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Revista Direito GV This is an Open Access artcle distributed under the terms of the Creatve Commons Aributon NonCCommercial iicense hhich permits unrestricted nonCcommercial use distributon and reproducton in any medium provided the original hork is properly cited. Fonte: hp://hhh.scielo.br/scielo.phpsscriptssciarext&pidsS1808C 24322015000200573&lngspt&tlngspt. Acesso em: 23 out. 2017. REFERÊNCIA DINIZ Debora. Pesquisas em cadeia. Revista Direito GV, São Paulo v. 11 n. 2 p. 573C586 dez. 2015. Disponível em: <hp://hhh.scielo.br/scielo.phpsscriptssciarext&pidsS1808C 24322015000200573&lngspt&nrmsiso>. Acesso em: 23 out. 2017. doi: hp://dx.doi.org/10.1500/1808C2432201525.

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Revista Direito GV This is an Open Access artcle distributed under the terms of the Creatve Commons

Attributon NonCCommercial iicense, hhich permits unrestricted nonCcommercial use, distributon, and reproducton in any medium, provided the original hork is properly cited. Fonte: http://hhh.scielo.br/scielo.phpsscriptssci_aarttext&pidsS1808C24322015000200573&lngspt&tlngspt. Acesso em: 23 out. 2017.

REFERÊNCIADINIZ, Debora. Pesquisas em cadeia. Revista Direito GV, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 573C586, dez. 2015. Disponível em: <http://hhh.scielo.br/scielo.phpsscriptssci_aarttext&pidsS1808C24322015000200573&lngspt&nrmsiso>. Acesso em: 23 out. 2017. doi: http://dx.doi.org/10.1500/1808C2432201525.

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Debora Diniz

PESQUISAS EM CADEIA

RESEARCH EXPERIENCES IN PRISON

DOI: HTTP://DX.DOI.ORG/10.1590/1808-2432201525

RECEBIDO EM 03.11.2015 | APROVADO PELA EDITORA-CHEFE EM 13.11.2015

ENSAIO

PESQUISAS EM CADEIA1

Este ensaio é uma memória pessoal daspesquisas em cadeia que desenvolvi naúltima década no Brasil: foram estudosem manicômios judiciários, presídiose unidades socioeducativas. Entre espa-ços institucionais, métodos e resultadosde pesquisa, compartilho minhas inquie-tações como pesquisadora. Comecei a

pesquisa em cadeia com um filme, orevés do que aconselharia qualquerlivro de metodologia (A casa dos mortos,2008). Um filme é o fim de uma pesqui-sa, pois o roteiro pede conhecimentodenso e íntimo. Nada disso eu tinha, só oolhar frouxo de quem desconhece tudo.Ainda assim, me permiti viajar e visitar

RESUMOESTE ENSAIO É UM RELATO DE EXPERIÊNCIAS DE PESQUISAS

EM CADEIA. CADEIA É METONÍMIA PARA O ARQUIPÉLAGOPUNITIVO – MANICÔMIOS JUDICIÁRIOS, PRISÕES E

UNIDADES SOCIOEDUCATIVAS. AO FINAL, PROVOCO AS

FORMAS DE ESCRITURA E VIDÊNCIA SOBRE CADEIAS E

BANDIDOS. ARRISCO DIZER QUE AS PESQUISAS SOBRE

CADEIA SÃO MASCULINAS NA ESCRITA E NA VIDÊNCIA.

PALAVRAS-CHAVECADEIA; PRISÃO; MANICÔMIO JUDICIÁRIO; UNIDADESOCIOEDUCATIVA; PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO.

ABSTRACTTHIS PAPER IS A PERSONAL ACCOUNT OF MY RESEARCH

EXPERIENCES IN BRAZILIAN PRISONS. PRISON IS A FIGURE

OF SPEECH, WHICH REPRESENTS A PUNITIVE ARCHIPELAGO

– FORENSIC HOSPITALS, JAILS, AND YOUTH DETENTION

CENTERS. AT THE END, I PROVOKE A DEBATE OVER FORMS

OF SEEING PRISONS AND PERSONS AND WRITING ABOUT

THEM. I DARE SAY THE STUDIES ABOUT PRISON ARE MALE

GENDERED BASED.

