Revista Cruviana 4
-
Upload
jotta-paiva -
Category
Documents
-
view
213 -
download
0
description
Transcript of Revista Cruviana 4
Gild
o B
en
to
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
Gild
o B
en
to
PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]
FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]
INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]
O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]
INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]
Seloindependete Cruviana
Apoio EditorialEd Sarau das Letras
Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas
Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana
CapaFotos Gildo Bento
RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva
IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia
FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento
Conselho Editorial
Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)
David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)
Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)
Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)
Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)
O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio
(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)
Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]
Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura
Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis
Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem
A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas
Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Gild
o B
en
to
PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]
FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]
INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]
O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]
INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]
Seloindependete Cruviana
Apoio EditorialEd Sarau das Letras
Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas
Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana
CapaFotos Gildo Bento
RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva
IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia
FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento
Conselho Editorial
Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)
David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)
Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)
Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)
Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)
O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio
(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)
Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]
Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura
Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis
Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem
A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas
Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
PAINEL [Ana Peacuterola Pacheco]
FORD ESCORT [Joseacute de Paiva Rebouccedilas]VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers]DIAacuteRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago]( ) [Carla Duarte]CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto]
INTERVENCcedilAtildeO 1[Nina Rizzi]
O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson Joseacute Batista]O CRESPO [Julia Godoy]A COSTUREIRA O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes]HELENA [Sancha Walessa]MARIANINHA [Thiago Jefferson]
INTERVENCcedilAtildeO 2[Fabiana Tessia]
Seloindependete Cruviana
Apoio EditorialEd Sarau das Letras
Editor-ChefeJoseacute de Paiva Rebouccedilas
Editoraccedilatildeo Designer e DiagramaccedilatildeoEditora Cruviana
CapaFotos Gildo Bento
RevisatildeoRegiane Santos Cabral de Paiva
IlustraccedilotildeesAnchieta RolimNina RizziFabiana Tessia
FotografiaAna Peacuterola PachecoGildo Bento
Conselho Editorial
Clauder Arcanjo(Escritor Poeta e editor)
David de Medeiros Leite(Escritor Editor Advogado e Professor da UERN)
Regiane Santos Cabral de Paiva(Professor de Literatura da UERN)
Carlos Gildemar Pontes(Escritor Poeta Editor e Professor da UFCG)
Raimundo Leontino Filho(Poeta Escritor Ensaiacutesta e Professor da UERN)
O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio
(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)
Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]
Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura
Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis
Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem
A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas
Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada vagando na boca de um precipiacutecio
(in Ford Escort Joseacute de Paiva Rebouccedilas)
Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]
Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura
Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis
Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem
A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas
Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Constelaccedilatildeo [ANCHIETA ROLIM]
Nesta ediccedilatildeo entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto Ford Escort foi a primeira incursatildeo que fiz pela prosa Nele estaacute contido todo o meu despreparo e desrespeito Toda a minha anguacutestia e usura
Esta revista tem um pouco disso de ser inaugural imperfeita e despretensiosa Eacute um espaccedilo para palavras boas ou ruins novas ou velhas Foi feita para embrulhar patildeo ou para cuspir soacute natildeo para os igarapeacutes as foacutermulas as regras e os aneacuteis
Nesta ediccedilatildeo de poucos contos as imagens nos invadem e se proliferam como uma benccedilatildeo As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem
A quarta ediccedilatildeo surge atrasada mas surge como o cupim na cumeeira que jaacute roeu todas as nossas esperanccedilas
Joseacute de Paiva RebouccedilasEditor
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
[Ana Peacuterola Pacheco]
colorido eacute o seu sentirltkitoshiroxgmailcomgtgtgt
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Toda nascente a lua crescente
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Ausecircncia de coragem
Sem feacute nada aconteceria
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
A espera
O vazio cheio de fim
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Deixe de ser tatildeo cruel Escreva ao menos uma palavra
Num pedaccedilo de papel(Bartocirc Galeno)
O botatildeo do play foi acionado e os arranjos de um violatildeo em laacute
maior quebraram-lhe a maldiccedilatildeo dos pensamentos Uma
composiccedilatildeo triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as
paacutelpebras Um rio molhou sua camisa O Ford Escort alcanccedilou a
304 no rumo de Natal A estrada que se estende quase como uma
reta talhando cidades e pontilhotildees ficou vazia e sem cor
enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta
vermelha numa fotografia preto-e-branco No volante um jovem
visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcanccedilasse
