todosistema de valores, enquanto que está sustentadopor uma prática social, contribui direta ou indireta-mente a pôr em seu lugar dispositivos e aparatosque chegado o momento (...) permitirão que se ne-gue esta opressão e esta exploração; todo sistema devalores, no momento de sua eficácia revolucionária,deixa de ser sistema e os valores deixam de ser va-lores, porque obtinham esse caráter de sua insupe-rabilidade, e as circunstâncias, ao transformar as es-truturas, as instituições e as exigências, os transfor-mam em significações superadas; os sistemas se re-absorvem nas organizações que têm criado, e estas,

transformadas pelo transtorno do campo social, seintegram em novas ações coletivas, executadas nocontexto de novas exigências, e descobrem novosvalores.6

O processo de alienação é fruto do desvir-tuamento de uma relação de reciprocidade e re-conhecimento fundamentais para a construçãodo homem como humano. Defender valores semrefleti-los com base nos determinantes que cons-tituem o campo ético, e sem pensar as condiçõessociohistóricas e culturais que o ensejam, é admi-tir explícita ou implicitamente a institucionaliza-ção da alienação, elevando-a à hipóstase como si-tuação definitiva do processo de reificação.

De acordo com Sartre, uma das maiores di-ficuldades do homem é a efetivação do ethos mo-derno determinada, entre outros aspectos, pelacrise dos universais, no âmbito da ética. Tal ques-tão passa também pela constatação de que a atualsociedade é um mundo sem paidéia, resultante dacoisificação dos próprios valores.

A luta contra a escassez é igualmente a bus-ca de uma relação de conciliação entre os sujeitoshistóricos, uma vez que a produção do prático-inerte lança o indivíduo num mundo de utensí-lios que passa a ser mais poderoso que o homem,tornando-o, dessa forma, objeto de alienação. Eas relações intersubjetivas, por sua vez, tornam-serelações de estranhamento, em que os sujeitos setratam não como pessoas, no que diz respeito àética, mas como objetos, e os valores éticos, porserem também expressão da coisificação e portornarem-se relativos, deixam de ser a expressãoda garantia da condição de sujeito que o ser hu-mano deve possuir.

Entretanto, dado que os valores éticos pas-sam a ter correlação imediata com o antagonismoentre modo de produção e relação de produção,os sujeitos que se alheiam nessa dialética da trans-formação da matéria não exercem a liberdadecomo a expressão consciente de si e dos outros,não sendo capazes de reflexão crítica e de reco-nhecimento da existência dos outros como sujei-tos éticos iguais a eles, criando a dicotomia entre

6 SARTRE, 1960, p. 302-303.

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o sujeito moral e os valores morais. Uma dassoluções para essa dicotomia está no conceito dereciprocidade, empregado por Sartre.

Tal conceito adquire conotação ontológica,porque a interpretação da liberdade insere-se nadinâmica da dialética da intersubjetividade. Sartredestitui a liberdade de toda conotação de umaprática a ser delimitada espacialmente, no sentidode poder ter um limite que se reduza aos espaçosdas associações meramente econômicas dosindivíduos, por exemplo, quando algumas pesso-as dizem que a liberdade delas começa quandotermina a dos outros, ou o direito delas terminaquando inicia o dos outros.

Se a relação humana é de reconhecimento ereciprocidade prévios, antes da instituição de umarelação alienada, a liberdade não começa nem ter-mina como se fosse realizada no âmbito da pro-priedade privada, mas torna-se justamente o en-contro dos indivíduos. É o encontro de duas oumais liberdades que caracteriza a relação de inter-subjetividade. Os homens nunca estão a sós unscom os outros: o relacionamento intersubjetivoe, por conseguinte, o exercício da liberdade evi-dencia-se por um conflito ontológico entre ossujeitos. Mas é justamente esse conflito que pos-sibilita a realização da liberdade, uma vez que oenfrentamento do outro como o outro que é di-ferente (mas não desigual, nem desigual por serdiferente), podendo ser integrado numa dimen-são de reciprocidade e fazendo parte das condi-ções histórico-sociais em que os sujeitos estão in-seridos, caracteriza a dinâmica de uma práxis quequer lançar o indivíduo num mundo de reconhe-cimento mútuo, em que cada um encontra, to-mando por base o reconhecimento, as condiçõesda criação de novos processos de subjetivação,confluindo singularidade e coletividade, superan-do as reificações.

Cremos que Sartre constrói uma antropo-logia filosófica e uma filosofia social que signifi-cam uma hermenêutica da práxis. Toda a Críticada Razão Dialética sugere essa perspectiva.

Uma das marcas do tema da revolta, emSartre, está na sua constante perspectiva interpre-tadora e entendemos a interpretação com um ato

de revolta. Assim, podemos dizer que uma das ca-racterísticas da revolta, para esse filósofo, é revelara singularidade da experiência por meio da inter-pretação filosófica e literária, mostrando que a li-berdade só existe ao preço de uma revolta.7 Mastornamos a perguntar: por que a revolta, hoje?

Nas atuais democracias, na “sociedade daimagem” ou do “espetáculo”, o que justifica atentativa de repensar a noção de revolta é a exces-siva carga normalizadora que tem como particu-laridade principal a exclusão do poder e da pes-soa. Na sociedade liberal, ninguém vigia, nin-guém castiga, pois todos são, ao mesmo tempo,vigiados. No lugar da punição, a normalização.Permanecem apenas as punições disciplinares eadministrativas, que reprimem, que normalizamtodo o mundo, e nas quais encontramos o terro-rismo das técnicas de adiamento. Criam-se, as-sim, técnicas também de regulação, o que ensejaa teatralização midiática da vida. Onde havia“leis”, agora imperam as “medidas” (leia-se: “me-didas provisórias”), pois passíveis de recursos eadiamentos, de interpretações e, muitas vezes,fraude. Essa tendência excessiva à normalizaçãoabre, também, o espaço-tempo do pervertível: naausência de um responsável-culpado, encontra-mos a repressão administrativa e a ocultação do“crime” que se torna espetáculo midiático.

Contra esse estado de coisas, a obra sartria-na põe-se como significação da revolta. Inclusivea revolta como ato pedagógico e a pedagogiacomo prática de revolta. Insurgir-se contra oopressor poder dos homens sobre os próprioshomens. Nesse caso, a pedagogia aparece como apossibilidade do sujeito de “objetalizar” a históriae a intersubjetividade (em processos de singulari-zações), a relação mesmo-outro, assumindo o ne-gativo e a contradição como inerentes à educação.A pedagogia – assim como o processo educativo– pode ser entendida (e defendemos isso) comohermenêutica da práxis educacional e negativida-de desmistificadora, uma vez que essa é uma dascaracterísticas da revolta: a desmistificação.

7 Cf. idem, 1974.

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Pensando com Sartre, a educação é a práxisque ajuda os homens a sair de sua inércia, levan-do-os a totalizar, eles próprios, suas respectivaspráxis, em vez de sofrer “a totalização reificada”,“alienada” dos objetos. Assim, refletir, desmisti-ficar, reunir e não esquecer sua presença concre-ta, sua experiência psíquica, nem o momentoconcreto da história em que se encontram, man-tendo permanente questionamento, é o que põeuma atividade pedagógica como interpretaçãorevoltada da educação. Tal educação que se quer,também, desmistificadora e insere-se numa prá-tica política que se recusa como espetaculariza-ção da vida e da morte, ensejando um processodialético de superação das condições ideológicase alienantes, nas quais encontram-se os sujeitosda educação.8

Certamente, a experiência pessoal de Sartrerevela-se como uma situação, uma luta por situ-ar-se dentro da situação, com o fim de superá-la.Essa experiência, contudo, não é tão pessoal, tãoalheia ao comum dos mortais. Sartre viveu em suaexperiência a intersubjetividade e o projeto fun-

damental que a define, auto-afirmação diante doser acabado.

Quando propõe o anarquismo como vidamoral, para a nossa atualidade, faz surgir a neces-sidade de “humanizar” o homem, de arrancá-lode sua inércia natural, ajudando-o a “totalizar” elepróprio suas respectivas práxis, em vez de sofrero mundo reificado, do que chamou de prático-inerte. Daí um dos sentidos para revolta, inclusi-ve revolta moral e práxis educativa: rejeição daautoridade, do poder e, de certo ponto de vista,prenunciando Foucault,9 do poder como gover-nabilidade. Pois, como dizia Sartre, “o homemdeve se inventar todos os dias”.

Para encerrar, podemos afirmar que, emSartre, a finalidade do homem, e de todo ato mo-ral, é a libertação humana. Isso fica claro, comoprocuramos mostrar, tanto em O Ser e o Nadaquanto na Crítica da Razão Dialética. Há algomais libertário que isso? Dessa forma, emboraJean-Paul Sartre jamais tenha militado em gruposanarquistas, pensamos ser possível aproximá-loda tradição de pensamento libertário. O que ter-mina por não soar tão estranho, quando lemos aentrevista Anarquia e Moral, publicada a seguir.

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8 Sabemos que Sartre não desenvolveu análises filosóficas sobre o fenô-meno educacional, mas queremos destacar a potencialidade de seupensamento para tal empreendimento, embora não esteja no escopodeste artigo.

9 Cf., por exemplo, Michel FOUCAULT, Em Defesa da Sociedade. SãoPaulo: Martins Fontes, 1999.

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_____ et al. Marxismo e Existencialismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

Dados dos autores

SÍLVIO GALLOProfessor da Faculdade de Educação da

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),licenciado em filosofia pela Pontifícia Universidade

Católica (PUC-Campinas), mestre e doutor emeducação (filosofia da educação) pela Unicamp.

WALTER MATIAS LIMAProfessor da Universidade Federal de Alagoas

(UFAL), graduado em filosofia e mestre em filosofiapela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),

doutor em educação (filosofia da educação)pela Unicamp.

Recebimento: 13/abr./05Aprovado: 10/jun./05

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Anarquia e Moral: entrevista com Jean-Paul SartreANARCHY AND MORALITY: INTERVIEW WITH JEAN-PAUL SARTRE * 1

Entrevista concedida a R. FORNET-BETANCOURT, M. CASAÑAS e A. GOMES.

Publicada originalmente na revista espanhola defilosofia Concordia, n.º 1, 1982

Tivemos a seguinte conversa com Jean-Paul Sartre, no dia 1.o de no-vembro de 1979, em seu modesto apartamento parisiense, em frente àtorre Montparnasse. Na ocasião, pudemos compartilhar com o filósofouma hora de inquietação intelectual, viva e vivificante, no curso da qualsentimos a preocupação dele com o futuro moral do homem – no sentidode ser autenticamente homem no futuro. Estamos convencidos de que aconcepção sartriana de anarquia como vida moral pode muito bem sig-nificar um chamamento à conversão desse homem que realizamos na fi-gura do homem-poder (contra-homem), nos parecendo oportuno, e ne-cessário, dar a conhecer o conteúdo essencial dessa conversa.

Pergunta: Você tem se declarado anarquista, isto é, partidário de uma“sociedade sem poder”. Portanto, parece que o sentido dessa declaração nãotem sido bem compreendido. Você poderia precisar seu pensamento em re-lação a esse assunto?

J-P. Sartre: Eu me declaro anarquista porque tenho tomado a pala-vra anarquia em seu sentido etimológico, sociedade sem poder, sem Es-tado. O anarquismo tradicional não tentou construir uma sociedade se-melhante; a sociedade que o movimento anarquista tem procurado cons-truir é demasiado individualista. Mas o que é uma sociedade que não pos-sui poderes?

Devemos propor esse problema com base em três aspectos diferen-tes. Como ponto de partida, precisamos examinar que tipo de sociedadeé possível construir sem poder ou, em todo caso, sem o poder do Estado.Precisamos compreender que estamos o mais longe possível de tal socie-dade. Há formas de poder existentes em todas as partes, que pesam sobrecada homem – poderes coletivos, judiciais. O sentido da sociedade anar-quista é o de uma sociedade na qual o homem não tenha poder sobre ohomem, senão sobre os objetos. Nas sociedades atuais o homem é con-

1 Traduzido por WALTER MATIAS LIMA (UFAL/AL).*

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siderado como objeto, como um meio, e a riqueza, como um fim. Trata-se, no momento, de construir grupos que tentem viver e pensar fora dopoder, procurando destruir a idéia de poder no vizinho. Comunidadesque exercem poder sobre as coisas, mas jamais sobre os homens.

Por outro lado, não esperamos ver a desaparição do Estado, nãomais que nossos filhos, talvez nossos bisnetos o verão desaparecer. Aquestão é, pois, saber como deve viver, nos dias de hoje, um anarquista.Nesse sentido, a anarquia é para mim uma vida moral (a esse propósito,eu acrescentaria que não tenho escrito senão livros de moral). O anar-quista coloca a seguinte questão: como viver numa sociedade que tempoderes? É preciso, por conseguinte, ensaiar subtrair-se o mais possívela todos os poderes sociais, pôr em questão as formas de ação do podera serem descobertas em nós mesmos. Isso é fácil: devemos trabalhar, omais possível, com os outros.

