Revista Aproximação · Spinoza ... Agrigento e Demócrito de Abdera. ... ancient philosophy,...
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Revista Aproximao 1 semestre de 2013 N 4
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Revista Aproximao
(Revista eletrnica dos estudantes de graduao em Filosofia da UFRJ)
Volume 4 Edio 2013/01
http://www.ifcs.ufrj.br/~aproximacao
A Revista Aproximao uma publicao acadmica eletrnica especializada em
Filosofia. Seu objetivo principal veicular o trabalho de pesquisa dos graduandos da
UFRJ. Estamos abertos, entretanto, a qualquer proposta cujo principal interesse seja o
da pesquisa filosfica.
Instituto de Filosofia e Cincias Sociais / Universidade Federal do Rio de Janeiro
Expediente Comisso Editorial
Anna Figueiredo, Carmel Ramos, Edson Bezerra, Eduardo Lopes, Felipe Ayres de
Andrade, Guilherme Santos, Jean Ilg, Pedro Rhavel N. Teixeira.
Conselho Editorial
Carolina de Melo Bomfim Arajo, Celso Martins Azar Filho, Ethel Menezes Rocha,
Fernando Jos de Santoro Moreira, Franklin Trein, Guilherme Castelo Branco, Marco
Antonio Caron Ruffino, Marcus Reis Pinheiro, Mrio Antnio de Lacerda Guerreiro,
Patrick Estellita Cavalcanti Pessoa, Pedro Costa Rego, Pedro Duarte de Andrade, Rafael
Haddock Lobo, Rafael Mello Barbosa, Ricardo Jardim Andrade, Ulysses Pinheiro,
Wilson John Pessoa Mendona.
Contato: [email protected]
ndice
Editorial........................................................................................................................... 3
A fsica das percepes em Empdocles e Demcrito.................................................... 4
Paralelos entre a teoria da demonstrao aristotlica e os modelos de explicao
cientfica contemporneos ..............................................................................................14
A defesa da adaequatio como critrio nico para a percepo da ideia verdadeira em
Spinoza........................................................................................................................... 28
O Problema de Molyneux e a relao entre percepo e linguagem em Diderot .......... 42
Cincia e ascetismo a partir da Genealogia da Moral em Nietzsche ..............................52
Adorno e Horkheimer: uma viso crtica sobre a indstria cultural ...............................63
Repetio e identidade, entre Freud e Deleuze ...............................................................76
Sobre a noo de causalidade .........................................................................................92
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EDITORIAL
Aps um longo hiato, a Revista Aproximao retorna. com grata surpresa que
o novo corpo editorial contempla o trabalho concretizado que no o teria sido sem o
apoio dos membros fundadores em nos guiar nos nossos primeiros passos tmidos. Que
esteja assim marcado o regresso forma da publicao, de volta a um caminho de
realizaes e xitos.
No nos contentemos agora, porm, em apenas nos congratular. Ao resgatarmos
a Aproximao de seu abandono, nos deparamos com uma questo que esperamos
superar ao longo de nossa participao nela. No vemos na Revista apenas um veculo
para a circulao da produo filosfica dos graduandos o que j , em si, um projeto
bem vultuoso mas tambm uma iniciativa que ultrapasse em largo nossa permanncia
nela, da qual as levas vindouras de alunos do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais
(IFCS) tomaro parte. No entanto, o desafio de pensar a Revista Aproximao para
alm dos limites da nossa permanncia na graduao no seria sequer concebvel se
nossa empreitada no tivesse sido to bem acolhida pelos nossos colaboradores
pareceristas atenciosos vinculados a diversas instituies pelo pas, cuja disposio em
nos auxiliar foi imprescindvel para a realizao de nossas ambies.
No intuito de explorarmos ao mximo o potencial do peridico, com prazer
que tambm anunciamos a nossa colaborao com o IX Seminrio de Graduao em
Filosofia da UFRJ. Sem prejudicar a publicao do nosso prximo volume na segunda
metade de 2013, faremos desse encontro fortuito uma edio extraordinria da Revista,
agraciando os trabalhos expostos no Seminrio.
Por fim, uma rpida introduo aos artigos que compem esta nossa quarta
edio: Diego Sofritti vai buscar os fundamentos da sensibilidade na phsis de
Empdocles e Demcrito, enquanto que Andr Sant'Anna nos mostra um Aristteles
luz da cincia contempornea. J Carmel Ramos vai pleitear por um critrio nico de
verdade das ideias em Espinosa. Anna Figueiredo, no entanto, ir alm do plano
epistmico em sua anlise de Diderot, apontando para as consequncias insuspeitas de
sua Carta Sobre os Cegos. Felipe Ayres retoma a discusso sobre a cincia, s que
agora no tempo e nos termos do pensamento de Nietzsche. Kairon Arajo persiste no
vis da denncia ao retomar o comentrio social de Adorno e de Horkheimer sobre a
indstria cultural. Agenciando Freud e Deleuze, Dario Galvo nos leva a repensar a
caricatura do filsofo francs a partir de sua leitura sobre o pai da psicanlise. Fechando
a edio, Edson Bezerra toma para si a reflexo sobre a noo de causalidade, numa
esteira de influncias que vai desde Schopenhauer at os lgicos contemporneos.
Comisso Editorial Revista Aproximao
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A FSICA DAS PERCEPES EM EMPDOCLES E DEMCRITO
Diego Soffriti Cardoso
Graduando em Filosofia da UFRJ
Resumo: Dentre os diversos temas envolvidos na phsis dos pr-socrticos, a percepo
um dos pilares fundamentais. Explicar como os elementos naturais se articulam para
gerar viso ou tato foi uma grande tarefa. O presente artigo abordar a questo da
sensibilidade no contexto antigo, sobretudo no pensamento de Empdocles de
Agrigento e Demcrito de Abdera. As formulaes do primeiro autor sobre o tema sero
descritas de acordo com quatro conceitos: emanao, poro, movimento e proporo,
respectivamente. Cada conceito ser uma chave importante de leitura, j que
demonstrar como o sistema corpreo se articula. O segundo pensador e seu modelo dos
choques tambm ter valor, sobretudo pela escola atomista ser importante at os dias de
hoje.
Palavras-chave: Empdocles. Demcrito. Percepo.
Abstract: Among the plurality of pre-socratic themes, perception is one of main themes
for the discussion about the physis. Explain how the natural elements themselves
produce vision or touch was a great problem. This paper will delineate sensations on
ancient philosophy, focused on Empedocles of Agrigentum and Democritus of Abdera.
The formulations of the first about the subject will be given directly under four
concepts: emanation, pore, motion and proportion. Each term will be an important key,
demonstrating the articulation of body system. The following thinker and his shocks
will also show value, since atomism school influences us until nowadays.
Keywords: Empedocles. Democritus. Perception.
Sobre o sistema de Empdocles, afirma-nos Teofrasto:
, ,
, , '
(de sensu 7, DK 31 A 86).
Analisando ao texto poderemos nos utilizar de duas tradues importantes. A
primeira se d pela edio de Kirk e Raven1, onde encontramos:
1KIRK, G. S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos Alberto
L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010.
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Empdocles apresenta a mesma teoria acerca de todos os sentidos, ao sustentar que a percepo
surge, quando alguma coisa se ajusta aos poros de cada um dos sentidos. por isso que um
sentido no pode julgar os objetos do outro, visto os poros de uns serem demasiado largos, de
outros demasiado estreitos para o objeto percebido, de tal modo que algumas coisas passam a
direito atravs deles sem lhes tocar, ao passo que outras no so capazes sequer de entrar. (KRS
391)
Paralelamente a esta, evocaremos a formulao de Burnet2:
Empdocles fala de igual modo de todos os sentidos e diz que a percepo se deve s
emanaes que se introduzem na passagem de cada um dos sentidos. E por isso que um no
pode julgar os objetos de outro, pois as passagens de alguns deles so excessivamente largas e as
de outros excessivamente estreitas para o objeto sensvel, de modo que o ltimo ora mantm seu curso do comeo ao fim sem fazer contato, ora no pode absolutamente entrar. (BURNET, 1994,
p. 200)
Ambas as tradues, quando comparadas, concordam sobre alguns pontos. Os
autores afirmam que cada sentido opera em um tamanho prprio, em uma dimenso
exclusiva: no podendo um julgar os objetos do outro. Ainda assim, o modelo da
percepo exatamente o mesmo para todos, no qual sempre h alguma coisa
atravessando as passagens/poros do sujeito.
Antes da discusso sobre a categoria ontolgica do ente que atravessa,
importante apontarmos a precariedade dos termos sujeito e objeto. No est claro
no pensamento de Empdocles o que seriam tais termos. Apesar da noo de um sentido
no poder julgar os objetos do outro, no se torna imediato o entendimento de um
objeto nos moldes modernos: algo separado do sujeito de percepo. Sua teoria, pelo
menos com os fragmentos que nos chegaram, pode estar puramente interessada na
recepo, sem comprometimento com a fonte emanativa.
Temos, ento, de debater a principal diferena entre as tradues: a
nomenclatura sobre o emanado. Kirk e Raven optam por assumir alguma coisa, j que
nenhuma entidade propriamente foi dita. Burnet apenas afirma a emanao, apesar do
vocbulo grego ou no ocorrer. razovel afirmar que ambos tm
uma justificativa para isso, uma vez que os primeiros se prendem puramente ao trecho,
enquanto o segundo j leva em considerao o sistema fsico de Empdocles.
J a noo de foi correspondida de duas formas no portugus. No
primeiro texto como poros, a traduo literal, e no segundo como passagens. Ambas as
2BURNET, John. O despertar da filosofia grega. Traduo de Mauro Gama. So Paulo: Siciliano, 1994.