KEYWORDSJAIL; PRISON; FORENSIC HOSPITAL; YOUTHDETENTION CENTER; LAW EMPIRICAL RESEARCH.

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os manicômios judiciários do país e, nabusca de um roteiro, camadas de difi-culdade amplificadas pelos regimes desegredo, proteção e proibição martela-vam meu juízo. Fiz o primeiro circuitonacional: encontrei calabouços, gentenua, grade aberta, comida pelo chão;multidão e esquecidos em presídios.Ouvi histórias e cantorias, anotei rela-tos de campo com os olhos mais abertosque as orelhas: o escondido seria con-tado por imagens. A passagem do vividoà narrativa pedia sensibilidade sobre aaudiência, uma prática que deve acom-panhar qualquer pesquisadora de cadeia.

A CASA DOS MORTOSCheguei ao único manicômio judiciáriode Salvador, com uma população de 158

habitantes, em 2008. Antes de mim,promotores de justiça haviam decreta-do um termo de ajustamento de conduta– o documento liberou metade do povoe processou a equipe de saúde. O dire-tor me acolheu com o alento de quemvia a arte chegar depois do furacão dapolícia: nada de pior poderia ser conta-do sobre aquele lugar se comparado aodenunciado pelas manchetes de jornais.Não me travesti de psiquiatra, fiz ques-tão de me apresentar como contadorade histórias, o jaleco branco era só paraarrumar roupa conhecida enquantocaminhava sem agentes de segurança.Esse foi o acordo: sozinha por onde qui-sesse, mas com jaleco. Em uma das cenasdo filme, exibo o escondido de método– ali estou, com o jaleco branco, entregrupo em cantoria (DINIZ, 2013a).

CASA DOS MORTOS. DEBORA DINIZ, 2008.

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Assumi alguns cuidados éticos comoreguladores do filme: não exibiria faltade roupa ou situações humilhantes; ospersonagens teriam que consentir antes,durante e ao final da montagem do filme;não haveria remuneração pela partici-pação; a narrativa seria documental; aequipe de filmagem seria só eu e osassistentes de câmera e de som (DINIZ,2014). Além dessas regras próprias, res-pondi a diversas camadas criativas deburocracia para entrada nos manicômios:comitês de ética e autorizações diretoras,familiares ou médicas. Desacredito de fil-mes sobre o povo de cadeia sem exibirrostos e biografias, vozes e jeitos: a esté-tica do encobrimento é também a domedo – pode até ser que se justifique pelorisco de estigma, mas não aproxima aaudiência de quem é descrito como peri-goso, louco ou bandido.

Iniciei a pesquisa no manicômio judi-ciário de Salvador com a figura do ladrãode bicicleta, personagem encontrado emtodos os hospitais-presídios que visitei.Com Almerindo, a profecia se realizava.Mas o filme não poderia ser apenas sobreo bom selvagem, seria muita tranquili-dade para uma audiência certa de queali estão os loucos bandidos em surto.Passei meses vasculhando os arquivos dohospital, e assim conheci os 158 habi-tantes – primeiro, pelos dossiês (essemonturo de papéis produzido pela engre-nagem policial, penal e tutelar), paradepois me apresentar a eles. Fui de ala emala, conversei com as lideranças, negocieipresença: o termo de consentimento paraa pesquisa e o de cessão de imagens parao filme foi acordado com cada habitante

e com o diretor do hospital, e uns poucosrecusaram participação; desses, o filmenão mostra rosto, e os dossiês foramesquecidos. Passei a perambular pelo hos-pital; sozinha e sem câmera, respondiacuriosidades, apresentava-me a cada diavestindo o jaleco branco e anunciando achegada da câmera, que apareceu em diafestivo: uma competição de futebol entrehospícios da cidade. Essa é a abertura dofilme; genuinamente, o primeiro instan-te de aproximação da câmera. Os mesesseguintes foram de gravações, totalizan-do mais de 50 horas de filmagens. Como filme pronto, voltei ao manicômiojudiciário; os habitantes foram os pri-meiros a assistir e concordar com a his-tória contada.