Seria necessário construir comunidades em que se poderá, até ondefor possível, viver livremente, como os anarquistas desejariam viver. Co-munidades de 25, 50, 30 ou 10 pessoas, que estabeleceriam entre si ver-dadeiras relações, sem nenhuma autoridade de uns sobre os outros. Co-munidades fundadas no amor, e não necessariamente no sexo: amor filial,maternal, entre camaradas. Na perspectiva do amor é onde se devem es-tabelecer as relações das pessoas entre si. Contudo, tais comunidades nãopoderiam ser eternamente anarquistas, porque a polícia, o exército, as leisdo Estado em que elas se estabeleceriam subsistiriam, todavia, e as vigi-ariam para que o Estado fosse respeitado.

Na Alemanha e na França existem sociedades desse tipo, nas quaisas pessoas vivem, trabalham e fazem amor juntas. Essa é a base possívelem que começará um movimento anarquista, que é o futuro, que não épara hoje, que não será o partido e no qual as relações entre poder e açãoserão diferentes das existentes no seio dos partidos. A ação anarquistatende a ser conquistada nos partidos sem massas, sem hierarquias, em quetalvez alguns reflitam mais acerca das questões, mas nos quais as decisõesserão sociais, isto é, a tomada de decisões se fará socialmente. O que sepode fazer agora é criar possibilidades para os homens viverem livres comoutros homens, pois não se pode viver livre sozinho. Trata-se de ser omais transparente possível para cada um, para o seu vizinho. Abandonaro poder é aproximar-se da transparência total.

Pergunta: O que você entende por transparência?Sartre: A transparência é um sinônimo do amor, é o conhecimento

que cada um tem do que faz e pensa o homem que está ao seu lado. Oolhar poderá afetar a transparência, isto é, atravessar a pessoa até o seu co-ração e ver o que há em sua consciência. O olhar suporia reciprocidadee, com isso, ultrapassar a separação das consciências.

Transparência significa a luta contra os poderes: a vida é comuni-dade; já as relações sexuais, como as considero, são algo moral. O únicofim que cada um deve ter é o homem, isto é, que o homem não é, todavia,

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o homem. Trata-se de nos transformarmos, pou-co a pouco, em homens. O homem é o fim ab-soluto para os homens.

Pergunta: Isso quer dizer que o homem é ab-soluto?

Sartre: O homem não é o absoluto, e sim oseu fim absoluto, porque ser homem é ser moral.Cabe ao homem viver moralmente, pois o sermais profundo, secreto, do homem é ser moral.

Pergunta: Isso significa que a liberdade dohomem sempre é liberdade moral? Seria, assim, aliberdade o valor superior?

Sartre: A liberdade em si não é um valor,senão que ela escolhe o que decide como valorabsoluto. Ela é valorizada. A liberdade mesmanão é um valor, mas uma realidade metafísica.

Pergunta: Em que sentido devemos tomar aafirmação de que a liberdade é uma realidademetafísica?

Sartre: No sentido de uma realidade trans-cendental: é a realidade que se ama em cada um,é a origem, a salvação. Cada homem deve ser pro-duto da comunidade e de uma realidade livre.

Pergunta: Partindo dessa visão de liberdade,o que significa o poder compreendido como nega-ção da liberdade?

Sartre: O poder é uma das formas essen-ciais do mal.

Pergunta: Como você definiria, nos dias dehoje, sua moral?

Sartre: Seria uma moral da esperança, pois aesperança é um valor, uma vez que a realidade dasociedade anarquista não é para amanhã.

Pergunta: Mas como unir essa idéia à afir-mação de que a história é um absurdo?

Sartre: A história não é absurda, eu nãopenso assim. Disse isso, mas, quando o fiz, nãopensei o bastante. Ela tem um sentido, e isso sepode ver ao se observar aquilo em que a socieda-de se tem tornado: há um progresso, desde a épo-ca dos romanos até hoje em dia. Por exemplo, a

aparição de Cristo fez nascer a vida subjetiva, oelemento essencial do pensamento cristão. Antesdo cristianismo não havia tal vida. Por ela o ho-mem tenta recuperar sua objetividade, isto é, cadahomem tende a entender-se como a unidade dasubjetividade e da objetividade, ao passo que, an-tes, uma estava separada da outra. Agora temosde explicar aos seres humanos dois aspectos, ne-nhum dos quais dominando o outro: eles expres-sam as mesmas intenções – compreendidas nosentido fenomenológico.

Pergunta: Como você entende a afirmaçãodo homem como paixão inútil?

Sartre: É uma realidade que permanece ver-dadeira para muitos seres humanos, mas existeum esforço para fazê-la desaparecer na prepara-ção de uma ação. Por outro lado, a relação de pai-xão com ação é um dos fundamentos da moral.

Pergunta: Existe uma relação entre o idealontológico de O Ser e o Nada e o ideal moral (so-ciedade anarquista)?

Sartre: O ideal ontológico era falso: nãoexiste síntese possível do em-si e do para-si. De-vemos buscar melhor a síntese da objetividade eda subjetividade, pois a objetividade do homemnão é a do objeto.

Pergunta: Você crê que a experiência da fini-tude condiciona as relações humanas?

Sartre: Sim, certamente, mas não tenhoabordado esse problema. Atualmente penso asrelações humanas com base no que chamamosmutualidade, ou seja, a relação primeira com ooutro e dos outros comigo. Ela supõe a recipro-cidade, posto que nós não somos dois, comoquando se diz que há dois vasos. É uma relaçãorecíproca; primitivamente é uma mutualidade.

Pergunta: A mutualidade provém de umaexperiência mística?

Sartre: Não. Ela não pertence à mística, esim à racionalidade. Tudo o que existe é racional,no sentido de que forma parte de um conjuntodefinido de princípios e que se chama realidade.

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Conexões GeraisGeneral Connections

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Autodomínio e a Forma Variável: a palestra de Nietzsche sobre HeráclitoSELF-MASTERY AND THE VARIABLE FORM: NIETZSCHE’S HERACLITUS LECTURE * 1

Resumo Um exame da palestra de Nietzsche sobre Heráclito revela umparadigma pré-platônico, que se tornou alvo da transvalorização cultural dePlatão. O Heráclito de Nietzsche volta a sua energia intelectual interiormente,em busca do domínio de si e agindo sobre o instinto agonal do mundo grego,geralmente produtor de formas prósperas e suas variações. Nietzsche encontra aexpressão desse paradigma helênico nos fragmentos de Heráclito, exaltando aharmonia de todas as coisas em desarmonia consigo mesmas (diapheromenon).Uma breve análise da obra de Platão confirma que o chamado paradigma helênicoé ordenado com o estabelecimento de um eidos invariável.Palavras-chave AGON – CULTURA – FLUXO – HELENISMO – PLATÃO – PRÉ-SOCRÁTICO.

Abstract An examination of Nietzsche’s Heraclitus lecture reveals a Pre-Platonicparadigm that had become the target of Plato’s cultural transvaluation.Nietzsche’s Heraclitus turns his intellectual energy inwardly, searching formastery of the self and acting upon the Greek world’s agonal instinct, generallyproductive of flourishing forms and their variations. Nietzsche finds expressionof this “Hellenic” paradigm in Heraclitus’ fragments exclaiming the harmony ofall things “at variance with themselves” (diapheromenon). A brief look at Plato’swork confirms that the so-called Hellenic paradigm is disposed with theestablishment of an invariable eidos.Keywords AGON .–. CULTURE .–. FLOWING .–. HELLENISM .–. PLATO .– PRE-SOCRATIC.

1 Tradução do inglês para o português: NUNO COIMBRA MESQUITA (USP/SP).

DALE WILKERSONUniversity of North

Texas (UNT)[email protected]

*

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INTRODUÇÃO ÀS FONTES E AO TEMADO TRABALHO

o início a meados da década de 1870, Friedrich Nietzsche,lecionando na Universidade de Basel, preparou uma sériede palestras que examinavam a retórica e a filosofia nomundo antigo. Elas foram reunidas e publicadas em ale-mão – no abrangente Nietzsches Werke: Kritische Gesamt-ausgabe – e, não surpreendentemente, esse material esti-mulou algum interesse entre os leitores de língua inglesa.Enquanto tento demonstrar a importância dessas pales-

tras pré-platônicas nos estudos de Nietzsche, no que se segue examinareiparticularmente a realizada por esse filósofo sobre Heráclito, argumen-tando que, em Heráclito, Nietzsche encontra a expressão mais clara doparadigma grego como desenvolvido na cultura grega antes de Platão.Com esse paradigma, os gregos mais antigos justificaram a produçãocriativa e a variação de formas via a disputa interiorizada.

Examinarei, então, esse paradigma pré-platônico e suas várias ca-racterísticas, incluindo a interiorização das energias intelectuais do mun-do grego, o aparecimento de variações formais produzido por essa inte-riorização, a relação diapheromenon-sympheromenon estruturando asmanifestações de formas e o instinto agonal apoiando todas essas qua-lidades. Começarei por observar a afinidade de Nietzsche por Heráclito,cuja resistência aos modos cotidianos de seus contemporâneos antigossoaram um acorde familiar ao leitor não-moderno auto-entendido damodernidade.A AFINIDADE DE NIETZSCHE PELA EXTEMPORANEIDADE EPELA INTERIORIZAÇÃO

Podemos ver uma prova da afinidade de Nietzsche por Heráclito namaneira com que o retrato efésio é pintado, com um matiz extemporâneo,acentuando o agon de Heráclito com traços convencionais. Nietzschecompara Heráclito com Anaxágoras, por exemplo, que postulou uma in-teligência externa (Nous) dirigindo o desenvolvimento de todas as for-mas. Ao contrário, Heráclito resistiu à separação iminente dos pensa-mentos da mente e da matéria, intuindo, antes, uma coerência interna ea necessidade de todas as coisas.1 Tal resistência mostra que “Heráclitoainda mantém uma atitude originariamente helênica (urhellenische), istoé, internalizante, em relação a esses assuntos. A oposição entre a matériae o não-material simplesmente não existe, e isso é exato”.2

Na visão de Nietzsche, a chamada internalização do espírito e damatéria de Heráclito mostrou-se consistente com suas investigações inte-riorizadas de si, por meio das quais ele tentou se apropriar do jeito de serde todas as coisas: o Logos. Por essa razão, Heráclito (como Nietzsche)

1 NIETZSCHE, 2001, p. 72; e 1995, p. 279.2 Ibid.

DDDD

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menosprezava o “conhecimento humano comomera ‘historia’ em contraste à sua própria ‘sophia’interiorizada”.3 Enquanto Heráclito buscava oautoconhecimento, afirma Nietzsche, ele produ-zia o maior tipo de insight intelectual – sophia –,ao passo que aqueles que buscavam fatos exter-nos, ao contrário, produziam “mera historia” emmontes aleatórios.4

Contrariamente àqueles que conhecem e,portanto, dominam a si, o mero conhecedor defatos externos é obrigado, enfim, a buscar damesma maneira um senhor para dirigir, ordenar etornar significativo o acúmulo do coletor. Logo,embora seja bem possível coletar uma maior vas-tidão de conhecimento externalizando a força in-telectual, o que será coletado nesse caso pareceráinsignificante sem uma visão construtora de for-ma, melhor cultivada mediante a força de umolhar interiorizado.5

Conseqüentemente, podemos estar corre-tos em supor que o imperativo profético “conhe-ce-te a ti mesmo” guiou não só as indagações deHeráclito sobre Physis, mas também os estudosde Nietzsche sobre a cultura e o pensamento gre-go. Nietzsche quase admite, na palestra sobreHeráclito: “o sábio focaliza sua visão no Logosem todas as coisas. Ele caracteriza seu próprio fi-losofar como uma autobusca e uma investiga-ção”.6 Por essas razões, Nietzsche desafia leiturasque colocam Heráclito no desenvolvimento das

ciências naturais da Antiguidade, começando porAnaxímenes e se desdobrando por Anaxágoras eDemócrito. Teorias antigas relativas à Natur-wissenschaft desenvolvem-se contra Heráclito, deacordo com Nietzsche, formulando um conceitode materialismo que radicalmente exclui todas asformas intuitivas de autodomínio.7

A ênfase de Nietzsche na agon entre He-ráclito e seus contemporâneos chama a atençãopara uma importante característica da era trágica.Os filósofos pré-platônicos mais notáveis, naavaliação de Nietzsche, competiam entre si nopalco da narrativa cultural do mundo grego. Emseus momentos mais exemplares, a forma pré-platônica estava em desacordo consigo mesma,Nietzsche parece dizer, ao voltar suas energiasinteriormente, dominando a si mesma pela com-petição e encontrando significado nisso. Essaslutas produziram variações formais do instintocultural do mundo grego e, ao cultivar esse ins-tinto, os filósofos pré-platônicos afirmaram amedida da grandeza como tal. Tais competiçõespromoviam o autodomínio por todo o mundogrego, ao focalizar energias para o desenvolvi-mento cultural, permitindo à sociedade grega, navisão de Nietzsche, responder apropriadamentea esses desafios intelectuais que acompanharam amorte dos velhos deuses.