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expresses so bem utilizadas, uma vez que est no escopo do vocbulo o campo de
abertura, passagem ou duto. Temos ento formulado que Empdocles compreende os
sentidos como processos receptivos, ou seja, a percepo se d na passagem de algo por
certas aberturas. No desenvolvimento do texto sero demonstrados argumentos da
corporeidade destes dutos.
Um deles est ainda no mesmo comentrio de Teofrasto: sendo os sentidos
correspondidos com diferentes tamanhos na abertura, cada emanao s poder ser
absorvida de forma simtrica, pois, se no, umas passariam e outras nem mesmo
entrariam. Nessa defesa, o pensador de Agrigento no parece estar usando um recurso
ilustrativo, mas realmente afirmando que cada sentido tem um tamanho prprio. Tal
tamanho s poderia variar na matria, sendo, no caso dos animais, no corpo.
O segundo motivo, apresentado por Aristteles, nos mostrar que, alm de ser
corporal, os poros dos sentidos esto localizados em pontos mais especficos. Temos a
seguinte construo:
'
, ,
,
' ,
' , ,
'
'
' ,
' , .
(de sensu, 2, 437 b 23)
Assumiremos como traduo3:
Assim como quando, algum, ao planear uma viagem numa noite de invernia, prepara uma luz,
uma chama de ardente fogo, ao acender o sopro dos ventos, quando sopram, mas a luz mais
3KIRK, G. S.; RAVEN, J.E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos Alberto
L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian, 2010. P. 200.
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tnue jorra para o exterior e brilha atravs do limiar da porta com raios que no vacilam: assim
tambm, nessa altura, ela [SC. Afrodite] deu luz a redonda pupila, fogo primevo confinado ao
interior de membranas e delicadas roupagens, e foram estas que contiveram a gua profunda que
flua em redor, mas consentiram que para fora passasse o fogo mais subtil. (KRS 389)
Temos aqui outro entendimento de como funciona a percepo, ou pelo menos a
viso. O fogo da chama, por ser mais fino que o ar, se propaga em vrias direes; da
mesma forma que o fogo dentro da pupila transpassa a gua que o cerca. Esse
movimento se torna sensorial quando ambos os fogos se encontram.
Surge aqui um problema na teoria: a viso o paradigma de todos os sentidos,
ou a mobilidade do fogo, na viso, um caso singular? A princpio o fragmento de
Teofrasto nos afirma que todos os sentidos operam de forma igual, porm, a luz tambm
sugere fortemente a ideia de propagao que no se aplica a outros corpos. De qualquer
modo, ocorre, nesse momento, uma possvel primeira definio do que perceber. Da
ltima descrio sobre a chama e o olho seria razovel entender percepo como
afinidade de mesmos tipos.
Nessa afinidade, no basta simplesmente os tipos/elementos se corresponderem,
mas se darem de maneira nica. Veremos nessa proporo a terceira palavra-chave da
sensao. Sobre isso nos afirma Plato no Mnon (76c):
{.} { .} . {.}
' { .} . { .}
, {.}
.{.} {.} . {.}
, . . {.}
, , . {.}
,
. (DK 31 A 92)
Leremos por duas vias ao trecho acima, a fim de enriquecer a leitura. Na
primeira delas4 encontramos:
SO. No verdade que falais de certas emanaes dos seres, segundo Empdocles?
MEN. Certamente. SO. E tambm de poros, para os quais e atravs dos quais correm as
emanaes? MEN. Perfeitamente. SO. E, dentre as emanaes, algumas se
adaptam a alguns dos poros, enquanto outras so menores ou maiores? MEN. assim. SO. E
h tambm, no ? Algo a que ds o nome de viso. MEN. H. SO. A partir disso tudo ento,
atende ao que digo, diz Pndaro. A cor pois uma emanao de figuras de dimenso
4Plato, Mnon (Trad. de Maura Iglsias; Ed. Puc-Rio, Loyola; 2001)
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proporcionada viso e perceptvel. MEN. Parece-me, Scrates, teres dado, com esta,
uma excelente resposta. SO. que talvez tenha sido dada de maneira que te habitual; e ao
mesmo tempo, creio, percebes que serias capaz de, a partir dela, dizer tambm o que o som,
bem como o odor e muitas outras dentre as coisas desse tipo.
Compararemos com a segunda:
Scrates: Concordas ento com Empdocles, em que as coisas que existem emitem certos
eflvios? Mnon: Sem dvida. S.: E que tm poros para os quais e atravs dos quais se deslocam
os eflvios? M.: Sim. S.: E que de entre esses eflvios, uns se ajustam a alguns dos poros, ao
passo que outros so demasiado pequenos ou excessivamente grandes? M.: Assim . S.: E no
verdade que existe algo a que chamas de vista? M.: verdade. S.: Com base em tudo isto, pois,
, para usar as palavras de Pndaro: a cor um eflvio de formas,
proporcionado com a vista e perceptvel. M.: Essa tua resposta, Scrates, , a meu ver, excelente.
S.: Talvez seja aquela a que ests habituado. E ao mesmo tempo, suponho eu, crs que ela te
por em situao de dizeres tambm o que a voz, e o olfacto e muitas outras coisas
semelhantes. (KRS 390)
visvel que ambos os textos so muito prximos, no houve nenhuma
discordncia importante. A noo dos poros se manteve igual, respeitando de forma
mais prxima ao argumento original. A diferena est na traduo de , pois foi
entendido, por um lado, como emanao e de outro, como eflvio.
A expresso do emanado est em dilogo com aquilo que se expande, aquilo que
deriva de alguma fonte. No exemplo anterior da chama, a emanao essa extenso do
fogo, que atravs do ar, se manifesta at ser encontrado por outro fogo de mesmo tipo.
Se a referncia de Plato a Empdocles estiver correta, os poros no seriam
exclusividade daquele que recebe, mas estariam tambm naqueles que provm. Deste
modo, seria plausvel entender como objeto tudo aquilo que possui poros prprios e
emana atravs deles. Tal processo possibilitaria aos viventes figur-los, fazendo deles
sujeitos.
O movimento das emanaes, sobretudo no exemplo anterior da chama, sugere
fortemente a noo de fluido. Isto possibilita a traduo de eflvios, onde a tese sobre
a natureza se reforaria na constante mudana. Derivamos dessas teses um modelo onde
todos os objetos esto emanando a todo o tempo, e tambm em uma proporo.
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Como o prprio Plato havia formulado no Mnon, a viso e outros sentidos s
poderiam sentir as formas proporcionadas vista e outros correspondentes. Nesse
escopo, cada percepo ajuste de figuras em simetria ao corpo.
Aproveitando-se esse vocabulrio, vale o esforo de demonstrar como a
proporo se manifesta na fsica do autor. sabido que Empdocles foi o primeiro a
assumir, pelo menos na terminologia do sistema aristotlico, quatro causas materiais.
Assumimos que essas causas so elementos, apesar da expresso no ocorrer
diretamente no pensador.
So chamadas quatro razes (rizmata) e podem se expressar em diversos
quartetos: ar, terra, fogo, gua; pena, cabelo, folha, escama; Hera, Edoneu (ou Hefesto),
Zeus e Nstis. Toda raiz pode se manifestar em diversos formatos, mas jamais podem
deixar de existir.
Sobre isso nos afirma Lloyd5:
O termo elemento ambguo, sendo usado (i) como substncia original -- substncias que
existem a tanto tempo quanto qualquer coisa existiu e (ii) como substncias simples
substncias em que coisas compostas so analisadas, mas elas propriamente no podem ser
redutveis. (LLOYD, 1970, p. 40, traduo nossa).
Havendo na sequncia um elogio a Empdocles:
Mas Empdocles expressou mais claramente que qualquer outro escritor antigo a idia de
substncias originais e simples. verdade, ele no usa o que se tornou o termo tcnico para
elemento em grego, stoicheion, no introduzido at Plato, mas ele se refere terra, gua, ar e
fogo como rhizomata, razes, no sentido definido. Primeiramente, as razes propriamente no vieram a ser, mas so eternas e incriadas: elas so, ento, elementares no sentido de substncia
original. (LLOYD, 1970, p. 40, traduo nossa).
Assim, as razes so incriadas e indestrutveis; mas tambm, sendo quatro,
nenhuma se sobrepe ontologicamente outra. Um reforo a esse ponto est em: Suas
razes so eternas e simpleselas so constituintes irredutveis dentre as coisas que
podem ser analisadas. (LLOYD, 1970, p. 41, traduo nossa)
5LLOYD, Geoffrey E R. Early Greek Science: Thales to Aristotle. New York: W.W. Norton &
Company, 1970.
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Nesse sistema, todas as coisas so constitudas por mistura das razes; mas, a
mistura deve se dar exclusivamente para gerar um objeto. Um exemplo disso
fragmento 96: (Simplcio in Phys. 300, 21.):
,
' '
. (DK 31 B 96)
Como traduo6: E a terra amavelmente recebeu nos seus amplos cadinhos duas
das oito partes do fulgor de Nstis, e quatro de Hefesto; e em alvos ossos elas se
converteram, maravilhosamente unidos pela cola da Harmonia. (KRS 374)
A razo de 4:2:2, respectivamente, para fogo, gua e terra o que forma aos
ossos. Assim, entendemos que Empdocles imaginava aos objetos como certos padres
materiais na natureza; os mesmos padres que, se repetindo em determinados rgos,
gera percepo. Se aceito o argumento, poderamos resumir aos processos sensoriais
como: relao entre objeto e sujeito onde h similaridade de proporo e matria atravs
de seus poros e suas emanaes.