antes de chegar a seu destino Ele recordava toda a sua vida que
agora se resumia ao ano corrente Tudo antes fora ilusatildeo perda de
tempo e estaacutegios Os uacuteltimos meses transcorreram lentos e
deixaram marcas profundas daquelas que natildeo se deve esquecer
Mas agora o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida
uma dor latente e incoerente assim como sua vida e seus olhos
vermelhos de reclamar A visatildeo turva e a fala engasgada forccedilando
a letra da muacutesica o transportaram para o comeccedilo do ano quando
viajar era para ele um grito de salvaccedilatildeo A liberdade eacute um
paacutessaro voando em alta velocidade dizia erguendo o copo nas
bebedeiras Quando ganhou do pai seu primeiro carro o lendaacuterio
Ford Escort XR3 conversiacutevel de segunda matildeo que sonhava desde
antes de poder dirigir decidiu naquele instante que aproveitaria
dos mundo todas as promessas avulsas
Numa dessas viagens sem rumo foi engolido pelos
entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra
ford escort
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Subiu a capota do Ford deixou as sandaacutelias na esteira do assoalho
do carro verificou se a bagagem uma bolsa de matildeo com duas
mudas de roupas estava segura no banco de traacutes e bateu a porta
com cuidado Desceu o calccediladatildeo afundando os peacutes na areia fina
Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exoacutetico e
agradaacutevel Um sorriso inconsciente lhe cortou os laacutebios finos e os
braccedilos caiacuteram como se fossem abandonar o corpo Havia uma
muacutesica perfeita para aquela praia tocando em algum aparelho
digital Reconheceu a voz de Khrystal uma de suas cantoras
preferidas Podia imaginaacute-la articulando os peacutes pequenos no
palco Mulata baixinha de cabelos rebeldes e um agudo
estridente que lhe arrancava a postura Perdeu-se no pensamento
e esbarrou sem querer numa moccedila que danccedilava o coco potiguar
Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do
restante do grupo que estava com ela Mas aiacute se deu conta de
tudo Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando
despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na
areia Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo
sorriso que se tratava de uma menina mas ele estava
desmedidamente atordoado Por um instante a vida parou mas a
pulsaccedilatildeo dele era um rio perene Tocava o ldquoCoco da matildee do marrdquo e
a moccedila rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjaacute
da Praia do Meio Riscava em ciacuterculos misturando o azul do vestido
agrave imensidatildeo topaacutezio do atlacircntico que tambeacutem se perdera no ceacuteu
vazio de nuvens Ele a amou eternamente Apaixonou-se ainda
mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos
daquela praia O mundo apagou-se Era ele e ela que agora
tambeacutem sorria em sua direccedilatildeo Os outros se afastaram para os
dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel Ela deu um
giro completo fazendo a barra de seu vestido accediloitar-lhe as
pernas Quando se voltou parou um instante olhou fixamente
para ele e depois continuou a danccedilar fazendo movimentos com os
ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a
saia do vestido e a jogando para os lados
A muacutesica nem havia terminado quando ela sem ao menos
dizer-lhe o nome anunciou que precisava ir Deu-lhe as costas
Ele agarrou-a pelo braccedilo e a levou ao seu encontro Seus corpos
se uniram numa amaacutelgama sincreacutetica e estranha Espaccedilo e tempo
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
em suspensatildeo Os perfumes a transpiraccedilatildeo Os haacutelitos
transmutaram-se e eles se derramaram Os corpos reagiram
sonolentamente ateacute que ela parecendo assustada afastou-se
bruscamente e tentou correr Ele voltou a seguraacute-la
ndash Seu telefone pediu ele soltando-a levemente
Ela abriu uma pequena bolsa tirou uma caneta colorida
com um enfeite colado na parte superior arrancou um
guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e
escreveu-lhe um endereccedilo
ndash Escreva-me ningueacutem nunca me escreveu uma carta
Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava
decifrar o que estava escrito
Ele ficou vendo-a correr e sumir no calccediladatildeo Soacute entatildeo
resolveu ir atraacutes Deixou a praia voltou para o carro deu uma
moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contraacuterio ao Morro do
Careca na tentativa de cruzar com ela novamente Medida
desesperava Laacute na frente quando a rua acabou-se ele subiu com
o carro agrave esquerda retornou pela Avenida Engenheiro Roberto
Freire pegou outra vez o acesso agrave praia e margeou o calccediladatildeo
Nenhum sinal da bailarina Tentou refazer o caminho mas dessa
vez foi impedido de passar pela fiscalizaccedilatildeo do tracircnsito que
isolava uma aacuterea grande do asfalto Uma multidatildeo circulava os
carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da
praia Um guarda fez sinal para que desobstruiacutesse a passagem e
ele teve de voltar Natildeo via mais nada e a muacutesica de Krystal fora
substituiacuteda pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas
do tracircnsito da grande cidade
Na noite que se abateu sobre a cidade a treva combatida pela
iluminaccedilatildeo da capital espacial buscou esconderijo em seu peito O
remeacutedio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da
Salsa no Beco da Lama ou no Buraco da Catita Acordou no dia
seguinte perto das 11 horas da manhatilde sem poder com a cabeccedila
Natildeo sabia como chegara ao apartamento da repuacuteblica que dividia
esporadicamente com amigos e primos Imaginou pela situaccedilatildeo
dos colegas que tivessem vindo juntos de algum lugar e de
alguma maneira O Ford Escort estava intacto no paacutetio e ele
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
respirou aliviado Tomou um banho comeu o que achou na
geladeira engoliu um analgeacutesico sem reparar a data de validade
retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro ligou o motor e
voltou para Mossoroacute A estrada longa quente e cansativa obrigou-
o a ouvir todas as fitas do porta-luvas Saboreava o som pesado do
k7 com o mesmo amor que os nostaacutelgicos empregam aos vinis
Gostava de voltar a fita soacute para ouvir o ruiacutedo das engrenagens A
cabeccedila doiacutea muito mas uma das muacutesicas o levou novamente para
aquela praia As lembranccedilas eram tatildeo recentes que ele se afogou
nelas e soacute acordou quando estava entrando em casa
Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde Tentou
ser poeacutetico mas tudo que conseguiu foi ser adolescente Depois
que postou a carta arrependeu-se de natildeo ter lido novamente o que
escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras Dizem que
natildeo se deve morrer por amor mas natildeo haacute como afastar a morte
das preocupaccedilotildees o amor faz-nos morrer como eacuteramos para
nascermos com outras sensaccedilotildees e propoacutesitos A dele era esperar
mas a ausecircncia de resposta lanccedilada agrave juventude eacute um punhal
envenenado Fora assim para ele que afogado na ansiedade