Heráclito resistiu ao desenvolvimento anti-místico do materialismo grego que acompanhouessa morte – um desenvolvimento que culminouno relativismo de Demócrito e dos sofistas. Eletambém recusou as doutrinas místicas e pessi-mistas de Anaximandro e aqueles que seguiramseu afastamento do mundo da eterna luta.8 Assimcomo suas rejeições à “historia”, e às tendênciaspenetrantes das ciências naturais, a visão de He-ráclito sobre a mística religiosa foi sintomática deum caráter extemporâneo: “Observamos umaforma inteiramente variante (verschiedene Form)de uma autoglorificação superhumana (über-menschlichen) (...) [que] não contém nada reli-

3 Podemos também notar a importância para Nietzsche da interioriza-ção no contexto social. Em “O Estado Grego”, ele argumenta que talconcentração interiorizada de força em disputas políticas e artísticasauxilia o desenvolvimento de uma “verdadeira cultura”, dando à “soci-edade tempo para germinar e ficar verde em toda a parte, para quepossa deixar que o florescer radiante do espírito brote” (“The GreekState”, idem, 1994, p. 182). De acordo com Nietzsche, o aparecimentode tal “espírito” mede o crescimento do ceticismo e do pessimismo nasociedade, um crescimento sintomático da exteriorização e o esforçodas energias para promover auto-interesses como são estreitamenteinterpretados. Resumindo, a concentração interiorizada de força pro-duz tipos saudáveis e prósperos, ao passo que a projeção de energiapara fora meramente acumula indiscriminadamente, levando, muitasvezes, a uma expansão insignificante de conhecimento, bens e dimen-são geral. Idem, 1966, p. 32.4 Idem, 2001, p. 56; e 1995, p. 264.5 Isso é o que Zaratustra, de Nietzsche, parece sugerir, me parece,quando adverte que “aquele que não consegue obedecer a si mesmoserá comandado”, porque é da “natureza dos seres vivos” obedeceralgo (idem, 1969, p. 137). Cf. também idem, 1997, aforismo 188, sobreo imperativo de obedecer.6 Idem, 2001, p. 56; e 1995, p. 264.

7 Idem, 2001, p. 44; e 1995, p. 251.8 Idem, 2001, p. 44; e 1995, p. 252.

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gioso; ele vê fora de si somente o erro, a ilusão,uma falta de conhecimento”.9

O que Nietzsche não diz, nessa análise daextemporaneidade de Heráclito, mas que dificil-mente permanece oculta, é que, para ele, a desin-tegração do pensamento grego posterior, em vá-rias facções religiosas e científicas, antecipa umcolapso similar que ameaça seu mundo no séculoXIX depois da morte de Deus.

Como remédio a essa barbárie, o jovemNietzsche propõe desenvolver “uma verdadeiracultura” com a concentração interiorizada deenergias intelectuais, cultivando o ethos de tipogrego do autodomínio, promovendo o que maistarde chamaria de espírito livre e reconhecendo oseu lugar numa cultura próspera.10 Aparentemen-te, apenas essa forma poderia unificar a cultura demaneira a ordenar os impulsos da sociedade pelareligião e pelo conhecimento. Ao exibir o tipo deautodomínio produzido somente por esse exem-plo de disputa interna, Heráclito representa, paraNietzsche, um modelo exemplar de humanidadee capaz de justificar toda a cultura helênica.AUTODOMÍNIO NUM MUNDO HERACLITIANO

Nietzsche descobriu que perspectivas ex-temporâneas da modernidade poderiam seralcançadas entendendo-se as maneiras pelas quaisos gregos promoviam a cultura e o autodomíniocom a interiorização. Ele adquire tal argumentolendo os filósofos pré-platônicos, especialmenteHeráclito, e identificando com esses um paradig-ma diferente do esquema transmitido à moderni-dade por Platão. No paradigma heraclitiano, for-mas e estruturas formais estão sempre em fluxo,ao passo que relatos fundacionais do ser comoum eidos imutável e absoluto são “ficções vazias”.Na palestra sobre Heráclito, Nietzsche entusias-

ticamente alega que o efésio “rejeita ser (Seiende).Ele conhece apenas o tornar-se, o fluir. Consideraa crença algo persistente como um erro e uma to-lice”, acrescentando a esse pensamento: “aquiloque se torna é algo em eterna transformação”.11

Nietzsche argumenta que a base de apoio àvisão de mundo de Heráclito foi primeiramentecultivada no paradigma helênico que dá conta doaparecimento e da alteração de formas por meiode estruturas formais. Como vimos, numa con-cepção de mundo heraclitiana, uma disputa inte-riorizada é produtiva de tudo aquilo que prospera.

Ao longo da referida palestra, Nietzschesublinha a visão de mundo de Heráclito, ao tecerhabilmente os fragmentos existentes dos textosdos filósofos pré-platônicos, encontrando quatropontos principais: 1. todas as formas existentessão eternamente “tornar-se”; 2. todo o tornar-seé igualmente justificável; 3. as formas estão emdesacordo consigo mesmas e essa tensão interiorcria uma harmonia estrutural; 4. o “fogo” nos dáa metáfora mais apropriada para entender essasrelações. Heráclito exibe melhor o paradigmagrego no fragmento D51 (que Nietzsche posi-ciona mais ou menos na metade de sua palestra):“aquilo que está em desacordo consigo mesmo(diapheromenon) concorda consigo mesmo(sympheromenon)”.12

Para perceber inteiramente a interpretaçãode Nietzsche sobre a visão de mundo heraclitia-na, as várias conotações do termo grego diapherosão importantes: na linguagem grega coloquial,diaphero pode significar literalmente induzir oucarregar (phero) contra. Portanto, no fragmentode Heráclito D51, diaphero poderia querer dizerinduzido a estar em desacordo com ou simples-mente discordar, no sentido de diferir. No casodesse fragmento, entretanto, o verbo está na voz

9 Idem, 2001, p. 55; e 1995, p. 263. Nietzsche afirma que Heráclitotambém rejeitou os “princípios científicos” e a doutrina dos números,associada ao nome de Pitágoras, assim como os estilos de vida luxuo-sos dos contemporâneos desse filósofo grego. Todas essas rejeiçõesestavam ligadas, afirma Nietzsche, como também a recusa de Herá-clito do “excitamento religioso de seu tempo”, que agora tinha come-çado a influir sobre uma facção dos seguidores de Pitágoras para reagircontra os teóricos dos números que também adotaram seu nome.Idem, 2001, p. 48; e 1995, p. 256-257.10 Esse remédio é prescrito em muitos dos primeiros trabalhos deNietzsche. Cf., por exemplo, o artigo “On the Uses and Abuses ofHistory for Life”, idem, 1983, p. 2.10.

11 Idem, 2001, p. 62-63; e 1995, p. 270-271.12 Idem, 2001, p. 66; e 1995, p. 274. Nietzsche traduz para o alemãoapenas alguns desses fragmentos e, às vezes, apenas parcialmente. Suatradução parcial de D51 segue: Indem das All auseinandergehe, kommees wieder mit sich selbst zusammen, wie die Harmonie des Bogens u. DerLeyer. Uma tradução completa para o inglês (aqui passada para o por-tuguês) é dada (sem comentários) no texto de Whitlock: “As pessoasnão entendem como aquilo que está em desacordo consigo mesmoconcorda consigo mesmo. Existe uma harmonia no arquear para trás,como nos casos do arco e da lira”.

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do meio (representado pelo omenon), o que sig-nifica que suas ações se encaixam entre asarticulações ativas e passivas do verbo. Assim, ocaminho do dia-pher-omenon significa que a en-tidade aludida está simultaneamente agindo con-tra si mesma, numa intenção interiorizada, e rece-bendo aquela ação de si mesma.

Essa cosmologia explica as formas mais bai-xas da “guerra de todos contra todos” no Estadode natureza, antes de a ordem ser imposta poruma vontade que se prova a mais forte. Nem to-das as mostras de coisas-em-desacordo-consigo-mesmas, entretanto, precisam ser abertamentehostis. Numa estrutura saudável, a forma auto-dominada promoverá a sublimação do instintoagonal – variando o engajamento formal dos par-ticipantes se tornando via a interiorização. A me-dida da saúde, então, significa que aquilo-que-está-em-desacordo-consigo-mesmo contém seupróprio imperativo moral: deve buscar eterna-mente maneiras novas e mais apropriadas de “tra-var a guerra” de seu próprio tornar-se.

No esquema heraclitiano, todos os seres lu-tam desse jeito. Enquanto tais disputas podemproduzir vários graus de definição, e até uma hi-erarquia geral entre formas emergentes, a produ-ção e a identificação destas influenciarão o enga-jamento formal global de competidores e essa in-fluência variará a estrutura global do engajamen-to. Nesse processo, a disputa torna-se mais oumenos sublime, ao passo que essas mudançaspromovem vantagens, sustentando as partes maisfortes e estabilizando a estrutura como um todo.

Um entendimento heraclitiano de como aluta é justificada mostra outra maneira de que osgregos comumente usavam o termo diaphero:para ressaltar o limite da distinção. Aqui, o diatransmite a noção de “para o outro lado” ou “deuma parte à outra”, no sentido que dia-phero sig-nifica o “passar para outro lado” ou “passar deuma parte à outra” de algo até o aparecimento. Éassim que Tucídides, por exemplo, usa o termopara introduzir o discurso fúnebre de Péricles e,ao recitá-lo, louvar o império ateniense e seuscostumes – quando Péricles afirma que a grandi-osidade ateniense é mais aparente nas formas que

o império se fez distinto (diaphero) dos Estadosmenores.13 Assim, diaphero afirma a medida dagrandiosidade como tal, dando a todos os parti-cipantes um lugar na estrutura da forma coletiva.

A própria análise de Nietzsche sobre osfragmentos diapheromenon de Heráclito sugereque esse conceito explica melhor como ummundo em disputa também pode estar em esta-do de harmonia. Naturalmente, acha extraordi-nário Heráclito ter justificado uma existência re-pleta de luta, reveses e sofrimento, ao buscar acausa de todo o tornar-se no processo de um mo-vimento diapheromenon-sympheromenon: “Esseé um dos feitos conceituais mais grandiosos: adisputa como uma realização contínua de umajustiça unificada, legítima e razoável, uma noçãoproduzida do fundamento mais profundo do sergrego”.14

O paradigma que Nietzsche aprende dessainvestigação não se pensa ser uma invenção deHeráclito; ele simplesmente oferece, de acordocom o filósofo alemão, a voz mais clara e refina-da daquilo que vem do fundamento mais profun-do do ser grego. A articulação de Heráclito nascedas indicações formais, de Homero e de Hesío-do, de e variações sobre o instinto agonal: “peloGinásio, competições musicais e vida política,Heráclito tornou-se familiarizado com o para-digma (Typische) desse polemos. A idéia da justi-ça-guerra é o primeiro pensamento especifica-mente helênico na filosofia, o que significa dizerque ele se qualifica não como universal, e simcomo nacional”.15

Nietzsche alega aqui que o instinto agonalem funcionamento nos mitos dos poetas antigos,e conceitualizado nos fragmentos diapheromenonde Heráclito, inspira uma cosmologia nacional,em vez de universal. Ao fazê-lo, coloca em evi-dência a visão de que o paradigma fundado no po-lemos é sintomático da perspectiva grega e de suarelação com o instinto antigo do autodomínioatravés da estrutura diapheromenon de todos osseres. A alegação de que essa idéia é especifica-

13 THUCYDIDES, 1991, p. ii, 37-ii, 39-ii, 40-ii e 43.14 NIETZSCHE, 2001, p. 64; e 1995, p. 272.15 Idem, 2001, p. 64; e 1995, p. 272.

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mente helênica significa, para Nietzsche, que elaantecede Platão e, em alguns pontos, articula oparadigma que se tornará o foco da inimizadedeste filósofo pelo estilo grego. Nas páginas re-manescentes desse artigo, portanto, tentareimostrar como Platão luta para eliminar esse pa-radigma helênico.A TRANSVALORIZAÇÃO ANTI-HELÊNICA DE PLATÃO: DOMÍNIO DA FORMA EXTERNA

De fato, Nietzsche não está sozinho ao ar-gumentar que Platão busca fundamentalmenteretrabalhar o paradigma grego no qual formasemergem mediante a variação e a disputa. Hans-Georg Gadamer, por exemplo, reconheceu que“Platão primeiramente ergueu a contracons-trução para o fluxo universal (heraclitiano) parasublinhar seu pensamento do eidos”.16 De acordocom a alegação de Gadamer, a noção de Platão deuma forma (eidos) a priori, absoluta, imutável efundacional é primeiramente concebida (comotambém alegou Nietzsche) antieticamente, con-tra a visão mais antiga, que sustentava que as for-mas desenvolvem-se eternamente através de es-tados agitados de variação. Gadamer encontratais objeções de Platão expressas acentuadamenteem O Sofista (242e) e em O Banquete (187a) e,para um apoio adicional a essa leitura, examinareitrês outras citações: uma do Eutifron e as outrasduas dos livros I e II de República.