O ltimo argumento, em favor da importncia da distribuio formal dos
objetos, nos ser dado novamente por Simplcio no fragmento 98 (in Phys. 32,6):
,
' ,
,
'
. (DK 31 B 98)
Em portugus7:
E a terra encontrou-se em igual quantidade com estes, Hefesto [o fogo], a chuva e o ar cintilante
[aither] ancorada nos perfeitos portos de Cpria [amor], numa proporo um tanto maior ou
menor, entre a maioria deles. Destes surgiram o sangue e as diversas formas de carne.
6KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo de Carlos
Alberto L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010. P. 317. 7ibidem, p. 317.
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Dessa passagem podemos ver a preocupao do pensador em definir os
compostos dos entes, sobretudo os orgnicos (sangue, carne e ossos). Apesar da sua
zoogonia no ser exatamente o tema da presente dissertao, importante entender as
pistas que a matemtica, tanto no nmero de elementos, quanto sua distribuio, podem
oferecer a percepo.
Remetendo-nos agora a escola atomista e a Demcrito de Abdera, ser
pertinente ver as analogias de seu sistema perceptivo com Empdocles. Apesar de
semelhantes na explicao, interessante como esta escola rompeu a tese do Ser
unoeleata, duplo em uma leitura de Herclito e qudruplo em Empdocles: o Ser seria
infinito em sua constituio. Sobre isso temos8:
sem dvida com os atomistas que as teorias da percepo atingem o seu maior refinamento e
distncia, embora impliquem ainda um total materialismo. Sendo a natureza na
totalidade, constituda por tomos unos e indivisveis, e vazio; a percepo d-se quando tomos
de imagem das coisas chocam com os tomos dos sentidos, produzindo a sensao. Aqui
encontraremos os famosos eidolon de Epicuro, que constituem o elo de ligao entre os eflvios de Empdocles e a speciesmedieval. Os eidolon so reflexos sensveis das coisas que afectam
sensorialmente o homem. (GRADIM, 1999)
Pela natureza ser composta unicamente por duas categorias, os tomos e os
vazios, a fsica atomista explica a constituio de todos os entes como agregados dessas
partculas; bem como o movimento sendo o deslocamento das mesmas para um dos
espaos vazios. Quanto percepo, esta s poder ocorrer na interao atmica, pois o
vazio apenas potencialidade.
Acio corrobora para o raciocnio (IV, 8, 10): , ,
(DK 67 A 30). Com a traduo:
Leucipo, Demcrito e Epicuro dizem que a percepo e o pensamento surgem, quando
entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a
coliso de uma imagem. (KRS 588).
8GRADIM, Anabela. Sinais de privao: de volta a uma sensibilidade original. Lisboa: 1999. Em:
. Acesso em: 10
dezembro 2012.
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Se a tese for correta, Demcrito mantm a noo de a percepo ser a interao
de algo fora com aquilo que nos prprio (o corpo). Contudo, a interao no se d
exatamente em uma passagem, mas em atrito, em choque. Alm disso, o descrito
simplesmente como emanao em Empdocles e emanaes de figuras (skhemata) em
Plato, agora o como eflvio de imagens (eidolon/eidola).
Assim,
.
(Alexandre de sensu 56, 12, DK 67 A 29). Em portugus: Eles atriburam
vista a certas imagens do mesmo formato que o objeto, que estavam continuamente a
fluir dos objetos da viso e a colidir com os olhos. Esta era a opinio da escola de
Leucipo e Demcrito.
Importante ver a expresso aporronta, em concordncia com o aporro
empedocltico. Os eidola visuais, ento, seriam o emanado do ambiente externo ao
indivduo, acertando aos olhos e virando sensibilidade. H aqui talvez uma divergncia
entre os modelos. Pois enquanto Empdocles prope uma afinidade entre poros e
emanaes, uma passagem devida mesma configurao, Demcrito pensa basicamente
em um choque, um atrito dos tomos. Nesse escopo, o pensador de Agrigento conseguia
diferenciar os sentidos pelos tamanhos e formatos dos poros, enquanto o cidado de
Abdera no teria fornecido uma resposta a isso.
Kirk e Raven acabam por reafirmar esse fato quando afirmam: [...] como todos
os sentidos dependem, em ltima anlise, deste sentido [o tato], um problema bvio
saber como que a vista ou o gosto, por exemplo, diferem dele. (p. 453). Aristteles
tambm possui uma crtica, pois afirma Demcrito e a maioria dos filsofos da
natureza, que se ocupam da percepo, so culpados de um grande absurdo; pois
reduzem ao tacto toda a percepo. (de sensu, 4, 442 a 29).
Quando se descreve a sensibilidade como choque de tomos, tudo seria tato:
olfato como tato do nariz, paladar como tato da lngua etc. Essa questo no impede
que haja uma possibilidade de diferenciao nas propriedades das coisas, pois:
O sabor amargo causado por tomos pequenos, lisos e redondos, cuja circunferncia , na realidade, sinuosa; portanto, ele ao mesmo tempo pegajoso e viscoso. O sabor salgado
causado por tomos grandes, no redondos, mas nalguns quase pontiagudos... (Teofrasto de
sensu 66, DK 68 A 135).
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O entendimento da percepo, ento, no est mais se pautando na afinidade de
mesmos tipos, mas em choques que levam em considerao a geometria atmica. O
problema persiste na dificuldade de se separar quais colises tornam-se sensoriais e
quais no; j que estamos em contaste frico com tomos externos.
De qualquer modo, so inegveis as contribuies que ambos os filsofos
tiveram, tanto pela descrio da fsica, quanto de algo que geraria a atual fisiologia.
Lidar com os sentidos normalmente acarreta ao estudo de uma multiplicidade difcil de
averiguao (os quatro elementos de Empdocles) ou a uma reduo que acaba por
limitar as diferenciaes naturais (tudo como tato, contato atmico).
Referncias:
BURNET, John. O despertar da filosofia grega. Traduo de Mauro Gama. So
Paulo: Siciliano, 1994.
GRADIM, Anabela. Sinais de privao: de volta a uma sensibilidade original.
Lisboa: 1999. Em: . Acesso em: 10 dezembro 2012.
KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filsofos Pr-Socrticos. Traduo
de Carlos Alberto L. Fonseca. 7. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2010.
LLOYD, Geoffrey E R. Early Greek Science: Thales to Aristotle. New York: W.W.
Norton & Company, 1970.
PLATO. Mnon. Traduo de Maura Iglsias. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Loyola,
2001.
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PARALELOS ENTRE A TEORIA DA DEMONSTRAO ARISTOTLICA E
OS MODELOS DE EXPLICAO CIENTFICA CONTEMPORNEOS
Andr Rosolem SantAnna
Graduando em Filosofia pela UEM
Resumo: Neste artigo apresentarei uma caracterizao geral de dois modelos de
explicao cientfica recorrentes na literatura em filosofia da cincia: (i) o modelo
dedutivo-nomolgico; e o (ii) o modelo estatstico-relevante. No contexto desta
exposio, tentarei explicitar como estes modelos pretendem explicar as diferenas
entre sentenas descritivas e sentenas explicativas. Posteriormente, tentarei demonstrar
que a teoria da demonstrao desenvolvida por Aristteles nos Segundos Analticos
capta alguns aspectos destes modelos, alm de apresentar respostas para algumas das
objees feitas a estes ltimos.
Palavras-chave: Explicao cientfica. Teoria da demonstrao. Aristteles.
Abstract: In this paper I will provide a general overview of two contemporary models
of scientific explanation in philosophy of science: (i) the deductive-nomological model;
and (b) the statistical relevance model. In the context of this exposition, I will try to
make explicit how these models accommodate within their framework the differences
between descriptive sentences and explanatory sentences. After that, I will try to
demonstrate that the theory of demonstration developed by Aristotle in his Posterior
Analytics is sensible to some aspects of these models and also that Aristotles theory
provides answers to some objections made to these contemporary models.
Keywords: Scientific explanation. Theory of demonstration. Aristotle.
INTRODUO
Um aspecto importante dos modelos contemporneos de explicao cientfica
a distino entre a descrio de um fenmeno e a explicao deste mesmo fenmeno.
Apresentarei na primeira seo deste artigo uma caracterizao geral de dois destes
modelos: (i) o modelo dedutivo-nomolgico; e (ii) o modelo estatstico-relevante. Ainda
nesta seo, tentarei explicitar como estas teorias pretendem abarcar a distino entre
sentenas descritivas e sentenas explicativas. Na segunda seo, apresentarei de modo
geral a teoria da demonstrao de Aristteles e tentarei demonstrar que esta teoria
tambm sensvel distino entre sentenas descritivas e sentenas explicativas, alm
de fornecer respostas a algumas das objees feitas s teorias contemporneas aqui
tratadas.
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1. OS MODELOS CONTEMPORNEOS DE EXPLICAO CIENTFICA
Os modelos de explicao cientfica contemporneos atentam para uma
importante distino entre o modo pelo qual possvel descrever um fenmeno que se
pretende explicar, tentando captar quais tipos de sentenas apresentam uma explicao
satisfatria do fenmeno em questo, isto , o por que1 de um fenmeno ocorrer, e quais
sentenas somente apontam para uma descrio efetiva de que tal fenmeno o caso,
sendo que estas sentenas no oferecem condies suficientes para afirmar por que de
fato este fenmeno aconteceu. Assim, explicar um fenmeno da natureza requer no
somente o conhecimento de que um fenmeno x seja o caso, mas antes, a sentena
fundamental qual se deve aduzir quando se utiliza a palavra explicao requer que
seja explicitado por que x o caso. Entretanto, nem toda sentena do tipo x o caso
porque y o caso satisfaz os critrios necessrios para que uma explicao seja
conclusiva. Quando afirmamos que um homem no engravidou porque tomou plulas
anticoncepcionais2, afirmamos que x o caso e por que x o caso, todavia, no se
explica de fato por que x ocorreu, visto que, dado que indivduos do sexo masculino no
podem engravidar, o fato de que o homem em questo tenha tomado plulas
anticoncepcionais torna-se irrelevante. Neste caso, embora a sentena por que x tenha
sido satisfeita, no podemos deduzir desta resoluo que tal sentena seja de fato uma
explicao de x.