entregou-se ao purgatoacuterio do aacutelcool amedrontando seus pais e
irmatildeos Ameaccedilaram tomar-lhe o carro ateacute que ele se recompocircs
Escreveu a segunda carta mas escondeu o sofrimento
Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade
Citou um poeta que natildeo conhecia e voltou a esperar resposta
Sonhava com a menina danccedilando em sua praia Um dia ela
despencou do ceacuteu num salto letiacutefero e mergulhou em seu peito
com violecircncia acordando-o em desespero
Numa terccedila-feira de manhatilde o carteiro gritou no portatildeo com as
correspondecircncias como fazia sempre mas ele jaacute natildeo tinha acircnimo
A falta de esperanccedila habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se
feito um desvalido Tomou as cartas por obrigaccedilatildeo e seguiu
passando-as uma a uma Entre os papeacuteis um envelope pequeno e
magro tinha seu nome A ansiedade poderia ter-lhe provocado
arritmia mas estava seco e natildeo se abalou Leu ali mesmo pela
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
primeira vez entre o portatildeo e a porta da frente um nome que
deveria ser o dela Pareceu-lhe tatildeo lindo que achou impraticaacutevel
pronunciaacute-lo em voz alta Dentro do envelope branco um bilhete
escrito no pedaccedilo de uma folha dizia pouco
- ldquoSuas cartas satildeo como poesias que matam a sede da
minha dor choro com vocecirc toda a saudaderdquo Ponto
Natildeo importava a quantidade de letras a intencionalidade
das palavras bastava Ela tinha respondido e o amava tanto
quanto ele a amava Precisava revecirc-la Talvez abandonasse a
faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal Arrumaria
um emprego juntaria o salaacuterio com a mesada e encontraria com
ela todas as noites O amor era real e havia batido agrave sua porta para
abraccedilaacute-lo e convidaacute-lo para a noitada
Escreveu outras cartas escreveu sem parar Uma por dia
Contou-lhe tudo o que sabia sobre si proacuteprio Disse o que
pretendia e natildeo fez cerimocircnia ao falar de futuro Mas a anguacutestia eacute
um viacutecio que natildeo tarda e logo ele voltou a adoecer pela ausecircncia
dela Trecircs meses e nenhuma resposta Num ato de desesperanccedila
escreveu-lhe a uacuteltima mensagem um telegrama ameaccedilando
sufocaacute-la com o seu ardor Partiria na mesma semana agrave sua
procura enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portatildeo de
seu condomiacutenio ateacute que ela o recebesse A ameaccedila surtiu efeito e
a resposta veio em outro telegrama Ao abri-lo e ler a primeira das
duas linhas escritas ele sentiu o peso de Deus em sua garganta
Seu corpo desobedecera agrave buacutessola da cabeccedila as matildeos tremeram
e os olhos encharcaram-se vertiginosamente
Jogou o papel no chatildeo catou a chave do Ford Escort baixou
a capota acionou o portatildeo e riscou o piso da garagem com os
pneus Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte No toca-
fitas a muacutesica triste foi repetida ateacute que o carro alcanccedilasse a
Avenida Hermes da Fonseca no centro de Natal Cruzou a
Alexandrino de Alencar e seguiu ateacute chegar agrave portaria de um
edifiacutecio solitaacuterio Identificou-se ouviu o porteiro interfonar para
um nome Encostou-se ao muro para natildeo desabar das pernas e
esperou algum tempo A dor agraves vezes parece engraccedilada e faz-
nos sorrir enquanto choramos O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
capaz de enganar a afliccedilatildeo mas ele eacute apenas um pedaccedilo de nada
vagando na boca de um precipiacutecio Ele agora sabia disso com uma
certeza lancinante e de repente natildeo entendia mais nada
Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos O sol abriu-se entre
as nuvens e apresentou-lhe um ceacuteu aberto e infinito Uma moccedila
de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade
desconhecida Seus cabelos pintavam de ouro as alccedilas do vestido
e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz Ele a olhou
profundamente e depois natildeo viu mais nada Recobrou a memoacuteria
mas natildeo se encontrou A mesma voz voltou a soar trazendo
consigo lampejos Percebeu que acordava em outro lugar Ao seu
lado a jovem sorria pacientemente Ele havia desmaiado e o
porteiro o levara ateacute o apartamento dela Estava deitado no sofaacute
da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maccedilo de
cartas
ndash Por que vocecirc recebia minhas cartas Perguntou
- Ela lhe deu meu endereccedilo eacuteramos melhores amigas
respondeu
Ele a olhou densamente em silecircncio tomou mais um gole de
aacutegua respirou devagar e sentiu-se mais seguro
ndash E como aconteceu
ndash Um carro invadiu a contramatildeo natildeo houve como desviar
Eu fui a uacutenica que sobrevivi
A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a
memoacuteria Lembrou-se das sirenes da multidatildeo e de ter visto
ambulacircncias Jamais poderia imaginar Neste momento o mundo
se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era para nascer
novamente
ndash E por que vocecirc natildeo me contou logo na primeira carta
Perguntou ele
ndash Natildeo tive coragem disse ela Suas cartas foram as mais
lindas poesias que jaacute recebi
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
[sidsummershotmailcom]
vida de artistaSidney Fortes Summers
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto
buscando uma iluminaccedilatildeo espiritual ou algum insight miacutestico
quando ouvi trecircs batidas na porta Toc Toc Toc Trecircs batidas
precisas e firmes Natildeo dei ouvidos e continuei me concentrando
nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeccedila Uma
barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto O lixo do
lado de fora era maior e laacute aleacutem quarto ela encontraria maiores
diversotildees Ateacute que algueacutem a acertasse em cheio com uma boa
chinelada ou com um jato mortiacutefero de inseticida Comigo natildeo
seria diferente Respeitei sua escolha por respeitar a vida E as
regras ardilosas desse complexo jogo
As batidas na porta recomeccedilaram insistentes Ningueacutem
respeita o silecircncio alheio nesses dias conturbados de iniacutecio de
seacuteculo Seacuteculo XXI O que seraacute que realmente nos espera Ateacute
agora tudo igual E antes as coisas jaacute natildeo eram maravilhosas O
rumo nefasto para o qual guiamos o planeta Peidei Baixinho um
daqueles silenciosos e fatais Pedi que esperassem Eu poderia ter
vestido alguma roupa mas apenas esperei que o fedor passasse
enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto As manchas de
mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa
Peidei novamente enquanto caminhava Dessa vez foi bem
barulhento Mas desses que natildeo fedem muito Ao menos natildeo
tanto quanto o anterior O fruto pestilento da ultima porccedilatildeo de
feijatildeo guardada da semana Essas coisas costumam demorar
mais para se acabarem quando se mora soacute ou quando as pessoas
com quem voce divide a geladeira natildeo estatildeo acostumadas com o
seu tempero Melhor sua ausecircncia de condimentos
Abri a porta nu
Fiquei mudo Cogitei alguma viagem astral estranha Uma
viagem no tempo Uma volta ao passado distante e desconhecido