Em Eutifron, Platão distingue o filósofo dopoeta, quando Sócrates alega (contra as crençastradicionais) que os deuses não podem estar “emdesacordo entre si” (diapheromenon).17 A posi-ção aqui é que os poetas incorretamente repre-sentam os deuses e que sua cosmologia tradicio-nal oferece pouca orientação moral. No livro II

de República, ademais, Sócrates mais tarde corri-ge esses erros com um retrato dos deuses “comoeles realmente são”: bons, estáveis, não responsá-veis pelo mal, seguros em todos os sentidos e“menos propensos do que qualquer coisa a des-viarem-se de sua própria forma (eidos)”.18

No livro I de República, Platão faz uma dis-tinção similar entre as discussões do filósofo, Só-crates, e o sofista, Trasímaco, quando o primeiroalega que a vida injusta não pode ser a melhor,porque “qualquer coisa em desacordo consigomesmo (diapheresthai) deve se tornar seu próprioinimigo, bem como de todos os que são justos”.19

Assim, a estrutura diapheromenon paradigmáticaapoiando o politeísmo nos retratos do mundogrego dos deuses é estendida por Platão, em Re-pública, para a representação sobre a vida políticaateniense de Trasímaco, que pretendia articular avisão geral de todos os sofistas e polímatas.

Platão parece sugerir, então, que as váriasvisões sofísticas, poéticas e materialistas do mun-do grego mostram-se não apenas imorais, comotambém incorretas, na medida em que são co-mensuráveis com a estrutura diapheromenon-sympheromenon descrita em Heráclito D51. Pla-tão veio a adotar essa posição primeiro ao reco-nhecer que todas aquelas visões de mundo ex-pressas por seus predecessores, aparentementeem contradição consigo mesmos, uniram-se, jáque simplesmente variaram os instintos agonaisdo mundo grego de maneiras compatíveis com oparadigma mais geral. Concluiu, então, que oagon fundacional desse modo grego era moral-mente repreensível, pois parecia apoiar a visãoque acentuava, e até facilitava, a volatilidade domundo físico, a aleatoriedade e a falibilidade.

Nessa leitura, o platonismo pretendia subs-tituir um eidos externo, fundacional e invariávelpor uma estrutura incerta de formas variáveis or-ganizando-se de sua própria concentração interi-orizada de energia. Na imagem de um eidos ex-terno e fundacional, encontramos a semente domonoteísmo no Ocidente e, de acordo com ascríticas abjetas de Nietzsche, a maior ameaça aodesenvolvimento de formas mais saudáveis e suasestruturas.20

Com poucas exceções, a história inicial doOcidente, e sua guinada subseqüente para amodernidade, tem se direcionado, na visão de

16 GADAMER, 2001, p. 38-39.17 PLATÃO, 1990, p. 7bs.18 Idem, 1985, p. 380d.

19 Ibid., p. 352a.20 NIETZSCHE, 1974, aforisma 143.

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Nietzsche, pelo gosto de Platão pelo domínio deuma forma duradoura e externa. Ao tentar siste-matizar uma construção moral executável, queorganizasse relações, definindo, classificando etrazendo à ordem diferenças eternas pré-agonais,Platão desafiou suposições culturais de sua época,retrabalhando o chamado paradigma helênico, demodo a estabelecer a supremacia de seu próprioesquema.21

A FORÇA DE NIETZSCHE NO PENSAMENTO DO PRESENTE

A tarefa de reconhecer o verdadeiro caráterdas formas e de suas variações jorra luz sob inú-meras questões que, sob certos aspectos, nos le-vam a retomar o começo do pensamento da tra-dição ocidental. O que significaria, poderíamosperguntar, ser humano em um paradigma de for-mas variantes? Como o viver sob tal visão demundo influenciaria o modo que as pessoas nor-malmente se vêem?

De fato, já estamos experimentando essamudança enfaticamente. Nietzsche alega que oser humano é, primordialmente, um ser autocria-dor, autotransformador e autodominador e que amodernidade freqüentemente o aliena de suas ca-pacidades naturais. Esse erro e sua longa história

vêm diminuindo o senso de ação da humanidade,enquanto corrompe seus instintos pelo poder, aoponto em que a compreensão dela sobre o valorde suas ações, de sua necessidade de agir criativae grandiosamente e de sua responsabilidade porfazê-lo têm vacilado.

Resumindo, ao falhar, em momentos chavede nossa história, na lembrança de que somos nósque fazemos distinções de modo a tornar nossasvidas significativas, e que somos capazes de fazê-las ao dominar nossos impulsos pelo poder coma interiorização da energia intelectual e cultural,também esquecemos nossos papéis em criaraqueles padrões e objetivos que dão às nossas vi-das significado real. Assim, perdemos o podernatural de moldá-los às nossas necessidades. Talanálise, entretanto, não precisa nos levar ao pessi-mismo. A verdadeira força trazida por Nietzsche,com sua palestra sobre Heráclito é a esperança deque espíritos livres do futuro possam recuperar osentido que a humanidade tem de quem é ela e dasua capacidade de se tornar novamente senhorade si. Por essas razões, uma grande quantidade deenergia intelectual vem sendo direcionada no úl-timo século (e corretamente) a problemas que di-zem respeito a alienação, identidade, significado epropósito – os mesmos que Nietzsche tinhaidentificado como os que a modernidade encara-va no século XIX e que tentou resolver, ao retra-balhar o pensamento dos gregos antigos.

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21 Enquanto Keith Ansell-Pearson reconheceu, nas primeiras obras deNietzsche, uma afinidade por uma “concepção clássica de Estado”, amaior diferença, de acordo com aquele autor, entre a concepção polí-tica de Nietzsche e o modelo clássico descrito por Platão é a da ação.“O problema de Platão para Nietzsche é que ele falhou em reconhecera base artística de sua própria filosofia e a apresentou como verdadeeterna e objetiva” (ANSELL-PEARSON, 1994, p. 76).

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Dados do autor

Ph.D Lecturer, Dept. of Philosophy Universityof North Texas (UNT)

Recebimento: 23/jul./04Aprovado: 2/dez./04

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A Contemporaneidade da Matriz: sobre alguns temas políticos nos filmes da trilogia MatrixCONTEMPORANEITY OF THE MATRIX: ON SOME POLITICAL THEMES IN THE MATRIX TRILOGY MOVIES

Resumo Este trabalho procura fazer uma leitura política dos filmes da trilogiaMatrix. Para tanto, mobiliza o repertório teórico-analítico da crítica dialética,especialmente aquele desenvolvido pelo crítico americano Fredric Jameson.Acredito que tal abordagem crítica possibilite um entendimento da obra comoobjeto de cognição da realidade sociohistórica da qual emerge. E buscoexplicações históricas para a estrutura formal da obra estudada, além de focalizaralguns fenômenos históricos codificados em forma alegórica nos filmes objetodessa análise. Entre eles, estão: o sentimento de inevitabilidade que permeia aidéia de progresso, o fenômeno da perda da realidade característico do discurso dopós-modernismo, o enfraquecimento da consciência de classe e a ausência deprojetos coletivos que proponham uma sociedade diferente.Palavras-chave MATRIX – CRÍTICA DIALÉTICA – JAMESON.

Abstract This work is an attempt to read politically the films from the Matrixtrilogy. In order to do this, we will use the theoretical-analytical repertoire of thedialectic critique, especially those created by the American critic FredricJameson. We believe that this kind of critical approach can offer a betterunderstanding of the work of art studied, opening the possibility of transformingthis work into an object of cognition of a given social-historical reality. We triedto find historical explanations to explain the formal structure of these films. Wefocused on some historical phenomena, which are, as we believe, codified inallegorical form in the movies studied. Among them, there are: a feeling ofinevitability, which is a characteristic of the post-modern discourse; theweakening of the idea of class-consciousness and the absence of collectiveprojects that propose a different society.Keywords MATRIX – DIALECTIC CRITIQUE – JAMESON.

MARCELO CIZAURREGUIRAU

Universidade deSão Paulo (USP)[email protected]

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INTRODUÇÃO

enorme sucesso comercial da trilogia Matrix não énovidade no mundo das superproduções hollywoo-dianas. Mas Matrix difere da maioria dessas super-produções em vários aspectos, sendo o mais rele-vante deles um certo estranhamento e inquietudeque o universo ficcional apresentado na tela desper-tou nos espectadores. Dessa inquietude surge a ne-cessidade de reflexão, o que pode explicar, em parte,

a grande quantidade de material escrito sobre esses filmes. É claro que asede insaciável de lucros da indústria cultural também contribui na pro-dução de mais materiais sobre a trilogia.

Muito do que foi escrito sobre Matrix são tentativas de encontrarexplicações filosóficas, religiosas ou científicas para o universo ficcionalcriado nos filmes. Alguns artigos procuram refletir sobre as reais possi-bilidades de todos nós fazermos parte de uma Matrix. Toda essa agitaçãoteórica ao redor dos filmes demonstra que, mesmo de maneira distorcida,o público percebe que neles se problematiza uma consideração sobre anossa própria realidade social.

Embora em níveis de cognição diferentes, os espectadores da trilo-gia “sentem” que aquilo colocado na tela também diz respeito ao coti-diano deles. A dificuldade em aproximar a Matrix ficcional do chão socialdo qual ela se originou é um indício da complexidade de criar diagnós-ticos sobre a realidade, característica de nosso mundo globalizado. A pró-pria trilogia, com suas falhas e incoerências, é sintoma disso.

Quando os elementos do nosso cotidiano social já não se mostramsuficientes para explicar o funcionamento do mundo, a cognição da rea-lidade torna-se cada vez mais difícil. A diversidade de explicações sobreMatrix, do budismo à engenharia genética, é um sinal dessa dificuldadeem encontrar elementos que expliquem o mundo atual. Matrix, com suavariada gama de referências culturais (kung-fu, budismo, mitologia grega,cristianismo etc.), é exemplo disso.

Encontrar um método de interpretação capaz de ler a realidade so-cial de um dado momento histórico impressa na obra de arte é, hoje emdia, tarefa das mais relevantes aos estudos culturais. Para ser eficiente,esse método deve transformar a obra estudada em objeto de cognição darealidade, de modo a possibilitar a visualização e a conceituação de certosfenômenos, que, presentes de maneira difusa no cotidiano social, apre-sentam enorme dificuldade de apreensão para a consciência individual,mas encontram formas pelas quais se tornam visíveis em certos objetosartísticos.

Neste trabalho, pretendo analisar alguns aspectos da trilogia Ma-trix, utilizando a abordagem teórica elaborada por Fredric Jameson.Creio que ela oferece um instrumento de análise capaz de ler o conteúdosociopolítico com a qual todo objeto artístico está invariavelmente con-

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taminado. Dada a quantidade de possibilidadesinterpretativas oferecidas pela trilogia, concen-tro-me em dois aspectos que julgo dignos deatenção: a maneira como os filmes dão forma aum sentimento de inevitabilidade, que permeia anossa vida social e dificulta a emergência de pro-jetos alternativos ao atual sistema; o esboço deuma realidade “desconectada” desse sistema ecomo a luta para “libertar-se” é organizada (dico-tomia, presente nos filmes, entre agência coletivae individual).O QUE É A MATRIX?

Quem procurar na trilogia Matrix uma res-posta precisa para tal pergunta encontrará apenasindefinição. Não é de espantar o fato de que mui-tos dos artigos já escritos sobre esses três filmestentam buscar tal resposta. A indefinição do queé a Matrix está contida na fala de Morpheus: “AMatrix está em toda parte. Ela está toda ao nossoredor. Você pode senti-la quando você vai ao tra-balho, quando você vai a igreja, quando você pagaos seus impostos. Ela é o mundo que tem sidocolocado sobre os seus olhos para cegá-lo da ver-dade (...) de que você é um escravo”.

Sabemos ainda, pela colocação de Mor-pheus, que a Matrix é um sistema criado com oobjetivo de controlar os humanos e transformá-los em baterias humanas: “A Matrix é um mundode sonho gerado por computador, construídopara nos manter sob controle, a fim de transfor-mar o ser humano nisso [nesse momento, o per-sonagem Morpheus mostra uma pilha]”.

Partindo do pressuposto teórico de que ne-nhuma obra de arte pode se desligar do seu con-texto sociohistórico, podemos afirmar que a Ma-trix descrita nos filmes dá forma, mesmo que dis-torcida e imprecisamente, a algo presente na so-ciedade contemporânea. O filme Matrix pode servisto como uma alegoria da exploração do traba-lhador pelo capital. Nele, seres humanos têm suasenergias sugadas, enquanto, inconscientes paraessa verdade, vivem uma vida ilusória gerada paramantê-los sob controle.