Em face da dificuldade apresentada acima, Hempel (1974) aponta para um
requisito importante ao qual uma explicao deve atender para que seja considerada
uma explicao legtima3. Este requisito denominado requisito da relevncia
1 Em termos gramaticais, o vocbulo correto a ser utilizado aqui seria porqu. Uso, no entanto, o termo
por que em um sentido tcnico, isto , como referncia oposio entre sentenas que (sentenas
descritivas) e sentenas por que (sentenas explicativas). Este uso se justifica na medida em que quando o
termo utilizado ao longo do texto, tem-se em vista no somente a denotao de um substantivo como o
motivo de um fenmeno ocorrer, mas sim uma referncia distino feita acima. Assim, cabe enfatizar que os usos subsequentes do termo por que em itlico no decorrer deste artigo tem em vista esta distino
tcnica. 2 SALMON, 1971. 3 A abordagem de Hempel acerca da explicao cientfica denominada modelo dedutivo-nomolgico.
Todavia, vale ressaltar que o exemplo apresentado por Salmon para ilustrar o carter da irrelevncia
explanatria de algumas sentenas por que no de fato superado pelo modelo dedutivo-nomolgico.
Em linhas gerais, o exemplo aduzido satisfaz as condies exigidas pelo modelo de Hempel: tem-se leis
gerais e casos particulares dos quais, tomados como verdadeiros, pode-se deduzir o explanandum. A objeo de Salmon consiste em apontar justamente para a incapacidade do modelo dedutivo-nomolgico
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explanatria que, segundo Hempel, ocorre quando: a informao aduzida fornece um
bom fundamento para acreditar que o fenmeno a ser explicado de fato aconteceu ou
acontecer. (HEMPEL, 1974, p. 66). Nesse sentido, explicar o fato de um homem no
engravidar porque tomou plulas anticoncepcionais no considerada uma explicao
porque no atende ao requisito da relevncia explanatria, isto , o fato de um indivduo
do sexo masculino ter tomado plulas para no engravidar no satisfaz o critrio de
relevncia para explicar o fato em questo, visto que homens no possuem um tero
nem outras disposies fisiolgicas necessrias para que seja possvel o estado de
gravidez.
Neste contexto, possvel distinguirmos entre o que uma explicao e o que
somente uma descrio. Quando observamos que certa amostra de gua submetida a um
aumento de temperatura inicia o processo de ebulio, temos a descrio do fato de que
a gua est passando do estado lquido para o estado gasoso, e que tal passagem se d
concomitantemente ao aumento da temperatura na amostra considerada. Assim,
possvel apontarmos para evidncias de que a gua est passando do estado lquido para
o estado gasoso, mas ainda no possvel sabermos por que este processo ocorre nas
condies determinadas.
O aumento da temperatura fornece boas razes para acreditarmos que o
fenmeno o qual a nossa investigao tem como escopo ocorreu ou ocorrer novamente,
visto que, dado o ponto de ebulio da gua, sabemos que o um aumento de temperatura
at 100C4 nos permitir observar que o processo de ebulio tem incio. Nesse sentido,
temos que o requisito da relevncia explicativa satisfeito, uma vez que a evidncia a
qual aduzida, a saber, o aumento da temperatura, um fator relevante para que
saibamos que o fenmeno investigado de fato ocorreu nas condies descritas at aqui.
Ainda que tenha sido explicitado que o fenmeno em pauta o caso, estas
condies descritivas ainda no fornecem condies suficientes para que possamos
em captar fatores relevantes para uma explicao (Cf. WOODWARD, 2010, The SR Model). A partir
disso, podemos observar que embora Hempel explicite os requisitos para uma explicao cientfica, a sua
proposta no sensvel considerao de fatores relevantes em algumas situaes, conforme exemplifica
Salmon (1971). Assim, o exemplo aqui apresentado tem somente o objetivo de ilustrar a no suficincia
de algumas sentenas que satisfazem o requisito do por que e introduzir o requisito da relevncia
explanatria. 4 Considerando que a experincia esteja sendo realizada ao nvel do mar.
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elaborar uma explicao satisfatria para o fenmeno, embora seja necessrio para uma
explicao que o fato seja afirmado como sendo o caso e as informaes que sustentem
esta afirmao sejam aduzidas. Nesse sentido, considerando o exemplo do aquecimento
da gua, s teremos o fator relevante que exercer poder explicativo na medida em que
consideramos por que o aumento de temperatura responsvel pelo processo de
ebulio. Para que tal resoluo seja satisfeita, devemos considerar que um aumento de
temperatura proporciona um aumento na energia cintica das molculas da amostra, de
modo que a tenso da superfcie da gua lquida exceda a tenso exercida pela coluna de
ar, possibilitando que estas molculas escapem em forma de vapor. Podemos
concluir, por conseguinte, que uma aluso s leis da fsica (o aumento de temperatura
proporciona o aumento da energia cintica, por exemplo) nos permite extrapolar o
estatuto de uma descrio e fornecer uma explicao satisfatria para o fenmeno
colocado em foco no incio da nossa investigao.
Tendo em vista esta distino fundamental, modelos que pretendem integrar as
explicaes referentes aos fenmenos da investigao cientfica so propostos por
filsofos da cincia, buscando a partir deles abarcar as peculiaridades apresentadas pelas
sentenas explicativas e pelas sentenas descritivas. No mbito deste artigo, sero
tratadas duas propostas que pretendem sistematizar os conceitos que permeiam uma
explicao cientfica: (i) o modelo dedutivo-nomolgico, proposto por Hempel (1974), e
(ii) o modelo estatstico-relevante, defendido por Salmon (1971, 1989).
O modelo dedutivo-nomolgico pode ser descrito mediante a seguinte estrutura:
as sentenas que descrevem o fenmeno a ser explicado so denominadas sentenas
explanandum, ao passo que as sentenas que possuem carter explicativo relacionado ao
fenmeno so as sentenas explanans5. O modelo dedutivo-nomolgico exige que o
explanans seja verdadeiro, possua contedo emprico e abranja sentenas em forma de
leis gerais. Deste modo, podemos dizer que as sentenas referentes explicao de um
fenmeno (F) devem conter leis gerais (L) e contedo emprico representado por casos
particulares (P). O explanandum, por sua vez, deve atender igualmente a exigncia de
contedo emprico, isto , deve ser empiricamente observvel.
5 Por questes de brevidade, as referncias a estas sentenas sero feitas simplesmente por explanandum e
explanans.
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A caracterizao de leis gerais entre o explanans justifica a denominao
nomolgico. A denominao dedutivo, por sua vez, pode ser descrita do seguinte
modo: a explicao deve ter a forma de um argumento dedutivo em que o
explanandum segue como concluso das premissas no explanans (Trad. minha)
(WOODWARD, 2010). Nesse contexto, o modelo dedutivo-nomolgico pode ser
esquematizado da seguinte forma:
(I) L1, L2, L3, ..., Ln
(II) P1, P2, P3, ...,Pn
(III) Portanto, [dedutivamente] F.
A composio desta estrutura pode ser interpretada do seguinte modo: (I) e (II)
so considerados as sentenas explanans e (III) a sentena explanandum. Uma
caracterstica importante do modelo dedutivo-nomolgico caracterizado deste modo o
que Salmon (1989) denomina de expectabilidade nmica: a essncia da explicao
cientfica pode ser descrita como expectabilidade nmica isto , expectabilidade
baseada em conexes vlidas regidas por leis [lawful]6 (Trad. minha) (SALMON,
1989, p. 57). Podemos dizer que h expectabilidade nmica quando dado as sentenas
constituintes do explanans, o explanandum esperado com certeza (no caso do modelo
dedutivo-nomolgico) ou com alta probabilidade (no caso do modelo indutivo-
estatstico)7.
Outro modelo proposto recentemente desenvolvido por Salmon (1971, 1989).
Este modelo denominado modelo estatstico-relevante e busca englobar casos aos
quais o modelo dedutivo-nomolgico no sensvel, casos estes que so exemplificados
por explicaes probabilsticas. importante notar que alm de buscar captar as
explicaes de baixa probabilidade, o modelo estatstico relevante procura fornecer
tambm um novo critrio para que seja possvel distinguir os aspectos relevantes para
uma explicao cientfica, uma vez que casos como o do homem que toma plulas
6 Traduzi a expresso lawful por conexes vlidas regidas por leis fazendo referncia a uma validade
lgica regida pelas leis que compem o explanans. 7 A expectabilidade nmica no uma peculiaridade do modelo dedutivo-nomolgico. Tendo em vista a
importncia das explicaes estatsticas, Hempel (1974) prope o modelo indutivo-estatstico no qual a
passagem do explanans para o explanandum no se d dedutivamente em um sentido estrito, mas a
inferncia condicionada por um alto grau de probabilidade. Nesse sentido, possvel observar a
expectabilidade nmica tambm no modelo indutivo-estatstico.
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anticoncepcionais parecem atender a todos os requisitos do modelo dedutivo-
nomolgico, ainda que no satisfaam as condies para uma explicao satisfatria8.