Do filme, voltei para a ciência dosnúmeros. As visitas me mostraram quesabíamos pouco sobre quem e quantoseram aqueles habitantes, desde quando epor que estavam nos manicômios judi-ciários. Coordenei o censo da populaçãode hospitais de custódia e tratamento psi-quiátrico (HCTPs) e alas de tratamentopsiquiátrico em presídios (ATPs), poissequer se conhecia o número de institui-ções no país (DINIZ, 2013b). Em 12meses, visitamos 26 instituições, abri-mos os documentos de cada indivíduointernado: a pesquisa foi feita nos dos-siês produzidos pelas unidades comoarquivos da loucura bandida (FARGE,2009). O instrumento de coleta foi digi-tal; a equipe de campo era de jovenspesquisadoras de pós-graduação e per-seguia perguntas claras: há causalidadeentre diagnóstico psiquiátrico e crime?Qual é o perfil da população? Há quanto

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tempo vivem em clausura? Como a engre-nagem de direitos se movimenta? Essasperguntas se transformavam em questõesdo instrumento e respondiam a hipótesesde pesquisa. Encontramos 3.989 indiví-duos, sendo 1.033 provisórios e 2.956em medida de segurança; 3.684 eramhomens, e 291 mulheres: quase todospretos ou pardos, com pouca escola,nenhum trabalho, sozinhos ou solteiros(DINIZ, 2013b). O escandaloso é quepelo menos um em cada quatro indiví-duos não deveria estar mais por ali (porlaudo vencido, cessação de periculosida-de, sem sentença ou com extinção damedida de segurança); para 55 deles, oEstado não sabe por que mantê-los emtratamento compulsório, pois têm medi-da de segurança extinta. E a surpresa queagonia: 18 deles estavam presos haviamais de 30 anos. Entre o grupo dos esque-cidos, estava Zefinha, que vive há 38anos em Alagoas.

ZEFINHAFoi assim que voltamos ao manicômiojudiciário de Alagoas para contar a histó-ria de Zefinha, a mulher há mais tempo

abandonada no país: no grupo dos 18esquecidos, Zefinha é a única mulher(DINIZ, 2015d; DINIZ; BRITO, 2016).Após novas autorizações, o corpus de pes-quisa foi o dossiê do hospital; processojudicial e fotografias da sobrevivênciaem uma minúscula cela se juntaram paraentender o passado e o presente de aban-dono. Se o filme tinha me dado experiên-cia sobre como escavar vivências em ummanicômio, a inquietação metodológi-ca era nova: não seria mais arte de filmeou número sem nome, mas uma históriade acontecimento único. Zefinha é só ela,não nomeá-la seria transformá-la emoutra ou qualquer, como se uma novacamada de silenciamento lhe fosseimposta – primeiro, pelo dobramentoubuesco penal-tutelar (FOUCAULT,2010); depois, por nós, as escritoras queescavaram uma lenda desaparecida(DINIZ, 2015d; DINIZ; BRITO, 2016).Zefinha não é um estudo de caso, daque-les com propriedades heurísticas parafalar das 291 mulheres na multidão dosloucos bandidos. Velha, com esquizofre-nia e acusada de lesão corporal, é só ela.E nenhuma outra com mais de décadavivendo em manicômio judiciário.

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ELA, ZEFINHA. DEBORA DINIZ, 2014.