A Matrix pode ser vista como uma repre-sentação do mundo do espetáculo. Retomando adefinição de Morpheus, de que ela é um mundo

que “tem sido colocado sobre os seus olhos paracegá-lo da verdade (...) de que você é um escra-vo”, é plausível compará-la com o espetáculo,que, segundo Guy Debord, é a “conservação dainconsciência na mudança prática das condiçõesde existência”.1 De acordo com esse autor, “Oespetáculo na sociedade corresponde à fabricaçãoconcreta da alienação”.2

É constante, no filme, a presença de telas detelevisão. Em alguns momentos, vemos a mesmacena reproduzida em várias telas (por exemplo,na do interrogatório de Neo pelo agente Smith,no primeiro filme). Quando Neo encontra o Ar-quiteto, vemos várias cenas vividas pelo herói atéaquele momento da trilogia reproduzidas nas te-las. E também a imagem de Neo em telas dentrode telas, num instante de grande suprematismovisual.

O primeiro contato de Neo (e do especta-dor) com o deserto do real se dá por meio daimagem de um televisor. Nesses momentos, a ir-realidade é elevada à décima potência: vemosimagens da Matrix (irreais) por meio de telas detelevisão, na tela do cinema ou da televisão (es-pectador). Todas essas camadas de irrealidade co-locam o espectador numa posição de distancia-mento da “verdade” no filme, o que amplia a des-confiança a respeito do que é verdade ou mentirano universo ficcional construído em Matrix (é re-levante observar que o primeiro encontro deNeo com o deserto do real aconteceu num pro-grama que funciona semelhante a Matrix).

Essa irrealidade exacerbada deve ser anali-sada do ponto de vista da crise de figurabilidadedo mundo pós-moderno. Com a quase elimina-ção das fronteiras geográficas (os avanços nastecnologias de comunicação diminuíram as dis-tâncias) pela expansão do capital, a realidade jánão pode ser explicada apenas com a observaçãodos elementos contidos na paisagem local. A ver-dade do mundo é, assim, dispersa nas ondas deinformação que circulam pelo globo diariamente.

1 DEBORD, 1997, p. 21. 2 Ibid., p. 24.

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Nesse contexto, o potencial de narrativização3 danossa sociedade é constantemente diminuído.

Essa crise da figuração afeta também as ca-tegorias do espaço. No mundo globalizado, o es-paço já não contém as explicações de si mesmo.Ele é expandido até o nível da abstração. Repre-sentar essas novas categorias do espaço é um de-safio com o qual os artistas do nosso tempo têmde se confrontar (mesmo que inconscientemen-te), quando desejam, de algum modo, recriar fic-cionalmente a realidade. Nos filmes aqui estuda-dos, esse novo espaço abstrato encontra forma naidéia da Matrix.

Hoje em dia presenciamos um novo está-gio do capitalismo, em que a dessubstancializaçãodo capital atinge níveis de abstração nunca vistosantes. Essa alteração na base econômica desenca-deia uma série de mudanças na existência socialcotidiana. O capital, mola propulsora das relaçõessociais nas sociedades capitalistas, surge agoracomo uma força invisível, cuja presença permeiaa vida de todos, mas é experimentada apenascomo um vago sentimento de que há algo con-trolando e determinando a nossa vida. Em Ma-trix, Morpheus expressa essa vaga sensação quan-do tenta explicar a Neo a razão do encontro de-les: “Você está aqui porque você sabe de algo. Oque você sabe você não pode explicar, mas vocêsente isso. Você tem sentido isso a sua vida intei-ra: tem algo errado com o mundo. Você não sabeo que é isso, mas isso está lá, como uma farpa nasua mente, deixando você louco. É esse senti-mento que trouxe você até mim”.

Para Slavoj Zizek, “a verdade definitiva douniverso desespiritualizado e utilitarista do capi-talismo é a desmaterialização da ‘vida real’ em si,que se converte num espetáculo espectral”.4Qualquer semelhança entre essa descrição danossa realidade e a Matrix do filme não é meracoincidência. Zizek antecipa um futuro seme-lhante ao cenário pintado na idéia da Matrix:

Ao contrário de Marx, que acreditava na noção defetiche como um objeto real cuja presença estávelofusca sua mediação social, seremos forçados a afir-mar que o fetichismo atinge seu apogeu precisa-mente quando o fetiche em si é ‘desmaterializado’,transformado numa fluida entidade virtual ‘imate-rial’; o fetichismo do dinheiro há de culminar comsua passagem à forma eletrônica, quando desapare-cerem os últimos vestígios de sua materialidade –somente nesse estágio ele será capaz de assumir aforma de uma presença espectral indestrutível.5

Será essa uma previsão pessimista?A Matrix é um mundo todo que não é na-

da. Está em todo lugar (“A Matrix está em todaparte”) e em lugar nenhum. Recusa qualquer de-finição – segundo Morpheus: “infelizmente, nin-guém pode ser informado do que é a Matrix”. Aslinhas de códigos que escorrem em telas verdes amostram, mas ela continua invisível para nós. Opersonagem Cypher explica por que só é possívelvê-la em códigos: “A quantidade de informação émuito grande para decodificar a Matrix”.

Os espectadores não conseguem ver o queacontece dentro da Matrix olhando para essas te-las verdes, mas alguns personagens podem fazê-lo. Aqui, o filme falha em fornecer uma explica-ção plausível para justificar a capacidade dessespersonagens de ver imagens por meio dos có-digos. Quando perguntado sobre como conse-guem enxergar além dos códigos, Cypher diz queeles já se acostumaram a estes, que eles nem mes-mo os vêem mais. A explicação não é suficientepara convencer-nos de que seres humanos comonós podem ver imagens naquelas linhas de có-digos que deslizam sobre as telas verdes.

Essa “falha” do filme deve ser analisadacomo um “momento de verdade”, em que os li-mites da figuração são expostos. Ela aponta, no-vamente, para a crise de figuração que verifica-mos em nosso presente histórico. O espaço-abs-trato figurado pela Matrix não se dá ao olhar co-mum, o que explica a maneira como o filme nãopermite que nós, espectadores, vejamos por meiodas telas verdes. No entanto, os personagens

3 Conceito que designa a capacidade de uma sociedade de contar his-tórias sobre si mesma, bastante utilizado pela crítica materialista, comopodemos ver nas obras de Walter Benjamin e de Fredric Jameson, porexemplo.4 ZIZEK, 2003, p. 28. 5 Ibid., p. 52.

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conseguem enxergá-la nesses códigos, fato quenão é devidamente explicado justamente porquea figuração atinge, nesse instante, o seu limite:como conceber esse olhar capaz de ver o espaço-abstrato por intermédio dos códigos?

A figuração desse olhar-decodificador doespaço-abstrato não se dá por impossibilidadeshistóricas, exigindo, assim, do filme uma explica-ção simples e imprecisa sobre como “nós nosacostumamos aos códigos”. Resumindo: essa ex-plicação simples e imprecisa é colocada, no filme,como alternativa à impossibilidade formal de fi-gurar algo que não está dado na sociedade – umolhar-decodificador apto a ver o espaço-abstrato.A condição de possibilidade para a explicaçãodada no filme é, portanto, a inexistência desseolhar na nossa realidade social.

O dilema presente na concepção da figura-ção da Matrix pode ser posto dessa maneira: épreciso encontrar um modo de os personagensverem o que ocorre dentro dela. Se isso fosse fei-to com simples telas de computador que mos-trassem a Matrix como o espectador a vê, a figu-ração de um espaço-abstrato se revelaria compro-metida, pois as imagens estariam lá, postas facil-mente ao olhar, conferindo certa concretude,ainda que questionável, a esse espaço. A soluçãoda Matrix vista por meio dos seus códigos solu-ciona esse problema, mas cria um novo: como fa-zer os personagens enxergarem mediante essescódigos? Chegamos aqui ao limite da figuraçãodo espaço-abstrato no filme. A explicação do“hábito” entra nesse ponto para tentar preencher,de algum jeito, esse vazio na figuração (o que vaina contramão das conseqüências do hábito).

É possível ver a Matrix como uma alegoriado mercado. Este, como ela, também está emtodo lugar, embora a sua presença paire comouma fantasmagoria. Como a Matrix, o mercadooferece uma ilusão de liberdade, de livre iniciativae livre arbítrio, quando, na verdade,

Em seu uso geral, o mercado, como conceito, rara-mente tem qualquer relação com a escolha ou a li-berdade, uma vez que estas nos são todas determi-nadas de antemão, quer falemos de novos modelosde automóveis, brinquedos ou programas de televi-

são: escolhemos entre estes, sem dúvida, mas difi-cilmente se poderia dizer que temos alguma in-fluência na escolha efetiva de qualquer deles.6

A questão das escolhas é de fundamentalimportância para a análise dos filmes, mas serátratada mais adiante.

O mercado, como a Matrix do filme, ofertauma ilusão de liberdade cuja verdadeira intençãoé controlar e domesticar as forças produtivas dasociedade, a fim de explorá-las. Ele se apresentacomo uma força estruturante, cuja função é ga-rantir a livre circulação de mercadorias, possibili-tando um crescimento e um desenvolvimentoque, sem a sua mediação, poderiam ser ameaça-dos pela inconstância do homem: “A ideologia domercado assegura-nos que os seres humanos es-tragam tudo quando tentam controlar seu desti-no (‘o socialismo é impossível’), e que é uma fe-licidade possuirmos um mecanismo interpessoal– o mercado – capaz de substituir a arrogância eo planejamento humanos, e de substituir porcompleto decisões humanas”.7

Essa “ideologia do mercado” é figurada, emMatrix, na dicotomia entre a infalibilidade dasmáquinas e a ineficiência humana. QuandoCypher falha em sua missão de liquidar com ostripulantes do Nabucodonosor, o agente Smithcomenta: “nunca mande um humano para fazerum trabalho de máquina”.

Num momento crucial da trilogia, Neoconfronta o Arquiteto, criador da Matrix. Esteconta a Neo que as imperfeições na Matrix sãoconseqüências das incorreções inerentes à natu-reza humana. Mais ainda, para superar a rejeiçãodos humanos ao programa, criou-se um “progra-ma intuitivo” (a Oráculo). Ele identificou a solu-ção para 99% dos casos: oferecer uma possibili-dade de escolha, mesmo que apenas experimen-tada num nível próximo à inconsciência. Esse“defeito” da natureza humana (a necessidade depoder escolher) garantiria a aceitação do progra-ma da Matrix e a conseqüente submissão total dohomem às máquinas. E é precisamente essa “fa-

6 JAMESON, 1996, p. 284. 7 Idem, p. 291.

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lha” do comportamento humano que faz comque Neo opte pelo resgate de Trinity, em vez dasalvação de Zion.

Podemos observar, em toda a trilogia, o de-senrolar de um intrincado jogo entre escolha e fi-nalidade (choice e purpose, respectivamente, nofilme). A escolha faz parte do reino da liberdade,do indivíduo e de sua possibilidade de agência, aopasso que a finalidade pertence ao rígido universodas determinações. Feitas essas observações, po-demos afirmar que escolha e finalidade são con-ceitos diametralmente opostos.

Aqui jaz um dos “momentos de verdade”de Matrix. Nos filmes, esses dois conceitos apa-recem inter-relacionados e, por vezes, parecem secomplementar. De tal união nasce um paradoxo:a escolha predeterminada. A trilogia começa comuma escolha: Neo precisa decidir entre as pílulasvermelha e azul – uma falsa escolha, pois, se op-tasse pela pílula azul, não haveria filme e a profe-cia não se realizaria.

Neo é o personagem que mais acredita napossibilidade de escolha:

Morpheus: Você acredita em destino, Neo?Neo: Não.Morpheus: Por que não?Neo: Eu não gosto da idéia de que eu não controloa minha vida.

Mesmo diante da profecia do Oráculo, deque morreria caso tentasse resgatar Morpheus,Neo não hesita em agir: “Eu acredito em algo. Euacredito que posso trazê-lo de volta”. Ele o faz,mas a profecia se cumpre: Neo morre. Logo emseguida, outra profecia se torna realidade: o Orá-culo havia dito que Neo não era o escolhido, masque poderia sê-lo em outra vida. Assim se dá nofilme, quando Neo ressuscita.

O paradoxo da escolha predeterminadamanifesta-se mais explicitamente no persona-gem Morpheus. Durante toda a trilogia, ele é opersonagem que mais cegamente acredita naprofecia. Já que estava tão irremediavelmenteconvencido de que Neo era o escolhido, por quelhe oferece a possibilidade de recusar-se a ingres-sar na batalha contra a Matrix, e, assim, não dei-

xar que a profecia se cumpra? Aqui vemos o pa-radoxo da escolha já feita expressar-se claramen-te. A escolha oferecida por Morpheus não existe:não há outra opção para Neo senão tomar a pí-lula vermelha.