A santiacutessima inquisiccedilatildeo no meu encalccedilo A caccedila as bruxas Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagatildeos Eu
estava pronto a negar qualquer envolvimento Mas eles
adivinharam meu nome Meu nome completo
- Senhor Will sabemos de tudo o que o senhor fez ndash disse o
homuacutenculo que parecia ser o chefe da corja Ele carregava uma
tocha acesa na matildeo direita e uma lata onde fumegava um incenso
de aroma nauseante na outra
- Noacutes sabemos noacutes sabemos de tudo seu canalha ndash me
gritou em coro a multidatildeo que lhe seguia
- Voce eacute um porco um imundo um criminoso Eu sempre
soube ndash gritou algum imbecil que eu nunca havia visto
Fechei a porta Aquilo natildeo devia passar de algum pesadelo
esdruacutexulo Um efeito imprevisto do mofo alucinoacutegeno Peidei
novamente me livrando de algumas cargas de metano e me
sentindo um homem melhor mais leve Vesti a primeira cueca que
encontrei na gaveta Estava furada mas era bem confortaacutevel
Coloquei a calccedila jeans Calcei as havaianas Respirei fundo Olhei
pela janela O mesmo caos de sempre Novas batidas na porta
Acendi um cigarro dei duas tragadas e fui abri-la com a certeza
que nenhuma daquelas pessoas estaria por laacute
Ledo engano Todas estavam prostradas em filas diante da
minha porta descendo as escadas do preacutedio de apartamentos Eu
natildeo queria saber que merda era aquela Soacute queria que aquilo
acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida Mais uma vez
escapasse vivo desse ardil improvaacutevel do destino Eu estava com
o isqueiro ainda na matildeo direita Com a esquerda me estiquei e
peguei o inseticida Acendi o isqueiro que estava posicionado em
sua frente pouco antes de apertar o botatildeo superior que dispara
em spray o veneno matador de insetos A realidade eacute bem
diferente dos filmes Queimei os ciacutelios e sobrancelhas do liacuteder
Seus cabelos E joguei tudo para o alto quando minhas matildeos
aqueceram Rosrhark venceu um exercito de militares treinados
usando a mesma teacutecnica Essa eacute a diferenccedila de estar numa revista
em quadrinhos ou estar na crua realidade
- Ele tem um pacto com algum democircnio vejam ndash eu natildeo
percebia essa relaccedilatildeo que parecia obvia pela adesatildeo coletiva
comprovada atraveacutes do conjunto de vozes em uniacutessono As
massas apreciam afirmaccedilotildees disparatas Sempre
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras Ela
chorava e gritava comigo Vi em seus olhos a expressatildeo clara de
decepccedilatildeo e dor Eu natildeo fizera nada para magoaacute-la Nem a ningueacutem
ali Eu era um pacifista ex-vegetariano um homem que divide
seu tempo entre livros e trabalho Por amor tambeacutem se minha
namorada natildeo me tivesse abandonado haacute algumas horas e
viajado para outro continente em busca do amor da sua vida um
monge indiano que dividia leite com ratos
- Voce me enganou por todos esses anos Como voce pocircde
Monstro
Se fosse um conto do Kafka Essa histoacuteria poderia acabar
por aqui sem maiores problemas Um bom final que natildeo
esclarecesse coisa alguma Mas algueacutem Um desconhecido ou
pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da
descoberta dos meus escritos A incompreensatildeo era o preccedilo do
estrelato do mesmo modo que a fome se justificava com o
anonimato Escritores poetas atores dramaturgos e artistas satildeo
todos uns fodidos
Foi entatildeo que percebi alguns parentes Minha matildee Alguns
ex-amigos Todos com suas tochas acesas na matildeo Meu cigarro
estava no fim Eu tinha perdido meu isqueiro Dei de costas e fui
em direccedilatildeo ao maccedilo acender o proacuteximo enquanto o toco de
cigarro me permitiria Foram baforadas longas
Sidney Fortes Summers eacute escritor tem dois livros publicados por
demanda (ldquoRatos com Asasrdquo e ldquoPrazerSidrdquo) e um terceiro ineacutedito (ldquoPara
Aleacutem do Que Natildeo Haacute) Tem contos poesias e ensaios publicados em
diversas revistas nacionais e internacionais Trabalhou como roteirista em
alguns curtas Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
diaacuterio em devaneio noturno viiiKarinne Santiago [karinnesantiagogmailcom]
Sacrileacutegio eacute negligenciar o desejo Cada pelo ericcedilado eacute uma oraccedilatildeo
silenciosa da libido Amedronta-me natildeo ousar a carne ao milagre
subversivo do instinto E ardo em penitecircncia quando isolada dos
prazeres desfiguro o que haacute de mais divino no humano Obedeccedilo
aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa
quando oferto o corpo ao seu templo preciso Todos os meus
redutos satildeo oferendas em exposiccedilatildeo sem pecados Meus
democircnios reverencio entre tecidos castos Catequizando um por
um com cartilhas taacuteteis Pressinto os suores Adivinhaccedilotildees de sua
voluacutepia Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das
culpas Clamo Rogo Paladares atentos desvendam dogmas e lhe
absorvo ao reverso do puritanismo Deslizando nossos sabores
em preces desconexas Loacutebulo Claviacuteculas Colo E em transe sinto
em ecircxtase o preccedilo da entrega Alucino em liacutenguas diferentes
Latim ou puro balbuciar desgovernado Listando o nome de todos
os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de
promessas avulsas Via-sacra dos prazeres Braccedilos aacutevidos
estendidos em clamor Muitas imagens repercutem pelas paredes
do quarto Um oratoacuterio de vozes socircfregas em coro repetem meu
nome Tremores Sinto o corpo em chagas por suas mordidas
Seus dentes cravando a dor por devoccedilatildeo Agarro sua nuca como
quem procura as contas de um rosaacuterio Remexo as pontas dos
dedos Contraio o quadril e arqueio Busco vazios e respiro fundo
Retomo meus ares e continuo em audaacutecia essa doce penitecircncia
Os mandamentos repercutem Variaccedilotildees distorcidas e um eco
perpetua a cobiccedila e a luxuacuteria Ajoelho-me em suacuteplica agarrando-
me agrave vocecirc Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro
Um confessionaacuterio em deleite O ar impregnado do cio instiga
fantasias sobre o paraiacuteso Dou-lhe os mamilos em comunhatildeo
Redondos e fraacutegeis Alvos faacuteceis anunciam todos orifiacutecios
restantes em purgatoacuterio Esperanccedilosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
sem piedade e por sua graccedila e reverecircncia pulsam lacrimejando ao
escorrer quente e vagarosamente Seu haacutelito inunda-os Sinto a
elevaccedilatildeo de nossas almas Penso no Gecircnese Falo o nome de Eva
Quero a maccedilatilde Quero entre os meus laacutebios o fruto da
desobediecircncia E ouccedilo dizer-me sobre o prazer derradeiro Os
castigos que acarretam aos amantes Impiedosa fuacuteria divina que
pelo amor demasiado corrompe paixotildees Imploro pela expulsatildeo
do seu corpo diante do meu ventre desnudo Liberto-nos dos
males Encho-me de gloacuteria e bendigo seu nome num grito A
minha voz anuncia nossa salvaccedilatildeo
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Acordou cedo antes do sol raiar procurou apoio na sua bengala
- que ele proacuteprio esculpira - com passos arrastados dirigiu-se
