Revista Cruviana 4

58
Gildo Bento Ano 3. ed. 4. jan - jun, 2013 - Mossoró - RN - Brasil

description

Revista Virtual de Contos

Transcript of Revista Cruviana 4

Page 1: Revista Cruviana 4

Gild

o B

en

to

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

Gild

o B

en

to

PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]

FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]

INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]

O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]

INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]

Seloindependete Cruviana

Apoio EditorialEd Sarau das Letras

Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas

Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana

CapaFotos Gildo Bento

RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva

IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia

FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento

Conselho Editorial

Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)

David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)

Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)

Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)

Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)

O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio

(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)

Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]

Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura

Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis

Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem

A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas

Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 2: Revista Cruviana 4

Gild

o B

en

to

PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]

FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]

INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]

O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]

INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]

Seloindependete Cruviana

Apoio EditorialEd Sarau das Letras

Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas

Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana

CapaFotos Gildo Bento

RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva

IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia

FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento

Conselho Editorial

Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)

David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)

Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)

Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)

Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)

O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio

(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)

Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]

Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura

Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis

Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem

A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas

Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 3: Revista Cruviana 4

PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]

FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]

INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]

O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]

INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]

Seloindependete Cruviana

Apoio EditorialEd Sarau das Letras

Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas

Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana

CapaFotos Gildo Bento

RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva

IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia

FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento

Conselho Editorial

Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)

David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)

Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)

Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)

Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)

O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio

(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)

Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]

Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura

Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis

Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem

A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas

Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 4: Revista Cruviana 4

O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio

(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)

Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]

Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura

Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis

Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem

A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas

Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 5: Revista Cruviana 4

Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]

Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura

Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis

Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem

A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas

Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 6: Revista Cruviana 4

[Ana Peacuterola Pacheco]

colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 7: Revista Cruviana 4

Eu habito a rua do mundo

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 8: Revista Cruviana 4

Toda nascente a lua crescente

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 9: Revista Cruviana 4

Ausecircncia de coragem

Sem feacute nada aconteceria

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 10: Revista Cruviana 4

A espera

O vazio cheio de fim

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 11: Revista Cruviana 4

Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra

Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)

O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute

maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma

composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as

paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a

304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma

reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor

enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta

vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem

visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse

antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que

agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de

tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e

deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer

Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida

uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos

vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando

a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando

viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um

paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas

bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio

Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde

antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria

dos mundo todas as promessas avulsas

Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos

entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra

ford escort

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 12: Revista Cruviana 4

Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho

do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas

mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta

com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina

Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e

agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os

braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma

muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho

digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras

preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no

palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo

estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento

e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar

Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do

restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de

tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando

despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na

areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo

sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava

desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a

pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e

a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute

da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido

agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu

vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda

mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos

daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora

tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os

dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um

giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as

pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente

para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os

ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a

saia do vestido e a jogando para os lados

A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos

dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas

Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos

se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 13: Revista Cruviana 4

em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos

transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram

sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se

bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la

ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente

Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida

com um enfeite colado na parte superior arrancou um

guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e

escreveu-lhe um endereccedilo

ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta

Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava

decifrar o que estava escrito

Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo

resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma

moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do

Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida

desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com

o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto

Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo

Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa

vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que

isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os

carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da

praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e

ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora

substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas

do tracircnsito da grande cidade

Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela

iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O

remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da

Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia

seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila

Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia

esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo

dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de

alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 14: Revista Cruviana 4

respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na

geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade

retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e

voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-

o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do

k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis

Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A

cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para

aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou

nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa

Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou

ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois

que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que

escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que

natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte

das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para

nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar

mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal

envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade

entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e

irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs

Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento

Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade

Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta

Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela

despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito

com violecircncia acordando-o em desespero

Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as

correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo

A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se

feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu

passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e

magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado

arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 15: Revista Cruviana 4

primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que

deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel

pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete

escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco

- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da

minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto

Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade

das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto

quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a

faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria

um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com

ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para

abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada

Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia

Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que

pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute

um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia

dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila

escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando

sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua

procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de

seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e

a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das

duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta

Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram

e os olhos encharcaram-se vertiginosamente

Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou

a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os

pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-

fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a

Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a

Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um

edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para

um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e

esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-

nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 16: Revista Cruviana 4

capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada

vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma

certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada

Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre

as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila

de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade

desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido

e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou

profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria

mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo

consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu

lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o

porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute

da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de

cartas

ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou

- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas

respondeu

Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de

aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro

ndash E como aconteceu

ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar

Eu fui a uacutenica que sobrevivi

A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a

memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto

ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo

se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer

novamente

ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta

Perguntou ele

ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais

lindas poesias que jaacute recebi

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 17: Revista Cruviana 4

[sidsummershotmailcom]