Essa contradição interna do personagemMorpheus volta a aparecer quando ele, diante dasafirmações de Merovigian, de que tudo é deter-minado pelas leis da causalidade (causality), as re-bate, defendendo a possibilidade de escolha:“Merovigian: existe apenas uma constante uni-versal: causalidade (...) ação, reação, causa e efeito/ Morpheus: Tudo começa com uma escolha”.

Que escolha tem alguém que exerce um pa-pel na encenação de uma profecia? Como a pró-pria Oráculo salienta, Morpheus acredita tão obs-tinadamente na profecia, que nem ela pode con-vencê-lo do contrário. Em Matrix Reloaded, elereafirma a sua crença, discursando para o grupoque ajudará Neo a chegar à Fonte: “'Não existemacidentes. Nós não chegamos aqui por acaso. Eunão acredito em acaso. Eu não vejo coincidências.Eu vejo finalidade. Eu acredito que é nosso des-tino estar aqui hoje. Esse é o nosso destino”.

Outros personagens defendem a idéia da fi-nalidade como único motor dos acontecimentos.É o caso do agente Smith, que, libertado por Neono primeiro episódio da trilogia, converte-se emum vírus que ameaça a própria existência da Ma-trix. Ele atribui à finalidade a conexão estabeleci-da entre ele e Neo:

O que importa é que tudo que acontece, acontecepor uma razão... Nós não estamos aqui porque so-mos livres. Nós estamos aqui porque não somos li-vres. Não há como escapar da razão, nem como ne-gar a finalidade, porque, como nós dois sabemos,sem finalidade não existiríamos. É a finalidade quenos criou. A finalidade nos conecta. A finalidadeque nos impulsiona, que nos guia, que nos dirige. Éa finalidade que nos define. É ela que nos liga.

Smith reconhece o caráter repressor doconceito de finalidade: “Nós não estamos aquiporque somos livres. Nós estamos aqui porquenão somos livres”. Essa limitação da liberdade in-dividual representada pela idéia de finalidade é

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novamente problematizada nas falas do persona-gem Keymaker (o Chaveiro). Ele acredita na fi-nalidade das ações como determinação: “Nós sófazemos o que estamos destinados a fazer” é asua resposta a um agente prestes a executá-lo.Quando Niobe pergunta como sabe tanto sobrea Fonte, o Keymaker responde: “Eu sei porquedevo saber. Essa é a minha finalidade. Essa é a ra-zão de eu estar aqui, a mesma razão de estarmostodos aqui” (Matrix Reloaded).

Logo em seguida, adverte o grupo que ata-cará com Neo de que “Se um falhar, todos fa-lham”. Se todos estão lá para exercer seus papéisna concretização da profecia, isso significa que osucesso da missão já está garantido antes de seuinício, o que exclui qualquer possibilidade de er-ro. Novamente, o paradoxo da escolha predeter-minada se mostra presente. Mesmo que algumimprevisto aconteça (e de fato acontece), ele nãoimpedirá a conclusão da missão, pois o erro já es-tava previsto nessa determinação maior, chama-da, no filme, de profecia. Não há, portanto, ne-nhuma possibilidade de escolha ou de alteraçãodo resultado final dessa missão.

A crença cega na finalidade funciona, nosfilmes, como uma explicação geral para fatos cujoesclarecimento exporia uma série de problemasda figuração. Os poderes de Neo, por exemplo,são vistos como parte da realização da profecia,dispensando, assim, qualquer reflexão lógica so-bre sua origem e suas condições de existência.Como podemos constatar na fala do Conselhei-ro: “Eu não tenho absolutamente nenhuma idéiade como você é capaz de fazer algumas coisas quevocê faz, mas eu acredito que existe uma razãopara isso também”.

As implicações políticas dessa crença obsti-nada na profecia são das mais relevantes para umaanálise que vise a estabelecer relações entre a obrae o seu contexto sociohistórico.

Vivemos num tempo de escassez de proje-tos políticos coletivos que se coloquem como al-ternativas ao sistema vigente. Presenciamos, hojeem dia, o domínio absoluto e praticamente in-contestado do capitalismo financeiro mundial,cuja conseqüência ideológica é o sentimento ge-

neralizado de que atingimos o último estágio dodesenvolvimento “natural” da humanidade. O ca-pitalismo representaria, nesse sentido, o ápice dahistória humana, em que o modo de produçãocoincidiria, segundo tal visão, com as disposições“naturais” inerentes ao homem. Um índice dessesentimento de inevitabilidade predominante emnosso tempo pode ser visto, em Matrix, no fatode que, em nenhum momento da trilogia, se co-gita a possibilidade de destruir as máquinas porcompleto. Na verdade, ocorre o oposto: toda aluta travada ao longo dos filmes culmina com um“acordo” de paz com o inimigo.

Esse vazio de projetos coletivos é denun-ciado por Zizek, quando ele lamenta “o triste fatode nós, nos países do Primeiro Mundo, acharmoscada vez mais difícil até mesmo imaginarmosuma causa pública ou universal pela qualestivéssemos prontos para sacrificar a vida”.8

Um genuíno projeto de resistência não en-contra figuração, nem nesse nem em muitos ou-tros objetos artísticos, pois a sua concepção nãoestá dada na sociedade. O que resta é uma “poé-tica da resistência”, manifesta de diferentes for-mas em obras de arte de todo tipo. Da políticadas identidades dos anos 1960 para cá, a frag-mentação da “luta principal” em diversas micro-políticas tem resultado num crescente apagamen-to da visão de um objetivo maior, concebido co-letivamente e abrangendo a maior parte da so-ciedade. Para Zizek, a resistência constitui, nosdias de hoje, um discurso hegemônico, que pre-judica o surgimento de um projeto alternativogenuíno, coletivamente elaborado:

A atitude hegemônica de hoje é a da “resistência” –toda a poética das multidões marginais dispersas, assexuais, étnicas, e de estilos (gays, doentes mentais,prisioneiros...) “resistem” a um misterioso Poder(em maiúscula) central. Todos “resistem” – desdeos gays e lésbicas até os survivalists da direita – en-tão, por que não inferir a conclusão lógica de queesse discurso da “resistência” é a norma hoje e,como tal, o principal obstáculo à emergência do

8 ZIZEK, 2003, p. 56.

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discurso que realmente colocaria em questão as re-lações dominantes.9

Em Matrix, essa “poética da resistência” fi-gura-se na dicotomia entre o universo humano eo mundo das máquinas. A resistência é organiza-da contra uma ameaça comum: o domínio dasmáquinas. A consciência de classe nasce da loca-lização e do reconhecimento da força que ameaçaa sobrevivência do grupo. Mesmo a consciênciade classe do grupo hegemônico está submetida aessa regra: a classe dominante tem sua coesão degrupo reforçada, na medida em que sua classeopositora amplia a sua força.

Para Fredric Jameson, “em uma vida socialfragmentada – ou seja, essencialmente em todasas sociedades de classes – o impulso político daluta de todos os grupos entre si nunca pode serimediatamente universal, mas deve sempre sernecessariamente direcionado ao inimigo da clas-se”.10 Seguindo essa premissa, podemos dizer queem momentos históricos em que o Outro (o ini-migo da classe) está oculto ou não pode ser to-talmente identificado, a consciência de classe éreduzida. É o que acontece nos nossos dias, como atual estágio de desenvolvimento do capital fi-nanceiro, em que o Poder central que comandanossas vidas é uma força invisível e incognoscível.

O desafio atualmente enfrentado pelaconsciência de classe em identificar um inimigocomum é problematizado em Matrix. Inconsci-entemente, ele está presente nos filmes, na ma-neira como a resistência age e na figuração do“grande inimigo”. Um indício desse fato é a exis-tência de dois inimigos distintos (Smith, inimigode Neo e das máquinas) e as próprias máquinas.Se o Outro figurado no filme fossem asmáquinas, o que Smith seria? O duelo final entreNeo e Smith coloca este último como o inimigocentral. E as máquinas? São elas que escravizamos humanos; no entanto, vemos ao final uma ali-ança entre Neo e as máquinas para combater uminimigo comum (Smith).

Duas “falhas” chamam a atenção na figura-ção do inimigo: 1. o filme nunca explica qual é areal ameaça que Smith representa para os huma-nos; 2. isso explicaria o fato de as máquinas (seresguiados pelo raciocínio lógico, e não por valoreséticos) terem cumprido a sua promessa de nãodestruir Zion, mesmo depois de resolvido o pro-blema Smith. Mais uma vez, essas “falhas” na fi-guração indicam uma dificuldade histórica de dis-cernir o Outro contra o qual a consciência declasse possa emergir.

A resistência, em Matrix, oscila entre aagência coletiva e a individual. Neo, o escolhido,carrega toda a responsabilidade pela salvação domundo humano, como Cypher observa: “Queresponsabilidade! Você está aqui para salvar omundo”. Neo encarna sozinho toda a possibili-dade de agência humana contra as máquinas – se-gundo a Oráculo, “Se você não pode encontrar aresposta, então eu temo que talvez não haja ne-nhum amanhã para nenhum de nós” e “essa noi-te, o futuro dos dois mundos estará nas suasmãos, ou nas dele [Smith]”.

Apesar de ser o escolhido e, portanto, oúnico responsável pela sobrevivência da espécie,Neo é, por diversas vezes, salvo por Trinity. Noprimeiro filme, ela o salva de ser morto por umagente e ainda o ressuscita com sua declaração deamor. No segundo, Trinity o resgata da estaçãode trem, de onde ele nunca poderia escapar so-zinho. O problema da “consciência de classe” fi-gurada em Matrix é ela ser fortemente apoiadanas necessidades e nos desejos individuais dospersonagens.

Uma trama de relações pessoais garante acoesão do grupo. Neo resgata Morpheus maispor amizade do que pela importância desse“companheiro” para o grupo. Trinity resgata oseu amado Neo, e não um membro importanteda resistência. Niobe salva o seu Morpheus, e nãoo grande líder do grupo. Zee luta mais pelo seuLink do que pela salvação de Zion etc. Essa teiafunciona como elemento de coesão da resistên-cia. A sobrevivência dos humanos é citada, algu-mas vezes, como objetivo último da união dogrupo. Porém, o que predomina são as ligações

9 Ibid., p. 85.10 JAMESON, 1992, p. 300.

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sentimentais entre os seus integrantes. Isso é ex-plicitado na escolha de Neo ao chegar à Fonte:entre salvar Zion e a humanidade ou salvar Trini-ty, ele prefere ficar com Trinity.

Pode-se propor uma objeção a essa leitura,afirmando que essa trama de relações pessoaisserve apenas aos interesses comerciais do filme,assim como as inúmeras cenas de ação e de luta.Realmente, o modelo dramático hollywoodianopor excelência privilegia o drama pessoal. Mas,em Matrix, o drama pessoal ultrapassa as frontei-ras do privado, com claras repercussões na esferado público. Isso é explicitado na já mencionadacena da escolha de Neo por Trinity, seu amor, enão por Zion.

Feita essa observação, chegamos à con-clusão de que as ligações sentimentais que pro-porcionam a coesão do grupo poderiam ser lidascomo um sintoma do enfraquecimento da cons-ciência de classe. A falta de objetivos comunspara mobilizar grande parte da sociedade em tor-no de um projeto coletivo de ação e a dificuldadehistórica de identificar um Outro que viabilize ofortalecimento da consciência de classe são ascondições de possibilidade que dão sustentação aessa leitura.

As relações pessoais que, em Matrix, man-têm o grupo unido e motivam suas ações tornamvisível a impossibilidade histórica de dar figurabi-lidade a um projeto verdadeiramente coletivo. Senão existem razões claras para justificar o sacrifí-cio por uma “causa”, cada um acaba se sacrifican-do pelas suas próprias razões (o amor, no caso deNeo e Trinity e de Zee e Link, e a amizade, entreNeo e Morpheus, por exemplo). O comandanteLock sabe ser “difícil para qualquer homem arris-car a sua vida, especialmente se ele não entende arazão”(Matrix Reloaded).

CONCLUSÃO

Este trabalho foi uma tentativa de ler poli-ticamente as “falhas” na figuração contida na tri-logia Matrix. Elas expõem os limites da imagina-ção histórica de uma sociedade e, como tais, ofe-recem ao crítico a oportunidade de visualizá-losmais claramente do que a simples observação darealidade social permitiria. Das “falhas” analisa-das, temos:

1. a confusão entre escolha e finalidade (oparadoxo da escolha predeterminada):sintoma do sentimento de inevitabilida-de presente na sociedade, essa misturade conceitos opostos expõe a morte daagência no mundo pós-moderno;

2. figuração de um espaço-abstrato e falhaem figurar um olhar-decodificador des-se espaço: sinal do nível de abstração as-sumido pela nossa realidade nesse mo-mento histórico de total controle do ca-pitalismo financeiro global;

3. incoerências na figuração do “inimigo”:indício da ausência, em nosso mundo,da figura de um “Outro” claramentedefinido;

4. teia de relações sentimentais que unema resistência e orientam a sua ação: sin-toma do enfraquecimento da cons-ciência de classe e da falta de projetoscoletivos.