ao cadeiratildeo na varanda Viu o sol romper no horizonte o ceacuteu
mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo
Ao longe o sino suou doze badaladas ele contou
Maria estranhou a ausecircncia do seu marido chamou por ele
obteve uma resposta breve
Ainda no cadeiratildeo pediu ajuda agrave Maria para levantar-se com
algum custo laacute levantou-se sentia o corpo pesado
Maria ligou ao meacutedico
Madalena tinha carro e ajudou o avocirc a deslocar-se
Com os olhos cheios de emoccedilatildeo concentra-se na muacutesica que
toca no televisor num daqueles programas que passam durante
a tarde
De peacute ligeiro bate no chatildeo ao ritmo da melodia As matildeos nos
joelhos olha-os com alguma incerteza Doiacuteam-lhe hoje mais
do que nunca
Ele observou as pessoas na sala de espera alheios agrave muacutesica
que continuava a tocar no televisor
Talvez soacute a ele a muacutesica fazia vibrar
Outra hora danccedilara noites a dentro Correra pelos campos
perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou ateacute
estafar Dos tempos quehellip
Por um segundo entre um suspiro e a alma pesada Sentiu-se
cansado e inuacutetil desejou desistir
Um calor subiu-lhe ao rosto a matildeo quente da sua esposa
pousou na sua fez-lhe o coraccedilatildeo bater
Nem tudo estava perdido enquanto ela ali estivesse
Carla Duarte [carladuarte803hotmailcom]
( )
Colaboradora internacional - Portugal
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Eacute fato que todos temos ao menos um amigo que vive na
solidatildeo seja por escolha proacutepria ou porque a vida o obrigou a viver
assim E nessa solidatildeo na qual ele vive segue-a como fosse sua
religiatildeo Mas por inuacutemeras vezes este amigo mostra-se uma
companhia animadora nos momentos em que estamos
restaurando o impeacuterio da natureza corrigindo a obra da sociedade
- Prometo que esta foi a uacuteltima vez que errei
Foi com esta promessa que os laacutebios do Sr Albuquerque
cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova
Suas matildeos estavam sujas com o mais iacutenfimo dos pecados e seu
uacutenico desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele afinal a
mais ceacutelebre anestesia para uma alma angustiada satildeo os
devaneios produzidos numa madrugada
Refugiar-se nos braccedilos de uma prostituta quarenta anos mais
nova que ele parecia ser sua fonte de juventude como poderia
culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida Que outra
maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu
corpo Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da famiacutelia e
dos amigos
Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das
ideias O assassino mental natildeo permite que as pessoas cheguem
ao paraiacuteso em palavras quando omite seus pensamentos Omitir
os pensamentos seria a arma desse tipo de crime Para cada vez
que se omitem pensamentos existe dez ou mais pedidos de
perdatildeo pelos negativos registros celestiais
O Sr Albuquerque estava certo de que no veratildeo proacuteximo
deixariacuteamos de ser meros vasos de barro e passariacuteamos a ter
personalidades distintas
- Terei uma personalidade distinta Homens voltaratildeo a ser
homens mulheres assumiratildeo seu gecircnero e crianccedilas
continuaratildeo a ser crianccedilas dizia
casa 44Antonio Francisco de Morais Neto [prmoraislivecom]
1
Machado de Assis romancista brasileiro autor de obras como Contos Fluminenses
1
1
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Nesse dia o sol brilharaacute como o sorriso de uma bela mulher para um
poeta enamorado as nuvens casadas com o ceacuteu azul seratildeo a maior obra
prima de um artista com pinceis e a natureza entoaraacute com excelecircncia uma
canccedilatildeo na harmonia do vai e vem de seus galhos balanccedilados pelo vento
Por vezes incontaacuteveis era visto em uma esquina e outra clareando as
taciturnas vidas das pessoas que o cercavam com suas ideias nada
convencionais Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena
proviacutencia na qual morava e por isso natildeo poderia ser um assassino mental
Quando passo em frente a sua casa me parece ainda ouvir a sua voz -
ou seratildeo gritos - ensinado que vivemos para servir e se natildeo soubermos
ser servos natildeo servimos para viver
O Sr Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido eacute
tornar-se escritor Para ele o conhecimento deveria ser cultivado em solo
feacutertil coraccedilatildeo e ceacuterebro
- Ter minhas ideias escritas eacute sepultar minha essecircncia porque nada eacute
pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos
afirmava
Por que muitos natildeo o compreendiam Talvez ele estivesse mil anos agrave
frente de sua eacutepoca
Hoje eacute o primeiro pocircr do sol de maio de dois mil e doze terccedila-feira Eacute
enterrado no Parque da Saudade um corpo O corpo de uma figura iacutempar
uma pessoa de caraacuteter e personalidade sem precedentes
Laacutegrimas vertem-se pelos rostos dos presentes afinal todos ali sabiam
que o mundo perdeu por natildeo ter aproveitado mais a companhia do Sr
Albuquerque Os que mais foram influenciados por ele pensavam como
natildeo se emocionar ao ver em uma ldquocaixa de madeirardquo aquele que vaacuterias
vezes te ensinou a pensar com a proacutepria mente
ldquoO siacutembolo da inteligecircnciardquo era o que estava escrito em sua laacutepide Nada
melhor que este epitaacutefio para descrever o Sr Albuquerque
Por fim digo queria falar tudo e muito mas natildeo consigo talvez seja o
medo de algueacutem tomar conhecimento das minhas inquietaccedilotildees
Antonio Francisco de Morais Neto ou Morais Scott como assina seus trabalhos patriacutecio de ApodiRN Escreve contos crocircnicas poesia compotildee Chora com bons filmes hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com oacutetimos livros
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
intervenccedilatildeo 1
Francinaldo Rafael [francinaldorafaelgmailcom]
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
as imagens tem como tiacutetulo canto de um povo de um lugar
a teacutecnica eacute mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi]ltninarizzigmailcomgtgtgt
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
gato 3 [nina rizzi]
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Aconteceu que Luiacutes Freijoacute se encontrou com Manuelzatildeo de
Terto do Juazeiro-de-Dentro na estrada que dava acesso agrave fazenda
Panati
Esse Manuelzatildeo homem espadauacutedo enorme mas
desinteligente vinha em um reles cavalinho minguado cadaveacuterico
ateacute Na lua da cela trazia um volumoso saco de feijatildeo que dificultava
ainda mais a andadura do debilitado animal
Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram
- Olaacute Manuelzatildeo tudo bem E a famiacutelia como vai
- A famiacutelia vai bem E a mulher e os meninos
- Tatildeo tudo bem tambeacutem
Luiacutes observando o repuxo de ar socircfrego do cavalinho e
aproveitando o mote e a ocasiatildeo argumentou
- Mas Manuelzatildeo esse cavalinho natildeo estaacute muito fraco para seu
peso e o saco natildeo
- Eacute Luiacutes mas da cidade para casa eacute quase duas leacuteguas
- Entatildeo homem ajude o pobre do animal