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Zefinha é pesquisa de acontecimen-to único, e por duas razões falo em acon-tecimento.2A primeira é por ser Zefinhaum acontecimento arqueológico – suahistória nos mostra como se deu ametamorfose da louca bandida na velhaabandonada, ou seja, desnuda as condi-ções de possibilidade da existência domanicômio judiciário em uma épocatutelar da loucura. Zefinha é ainda infa-me, aquela cuja existência imortali-zou-se pelo cruzamento com o poder eda qual só sabemos fragmentos de notí-cias (FOUCAULT, 2012). Zefinha é elasó, sem parentes ou aderentes no fora;até recentemente, nem documentostinha: a personagem obscura da vida doshomens infames. Uma desaparecida,indocumentada, sem luto pela ausên-cia, cuja aproximação com a histórianos provoca o ardor da infâmia, comodisse Michel Foucault (2012).

A segunda razão é pelo escândalo dasingularidade de Zefinha. Encontrá-laé repetir a pergunta de Primo Levi (1988)sobre os sobreviventes de campos de con-centração (aqui não recorro a umareductio ad Hitlerum): “É isto uma mulher?”Nomear Zefinha é reconhecê-la, apa-recê-la para a cena da inteligibilidadedos direitos, mas como fazer isso se amulher não mais relata a si mesma?(BUTLER, 2015): oferecendo o teste-munho de um rosto e um passado, masem uma história de nosso tempo –“podemos, então perguntar-nos se valemesmo a pena, se convém que de talsituação humana reste alguma memó-ria. A essa pergunta, tenho a convicçãode poder responder que sim. Estamos

convencidos de que nenhuma experiên-cia humana é vazia de conteúdo, de quetodas merecem ser analisadas; de quese podem extrair valores fundamentais(ainda que nem sempre positivos) des-se mundo par ticular que estamosescrevendo” (LEVI, 1988, p. 88). ComoLevi, estou convencida que sim –Zefinha grita os sem sentidos da cadeia,da apartação da loucura, e as consequên-cias da vida fora do bando (AGAMBEN,2007). Há novidade e regularidade naescavação do acontecimento arqueo-lógico.

Como uma mulher infame, cuja his-tória é obscura, os murmúrios sobreZefinha a tornam uma personagem len-dária; “o lendário, seja qual for seunúcleo de realidade, finalmente não énada além do que a soma do que se diz.Ele é indiferente à existência ou inexis-tência daquele de quem ele transmitea glória” (FOUCAULT, 2012, p. 208).O que sabemos de Zefinha é o que delafoi arquivado pela escrita disciplinar –e, em quase 40 anos de internação,foram 90 páginas de dossiê e 108 pági-nas de processo judicial. É tudo quesabemos, pois a lenda “[...] é, por suanatureza, sem tradição; rupturas, apa-gamento, esquecimento, cancelamen-tos, reaparições, é apenas através dissoque ela pode nos chegar” (FOUCAULT,2003, p. 209). Por isso, Zefinha saiudos números e foi apresentada com nomee lenda própria, com rosto e reclame deintelig ibilidade aos direitos – é amulher mais antiga supervivente àsrelações de poder e força sobre a lou-cura criminosa.

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CADEIA DE MULHERESCheguei à cadeia feminina da capital dopaís com os modos tradicionais de cien-tista social: prancheta, questionários,hipóteses e autorizações. O pedido eraousado, mover o presídio para que todasas mulheres em regime fechado de prisãofossem entrevistadas. Assim foi feito, osjeitos foram meio tortos, mas os disponí-veis para retratar a massa: as mulheressaíam das celas, arrumavam-se em blo-cos de 10 ou 20 na capela e, sempre napresença de agentes de segurança, res-pondiam aos questionários. As perguntaseram definidas previamente por nós, nãohavia isso de escutar e rever o que pode-ria ser conhecido: queríamos ciência parao que se escondia nas dificuldades depesquisa em presídio. O questionárionão pedia privacidade, as perguntaseram anunciadas e respondidas, preenchi-das pela pesquisadora, que segurava aprancheta e a caneta. É desse método depesquisa que anunciamos: uma em cadaquatro mulheres presas em regime fecha-do passou por unidades socioeducativasde internação na adolescência. Elas sãojovens, pretas e pardas, de pouca escolae trabalho informal, com filhos no fora oupor ali (DINIZ; PAIVA, 2014). Estão pre-sas pelo comércio ilegal de drogas ou,como contou uma delas, “por vendermaconha com pamonha” (DINIZ, 2015a).