Uma leitura que privilegie a interpretaçãopolítica do texto é de essencial importância nostempos atuais. O crítico, assim procedendo, po-derá contribuir para o debate de questões perti-nentes à sociedade.

Referências BibliográficasDEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

JAMESON, F. “O Pós-modernismo e o Mercado”. In: ZIZEK, S. Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto,1996.

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98 Impulso, Piracicaba, 16(41): 89-98, 2005

______. O Inconsciente Político. São Paulo: Ática, 1992.

ZIZEK, S. Bem-vindo ao Deserto do Real! São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

Dados do autor

Mestrando do curso de Estudos Lingüísticose Literários em Inglês da FFLCH da Universidade

de São Paulo (USP)

Recebimento: 17/jan./05Aprovado: 21/jun./05

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Resenhas & ImpressõesReviews & Impressions

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Filosofia e Literatura:tensão e interlocuçãoPHILOSOPHY AND LITERATURE: TENSION AND DIALOGUE

Ética e Literatura em Sartre: ensaios introdutóriosde FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA

Col. Biblioteca de Filosofia/Marilena Chauí (dir.), Floriano Jonas César (org.).

São Paulo: Editora Unesp • 2004 • 260p. • ISBN 85-7139-515-2

Ser e o Nada e A Náusea são duas das obras funda-mentais publicadas por Jean Paul Sartre, em seu tra-balho como escritor. Podemos designar o primeirolivro como obra filosófica e o segundo como obraliterária. Tal designação implica a possibilidade demarcar dois campos de saber (literatura e filosofia),partindo daí uma série de argumentos para dispor asrelações entre eles. Na história da filosofia, encon-

tramos múltiplos exemplos de escritores que produziram obras filosófi-cas e, ao mesmo tempo, literárias. O filósofo dinamarquês Sören Kierke-gaard – que, na primeira metade do século XIX, transitou com desenvol-tura entre os dois campos – é apontado como o fundador do movimentoexistencialista, marco histórico da aurora da filosofia francesa nos anos1950-1960.

Pode-se afirmar que uma das marcas mais evidentes do existenci-alismo foi justamente estabelecer uma sólida interlocução entre a escritafilosófica e a literária. Sartre é certamente a estrela mor do movimento,ao publicar extensa obra, analisada de diferentes perspectivas. Numa de-las está o trabalho do prof. Franklin Leopoldo e Silva: estabelecer uma“relação de complementação recíproca entre filosofia e literatura”, a fimde analisar o “projeto sartriano de pensar a ordem humana: a compreen-são da existência como condição e da contingência com seu horizonte-limite” (p. 12).

É com o propósito de examinar o projeto sartriano que Leopoldoe Silva define sua posição para identificar os elementos centrais da relaçãoentre filosofia e literatura (“obra ficcional”): “entendemos que o centrode irradiação desse projeto determina a relação entre filosofia e literaturacomo uma vizinhança comunicante, e é responsável pela diferença e pelaadequação recíproca dos dois modos da dualidade expressiva. Com isso,

MÁRCIO APARECIDOMARIGUELA

Universidade Metodista dePiracicaba (UNIMEP)[email protected]

OOOO

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queremos dizer que a expressão filosófica e a ex-pressão literária são ambas necessárias em Sartreporque, por meio delas, o autor diz e não diz asmesmas coisas” (p. 12).

A posição do autor é a de que Sartre diz amesma coisa de maneiras diferentes. Exemplo: “acompreensão das vivências individuais pela via daficção só atinge o plano da existência concretaporque insere o drama existencial particular naestrutura universal do ser da consciência” (p. 13).Não se trata de buscar uma “relação de identida-de absoluta” entre filosofia e literatura, e sim deestabelecer a “vizinhança comunicante”: entendi-da pelo autor como uma “passagem interna” en-tre os dois campos: “haveria uma forma de passarde um a outro que seria uma via interna, sem que,nesse caso, a comunicação direta anulasse a dife-rença” (p. 13). É assim que o autor constata quetal passagem não está dada: é preciso construí-lapara afirmar a concretude do universal (filosofia)e a universalidade do particular (literatura).

O autor renuncia, assim, a outra perspec-tiva de leitura, que consiste no seguinte pressu-posto: a literatura de Sartre ilustra teses filosófi-cas. “Se a literatura não serve apenas para ilustrarteorias filosóficas e se, no entanto, há uma iden-tidade profunda entre as duas instâncias de ex-pressão” (p. 12), então é possível pensar o pro-jeto sartriano a partir dessa “vizinhança comuni-cante”. O ponto que permite a passagem internade um campo a outro é perfurado pela questãoética, pois considera que a ética configura a baseintencional de tudo o que Sartre escreveu. Na li-teratura, Sartre fez experiências de “exemplifica-ções concretas da teoria, mas como algo queaponta para o equilíbrio (instável?) entre o tra-tamento teórico e o exame da particularidade vi-vencial” (p. 17). Para esse argumento, o autorencontra justificativas no artigo de Sartre, Que éa Literatura?, no qual o pensador francês assu-miu o propósito de vivenciar – o que chamou de“questões de nosso tempo” – problemas filosó-ficos (como é possível fazer-se homem na histó-ria?) em experiências ficcionais – os romances.

Daí deriva o tema central do projeto sar-triano: liberdade e história, questão ética funda-mental. Se “a escrita é um exercício de liberdadeque somente se completa apelando para a liber-dade do outro, o leitor” (p. 20), então o ato lite-rário é marcado pelo problema ético. Aqui o au-tor estabelece uma analogia que me parece deci-siva para a leitura dos capítulos que compõem olivro resenhado: “é como se a exigência incondi-cionada da obra constituísse, entre o autor e osleitores, reais e possíveis, aquilo que Kant deno-mina uma comunidade dos fins. O caráter in-condicionado da obra de arte, invocado porKant, é para Sartre o apelo à liberdade” (p. 20).

Limito-me aos argumentos da “Introdu-ção”, pois demonstram com precisão a monta-gem do livro – com dois capítulos (I e IX) publi-cados em 2000 e os demais inéditos – e indicamao leitor a construção da perspectiva de leitura doprojeto sartriano. Os comentários de A Náusea(cap. III – “Existência e contingência”) são exem-plares para compreender a chave de leitura pro-posta pelo autor, ao analisar a questão ética comoponto de passagem entre filosofia e literatura, e,sobretudo, entender o que chamou de dualidadede expressão para Sartre desenvolver a questão éti-ca. Por sua vez, o título da “Conclusão” aponta atese central do livro: “Práxis: a literatura comocompreensão ética da realidade humana”.

Um aspecto problemático pareceu-me sero de situar a relação/distinção entre Sartre e Ca-mus (cap. IX), no que diz respeito a arte, subjeti-vidade e história. O livro entra na polêmica e di-lacerante ligação Sartre-Camus pelo tema da his-tória e comenta os impasses no solo dos mal-en-tendidos. Exemplo: “O que Camus desejaria(sic) que Sartre entendesse é que, se aceitamos anatureza apenas por via da mediação da história,então é como se matássemos a natureza no atomesmo de incorporá-la ao nosso pensamento”(p. 228).

Os escritos do prof. Franklin Leopoldo eSilva tornam público o seu trabalho docente naUSP – onde é responsável pela disciplina história

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da filosofia contemporânea – e reafirma a neces-sária extensão entre o trabalho de pesquisa e deensino, possibilitando, assim, instaurar outras lei-

turas de Sartre. Que o centenário de seu nasci-mento possa encontrar no livro resenhado umbrinde histórico.

Dados do autor

Psicanalista e professor de história da filosofiacontemporânea no curso de Filosofia da

Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP).

Recebimento: 5/jun./05Aprovada: 21/jun./05

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃOEDITORIAL NORMS

PRINCÍPIOS GERAIS1. A Revista IMPULSO publica artigos de pesquisa e reflexão acadêmicas, estudos analíticos e resenhas

nas áreas de ciências sociais e humanas, e cultura em geral, dedicando parte do espaço de cada edi-ção a um tema principal, a partir das seguintes seções: “Temática”, apresentando os artigos temáti-cos; “Conexões Gerais”, para ensaios não temáticos; “Comunicações”, para textos curtos e forados padrões acadêmicos mais tradicionais; e “Resenhas & Impressões”, para críticas, resenhas ecomentários em geral.

2. Os artigos podem ser desenvolvidos através dos seguintes tipos de trabalho:• ENSAIO (12 a 30 laudas) – reflexão a partir de pesquisa bibliográfica ou de campo sobre de-

terminado tema;• COMUNICAÇÃO (10 a 18 laudas) – relato de pesquisa de campo, concluída ou em andamento;• REVISÃO DE LITERATURA (8 a 12 laudas) – levantamento crítico de um tema, a partir da bi-

bliografia disponível;• COMENTÁRIO (4 a 6 laudas) – nota sobre determinado tópico;• RESENHA (2 a 4 laudas) – comentário crítico de livros e/ou trabalhos acadêmicos.

Obs.: cada lauda compreende 1.400 toques, incluindo-se os espaços entre palavras.3. Os artigos devem ser inéditos, vedado o seu encaminhamento simultâneo a outras revistas.4. Na análise para a aceitação de um artigo serão observados os seguintes critérios, sendo o(s)

autor(es) informado(s) do andamento do processo de seleção: • adequação ao escopo da revista;• qualidade científica, atestada pela Comissão Científico-Editorial e por processo anônimo de

avaliação por pares (blind peer review), com consultores não remunerados, especialmenteconvidados, cujos nomes são divulgados anualmente, como forma de reconhecimento;

• cumprimento das presentes Normas para Publicação.5. Encaminhamento para SUBMISSÃO DE ARTIGO à Comissão Científico-Editorial da IMPULSO: (a)

três cópias impressas do artigo, acompanhadas de arquivo eletrônico gravado em disquete, devida-mente padronizados conforme estas Normas, constando de uma delas os dados completos do(s)autor(es) e, das outras duas, apenas o título da obra (sem identificação); (b) fornecer também bre-víssimo currículo do(s) autor(es); (c) e ofício do qual conste:

• cessão dos direitos autorais para publicação na revista;• concordância com as presentes normatizações;• informações sobre o(s) autor(es): titulação acadêmica, unidade e instituição em que atua(am),

endereço para correspondência, telefone fax e e-mail e uma cópia do texto gravada em dis-quete.

• em caso de mais que um autor, indicar o o nome daquele que será responsável pelos contatoscom a Editora e que receberá os exemplares da revista e as separatas, conforme especificadono item 9 desta Norma.

6. ETAPAS de trâmite dos artigos: (a) um dos membros da Comissão e dois nomes externos a ela sãodesignados como pareceristas, estes dois últimos por processo blind peer review; (b) recebidos devolta tais pareceres, eles são analisados em outro encontro da Comissão, chegando-se a uma avalia-ção final: “indicado para publicação”, “indicado com ressalvas” ou “recusado”; (c) em carta ao(s)autor(es), são fundamentadas tais decisões e devolvidos os originais com anotações dos pareceris-tas; (d) se indicado para publicação “com ressalvas”, o artigo deve ser novamente submetido à Edi-tora: os trechos alterados devem ser realçados por cor ou sublinhados; essa nova versão será

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entregue em papel (uma cópia) e em arquivo eletrônico, acompanhada do texto original apreciadopelos pareceristas; (e) eventuais ilustrações devem ser encaminhadas separadamente, em seus res-pectivos arquivos eletrônicos em suas extensões originais; (f) antes da impressão, o(s) autor(es)recebe(m) versão final do texto para análise.

7. Uma vez aceito o artigo, cabe à revista a exclusividade em sua publicação.8. Os artigos podem sofrer alterações editoriais não substanciais (reparagrafações, correções gramati-

cais, adequações estilísticas e editoriais).9. Não há remuneração pelos trabalhos. Por artigo, o(s) autor(es) recebe(m) 1 (um) exemplar da

revista e 10 (dez) separatas do seu artigo. Ele(s) pode(m) ainda adquirir exemplares da revista comdesconto de 30% sobre o preço de capa, bem como a quantidade que desejar(em) de separatas, apreço de custo equivalente ao número de páginas e de cópias delas.