- De que jeito criatura
- Vocecirc eacute um homem forte e pode muito bem levar o saco na
cabeccedila para aliviar essa carga do cavalo
Manuelzatildeo ainda titubeou quis fazer uma reflexatildeo mas num
aacutetimo voltou a ser ele mesmo o Manuelzatildeo de sempre E concordou
com a sugestatildeo
- Eacute mesmo natildeo eacute Luiacutes ndash colocando o saco na cabeccedila e se
despedindo
De vez em quando Manuelzatildeo se contorcia com esforccedilo para
ainda agradecer com acenos ao Luiacutes Freijoacute Este por sua vez
volteava-se folgazatildeo a confirmar a marcha vacilante do infeliz
animal
Laacute se iam distanciando os dois cavaleiros um deliciando-se
do dever de ajudar ao proacuteximo outro degustando o prazer de ter sido
ajudado
E o sol toacuterrido por testemunha
o ajudante e o ajudadorElilson Joseacute Batista [elilsonbatistayahoocombr]
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Julia Godoy [juliagodoyyahoocombr]
o crespo
O Crespo andava ensimesmado Percorreu a torre de vigia com
suas botas de veludo reservadas para aquelas semanas em que
era escalado para o plantatildeo noturno Com seus binoacuteculos de longo
alcance observava a total ausecircncia de acontecimentos relevantes
atraveacutes das fendas entre os velhos tijolos da torre
A torre de vigia havia sido construiacuteda haacute exatos 809 anos
por um heroacutei audacioso de quem o Crespo natildeo recordava o nome
Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de histoacuteria
na uacutenica ocasiatildeo em que o abrira um homem hirsuto dotado de
um imponente bigode que encobria como um vegetal parasita de
rara beleza mais da metade do seu rosto No momento em que
percebeu que o pesado livro de histoacuteria era composto em sua
maior porccedilatildeo por palavras notadamente de difiacutecil compreensatildeo
e natildeo por figuras de heroacuteis destemidos e seus bigodes
pomposamente enegrecidos o Crespo perdeu o pouco que lhe
restava de interesse pelos estudos Manteve-se no Instituto
Educacional Ribeirinho devido unicamente agrave sua paixatildeo pelos
saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moreacuteia uma
receita passada de matildee para filha da qual apesar de insistentes
apelos ningueacutem fora da famiacutelia detinha qualquer conhecimento
O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos crocantes
na superfiacutecie e deliciosamente macios e suculentos em seu
interior Derretiam na boca em segundos deixando qualquer
mortal ansioso por mais um pedaccedilo
Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam
ruidosas nos bolsos pesados do Crespo Ele hesitou por um
instante Estaria disposto a exercitar o desapego por um
fragmento momentacircneo da deliciosa recordaccedilatildeo de sua infacircncia
Naquele exato momento Carmelita Doceira passava mancando
com seu carrinho de matildeo pela Rua dos Turcos vendendo os
preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
matildee Era soacute descer a escada em espiral no centro da torre correr
em direccedilatildeo agravequela jovem e depositar em suas pequeninas matildeos
uma brilhante moeda Apenas uma
O Crespo tremia Um arrepio em forma de espiral nasceu em
seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas
circulares toda a extensatildeo do seu corpo A torre de vigia
normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital
parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fraccedilatildeo de segundo
A sensaccedilatildeo era de afogamento Natildeo Era como se o deus do rio em
pessoa torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um
trapo encharcado Sua matildeo ossuda enfiou-se involuntariamente
em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se contra a sua
vontade ao redor das moedas
O Crespo natildeo compreendia aquele estranho fenocircmeno em
que forccedilas invisiacuteveis se apropriavam dos seus membros
forccedilando-os a executarem movimentos indesejaacuteveis Ele natildeo
acreditava em espiacuteritos vingativos e todas aquelas bobagens
Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viuacutevas
nos tuacutemulos de seus maridos Ou quando nas noites frias os
guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e
disparavam a contar histoacuterias de assombraccedilatildeo e o Gago soprava
em seu ouvido fazendo estranhos ruiacutedos com a boca Natildeo mesmo
O Crespo ceacutetico que era natildeo se deixava engambelar por essas
baboseiras miacutesticas envoltas em uma aura de magia e misteacuterio
Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa se
acaso encontrasse um Magia e misteacuterio satildeo para os fracos
Homens como ele preferem patildeo duro com calabresa
Entatildeo em vez de descer as escadas com seus bolsos
balouccedilantes o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu
em cheio a Carmelita pondo fim a uma longa tradiccedilatildeo culinaacuteria
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
a costureira o motor e a almaArlete Mendes [magistrameagmailcom]
Passara a vida inteira a imendar tecidos entremeaacute-los
zigzagueaacute-los Provava assim sua retidatildeo de caraacuteter por mais
torta que fosse a costura do mundo
O barulho do motor rezumbizava agrave noite em seu ouvido
Sentia seu tremor debaixo dos peacutes fosse em peacute fosse deitada
Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o
descanso Afinal a ele natildeo caberia nenhum luxo
Descanso haacute muito eacute capricho que poucos podem pagar
para ter Aleacutem disso tudo ali dependia da forccedila daquele pequeno
corpo para se mover Sem ele o vaso de planta verdoso natildeo
beberia sua aacutegua vivaz a cama caprichosa natildeo teria seu lenccedilol
branco estirado Sem ele a janela liacutempida natildeo veria seu chatildeo
varrido as roupas alvas natildeo teriam nenhum varal ensolarado
nenhum resto de comida para a faminta lixeira Graccedilas ao
esforccedilo contiacutenuo e incansaacutevel tudo ali podia se pertencer menos
a costureira a si proacutepria
A verdade era que em meio a tanto esforccedilo sua delicada
alma jaacute natildeo lhe cabia mais Desprendeu-se pairava a sua sombra
natildeo se reconhecia se recusava a pertencer aquele corpo servil
costurado naquela estampa de vida que sem nunca poder
mudar nenhum traccedilo apenas cosia
Era melhor que assim fosse porque um servil pequeno
decidido e rijo corpo entregue a tudo que o cercava menos a si
mesmo jaacute natildeo precisa de alma o barulho do motor jaacute lhe bastava
para saber que estava viva Continuria a costureira a costurar
linearmente sua virtuosa existecircncia
-Cose Remenda Alinha a dura sina isto basta e o resto eacute
fita ndash o motor assim lhe comandava - Alma indolente luxurienta
vergonhosa e mole natildeo merece se prender agrave vida
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Quase como um ritual todos os dias a menina penteava com
suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana
Filha uacutenica de um casal simples Helena enchera os olhinhos de
laacutegrimas quando sua tia lhe dera de presente apoacutes voltar de uma
viagem recente a Portugal Tiacutemida e de poucos amigos a menina
sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presenccedila