Pelos manuais de pesquisa, o feitorecebe nome importante – censo dasmulheres em regime fechado quanto aperfil, benefícios sociais, trabalhos e esco-las. Sistematizamos o que já se sabia deoutros estudos localizados ou, talvez, semtão grande magnitude quanto a de um

censo. O dado é poderoso, mas estranhojeito de fazer acadêmico pela distânciada realidade da vida em prisão. Chegamosali com os trejeitos típicos de pesquisado-ras iluminadas, “Você é livre para parti-cipar”, anunciávamos. Não importa o quefôssemos fazer, sem vínculo com asmulheres, o anúncio da liberdade comopossibilidade teria única resposta, “Não”.Poder escolher em presídio é resistir àsordens, até porque elas são soberanasquando ditadas pelo colete preto da vigi-lância. Saímos à procura de outra formade aproximar os sentidos da pesquisa –o anúncio da liberdade de escolha eraconvite à recusa, e nossas aparências demulheres distantes da realidade da cadeiaeram território estrangeiro, ao que aepistemologia da “vista do ponto” melhorexplicava que a do “ponto de vista”(HARAWAY, 1995). Como benefíciocompartilhado pela pesquisa, os questio-nários moviam agenda de demandas enecessidades; montamos plantão desocorro para as visitadoras ou presas. Aofinal, só duas mulheres se recusaram aresponder ao questionário.

Depois de muito perguntar, ouvir res-postas a perguntas pré-determinadas,resolvi retornar à cadeia de outro jeito:sentei-me no Núcleo de Saúde do presí-dio durante seis meses, de onde só tomeinotas do vivido e ouvido entre presas ejaleco branco (DINIZ, 2015a). Cadeia éespaço organizado pelas cores do poder:preto é cor de vigilância; branco, de visi-tadora de quinta-feira; laranja, de presa.Cheguei a pensar em uma quarta corpara acomodar-me no Núcleo de Saúde– diferente do manicômio judiciário,

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nem cogitei o branco como passe livrepara escuta; queria gritar escuta diferen-te, por isso vesti preto, a cor da vigilância.Uma presa não me confundia com a car-cereira, faltava-me não só a imponênciado corpo, mas o brasão da segurança e avoz de mando. Do pouco que falei, foi sópara me apresentar e arranhar pedidode consentimento, mas, com o tempo,até isso foi feito pelo jaleco branco emmeu lugar.

No Núcleo de Saúde escutei necessi-dades e precisões, tomei nota do vividono instante do dito e negociado, pois,como disse, nunca fiz pergunta a presa.Não me descrevo como invisível naque-le apertado conjunto de salas, mas como

desimportante. Os minutos de acolhi-mento pelo jaleco branco são preciosospara serem gastos com escutadeira que seanuncia como pesquisadora. Uma presateve que atravessar barreiras de poderpara ser ouvida pelo jaleco branco: umcatatau – pequeno bilhete do tamanho deum telegrama, a escrita típica de presídio– sai da cela, é recolhido no pátio porcolete preto, para ser selecionado porcuradora do Núcleo de Saúde, antes dechegar à mesa de jaleco branco do aten-dimento. Foi do assento da escuta queouvi as histórias no miúdo e na multidão:por ali passaram as loucas, as suicidas, asmães e as grávidas, as indígenas ou mui-to jovens, as crackeiras e as bicudas.