ESTRUTURA10. Elementos do artigo (em folhas separadas):

a)IDENTIFICAÇÃO

• TÍTULO (e subtítulo, se for o caso), em português e inglês: conciso e indicando claramente oconteúdo do texto;

• nome do(s) AUTOR(ES), titulação, área acadêmica em que atua e e-mail;• SUBVENÇÃO: menção de apoio e financiamento eventualmente recebidos;• AGRADECIMENTO, se absolutamente indispensável.b)RESUMO E PALAVRAS-CHAVE• Resumo indicativo e informativo, em português (intitulado RESUMO) e inglês (denominado

ABSTRACT), com cerca de 150 palavras cada um;• para fins de indexação, o(s) autor(es) deve(m) indicar os termos-chave (mínimo de três e má-

ximo de seis) do artigo, em português (palavras-chave) e inglês (keywords).c)TEXTO

• deve ter INTRODUÇÃO, DESENVOLVIMENTO e CONCLUSÃO. Cabe ao(s) autor(es) criar osentretítulos para o seu trabalho. Esses entretítulos, em letras maiúsculas, não são numerados;

• no caso de RESENHAS, o texto deve conter todas as informações para a identificação do livro co-mentado (autor; título; tradutor, se houver; edição, se não for a primeira; local, editora; ano; totalde páginas; e, se houver, título original e ISBN). No caso de trabalhos acadêmicos a serem resenha-dos, segue-se o mesmo princípio, no que for aplicável, acrescido de informações sobre a instituiçãona qual foi produzida.

d)ANEXOS

• ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias).e)DOCUMENTAÇÃO

NOTAS EXPLICATIVAS: serão dispostas no rodapé, remetidas por números sobrescritos no corpodo texto.1

CITAÇÃO com até três linhas: deve vir no bojo do parágrafo, destacada por aspas (sem itálico),após as quais um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé com as indicações do SOBRENOMEdo autor, ano da publicação e página em que se encontra a citação.2

1 Essa numeração será disposta após a pontuação, quando esta ocorrer, sem que se deixe espaço entre ela e o número sobrescrito da nota. Como oempregado nas Referências Bibliográficas, nas notas de rodapé o SOBRENOME dos autores que tenham sido citados deve ser grafado em maiús-cula, seguido do ano da publicação da obra correspondente a esta citação. Ex.: CASTRO, 1989.2 FARACO; GIL, 1997, p. 74-75.

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CITAÇÃO igual ou maior a quatro linhas: destacada em parágrafo próprio com recuo de quatrocentímetros da margem esquerda do texto (sem aspas) e separado dos parágrafos anterior e posteriorpor uma linha a mais. Ao fim da citação, um número sobrescrito remeterá à nota de rodapé, indicandoo SOBRENOME do autor, ano da publicação e a página em que se encontra esta citação.3 Subseqüentescitações da mesma obra devem ser referenciadas abreviadamente, utilizando-se expressões latinas.4Se, repetido o autor, mas com outra obra, utiliza-se “idem”.5

Os demais complementos (nome completo do autor, nome da obra, cidade, editora, ano de publi-cação etc.) constarão das REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, ao fim de cada artigo, seguindo o padrão abaixo.

A lista de fontes (livros, artigos etc.) que compõe as Referências Bibliográficas deve aparecer no fimdo artigo, em ordem alfabética pelo sobrenome do autor e sem numeração, aplicando-se o seguinte padrão:

LIVROSSOBRENOME, N.A. (pré-nomes do autor abreviados, sem espaçamento entre eles; até três autores: separar por

“;”, mais de três: registrar o primeiro deles seguido da expressão “et al.”). Título: subtítulo. Número daedição. Cidade: Editora, ano completo, volume. Ex.:

ROMANO, G. “Imagens da juventude”. In: LEVI, K. (org.). História dos Jovens. São Paulo: Atlas, 1996.

EHRLICH, E. [1913]. Grundlegung der Soziologie des Rechts. 4. ª ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1989.

GARCIA, E.E.C. et al. Embalagens Plásticas: propriedades de barreira. Campinas: CETES/ITAL, 1984.

RAMOS-DE-OLIVEIRA, N.; ZUIN, A.A.S.; PUCCI, B. (orgs.) Teoria Crítica, Estética e Educação. Piracicaba/Campinas:Editora Unimep/Editora Autores Associados, 2001.

• SOBRENOMES CUJA FORMA COMPOSTA É A MAIS CONHECIDA e SOBRENOMES ESPANHÓIS. Ex.: MA-CHADO DE ASSIS, J.M.; EÇA DE QUEIROZ, J.M.; GARCÍA MÁRQUEZ, G.; RODRÍGUEZ LARA, J.

• MAIS DE UMA CITAÇÃO DE UM MESMO AUTOR: após a primeira citação completa, introduzir a novaobra da seguinte forma:

______. Empregabilidade e Educação. São Paulo: Educ, 1997.• OBRAS SEM AUTOR DEFINIDO:

Manual Geral de Redação. Folha de S.Paulo, 2.ª ed. São Paulo, 1987.• AUTOR CITADO EM SUA OBRA DE OUTRO AUTOR: APUD (citado por)

Ex.: SOUZA apud MARTINS, 1990, p. 215

PERIÓDICOSNOME DO PERIÓDICO. Cidade: Órgão publicador. Entidade de apoio (se houver). Data. Ex.:

REFLEXÃO. Campinas: Instituto de Filosofia e Teologia. PUC, 1975.• NO TODO:TÍTULO DO PERIÓDICO. Local de Publicação (cidade): Editora, volume, número, mês e ano

VEJA. São Paulo: Editora Abril, v. 31, n. 1, jan. 1998.

• ARTIGOS DE REVISTA:AUTOR DO ARTIGO.6 “Título do artigo”. Título da revista (abreviado ou não), local de publicação, número do

volume, número do fascículo, páginas inicial-final, mês** e ano.

ESPOSITO, I. et al. “Repercussões da fadiga psíquica no trabalho e na empresa”. Revista Brasileira de Saúde, SãoPaulo, v. 8, n. 32, p. 37-45, out.-dez./1979.

3 FARIA, 1996, p. 102.4 Ibid., p. 102.5 Idem, 2000, p. 117.6 Em caso de autoria desconhecida, a entrada é feita pelo título do artigo, colocando-se a primeira palavra toda em caixa maiúsculo.** Os meses devem ser abreviados de acordo com o idioma da publicação. Quando não houver seção, caderno ou parte, a paginação do artigoprecede a data.

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• ARTIGOS DE JORNAL:AUTOR DO ARTIGO.* “Título do artigo”. Título do jornal, local de publicação, dia, mês** e ano. Número ou título do

caderno, seção ou suplemento e página inicial e final do artigo.

OLIVEIRA, W.P. de. “Judô: educação física e moral”. O Estado de Minas, Belo Horizonte, 17/mar./1981. Caderno deesporte, p. 7.

DISSERTAÇÕES E TESES AUTOR. Título: subtítulo. Ano de apresentação. Número de folhas ou volumes. Categoria (Grau e área de

concentração). Instituição, local.

RODRIGUES, M. V. “Qualidade de vida no trabalho”. 1989. 180f. Dissertação (Mestrado em Administração). Facul-dade de Ciências Econômicas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

FONTES ELETRÔNICASA documentação de arquivos virtuais deve conter as seguintes informações, quando disponíveis:• sobrenome e nome do autor;• título completo do documento (entre aspas);• título do trabalho no qual está inserido (em itálico);• data (dia, mês e/ou ano) da disponibilização ou da última atualização;• endereço eletrônico (URL) completo (entre parênteses angulares: < >);• data de acesso.Exemplos:

Site genéricoLANCASHIRE, I. Home page. 13/set./1998. <http://www.chass.utoronto.ca:8080/~ian/index.html>. Acesso:

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Artigo de origem impressaCOSTA, F. Há 30 anos, o mergulho nas trevas do AI-5. O Globo, 6.12.98. <http://www.oglobo.com.br>. Acesso:

6/dez./1998.

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“Fresco”. Britannica Online. Vers. 97.1.1. Mar./1997. Encyclopaedia Britannica. 29/mar./1997. http://www.eb.com:180.

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Impulso, Piracicaba, 16(41): 105-109, 2005 109

E-mailBARTSCH, R. <[email protected]> “Normas técnicas ABNT - Internet”. 13/nov./1998. Comunicação pessoal.

Comunicação sincrônica (MOOs, MUDs, IRC etc.) ARAÚJO, C.S. Participação em chat no IRC #Pelotas. <http://www.ircpel.com.br>. Acesso: 2/set./1997.

Lista de discussãoSEABROOK, R.H.C. <[email protected]> “Community and Progress”. 22/jan./1994. <cybermind@jefferson.

village.virginia.edu>. Acesso: 22/jan./1994.

FTP (File Transfer Protocol)BRUCKMAN, A. “Approaches to Managing Deviant Behavior in Virtual Communities”. <ftp://ftp. media.mit.edu/

pub/asb/papers/deviance-chi-94>. Acesso: 4/dez./1994.

TelnetGOMES, L. “Xerox’s On-Line Neighborhood: A Great Place to Visit”. Mercury News. 3/maio/1992. telnet

lamba.parc.xerox.com 8888, @go #50827, press 13. Acesso: 5/dez./1994.

Newsgroup (Usenet)SLADE, R. <[email protected]> “UNIX Made Easy”. 26/mar./1996. <alt.books.reviews>. Acesso: 31/mar./1996.

11. Os artigos devem ser escritos em português ou espanhol, podendo, contudo, a critério da Comis-são Científico-Editorial, serem aceitos trabalhos escritos em outros idiomas.

12. Os trabalhos devem ser digitados no EDITOR DE TEXTO WORD, em espaço 1,5, corpo 12, em papelbranco, não transparente e de um lado só da folha, com páginas numeradas.

13. As ILUSTRAÇÕES (tabelas, gráficos, desenhos, mapas e fotografias) necessárias à compreensão dotexto devem ser numeradas seqüencialmente com algarismos arábicos e apresentadas de modo agarantir uma boa qualidade de impressão. Precisam ter título conciso, grafados em letras minúsculas.(a) TABELAS: editadas em Word ou Excel, com formatação necessariamente de acordo com asdimensões da revista. Devem vir inseridas nos pontos exatos de suas apresentações ao longo do texto;não podem ser muito grandes e nem ter fios verticais para separar colunas; (b) FOTOGRAFIAS: combom contraste e foco nítido, sendo fornecidas em arquivos em extensão “tif” ou “gif”; (c) GRÁFICOS eDESENHOS: incluídos nos locais exatos do texto. No caso de indicação para publicação, essas ilus-trações precisarão ser enviadas em separado, necessariamente em arquivos de seus programas origi-nais (p. ex., em Excel, CorelDraw, PhotoShop, PaintBrush etc.); (d) figuras, gráficos e mapas, casosejam enviados para digitalização, devem ser preparados em tinta nanquim preta. As convençõesprecisam aparecer em sua área interna.

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Impulso, Piracicaba, 16(41): 111-111, 2005 111

NOSSOS CONSULTORESOUR CONSULTANTS

2005

ANDRÉA MORENO – UFV/MG

ÁUREA MARIA GUIMARÃES – Unicamp/SP

CARLOS ROBERTO JAMIL CURY – PUC/MG

CARMEN LÚCIA SOARES – Unicamp/SP

CELSO JOÃO FERRETI – FCC/SP

CHRISTIANE LUCE GOMES – UFMG/MG

DANIEL JONES – UBA/Argentina

EDUARDO MENDIETA – Suny at Stony Brook, Estados Unidos

ELIÉZER RIZZO DE OLIVEIRA – Unicamp/SP

EUSTÁQUIA SALVADORA DE SOUSA – UFMG/MG

GABRIELE CORNELLI – UNIMEP/SP

GIOVANINA GOMES DE FREITAS OLIVIER – Université Laval, Canadá

HÉLDER FERREIRA ISAYAMA – UFMG/MG

HELOÍSA H. BALDY DOS REIS – Unicamp/SP

HENRIQUE CAHET – UFSC/SC

JOSÉ AUGUSTO LINDGREN ALVES – Embai-xada Brasileira, Bulgária

JOÃO CARLOS NOGUEIRA – PUC/SP

JOÃO FERREIRA DE OLIVEIRA – UFG/GO

JOSÉ DO NASCIMENTO – UCDB/MS

JOSÉ MARIA PAIVA – UNIMEP/SP

JUAN CARLOS BERCHANSKY – UNIMEP/SP

JÚLIO BURDZINSKI – Unijuí/RS

LEILA MIRTES SANTOS DE MAGALHÃES – SESI/DF

LÍDIA MARIA RODRIGO – Unicamp/SP

LUÍS ANTONIO GROPPO – Unisal/SP

LUIZ DAMON SANTOS MOUTINHO – UFPR/PR

LUIZ GONZAGA GODOI TRIGO – USP/SP

MARCOS CÉZAR DE FREITAS – PUC/SP

MARIA DE LOURDES DE ALBUQUERQUE FÁVERO – UCP/RJ

MATTHIAS LUTZ-BACHMANN – Universität Frankfurt, Alemanha

MIRIAM PASCOAL – PUC/SP

NELSON CARDOSO AMARAL – UFG/GO

RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES – Unicamp/SP

ROSELI PACHECO SCHNETZLER – UNIMEP/SP

SÍLVIO RICARDO DA SILVA – UFV/MG

SURAYA CRISTINA DARIDO – Unesp/SP

VALQUÍRIA PADILHA – UFSCar/SP

VICTOR ANDRADE DE MELO – UFRJ/RJ

VIRGÍNIA CAMILOTTI – UNIMEP/SP

WALTER KOHAN – UERJ/RJ

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