de sua jovem amiga a qual batizara carinhosamente de Aninha
Inebriada esquecia-se do tempo e passava horas ali no chatildeo frio
admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a matildee
costuraria para ela um vestido rendado tatildeo bonito igual aquele
que a boneca usava Perdia-se em pensamentos recortados
Ali perto sua matildee estava debruccedilada na maacutequina de costura
e sorria ao observar a cena diaacuteria da filha com sua boneca
Nostaacutelgica lembrava-se da afliccedilatildeo em que passara no dia do
nascimento de sua pequena Estava chuvoso e difiacutecil aquele 15 de
julho dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao
mundo Sem muitas condiccedilotildees financeiras o marido tivera que
pedir emprestado o carro do vizinho e laacute se foram para o hospital
mais proacuteximo Durante aqueles minutos infindaacuteveis de dor entre
sua casa e a maternidade pedira aos ceacuteus uma graccedila para aquela
situaccedilatildeo Prometera que se sua menina nascesse com sauacutede
colocaria seu nome de Helena em homenagem agrave santa de
devoccedilatildeo de sua falecida matildee Sete anos depois ali estava o
milagre da vida tatildeo meiga inteligente e saudaacutevel brincando de
matildee e filha com sua boneca
Helena herdara os cabelos de seda da matildee e olhos
expressivos do pai O tempo passava e sua beleza se tornava mais
evidente chamando a atenccedilatildeo de seus colegas da faculdade de
advocacia Passar no primeiro vestibular em uma universidade
puacuteblica deixara seu pai tatildeo emocionado que foi a primeira vez em
que ela o viu chorar depois de tantos anos Situaccedilatildeo como essa soacute
helenaSancha Wallessa [sanchawallessahotmailcom]
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
tinha acontecido uma vez quando a matildee de Helena jaacute fragilizada
pelo cacircncer partira para sempre deixando a menina-moccedila oacuterfatilde
aos 13 anos
Quando estava no segundo ano da faculdade a jovem
apaixonara-se por Daniel um calouro introvertido de Engenharia
que passava grande parte de sua vida acadecircmica pesquisando
novos tiacutetulos na biblioteca Aliaacutes fora na biblioteca em que eles se
conheceram Inexplicavelmente ele despertava nela uma
curiosidade sobrenatural Natildeo sabia se pelo misteacuterio de nunca ter
escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se
porque ele era o uacutenico ali que natildeo lanccedilava um olhar discreto
quando ela passava A verdade eacute que ele a admirava
secretamente e disfarccedilava seus sentimentos para natildeo parecer
bobo diante dela
Casaram-se trecircs anos depois em uma cerimocircnia simples
mas ao mesmo tempo emocionante Apenas alguns amigos e
parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que
os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem
casal
De fato a gravidez anunciada seis meses depois na tarde
daquela terccedila-feira era o marco que Helena precisava para
confirmar que o final feliz dos contos natildeo era utopia de menina
mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma
fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos
O que ela natildeo esperava eacute que essa mesma fada madrinha
pudesse abandonaacute-la trecircs meses depois quando impotente vira
escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embriatildeo As laacutegrimas
desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e
escuridatildeo que habitavam o seu interior Nem mesmo o consolo
vindo dos mais proacuteximos acalentava aquele choro maternal Ela
sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebecirc
O marido insistia com ela que eles teriam uma nova crianccedila
e foram as suas palavras de confianccedila e contentamento que
restituiacuteram parte das forccedilas de Helena que decidiu esperar novas
manhatildes de boas notiacutecias Poreacutem o tempo tomou anos da vida
daquela mulher que assistira como espectadora os meses passar
em migalhas enquanto suas esperanccedilas eram afogadas pelo
sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses Sem
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
forccedilas e jaacute exausta desistiu de tentar E assim sem saber
desistiu de viver Ela sentira que falhara em seu papel mulher e
por isso natildeo regaria mais aquela flor que haacute tempos natildeo tinha
mais peacutetalas Murcha por fora sem vida de nenhuma forma por
dentro
Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de
Helena na cama Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher
mas se esquecera da uacuteltima vez em que fizeram amor Jaacute natildeo
tentava mais sequer fazer algum carinho temeroso com os
ataques de rejeiccedilatildeo dela a qualquer toque seu
Sentou-se na cama meio zonzo do sono chamou pelo
nome da esposa e como natildeo obteve resposta calccedilou os chinelos e
resolveu ir agrave procura dela pela casa Enquanto percorria a casa
tateando pelas paredes pensamentos tristes vagueavam sua
mente Reconhecia que Helena natildeo se encontrava
emocionalmente equilibrada Haacute alguns meses abandonara o
emprego no escritoacuterio e jaacute natildeo agia e nem falava coisa com coisa
Era fato ela estava doente mas bloqueava aqueles devaneios por
confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a
qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela
precisava de uma ajuda especializada
Sentindo-se um pouco cansado de andar parou no corredor
e respirou fundo Mirou com receio aquele uacuteltimo cocircmodo da casa
que ainda faltava Evitava aquele quarto desde o dia do incidente
que marcara a vida de Helena Chamou baixinho novamente o
nome dela e mais uma vez soacute conseguiu o silecircncio como resposta
Tomou novamente o focirclego dessa vez de encorajamento e
caminhou em direccedilatildeo agrave porta de madeira que estava semiaberta
Com a matildeo trecircmula lentamente foi abrindo a passagem ateacute
conseguir enxergar todo o cenaacuterio As latas de tinta que serviriam
para pintar o quarto do bebecirc ainda estavam empilhadas no canto
proacuteximas agraves caixas de papelatildeo que guardavam as mobiacutelias nunca
montadas Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali no chatildeo
embalando com uma canccedilatildeo de ninar uma boneca de porcelana
de infacircncia Ao perceber o marido na porta Helena sorriu e
estendeu o brinquedo para ele segurar ldquoOlha como nosso bebecirc eacute
lindo amorrdquo As palavras da mulher amada derrubaram o homem
que ainda restava naquele corpo Sua luta para tentar ser forte e
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
inabalaacutevel caiu por terra naquele momento em que ele natildeo
conseguiu segurar as laacutegrimas teimosas que escorreram
timidamente pelo seu rosto Natildeo sabia o que pensar ou como agir
Se a abraccedilaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou
se daria asas agraves fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo
como ela pedira Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto
as vozes entrelaccedilavam na sua cabeccedila
Ainda confuso deu um passo de volta e fechou a porta atraacutes
de si Foi ateacute a sala e discou alguns nuacutemeros no telefone Eles
chegaram 20 minutos depois Preferiu natildeo ter que verem a