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No livro Cadeia: relatos sobre mulhe-res, conto a história de 50 encontros(DINIZ, 2015a). Não pude voltar aopresídio para ler as narrativas, como fizno filme A casa dos mortos.3 Sem ter aspresas como leitoras, resolvi fazerretorno noutro lugar: na cadeia depapel, o reformatório compulsório queacomodou uma em cada quatro mulhe-res para o futuro na prisão. Há quase umano, frequento a unidade socioeducati-va de internação da capital do país. Porali, ouço histórias, observo a vida, dur-mo na jega, tiro fotos e troco cartas.Faço o que se apresenta nos manuaiscomo etnografia, mas prefiro descrever

o método por palavreado conhecido nacasa: “puxo um plantão”.

CADEIA DE PAPELUm plantão é de 24 horas a cada trêsdias: esse é meu ritmo na cadeia de papel.O nome não foi inventado por mim,mas é palavra conhecida como ironiaprópria pelas meninas que ali vivem –nem tanto uma cadeia, mas já um pro-jeto de prisão. Como puxadora deplantão, ainda não tinha aprendido tudoque devia na cadeia quando ali cheguei,ainda com os modos de manual de pes-quisa, só sem prancheta ou gravador.

CATATAU. DEBORA DINIZ, 2013.

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Novamente vesti preto e, com voz dequem já tem geração de avó de quem alihabita, anunciei ser pesquisadora eescr itora. Me ouviram admiradas –como eu não seria uma pastora ou ofi-cineira? O tema de deus ou da arte foilogo esquecido, mas as meninas recla-maram escritos que atestassem o títulode escritora. Montei pasta variada deescritos estranhos – aborto ou racismo

eram alguns dos temas – e a distribuínas celas. As meninas queriam me conhe-cer antes que eu lhes fizesse perguntas:foi assim que falamos primeiro sobrequem eu era, o que penso e escrevo,para devagar minhas vontades de pes-quisadora serem aceitas (DINIZ,2015b). O encontro foi traduzido nova-mente por elas, “vamos pegar sentimento,d. Debora”.

Foi preciso o tempo de manicômio ede presídio feminino para entender oquanto a escrita é sobrevivência para avida em cadeia (ARTIÈRES, 2014;GOMÉZ; BLAS, 2005). Na cadeia de

papel, os escritos estão por todos oslados – na parede das celas das provisó-rias, nos bilhetes da escola, nas cartasque passamos a trocar. Como puxadorade plantão, sigo o ritmo da vida regrada

CADEIA DE PAPEL. DEBORA DINIZ, 2015.

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pelos conferes e revistas, pela escola,pelo banho de sol, pelo corre da faxina,pelo recolher noturno, mas, principal-mente, pela escrita e leitura de cartas.São já centenas delas: começamos pelaliteratura, deslizamos para o passado epelos segredos, e o assunto não terminaenquanto a sentença de liberdade não édecretada. As cartas são letras da solidão,mas integram uma ordem disciplinar daescrita como forma de arrependimento:cadeias são instituições cuja memória epermanência se dá pela escrita disciplinare normalizadora (FOUCAULT, 2010).

Se no Núcleo de Saúde do presídiofeminino minha permanência foi ao ladodo jaleco branco, na cadeia de papel,

faço sombra às Donagentes. Ali tambémo poder organiza as cores, mas a proxi-midade com o preto bagunçou meubinarismo tolo de antes da chegada. Nemsó de preto repressor sobrevive umamenina, a vigilância é recheada de cuida-dos. No território das celas, não entramtécnicos nem familiares, só as agentes depreto. Dra. Juíza é visitante de semes-tre, dra. Promotora ou dra. Defensoranunca as vi por ali. Pastoras oram aosdomingos, mães chegam ao pátio aossábados. De resto, a semana só é visita-da por Donagentes e, a cada três dias,por mim, uma puxadora de plantãoencantada com o recém-descobertomundo da cadeia de papel.

BARRACOS DE MENINAS. DEBORA DINIZ, 2015.