vida de artistaSidney Fortes Summers

Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto

buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico

quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas

precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando

nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma

barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do

lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores

diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa

chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo

seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as

regras ardilosas desse complexo jogo

As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem

respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de

seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute

agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O

rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um

daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter

vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse

enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de

mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa

Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem

barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo

tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de

feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar

mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas

com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o

seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos

Abri a porta nu

Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma

viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido

A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 18: Revista Cruviana 4

como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu

estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles

adivinharam meu nome Meu nome completo

- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o

homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma

tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso

de aroma nauseante na outra

- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me

gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia

- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre

soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto

Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo

esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei

novamente me livrando de algumas cargas de metano e me

sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que

encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel

Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei

pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta

Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza

que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute

Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da

minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu

natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo

acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez

escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com

o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e

peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em

sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara

em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem

diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder

Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos

aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados

usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista

em quadrinhos ou estar na crua realidade

- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo

percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva

comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As

massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 19: Revista Cruviana 4

Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela

chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de

decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem

ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide

seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha

namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e

viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um

monge indiano que dividia leite com ratos

- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde

Monstro

Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar

por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo

esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou

pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da

descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do

estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o

anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo

todos uns fodidos

Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns

ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro

estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui

em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de

cigarro me permitiria Foram baforadas longas

Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por

demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara

Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em

diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em

alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 20: Revista Cruviana 4

diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]

Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo

silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre

subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos

prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo

aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa

quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus

redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus

democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por

um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua

voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das

culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe

absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores

em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto

em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes

Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos

os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de

promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos

estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes

do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu

nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas

Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como

quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos

dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo

Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia

Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco

perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-

me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro

Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga

fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo

Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios

restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 21: Revista Cruviana 4

sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao

escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a

elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva

Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da

desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os

castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que

pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo

do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos

males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A

minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 22: Revista Cruviana 4

Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala

- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se

ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu

mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo

Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou

Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele

obteve uma resposta breve

Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com

algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado

Maria ligou ao meacutedico

Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se

Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que

toca no televisor num daqueles programas que passam durante

a tarde

De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos

joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais

do que nunca

Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica

que continuava a tocar no televisor

Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar

Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos

perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute

estafar Dos tempos quehellip

Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se

cansado e inuacutetil desejou desistir

Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa

pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater

Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse

Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]

( )

Colaboradora internacional - Portugal

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 23: Revista Cruviana 4

Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na

solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver

assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua

religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma

companhia animadora nos momentos em que estamos

restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade

- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei

Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque

cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova

Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu

uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a

mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os

devaneios produzidos numa madrugada

Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais

nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia

culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra

maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu

corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e

dos amigos

Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das

ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem

ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir

os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez

que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de

perdatildeo pelos negativos registros celestiais

O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo

deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter

personalidades distintas

- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser

homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas

continuaratildeo a ser crianccedilas dizia

casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]

1

Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses

1

1

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 24: Revista Cruviana 4

Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um

poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra

prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma

canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento

Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as

taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada

convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena

proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental

Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -

ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos

ser servos natildeo servimos para viver

O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute

tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo

feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro

- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute

pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos

afirmava

Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave

frente de sua eacutepoca

Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute

enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar

uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes

Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam

que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr

Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como

natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias

vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente

ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada

melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque

Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o

medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees

Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 25: Revista Cruviana 4

intervenccedilatildeo 1

Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 26: Revista Cruviana 4

as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar

a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem

[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 27: Revista Cruviana 4

gato 1 [nina rizzi]

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 28: Revista Cruviana 4

gato 2 [nina rizzi]

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 29: Revista Cruviana 4

gato 3 [nina rizzi]

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 30: Revista Cruviana 4

Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de

Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda

Panati

Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas

desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico

ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava

ainda mais a andadura do debilitado animal

Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram

- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai

- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos

- Tatildeo tudo bem tambeacutem

Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e

aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou

- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu

peso e o saco natildeo

- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas

- Entatildeo homem ajude o pobre do animal

- De que jeito criatura

- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na

cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo

Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num

aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou

com a sugestatildeo

- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se

despedindo

De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para

ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez

volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz

animal

Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se

do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido

ajudado

E o sol toacuterrido por testemunha

o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 31: Revista Cruviana 4

Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]

o crespo

O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com

suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que

era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo

alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes

atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre

A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos

por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome

Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria

na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de

um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de

rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que

percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua

maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo

e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes

pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe

restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto

Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos

saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma

receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes

apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento

O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes

na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu

interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer

mortal ansioso por mais um pedaccedilo

Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam

ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um

instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um

fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia

Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando

com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os

preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 32: Revista Cruviana 4

matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr

em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos

uma brilhante moeda Apenas uma

O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em

seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas

circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia

normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital

parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo

A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em

pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um

trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente

em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua

vontade ao redor das moedas

O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em

que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros

forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo

acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens

Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas

nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os

guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e

disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava

em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo

O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas

baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio

Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se

acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos

Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa

Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos

balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu

em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 33: Revista Cruviana 4

a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]

Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los

zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais

torta que fosse a costura do mundo

O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido

Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada

Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o

descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo

Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar

para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno

corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo

beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol

branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo

varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado

nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao

esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos

a costureira a si proacutepria

A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada

alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra

natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil

costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder

mudar nenhum traccedilo apenas cosia

Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno

decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si

mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava

para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar

linearmente sua virtuosa existecircncia

-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute

fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta

vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 34: Revista Cruviana 4

Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com

suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana

Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de

laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma

viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina

sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila

de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha

Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio

admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee

costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele

que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados

Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura

e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca

Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do

nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de

julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao

mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que

pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital

mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre

sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela

situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede

colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de

devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o

milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de

matildee e filha com sua boneca

Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos

expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais

evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de

advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade

puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em

que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute

helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 35: Revista Cruviana 4

tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada

pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde

aos 13 anos

Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem

apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia

que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando

novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se

conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma

curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter

escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se

porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto

quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava

secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer

bobo diante dela

Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples

mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e

parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que

os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem

casal

De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde

daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para

confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina

mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma

fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos

O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha

pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira

escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas

desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e

escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo

vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela

sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc

O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila

e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que

restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas

manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida

daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar

em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo

sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 36: Revista Cruviana 4

forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber

desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e

por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha

mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por

dentro

Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de

Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher

mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo

tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os

ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu

Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo

nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e

resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa

tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua

mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava

emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o

emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa

Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por

confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a

qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela

precisava de uma ajuda especializada

Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor

e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa

que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente

que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o

nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta

Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e

caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta

Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute

conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam

para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto

proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca

montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo

embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana

de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e

estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute

lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem

que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 37: Revista Cruviana 4

inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo

conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram

timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir

Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou

se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo

como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto

as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila

Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes

de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles

chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a

levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram

O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O

dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso

O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital

psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia

congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e

seu novo mundo encantado

Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 38: Revista Cruviana 4

marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]

O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute

havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o

padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos

penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para

o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora

sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que

ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as

garotas queriam receber

Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada

acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas

foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia

de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia

chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio

apanhar tambeacutem E sempre apanhava

Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos

infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca

entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi

parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia

que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois

apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para

ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao

sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee

fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam

morrido de fome

O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de

ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus

dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem

mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua

cabeccedila

Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um

ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 39: Revista Cruviana 4

sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas

Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se

sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com

medo da morte

O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago

contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por

toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que

Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no

enterro nem dias depois Natildeo por fora

Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem

sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas

casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava

ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma

ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava

formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os

olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo

tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas

cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel

com a sua mudanccedila repentina

Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do

barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele

tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia

muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo

apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a

virgindade desta forma

Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma

dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-

versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam

natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo

tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o

padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e

sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores

Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer

enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem

asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre

espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a

casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do

mundo Morria de medo da vida

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 40: Revista Cruviana 4

intervenccedilatildeo 2

Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 41: Revista Cruviana 4

7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino

12 trabalhos

[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 42: Revista Cruviana 4

Rosto Feminino

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 43: Revista Cruviana 4

Caricatura

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 44: Revista Cruviana 4

Lavadeira

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 45: Revista Cruviana 4

Mandala

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 46: Revista Cruviana 4

Golfinhos

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 47: Revista Cruviana 4

Paacutessaros

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 48: Revista Cruviana 4

Misteacuterios

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 49: Revista Cruviana 4

Flor

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 50: Revista Cruviana 4

Senhora

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 51: Revista Cruviana 4

Ciacuterculos

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 52: Revista Cruviana 4

Movimentos

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 53: Revista Cruviana 4

Mulher

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58
Page 54: Revista Cruviana 4

Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil

  • Paacutegina 1
  • Paacutegina 2
  • Paacutegina 3
  • Paacutegina 4
  • Paacutegina 5
  • Paacutegina 6
  • Paacutegina 7
  • Paacutegina 8
  • Paacutegina 9
  • Paacutegina 10
  • Paacutegina 11
  • Paacutegina 12
  • Paacutegina 13
  • Paacutegina 14
  • Paacutegina 15
  • Paacutegina 16
  • Paacutegina 17
  • Paacutegina 18
  • Paacutegina 19
  • Paacutegina 20
  • Paacutegina 21
  • Paacutegina 22
  • Paacutegina 23
  • Paacutegina 24
  • Paacutegina 25
  • Paacutegina 26
  • Paacutegina 27
  • Paacutegina 28
  • Paacutegina 29
  • Paacutegina 30
  • Paacutegina 31
  • Paacutegina 32
  • Paacutegina 33
  • Paacutegina 34
  • Paacutegina 35
  • Paacutegina 36
  • Paacutegina 37
  • Paacutegina 38
  • Paacutegina 39
  • Paacutegina 40
  • Paacutegina 41
  • Paacutegina 42
  • Paacutegina 43
  • Paacutegina 44
  • Paacutegina 45
  • Paacutegina 46
  • Paacutegina 47
  • Paacutegina 48
  • Paacutegina 49
  • Paacutegina 50
  • Paacutegina 51
  • Paacutegina 52
  • Paacutegina 53
  • Paacutegina 54
  • Paacutegina 55
  • Paacutegina 56
  • Paacutegina 57
  • Paacutegina 58