Tendo em vista este ltimo contraexemplo, o modelo estatstico-relevante
introduz o conceito de partio homognea. Em linhas gerais, uma partio homognea
representa determinada parte de uma classe de indivduos que se excluem mutuamente
das outras partes do todo, no podendo, deste modo, haver divises subsequentes dentro
desta subclasse. Assim, dado uma classe de indivduos A relacionada a um atributo B, os
indivduos representado pela subclasse Cx de A s sero uma partio homognea se
Cx Cy, de modo que a probabilidade de B ser estatisticamente relevante em relao
Cx deve ser necessariamente distinta da probabilidade resultante da relao entre B e
Cy9.
Deste modo, o modelo estatstico-relevante pode ser posto nos seguintes termos:
Dado uma classe ou populao A, um atributo C s ser estatisticamente relevante para um
atributo B se e somente se P(B|A.C) P(B|A) isto , se e somente se a probabilidade do
condicional B em A e C for diferente da probabilidade do condicional B em A isoladamente.
(Trad. minha) (WOODWARD, 2010)
Assim, a ineficcia explanatria relatada no exemplo do homem que toma
plulas anticoncepcionais captada pelo modelo estatstico-relevante, uma vez que a
probabilidade de um grupo de indivduos homens que tomam plulas (C) no
engravidarem (B) estatisticamente irrelevante quando se assume a classe total dos
homens (A). Em termos formais, o argumento pode ser exposto da seguinte forma:
P(B|A) = P(B|A.C). Isto demonstra que a subclasse dos homens que tomam plulas (C)
no uma partio homognea, visto que, podemos dividir C subsequentemente, de
modo que P(B|A.C.Ca) = P(B|A.C), o que no alteraria a relao estatstica em relao
ao atributo de no engravidar (B). possvel ainda que seja escolhida qualquer outra
subclasse dentro de A, por exemplo, a subclasse dos homens que tomam cerveja (E),
sem que a relevncia estatstica seja alterada isto , P(B|A.C.E) = P(B|A.C). Deste
modo, uma vez que C no uma partio homognea, este no pode ser o princpio
adequado para se explicar a ocorrncia de B dentro de A.
8 Cf. nota 2 deste artigo, ver tambm WOODWARD, 2010, The SR Model. 9Em termos formais: P(B|A.Cx) P(B|A.Cy).
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De acordo com esta breve exposio do modelo estatstico-relevante, possvel
enunciar a ideia que subjaz a este modelo:
A intuio que subjaz ao modelo estatstico-relevante que propriedades estatisticamente
relevantes (ou informaes sobre relaes estatisticamente relevantes) so explanatrias e
propriedades estatisticamente irrelevantes no o so. Em outras palavras, a noo de uma
propriedade fazendo a diferena em relao a um explanandum apresentada em termos de
relaes estatsticas relevantes. (Trad. minha) (WOODWARD, 2010)
2. A EXPLICAO CIENTFICA EM ARISTTELES
A identificao de propriedades relevantes a partir de informaes
estatisticamente relevantes constitui uma singularidade do modelo de Salmon (1971,
1989) em relao ao modelo de Hempel (1974), visto que o primeiro consegue explicar
situaes s quais o segundo modelo no sensvel. possvel observarmos, no
entanto, o que talvez seria a noo de propriedade explicativa relevante na obra de
Aristteles, mais especificamente, no primeiro livro dos Segundos Analticos.
De acordo com Aristteles, conhecer cientificamente conhecer a respeito da
causa pela qual a coisa , que ela causa disso, e que no possvel ser de outro modo
(71b 10-11). A causa pela qual a coisa , [...], e que no possvel ser de outro modo
s pode ser explicitada atravs da demonstrao. O conhecimento cientfico, deste
modo, s possvel atravs da demonstrao, a qual Aristteles define por silogismo
cientfico (71b 18). Uma demonstrao deve atender a alguns requisitos para que,
conforme ser demonstrado posteriormente, seja diferenciada de alguns silogismos que,
embora vlidos, no captam a verdadeira causa de algo que se pretende explicar. Para
que tal resoluo seja satisfeita, Aristteles assume que uma demonstrao deve provir
de itens verdadeiros, primeiros, imediatos, mais cognoscveis que a concluso,
anteriores a ela e que sejam causa dela (71b 20-21).
Por primeiros e imediatos, Aristteles se refere aos itens que [explicam]
adequadamente o objeto assumido como explanandum.10
(ANGIONI, 2007. p. 3).
Assim, no que diz respeito ao tringulo issceles, por exemplo, a propriedade de possuir
seus ngulos internos igual a 180 (2R) no se atribui primeiramente ao tringulo
10 E a partir de primeiros a partir de princpios apropriados pois entendo primeiro e princpio
como o mesmo. (72a 5)
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issceles enquanto issceles, mas antes, a propriedade de ter 2R primeira e imediata
em relao ao tringulo, e no a issceles11
.
No que diz respeito aos itens mais cognoscveis, Aristteles faz uma distino
entre mais cognoscveis para ns e mais cognoscveis por natureza. Os primeiros,
diz Aristteles, se referem aos itens que esto mais prximos de ns no que se refere
sensao, ao passo que os segundos representam as coisas mais afastadas, ou seja, os
universais. Smith (2009) defende que familiaridade e inteligibilidade para ns
altervel atravs da habituao (Trad. minha) (SMITH, 2009, p. 54), o que indica que
podemos chegar ao que mais familiar ou inteligvel por natureza partindo do que
mais familiar ou inteligvel para ns12
.
Os pontos apresentados at aqui podem ser resumidos no seguinte trecho de
Smith (2009):
[C]incia o conhecimento da causa por que algo do modo que ; ns estamos em posse da
cincia quando estamos em posse de uma demonstrao. Uma demonstrao um silogismo do
qual as premissas so verdadeiras e elementares. Possuir uma demonstrao requer que as
premissas sejam mais familiares ou mais inteligveis para ns do que a concluso (Trad. minha) (p. 55).
Dado que o conhecimento cientfico um conhecimento necessrio da causa
pelo qual algo , e deste modo, no podendo ser de outro jeito, Aristteles conclui que
uma demonstrao s pode provir de itens necessrios. Para esclarecer esta noo,
necessrio compreendermos o que se entende por atribuio a respeito de todo, por si
mesmo e universal.
Em primeiro lugar, algo atribudo a respeito do todo na medida em que no
a respeito de apenas alguns e no de outros, nem apenas s vezes, mas s vezes no;
[...]. (73a 28-29). Assim, um exemplo que podemos utilizar aqui o do ponto e da
11 Uma proposio imediata uma proposio que no necessita de um termo mediador para que seja
demonstrada, ou seja, sua verdade provm da prpria definio da coisa considerada. Como coloca Smith
(2009): Se no h nenhum termo mdio, [...], ento a proposio em questo amesos, sem
intermediador. Isto o que imediato significa para Aristteles (Trad. minha) (SMITH, 2009, p. 53). 12 Para uma argumentao mais detalhada, Cf. SMITH, 2009, p. 54. A argumentao de Smith baseada
em uma passagem da Metafsica (1029b310), na qual Aristteles afirma: [E]nto, o nosso trabalho
comear do que inteligvel [familiar] para ns e fazer o que inteligvel [familiar] por natureza tambm
inteligvel para ns (Trad. minha).
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linha, isto , o ponto atribudo a respeito de toda linha, uma vez que se se tem uma
linha, ter-se- tambm o ponto.
Em segundo lugar, algo atribudo por si mesmo pelo menos de dois modos:
primeiramente atribui-se por si mesmo tudo aquilo que est contido na definio do
sujeito, como, por exemplo, a linha se atribui ao tringulo por si mesmo.
Paralelamente, atribui-se por si mesmo tambm os predicados que esto contidos na
essncia do sujeito, como o caso de se atribuir par e mpar ao nmero, visto que o
nmero em sua essncia ou par ou mpar.
No que diz respeito ao universal, este se refere a tudo aquilo que se atesta a
respeito de qualquer caso que se tome, e primeiramente (73b 32-33). Deste modo,
possuir dois ngulos retos no atribudo universalmente figura, visto que o quadrado,
por exemplo, possui a soma de seus ngulos internos igual a 4R. No que se refere ao
issceles, possuir 2R tambm no atribudo universalmente, j que, embora todos os
issceles tenham 2R, esta caracterstica no atribuda primeiramente, mas antes,
aplicvel a mais casos, como o caso dos tringulos equilteros e dos tringulos
escalenos.
Tendo em vista estes esclarecimentos conceituais, possvel atentarmos para
algumas das implicaes da noo de explicao cientfica para Aristteles. Conforme
demonstrado na primeira parte deste artigo, os modelos de explicao cientfica
contemporneos atentam para a distino entre sentenas que afirmam que um
fenmeno o caso e sentenas que afirmam por que este fenmeno o caso. Com esta
distino em vista, possvel observarmos que a teoria da demonstrao aristotlica se
preocupa em distinguir entre um silogismo do que e um silogismo do por que. Assim,
para que a teoria seja sensvel a esta distino, Aristteles aduz a diferenas presentes
entre silogismos verdadeiros que, embora logicamente vlidos, no expressam o por que
ou a causa do que se pretende explicar, de silogismos que captam a causa primeira e
explicam por que determinada coisa o caso.
Para que esta distino seja possvel, Aristteles argumenta que em uma
demonstrao, isto , em um silogismo do por que, o temo mdio (intermediador) deve
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ser atribudo necessariamente a ambos os termos maior e menor, caso contrrio, a
concluso pode ser necessria, mas ainda no se conhecer por que.
Outro ponto importante desta discusso diz respeito aos princpios dos quais se
origina a demonstrao, isto , mesmo que os princpios sejam verdadeiros,
indemonstrveis e imediatos, isto no significa que sejam apropriados para que da se
construa um silogismo do por que. Assim, Aristteles aponta para a necessidade de
homogeneidade entre os termos de um silogismo para que uma demonstrao seja
satisfeita. Em outras palavras, em um silogismo com os extremos A e C e o
intermediador B, A, B e C devem necessariamente pertencer ao mesmo gnero, caso
contrrio, no ser possvel se extrair da uma demonstrao. Esta assero pode ser
entendida consoante s consideraes de Aristteles em relao aos elementos de uma
demonstrao: So trs os itens nas demonstraes: um aquilo que se demonstra, a
concluso [...]; outros, por sua vez, so os axiomas [...]; em terceiro lugar, o gnero
subjacente [...] (75a 38-75b 2). Deste modo, uma vez que cada gnero possui
princpios necessrios distintos, uma demonstrao no pode abranger termos de
gneros distintos. Caso isto acontea, o silogismo no ser uma demonstrao, mas
apenas uma atribuio por algo em comum.
Torna-se claro, portanto, que uma demonstrao deve ser dada em forma de um
silogismo, visto que, para que seja encontrada a relao necessria entre um termo A e
um termo C, necessrio que haja um termo intermediador B que seja atribudo
necessariamente tanto a A quanto a C, de modo que a causa (ou o por que) do que se
procura explicar deve ser dada a partir da deduo da relao necessria entre os termos
extremos partindo da relao igualmente necessria entre os extremos e o
intermediador.
Uma possvel sugesto aqui que podemos encontrar a causa ou o por que em
uma explicao olhando para a totalidade de indivduos da classe ao qual esta causa
atribuda. Em outras palavras, poderamos dizer que para explicar por que x seria
suficiente aduzirmos classe dos indivduos que possuem x. Para Aristteles, no
entanto, tal sugesto no plausvel. Ele procura explicitar ao longo do captulo V dos
Segundos Analticos I que a satisfao do princpio de coextensionalidade no
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condio suficiente para captar a causa ou o por que de algo. Para compreendermos isto,
tomemos como exemplo o seguinte silogismo:
Todos os equilteros, escalenos e issceles possuem seus ngulos internos igual a 2R
Todo tringulo ou equiltero, ou escaleno, ou issceles
Portanto, todo tringulo tem a soma de seus ngulos internos igual a 2R
possvel observarmos neste caso que ainda que as premissas e a concluso
sejam verdadeiras e, portanto, que o argumento seja vlido, no podemos conhecer a
partir desta inferncia por que um tringulo tem 2R. somente possvel extrair deste
argumento que todos os elementos da classe dos tringulos possuem 2R, mas no
podemos saber a causa primeira pela qual 2R atribudo ao tringulo. Conforme afirma
Aristteles, neste caso conhecemos apenas por contagem (74a 30), isto , mesmo que
toda a extenso do termo tringulo seja conhecida (equiltero, escaleno e issceles), no
possvel conhecermos a partir da por que 2R se atribui ao tringulo. Como explicita
Angioni (2007), preciso conhecer a forma essencial de tringulo alm de sua mera
coextensionalidade: no se tem conhecimento cientfico, se essa co-extenso obtida
por mera contagem, sem referncia forma essencial do tringulo enquanto tringulo
(ANGIONI, 2007, p. 16). Com efeito, s possvel explicar por que 2R se atribui ao
tringulo a partir da prpria definio de tringulo, isto , dado uma figura de trs lados
desenhada, se se traar uma reta paralela a partir de um lado da figura, o valor do ngulo
suplementar a um ngulo interno ser sempre a soma dos outros dois ngulos internos
da figura, o que corresponde a dois ngulos retos (2R).
A exposio at aqui apresentada permite-nos atentarmos para um primeiro
aspecto importante da comparao proposta entre os modelos contemporneos e o
modelo aristotlico: a teoria aristotlica da demonstrao capta, assim como o modelo
estatstico de Salmon (1971, 1989), os aspectos relevantes de uma explicao cientfica.
Quando Aristteles atenta para o fato de que a coextensionalidade no fator suficiente
para se explicar por que uma caracterstica atribuda a algo, ele afirma no somente
que uma explicao deve buscar pela causa adequada ou por informaes relevantes,
mas antes, Aristteles demonstra justamente que a mera correlao necessria entre
fatos organizados na forma de um argumento vlido no garante que haja uma
explicao satisfatria da coisa ou fenmeno investigado.
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possvel observar tambm, ainda nos Segundos Analticos I, exemplos
fornecidos por Aristteles que tornam clara a sua ateno para as distines das teorias
contemporneas, como o caso da distino entre as sentenas descritivas e as
sentenas explicativas s quais os modelos de Salmon (1971, 1989) e Hempel (1974)
procuram se adequar:
Esteja C para planetas, B para o no cintilar, e A para o estar prximo. Ora, verdadeiro
afirmar B de C: os planetas no cintilam. Mas tambm verdadeiro afirmar A de B: o que no
cintila est prximo (admita-se que isso se assume atravs da induo ou atravs da sensao).
Ora, necessrio, ento, que A seja atribudo a C, de modo que se encontra demonstrado que os
planetas esto prximos. Assim, este silogismo no do por que, mas sim do que; pois no por no cintilar que esto prximos, mas, antes, por estarem prximos que no cintilam. (76a 32-
37)
[S]eja C planetas, B, o estar prximo, A, o no cintilar. Ora, B se atribui a C, como
tambm A se atribui a B, de modo que tambm A se atribui a C. E tal silogismo do por que,
pois encontra-se apreendida a causa primeira. (78a 39-78b 3)
Nesse sentido, o modelo aristotlico, a partir de suas consideraes em relao
relevncia explicativa, permite-nos concluir que a demonstrao enquanto modelo de
explicao cientfica capaz de evitar objees feitas aos modelos contemporneos,
como o caso da assimetria explicativa apresentada contra o modelo dedutivo-
nomolgico.
Para compreendermos este ponto, considere um caso no qual se pretende
explicar a altura de um mastro a partir de tamanho de sua sombra. Para este intento, o
modelo dedutivo-nomolgico parece ser suficiente para fornecer condies para uma
explicao eficaz, visto que, se o tamanho da sombra conhecido, junto com o ngulo
de incidncia dos raios solares sobre a Terra no momento em que se pretende realizar o
clculo, e sendo estes fatos organizados sob os preceitos de leis gerais, como as leis da
fsica, possvel explicar satisfatoriamente a altura do mastro a partir do tamanho de
sua sombra. Mas, caso resolvamos explicar o motivo pelo qual o mastro possui uma
altura H, no possvel, a partir do tamanho da sombra, deduzir por que o mastro tem
este tamanho H, ainda que o critrio de leis gerais (as leis da fsica), o contedo
emprico (tamanho da sombra e posicionamento do Sol) e a validade da deduo sejam
satisfeitos.
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Nesse sentido, a teoria aristotlica sensvel s peculiaridades das teorias
contemporneas assim como consegue abarcar contraexemplos frgeis a estas teorias,
como atesta o exemplo dos planetas apresentado acima, isto , explicar por que os
planetas esto prximos aduzindo ao fato de que no cintilam no constitui realmente
uma demonstrao, mas apenas um silogismo do que, uma vez que o silogismo do por
que (ou a demonstrao)s satisfeito quando a verdadeira causa apresentada, ou seja,
somente quando se afirma que os planetas no cintilam porque esto prximos. Neste
caso, evidente que a teoria da demonstrao sensvel distino entre sentenas
descritivas e explicativas.
Similarmente, podemos observar que casos de assimetria explicativa tais como o
caso do mastro no so considerados explicaes pela teoria da demonstrao, j que
nestes casos a causa do mastro possuir altura H no explicitada. Podemos concluir,
deste modo, que o modelo aristotlico sensvel s peculiaridades s quais os modelos
contemporneos aqui tratados tentam se adequar, o que explicita a importncia das
consideraes aristotlicas acerca das explicaes cientficas.
Referncias:
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Aristteles. In: Journal of Ancient Philosophy, vol. I, 2007. Disponvel em:
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A DEFESA DA ADAEQUATIO COMO CRITRIO NICO PARA A
PERCEPO DA IDEIA VERDADEIRA EM SPINOZA
Carmel da Silva Ramos
Graduanda em Filosofia pela UFRJ
Resumo: Pretendo apresentar neste artigo dois argumentos a favor da tese da verdade
como coerncia no sistema filosfico de Spinoza. Para isso, ser necessrio dividir o
texto em dois momentos: um primeiro momento em que faremos uma anlise
concentrada nas teses da tica e um segundo em que partiremos para a discusso de
pargrafos do Tratado da Reforma da Inteligncia. Assim, contemplando duas obras
distintas do autor, ser possvel entrever sua teoria do conhecimento no a partir de uma
via conflituosa, mas em unidade de teses. Alm desta possibilidade de leitura que
agrega as duas obras, tenciono demonstrar que a tese da verdade como coerncia
apresenta determinadas vantagens conceituais internas ao pensamento de Spinoza,
intensificando sua crtica ao cartesianismo e mostrando uma sada mais econmica e
congruente com o modelo de exposio da tica.
Palavras-chave: Spinoza. Teoria do conhecimento. Descartes. Filosofia moderna.
Abstract: My aim in this article is to show two arguments in favor of Spinozas
coherence theory of truth. For this, it will be necessary to divide the text in two
moments: first, we intend to analyze the second part of the Ethics; and second, in which
we will discuss some paragraphs of the Treatise on the Emendation of the Intellect.