levando dali mas ao olhar pela janela seus olhares se cruzaram
O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo O
dele de profunda tristeza e impotecircncia diante do caso
O fato eacute que quem quer que fosse visitaacute-la no Hospital
psiquiaacutetrico encontrava sempre aquela mesma fotografia
congelada de personagens no canto do quarto Helena a boneca e
seu novo mundo encantado
Wallessa Ceacutesar vinte e poucos anos mossoroense publicitaacuteria por formaccedilatildeo e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano Observadora analiacutetica e sensiacutevel escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente No momento possui um envolvimento instaacutevel com as palavras mas seu desejo maior eacute oficializar essa uniatildeo
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
marianinhaThiago Jefferson [thiagojeffersonhotmailcom]
O cheiro de cachaccedila barata invadiu o barraco apoacutes o barulho Jaacute
havia apanhado por erros bem menores antes e com certeza o
padrasto natildeo perdoaria uma garrafa de cana quebrada Os olhos
penetrantes do homem a ameaccedilavam e ela jaacute se preparava para
o que estava por vir Queria pedir desculpas dizer que natildeo fora
sua intenccedilatildeo estava apenas ldquoinaugurandordquo a bola rosa que
ganhara da associaccedilatildeo do bairro - o presente que todas as
garotas queriam receber
Mas era tarde demais A primeira lambada de corda molhada
acertou de surpresa sua coxa Quis esquivar-se da segunda mas
foi novamente atingida e caiu Sentiu ainda mais uma meia duacutezia
de pancadas em seu corpo e entatildeo percebeu que a matildee havia
chegado para lhe defender nem que para isso fosse necessaacuterio
apanhar tambeacutem E sempre apanhava
Marianinha tinha apenas onze anos mas aqueles olhinhos
infantis jaacute refletiam a vida sofrida que sempre levou Nunca
entendeu por que a matildee depois da morte do marido drogado foi
parar nas matildeos de um sujeito embriagado Ela sempre lhe dizia
que era ruim com ele mas que seria bem pior sem ele pois
apesar de toda a sua violecircncia fazia uns ldquobicosrdquo vez ou outra para
ajudar no sustento Marianinha entendia que ela se referia ao
sustento do aacutelcool pois bem sabia que se natildeo fosse a matildee
fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias eles jaacute teriam
morrido de fome
O barraco em que moravam natildeo tinha energia e era cheio de
ratos que saiam do chatildeo de terra batida e mordiam os seus
dedos mas Marianinha natildeo se importava com essas coisas Nem
mesmo a fome lhe afetava ou os piolhos que infestavam a sua
cabeccedila
Era o lado pobre da sociedade A parcela que ningueacutem vecirc Um
ninho de cobras multifaacuterias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
sobre o lixo e o horror botes precisos entre espeacutecies escandalizadas
Ela olhava pro ceacuteu procurava Deus queria quebrar a casca e se
sentir aacuteguia rapinar a liberdade no horizonte infinito Vivia com
medo da morte
O fim chegou primeiro agrave sua matildee num cacircncer de estocircmago
contraiacutedo pela comida estragada que os alimentou praticamente por
toda a vida Mulher forte destemida e guerreira era assim que
Marianinha queria se lembrar dela e por isso natildeo chorou nem no
enterro nem dias depois Natildeo por fora
Tambeacutem natildeo queria nem pensar em como as coisas ficariam sem
sua protetora por perto O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas
casas exercendo a antiga atividade de sua matildee e quando retornava
ao barraco tinha que continuar os afazeres do lar pois agora era uma
ldquodona de casardquo Com a puberdade chegando seu corpo jaacute tomava
formas e curvas e enquanto varria a terra o homem a comia com os
olhos observando por baixo da saia a cada descuido da enteada Natildeo
tinha o que fazer a necessidade a obrigava a usar peccedilas de roupas
cada vez menores ateacute quando recebesse alguma doaccedilatildeo compatiacutevel
com a sua mudanccedila repentina
Um dia enquanto se lavava com a aacutegua do tonel nos fundos do
barraco sentiu o padrasto abraccedilaacute-la por traacutes Ela quis gritar mas ele
tapou a sua boca e segurou forte os seus braccedilos Marianinha sentia
muita dor enojava aquelas matildeos imundas percorrendo o seu corpo
apertando os seus peitos de adolescente indefesa Perdeu a
virgindade desta forma
Parecia que a vida fazia questatildeo de dar-lhe a todo instante uma
dose mais forte de amargura que era consumida aos poucos e vice-
versa Ela natildeo denunciou o abuso nem os outros que se sucederam
natildeo tinha ningueacutem para lhe dar apoio e sabia que os fracos natildeo
tinham vez natildeo tinham voz Teve que continuar convivendo com o
padrasto pois tambeacutem natildeo tinha para onde ir com quem morar e
sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores
Era o lado podre da sociedade A parcela que ningueacutem quer
enxergar Um ninho de cobras multifaacuterias que se constringem
asfixiadoramente sobre a pobreza e a afliccedilatildeo botes precisos entre
espeacutecies inferiorizadas Ela olhava pro ceacuteu natildeo via Deus quebrava a
casca e se notava serpente rastejante sobre o ventre na podridatildeo do
mundo Morria de medo da vida
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
intervenccedilatildeo 2
Everton Maia [evertonmaia_rnhotmailcom]
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
7 xilos 1 cologravura 1 tinta relevo 1 pirografo 1 misto e 1 lino
12 trabalhos
[Fabiana Tessia]ltftessiamsyahoocombrgtgtgt
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Mandala
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Golfinhos
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Paacutessaros
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Misteacuterios
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Flor
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Senhora
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Ciacuterculos
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Movimentos
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Mulher
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-
Ano 3 ed 4 jan - jun 2013 - Mossoroacute - RN - Brasil
- Paacutegina 1
- Paacutegina 2
- Paacutegina 3
- Paacutegina 4
- Paacutegina 5
- Paacutegina 6
- Paacutegina 7
- Paacutegina 8
- Paacutegina 9
- Paacutegina 10
- Paacutegina 11
- Paacutegina 12
- Paacutegina 13
- Paacutegina 14
- Paacutegina 15
- Paacutegina 16
- Paacutegina 17
- Paacutegina 18
- Paacutegina 19
- Paacutegina 20
- Paacutegina 21
- Paacutegina 22
- Paacutegina 23
- Paacutegina 24
- Paacutegina 25
- Paacutegina 26
- Paacutegina 27
- Paacutegina 28
- Paacutegina 29
- Paacutegina 30
- Paacutegina 31
- Paacutegina 32
- Paacutegina 33
- Paacutegina 34
- Paacutegina 35
- Paacutegina 36
- Paacutegina 37
- Paacutegina 38
- Paacutegina 39
- Paacutegina 40
- Paacutegina 41
- Paacutegina 42
- Paacutegina 43
- Paacutegina 44
- Paacutegina 45
- Paacutegina 46
- Paacutegina 47
- Paacutegina 48
- Paacutegina 49
- Paacutegina 50
- Paacutegina 51
- Paacutegina 52
- Paacutegina 53
- Paacutegina 54
- Paacutegina 55
- Paacutegina 56
- Paacutegina 57
- Paacutegina 58
-