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ESCRITAS E VIDÊNCIASÉ da incerteza do presente que gostariade encerrar este ensaio – não sei o queescreverei sobre os meses de puxadora deplantão na cadeia de papel. Por ora, pre-firo pensar sobre os meios e jeitos comque escrevemos como pesquisadoras decadeia. Há raiva e ressentimento pelovisto e vivido; a denúncia do escândalo deZefinha exige pressa; o suicídio de JaneteMaria no presídio reclama luto no fora.Somos autoras abusadas, e com razão;feministas cansadas do justo distante emilitantes inquietas pelo equívoco domodelo punitivo. É verdade, o diagnós-tico me parece correto; minha dúvida ésobre nossos modos para falar sobreisso tudo.

Há gênero nas pesquisas em cadeia,e mais do que um estilo literário: a cor-porificação da autoria agenda o campo.Gênero não é apenas a sexagem de nos-sos corpos e o dobramento com as formasde vivermos a sexualidade. É mais: gêne-ro é um regime político de governo davida pelo patriarcado (DINIZ, 2015c).Poderia ter contado minhas histórias depesquisa pela sexagem das personagens– os loucos do manicômio, Zefinha, aspresas ou as meninas bandidas. Essa éuma das formas de olhar gêneros nas pes-quisas de cadeia. Eu ensaiei outra via: ada escritura e a da vidência. A escritasobre crime, bandidagem e cadeia é mas-culina, está imersa no patriarcado ereproduz a linguagem hegemônica dogênero. A pesquisa e a escrita sobre cadeiasão de homens e sobre homens.

Há duas formas de provocar minhatese da masculinidade do campo e suas

formas de escritura e vidência. A pri-meira é covarde de tão simples. Ocampo do direito penal, da sociologia dapunição e, mesmo, da criminologia édominado por autores homens. Ascadeias estão abarrotadas de homenspresos. Crime, castigo e autoria sãoquestões masculinas. Mas é a segundaversão da tese a que mais me interessa– a hegemonia dos homens impôs umaforma de falar sobre cadeia: a linguagemé a do sangue, da denúncia e do escân-dalo. Essas são estratégias impactantes,é verdade, mas receio pela potência demobilização. Prefiro arriscar outroscaminhos, quem sabe, o do encantamen-to – não falo poesia, não reclamo isso delinguagem poética sobre o horror dacadeia. Peço o encantamento de quemfaz desaparecer o medo para dar lugarao reconhecimento: escritura e vidên-cia importam para tornar visível oescondido ou desaparecido.

MODOS DE FALAR• Banho de sol: tempo de convívio

fora da cela. • Cadeia de papel: unidade

socioeducativa de internação.• Catatau: bilhete.• Colete preto: carcereiro.• Confere: procedimento da

vigilância.• Corre: trabalhos cotidianos.• Donagente: agente de vigilância

em unidade socioeducativa.• Jaleco branco: profissional de saúde.• Jega: cama de cadeia.• Manicômio judiciário: hospitais de

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custódia e tratamento psiquiátrico.• Massa: multidão de presas.

• Revista: procedimento da vigilânciade checagem do corpo.

NOTAS

Uma versão deste ensaio foi discutida no I1Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão, promovidopela Fundação Getulio Vargas em São Paulo, em outubrode 2015.

Foucault se move por, pelo menos, quatro sentidos2para acontecimento: novidade, regularidade, relações de

força e método do trabalho histórico. Aqui me debruço naideia do método da pesquisa histórica: escavação e novidade.

Depois da publicação do livro, fui proibida de3retornar ao presídio. Mesmo com autorizações judiciais,a alegação da direção do presídio é escassez de escoltapara me garantir a segurança.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PESQUISAS EM CADEIA:586

REVISTA DIREITO GV, SÃO PAULO11(2) | P. 573-586 | JUL-DEZ 2015

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Brasília – DF – Brasil

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Debora DinizDOUTORA EM ANTROPOLOGIA.

PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA.

PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA.