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  • EMother Africa, father Marx: womens writing of Mozambique - 1948-2002,

    de Hilary Owen

    MaRC sabineUniversidade de Nottingham

    excelente estudo de Hilary Owen,1 o primeiro livro sobre a produo de es-critoras moambicanas a ser editado em lngua inglesa, recomenda-se a to-dos apreciadores das culturas da frica lusfona pelo sucesso em realar, de modo to incisivo quanto imaginativo, a complexa relao de divises de gnero com a concepo da nao e o domnio da palavra literria. Como o significado duplo do seu ttulo indica, o livro prope no o remodelar do cnone moambicano para assim outorgar mais destaque experincia e au-toria femininas, mas sim a interrogao, sustentada pela teoria ps-colonial feminista, do conceito de canonicidade em si prprio. Por meio de uma abor-dagem lcida, e arguta, Owen evidencia os contornos especficos ao caso moambicano das relaes hierarquizadas de gnero em que se radicam os discursos sobre a nao e a nacionalidade, e explora a apropriao e a trans-formao levadas a cabo por quatro autoras dos smbolos e tropos cardeais desses discursos. As leituras meticulosas que Owen oferece de obras-chave de Nomia de Sousa, Lina Magaia, Llia Mompl e Paulina Chiziane reivin-dica o sucesso destas em desafiar as vagas na narrativa da moambicanidade que, ao longo da sua evoluo desde a poca do lusotropicalismo at aquela do neoliberalismo, marginalizaram ou restringiram as liberdades de agncia e expresso femininas.

    O bom xito do volume deve-se, antes de mais, introduo sinptica que Owen oferece emergncia, nos anos 40 e 50, do discurso de moambica-nidade em oposio viso integralista do Estado Novo e guiado pelo co-

    1 . Mother Africa, father Marx: Womens writing of Mozambique - 1948-2002. Lewisburg: Bucknell University Press, 2007.

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    munismo e o pan-africanismo. graas a este delineamento agudo do pano de fundo histrico que a inovadora abordagem terica que Owen sintetiza se aplica com preciso e clareza. Convocando ideias provenientes de uma diversidade de teoristas, inclusivamente Boaventura de Sousa Santos e Gloria Anzalda, Owen prope emendar a anlise de Bhabha, que enfatiza o fen-meno de hibridez e a potncia subversiva de estratgias de mimicry. A flexi-bilidade desta abordagem permite esclarecer no somente as dificuldades, num contexto marcado pelo legado do lusotropicalismo, que moambicanas encararam em escrever contra (writing back against) os preceitos e preconcei-tos eurocntricos. Tambm facilita uma investigao, atravs da literatura, das tentativas de integrao de (ou pelo menos, negociao entre) os conceitos e costumes de gnero de diversas culturas, dos quais Moambique moderno herdeiro. Como Owen indica particularmente na sua leitura da obra de Paulina Chiziane, tais tentativas frequentemente levantaram novos desafios autodeterminao da mulher.

    O ponto de partida do estudo, porm, a figura imponente da me africa-na, arqutipo este que, conforme afirma Owen, se encontra produtivamente complexificada tanto no jornalismo como na poesia de Nomia de Sousa. A figura maternal real e histrica (p. 47) que se revela susceptvel a processos de transio, crise, instabilidade e consciencializao poltica chega a assumir uma subjectividade muito mais diferenciada do que aquela proporcionada pelo maternalismo do nacionalismo masculino (p. 51). O desvio mais au-daz do padro assimilador e civilizador (p. 47) encontra-se no poema Mo-as das Docas. Aqui, sustm Owen, Nomia integra identidades sexuais supostamente dissidentes ou decadentes num projecto de narrar a nao em termos de espao de comunidade no-familiar (p. 72), e visa a participa-o feminina na revoluo por vir enquanto algo mais que um simples ponto de desarticulao da poltica lusotropical (p. 76).

    Ao passar da poesia de Nomia a textos de Lina Magaia, que se confor-mam menos cabalmente com as definies clssicas de literatura, Owen reafirma que tanto a escritura jornalstica ou popular como a erudida ou ca-nnica tiveram destaque na construo do imaginrio nacional, especialmen-te durante os dolorosos anos do final das dcadas de 70 e 80. Sustetando que o papel social da mulher se manifestou como ponto de contestao fulcral entre uma Frelimo revolucionria e uma Renamo (em grande parte) tradicio-

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  • MOTHER AFRICA, FATHER MARX: WOMENS WRITING OF MOZAMBIQUE - 1948-2002, DE HILARY OWEN 2 3 3

    nalista, Owen frisa a ilustrao, nos contos de Magaia, de como a insurreio de Renamo forou o reconhecimento das diferenas sexuais e culturais da mulher, anteriormente negadas pela poltica governamental. O testemunho que Magaia d ao colapso do projecto Frelimo reconhece que o terrorismo da Renamo visou no apenas a runa da infra-estrutura do estado marxista, mas tambm a alienao do indivduo desse estado e da viso comunitria que este propagava. Neste contexto, afirma Owen, os actos performativos do dia-a-dia desempenhados pelas protagonistas de Magaia representam-se como um tipo de herosmo, comparvel quele dos militares, que restituem a sociabilidade (p. 115).

    Na obra ps-guerra de Llia Mompl e Paulina Chiziane, Owen salienta o reconhecimento da impossibilidade de voltar a um simples apelo a um imagi-nrio nacional integrado e fixo, reconhecimento este que desmente um foco aparentemente pedaggico sobre a histria do pas (p. 130). Adaptando outra vez a posio de Bhabha, Owen traa com destreza a representao da auto-alienao colonial atravs de formulaes do unheimlich correspondentes im-bricao das esferas pblica e privada. Enquanto Ningum Matou Suhura revisita estratgias e motivos fundamentais do famoso conto de Honwana para alegorizar a operao da mitologia lusotropicalista de ocultar os abusos sexuais, Neighbours adopta uma aproximao mais ambgua ao formato alegrico para culpar as formas de paternidade ambivalentes, inadequadas, e decepcionan-tes estabelecidas pelas normas de organizao domstica do colonialismo (p. 154). Se nOs olhos da cobra verde tambm um elemento do unheimlich evidencia a persistncia ps-guerra da opresso e agresso coloniais e patriarcais, Mompl no prope uma resposta mais concreta do que o imaginar tentativamente eventuais novos espaos domsticos para o futuro (p. 157).

    nos romances de Paulina Chiziane, no entanto, que Owen identifica a indagao mais profunda da relao dinmica e mutuamente formativa entre a concepo da nao e as divises de gnero. Salienta-se a interrogao, no aspecto (quase-)histrico da fico de Paulina, das negociaes transculturais entre as estruturas patriarcais das culturas Tsonga e de variados discursos de modernidade, e as suas consequncias por vezes nefastas no que toca ao status das mulheres. Conforme refere Owen, esta obra distingue-se pela ateno, ao nvel de linguagem e estruturao narrativa, ao predomnio masculino no acesso a, e controle sobre, a lngua portuguesa. Ao percorrer habilmente di-

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    versas intertextualidades orais e escritas, Chiziane chega a reinventar o passa-do oral, assim atingindo uma apropriao do nome da tradio (p. 187) que serve para desmascarar o artifcio de narrativas de autoridade predicado sobre o mito e o arcasmo. O potencial da resultante concepo do discurso sobre gnero enquanto fora dinmica e estruturante de transformao [social] (p. 192) , sobretudo, evidente em Niketche. Nesta genial e burlesca Histria de Poligamia, as protagonistas empregam estratgias de reinveno ou ironizao de tradies enquanto bricolage libertadora para combater as normas sexu-ais desigualitrias que deturparam a poltica de integrao de uma pluralidade cultural na vida e imaginria da nao moderna.

    Concluindo seu estudo com uma breve reflexo sobre a fortuna editorial das obras de Mompl e Chiziane num mercado literrio global, Owen debru-a-se sobre novas aberturas e novos desafios encarados pelas autoras moam-bicanas da actualidade. Embora o discurso da nao parea cada vez mais obsoleto num contexto econmico globalizado e neoliberal, Owen afirma, com Hardt e Negri, que a representao poltica e literria de interesses e investimentos nacionais continua a ser imprescindvel (p. 42). No reconfi-gurado ou ps-moderno projecto nacional de harmonizar a diversidade interna sem deslizar para uma simples celebrao da hibridez que beneficie os novos senhores do Imprio global (p. 221), as contribuies traadas a partir de pontos de vista femininos inclusive aquelas aqui apresentadas, ela-boradas com tanta perspiccia no deixam de ser fulcrais.

    Recebido em 13 de abril e aprovado em 15 de maio de 2010.

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