Thus, investigating two different works of the author, it will be possible to read his
epistemology not in a confused way, but from a specific unity. In addition to this
interpretation putting together two different works, I intend to demonstrate that the
coherence theory of truth presents some conceptual advantages inside of Spinozas
philosophical system, that is, the introducing of his critique of cartesianism and the
more consistent view with Ethicss model of exposure.
Keywords: Spinoza. Theory of knowledge. Descartes. Modern philosophy.
O problema
A questo da percepo da ideia verdadeira assume caracteres problemticos na
filosofia de Spinoza. Muitas de suas formulaes sugerem interpretaes divergentes
em seus comentadores, isso em muito por conta de uma anlise que soa contraditria
entre as teses, por um lado, da tica, por outro, do Tratado da Reforma da Inteligncia.
Alguns dos intrpretes de sua filosofia, a partir do axioma 6 da parte I da tica - a saber,
uma ideia verdadeira deve concordar com seu ideado - seguem para a leitura de que
Spinoza aceita a tese da verdade como correspondncia como integrante essencial de
sua teoria do conhecimento. Outros assumem posio de que a verdade como
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coerncia que constitui a soluo spinozista para a percepo da ideia verdadeira. Por
ltimo, h aqueles que definem uma tese complementar entre correspondncia e
coerncia, como dois aspectos inseparveis da ideia adequada1. Pretendo demonstrar
neste artigo uma sada para esta aparente confuso, defendendo um nico tipo de
caracterizao dos contedos adequados no intelecto que case as teses levantadas nestas
duas obras de Spinoza particularmente voltadas questo do conhecimento (segunda
parte da tica e Tratado da Reforma da Inteligncia), que a teoria coerentista da
verdade.
Para tal empreendimento, apresentarei dois argumentos, cada um deles situado
em uma obra especfica de Spinoza. Deste modo, a correspondncia da ideia com o
objeto aparecer como desnecessria com a noo de verdade no sistema do autor. Com
um primeiro argumento, demonstrarei como o movimento nico do processo cognitivo
exclui a necessidade de uma ideia verdadeira recorrer a uma inferncia ao mundo
exterior para afirmar sua condio de veraz, tornando a correspondncia uma tese intil.
Com um segundo, enfatizarei um dos aspectos essenciais da ideia verdadeira, a saber,
sua certeza intrnseca, a partir da noo de que veritas norma sui et falsi est.2
guisa de introduo necessrio tecer pequena definio destes dois modelos
aparentemente opostos, que so o da tese da verdade como correspondncia
(convenientia) e da verdade como coerncia ou adequao (adaequatio). A primeira
espcie de teoria padro sustentada no perodo medieval, apesar de tambm figurar na
modernidade (com Descartes3, por exemplo). O fato de tal tese ter se tornado um padro
de pensamento pode ser creditado influncia aristotlica, que no livro IV de sua
Metafsica apresenta a formulao Dizer do que o que no , ou do que no o que ,
dizer o falso; enquanto que dizer do que o que e do que no o que no , dizer a
verdade4, trecho que pode ser considerado uma expresso da correspondncia. A
1 Para o caso de tericos que sustentam a tese da verdade como correspondncia em Spinoza, ver Bennet
e Curley. Para os da coerncia, Walker e Hampshire. Para os defensores de uma tese complementar entre
as duas noes, ver Gleizer e Landim. 2 EII, P. 43, Esc. Exatamente da mesma maneira que a luz revela a si prpria e as trevas, a verdade
norma de si prpria e do falso. 3 Ora, o principal erro e mais comum que se pode encontrar consiste em que eu julgue que as ideias que
esto em mim so semelhantes ou conformes s coisas que esto fora de mim. DESCARTES, R.
Meditaes Metafsicas. Meditao Terceira, pg. 109, 9 pargrafo. Os Pensadores, Abril Cultural, So
Paulo, 1973. 4ARISTTELES, Metafsica. 1011b, 25. Traduo de Vincenzo Cocco e notas de Joaquim Carvalho.
Abril, S.A. Cultural, So Paulo: 1984
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convenientia apresenta como critrio de verdade, como significado da prpria verdade
igualmente, a noo de que a ideia deve concordar com o objeto no mundo exterior que
ela mesma vem exprimir. Temos, ento, que a correspondncia eleva um aspecto
extrnseco da ideia verdadeira, ou seja, sua conformidade com um objeto que pode ser
dado tanto em sentido fsico como em sentido formal - tal como uma ideia do intelecto
entendida enquanto objeto de outra ideia (noo de ideia da ideia).
Por outro lado, a verdade como coerncia (adaequatio) indica apenas um
aspecto intrnseco da ideia verdadeira, que diz respeito a seu prprio contedo. Uma
ideia adequada possui aspectos internos, como clareza e distino e certeza, os quais
fazem com que a mesma ideia se expresse como verdadeira a partir de sua prpria
natureza. Veremos adiante que, no caso da filosofia de Spinoza, todo um conjunto de
ideias adequadas no intelecto necessrio para obter a verdade como adaequatio, a
ttulo de um sistema coerente de ideias que o constitui.
importante ressaltar que, por mais que a formulao pela qual optamos, de
apresentar a definio da teoria da verdade como correspondncia e logo aps a da
coerncia sugira uma oposio de teses, esta no uma relao necessariamente
implicada. Para supor uma tese que negue a verdade como correspondncia preciso
apresentar outra noo que exclua, em sua prpria definio, a mxima de que a ideia
corresponde ao objeto: o que no est explcito na definio de adaequatio. Isso, no
entanto, no nos encaminhar a uma aceitao dupla da correspondncia e coerncia
como critrios que funcionam de maneira harmnica na percepo da ideia verdadeira.
Ainda que os critrios no se oponham termo a termo, parece-nos que o objetivo de
Spinoza mostrar que a coerncia um critrio necessrio e suficiente por si mesmo
para o reconhecimento da verdade. No eliminaremos, no entanto, a possibilidade da
ideia corresponder a um contedo qualquer no mundo: essa concordncia ser apenas
um caractere secundrio para sua existncia enquanto adequada.
De posse destas informaes acerca dos dois critrios de verdade em jogo,
analisemos trechos da segunda parte tica, dedicada a discusses de cunho
epistemolgico, de modo a entrever um argumento sustentvel a favor da verdade como
coerncia.
1. Primeiro argumento: a inseparabilidade entre as faculdades da vontade e do
intelecto
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O ttulo deste artigo nos oferece uma pequena dificuldade se considerarmos a
posio que pretendemos explicitar. Isso porque percepo, numa leitura desavisada,
pode sugerir que uma ideia dada primeiramente sem julgamento algum mente, para
aps sua fabricao nesta obter o ttulo de verdadeira ou falsa. Tal movimento no
acontece em Spinoza, justamente porque no podemos supor espcie de movimento
posterior de julgamento. Por ora, porm, preciso esclarecer alguns pontos da
epistemologia do autor antes da elucidao da problemtica do ttulo. Mantenhamos este
alerta como questo relevante para o prprio desenrolar do argumento que esta seo do
texto visa defender.
As duas teorias da verdade apresentadas acima fornecem noes aplicveis s
ideias verdadeiras, que por sua vez subsistem na mente. Uma caracterizao da mente e
do modo como o conhecimento engendrado no intelecto so teses fundamentais que
necessitam ser esclarecidas se quisermos nos comprometer em apresentar algum critrio
de verdade especfico, uma teoria da verdade em sentido forte.
Spinoza compreender a mente humana, do ponto de vista de uma ontologia
imanentista, como uma modificao finita do atributo pensamento que constitui a
essncia da substncia divina5. Do ponto de vista da constituio particular humana,
enquanto ideia do corpo, garantindo um paralelismo total entre estas duas modificaes
(mente e corpo) dos atributos (pensamento e extenso) de Deus.6 Qualquer afeco
corporal ter uma expresso necessria na mente sob a categoria de ideia. Sendo o corpo
um agregado complexo e podendo ser afetado de diversas maneiras7, a mente tambm
dever obedecer mesma regra, se expressando por mltiplas categorias de ideias em
seus diferentes contedos e em suas diversas aparies formais (como ideias simples,
complexas, afetos, etc.).8 Quando a mente forma ideias, a partir das afeces que o
corpo sofre, no est apenas recebendo contedos que so como que a ela inseridos de
maneira puramente representacional. As ideias expressam determinado conceito que
tem o intelecto como faculdade criativa e afirmativa de contedos. Ter ideias uma
ao especfica da mente, tomando ao em sentido forte, oposto a uma recepo
meramente passiva de exibio de essncias. A definio de ideia apresentada por
Spinoza esclarecer esse ponto:
5 EI, P.14, Cor. 2; EI, P. 31.
6 Ver, sobretudo, o Pequeno Tratado de Fsica da tica II, P. 13.
7EII, Postulado 4; EII, P. 14 e P. 15.
8Ver: EII, P.13, 14 e 15.
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Por ideia compreendo um conceito da mente, que a mente forma porque uma coisa pensante.
Digo conceito e no percepo porque a palavra percepo parece indicar que a mente passiva
relativamente ao objeto, enquanto conceito parece exprimir uma ao da mente. (SPINOZA,
2009, tica II, Definio 3)
No caso do sistema cartesiano, contrariamente, as ideias possuem natureza
passiva, semelhantes a pinturas mudas sobre um quadro9 que apenas exprimem na
mente um caractere da realidade. Assim, Entre meus pensamentos, alguns so como as
imagens das coisas, e s queles convm propriamente o nome de ideia.10
No entanto,
para aceitar a ideia como passiva, parece necessrio igualmente encarar o prprio
intelecto sob esta tica, pois s um intelecto no ativo seria capaz de receber tais
percepes sem mediao alguma. Descartes opera a partir de uma caracterizao de
faculdades para a razo, definindo funes especficas para as mesmas. O entendimento
a faculdade responsvel pela representao de contedos, de maneira que estes o
alcanam sem afirmar qualquer compromisso judicativo com a realidade. As diversas
outras funes da mente como querer, amar, julgar, etc. so como que variaes da
representao mais primitiva de ideias feita por este entendimento finito. A vontade, por
outro lado, uma faculdade da mente que, alm de outras funes ativas da razo, julga
estas representaes, i.e., adiciona a elas o predicado de verdadeiras ou falsas mediante
a correspondncia destes contedos com o mundo exterior. Desse modo, para Descartes,
a questo da verdade surge no nvel de comunho entre duas faculdades: o
entendimento, por um lado, ao exibir contedos de maneira neutra; e a vontade, por
outro, ao julgar estes contedos de acordo com o que est expresso nos objetos do
mundo exterior.
As teses que apresentamos acima se excluem mutuamente, de modo que h uma
crtica ao cartesianismo imbuda na definio de ideia de Spinoza. na proposio 49
9 Ver SPINOZA, Benedictus de. tica, Livro II, Proposio 49, Esclio. Trad. de Tomaz Tadeu - Belo
Horizonte: Autntica Editora, 2009. Esta a formulao utilizada por Spinoza em referncia teoria das
ideias cartesiana. Vale lembrar que desejamos apenas apresentar a leitura de Spinoza para a epistemologia
de Descartes, que parece ignorar o problema dos dois nveis de verdade introduzidos no autor: a verdade das ideias por sua essncia, que assume critrios intrnsecos de reconhecimento por sua clareza, distino
e certeza; e a verdade ou erro dos juzos, que supe a verdade de primeiro nvel das essncias das ideias.
10 DESCARTES, R. Meditaes Metafsicas. Meditao III, p. 109, 6 pargrafo. Os Pensadores, Abril
Cultural, So Paulo, 1973. Vale lembrar que Descartes no est aqui levantando uma tese figurativa das
ideias, isto , no est identificando uma equivalncia das mesmas com imagens. Justamente, o trecho
realiza uma espcie de comparao com o funcionamento das imagens (como imagens das coisas), ou
seja, as ideias, para Descartes, representam e exibem um contedo na mente, da mesma maneira que as
imagens das coisas so capazes de representar sua essncia.
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da parte II da tica que encontraremos essa crtica demonstrada, movida por um duplo
aspecto: em primeiro lugar, quanto ao entender de Descartes da ideia e da mente como
passivas11
; em segundo, quanto a sua diviso entre as faculdades da vontade e do
entendimento.12
A aceitao integral do princpio de causalidade por parte de Spinoza13
o leva a
incorrer num necessitarismo causal e suprimir qualquer noo de vontade livre. Um
desejo que a mente exprimir ter uma causa determinada, que por sua vez ser efeito de
outra causa anterior e assim formar-se- um nexo causal que se estender ao infinito.
Isto posto, no h na mente espcies de volies livres do querer, apenas expresses
singulares desta vontade: esta ou aquela volio especfica determinada por uma causa
anterior. O que Spinoza est entendendo aqui por vontade no um livre querer,
portanto, mas a faculdade de afirmao ou negao de um contedo qualquer na mente.
E, mais ainda, se um contedo qualquer no intelecto no pode existir seno enquanto
ideia, dada sua gnese enquanto afeco corporal consciente no intelecto, uma volio
qualquer tambm uma ideia. Deste modo, volio e ideia so apenas termos
distintos para se referir a uma nica atividade mental.
Descartes entende o julgamento de uma ideia na mente subdividido em dois
momentos principais. Um primeiro dedicado ao do entendimento que, dada sua
abrangncia finita, ser capaz de representar em si uma srie de contedos de maneira
neutra. E um segundo momento, posterior percepo, no qual a vontade, em sua
extenso infinita, definir um valor de verdade a este contedo que apenas exibia algo
do mundo exterior, como se fosse uma imagem dele.14
A crtica de Spinoza a estas
concepes cartesianas residir no seguinte ponto: por mais que o sistema de Spinoza e
o de Descartes situem juzo e percepo sob uma mesma categoria na mente (a de uma
apario qualquer, com uma essncia formal especfica), Spinoza elimina qualquer
noo de livre querer, ou seja, a de que um juzo possa provir de uma faculdade volitiva
expressa em tamanho infinito no sujeito e, portanto, que o juzo uma ideia diferente da
ideia de uma representao. A tese que Spinoza prope colocar tanto representao e
juzo, quanto entendimento e vontade sob um mesmo nvel, no enxergando qualquer
11
EII, P. 49, Esc. 12
EII, P.49, Cor. 13
EI, Ax. 3. 14
Para uma anlise mais completa das faculdades da vontade e do entendimento ver DESCARTES, R.
Quarta Meditao. Meditaes Metafsicas. Os Pensadores, Abril Cultural, So Paulo, 1973.
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distino entre essas duas modalidades. Seria at incorreto se referir vontade e ao
entendimento15
no sistema de Spinoza: tem-se apenas o intelecto puro que tanto
percebe ideias quanto afirma seus contedos de maneira equivalente. Afirma, de acordo
com as ideias verdadeiras que compem o intelecto divino; e por outro lado tambm
nega, se comparado ao sistema adequado de ideias que o intelecto, pois ao mesmo
tempo em que afirma um contedo determinado, nega todos os outros que no exprime
o teor enquanto ideia. nesse sentido que o alerta a respeito do ttulo do artigo surge, j
que a percepo da ideia verdadeira em Spinoza no pressupe sua afirmao enquanto
veraz, como o ttulo poderia sugerir: temos aqui um movimento nico, uma mesma
atividade na mente que conhece. Assim, a concluso de Spinoza de que:
A vontade e o intelecto nada mais so do que as prprias volies e ideias singulares. Ora, uma
volio singular e uma ideia singular so uma s e mesma coisa. Logo, a vontade e o intelecto
so uma s e mesma coisa. (SPINOZA, 2009, tica II, Proposio 49, Demonstrao)
Se o processo de formao de uma ideia no intelecto conjunto ao de assero
da mesma, a questo da verdade ser dada no interior da prpria percepo. Neste
momento perceptivo, no qual a ideia ser afirmada no intelecto, vir, ao mesmo tempo,
o judicativo, e a aceitao por parte da mente desta como verdadeira mediante seu
contedo. Assim, uma ideia se expressar como verdadeira se for capaz de dar conta de
determinado dispositivo causal de um dado; se obtiver uma expresso clara e distinta e
indubitvel de seu contedo; se, em suma, der conta de um conjunto de propriedades
intrnsecas a si prpria e a mente. por isso que pela negao da separao entre
vontade e intelecto, Spinoza poder, igualmente, negar a necessidade da convenientia
como critrio de reconhecimento de ideias verdadeiras: a verdade da ideia ser dada
apenas por sua adaequatio, por seu aspecto puramente intrnseco ao domnio mental e
no mediante uma inferncia necessria ao mundo exterior para o estabelecimento de tal
contedo como adequado.
2. Segundo argumento: a certeza intrnseca de um contedo verdadeiro na mente
No Tratado da Reforma da Inteligncia, Spinoza apresenta, no pargrafo 34, um
exemplo particularmente elucidativo a respeito de suas teses sobre a percepo da ideia
15
A traduo que utilizamos para a tica (2009) aponta o uso do termo intelecto para caracterizar a
mente. J na edio que consultamos as Meditaes (1973) de Descartes, observamos o uso do termo
entendimento. Embora Espinosa no use o ltimo vocabulrio, identificamos, em nossa leitura, uma
equivalncia entre os termos, de modo que julgamos interessante, para fins de melhor compreenso do
argumento em questo, tomar ambos com um mesmo referente.
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verdadeira. No pargrafo anterior (33), o autor defende uma relao de independncia
entre objeto (ideado), ideia de tal objeto, ideia da ideia e assim sucessivamente.
Segundo ele, deve-se tomar o objeto e as respectivas ideias subsequentes enquanto
entidades distintas entre si, o que implicar na afirmao de que elas sero, igualmente,
inteligveis por si mesmas. Uma coisa o crculo - algo que possui periferia e centro - e
outra completamente diferente a ideia do crculo, que no possui diretamente tais
caractersticas. O mesmo pode ser aplicado ao corpo: a ideia do corpo no deve ser
entendida enquanto o corpo propriamente, o ente mundano e extramental - mas algo
completamente desligado dele (como a essncia do tringulo distinta e independente
da essncia do crculo) e que se restringe aos domnios do intelecto.
Tomemos um determinado ente Pedro. Este ente configura um objeto real no
mundo que totalmente distinto e independente da ideia do mesmo, ou seja, da ideia de
Pedro. No caso, a ideia de Pedro possui a essncia objetiva de Pedro, ela mesma
contendo sua prpria inteligibilidade. A ideia de Pedro pode ser objeto de outra ideia,
que por sua vez conter objetivamente tudo que a ideia de Pedro possui em sentido de
essncia formal. Ou seja, Spinoza sustenta aqui a noo de ideia da ideia, conferindo
para cada uma delas uma realidade e inteligibilidade prprias e autnomas. Esse papel
relegado s essncias objetivas (contedo das ideias) e s ideias (essas duas ltimas que
significam uma s e mesma coisa) permitir que o autor afirme o seguinte, que ser
interessante ao nosso intento:
, pois, evidente que, para