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98 Porque sou imperfeita: THE END , a ópera VOCALOID “sem” humanos Because I am imperfect: THE END , the “humanless” VOCALOID opera ANA MATILDE DIOGO DE SOUSA* Artigo completo submetido a 20 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro de 2017. Abstract: Promoted as the “first humanless op- era”, THE END is a new media performance by Keiichiro Shibuya, starring the Japanese virtual idol Hatsune Miku. Fruit of a collaboration be- tween renown creators from various fields, the physical disavowal on stage emphasizes the “thickness” and vitality of the new media, in- cluding their ephemeral and complex networks of relationality. Far from an empty shell with no agency, Miku is presented as an imperfect entity, serving as ambassador for the “weird materiali- ties” of contemporary digital culture. Keywords: 3D animation / Japanese art / glitch / new media art. Resumo: Promovido como a “primeira ópera sem humanos”, THE END é uma performance multimédia de Keiichiro Shibuya, protagoniza- da pela ídolo japonesa Hatsune Miku. Fruto da colaboração aturada entre criadores de vários campos, o esvaziamento em palco enfatiza a “espessura” e vitalidade das novas tecnologias, inclusive das suas redes efémeras e complexas de relacionalidade. Longe de ser um invólucro sem agência, Miku é apresentada como uma entidade imperfeita, embaixatriz das “mate- rialidades estranhas” da cultura digital con- temporânea. Palavras-chave: animação 3D / arte japonesa / erro digital / arte dos novos média. *Portugal, artista visual. Licenciada em Artes Plásticas — Pintura, Faculdade na Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Mestrado em Pintura, FBAUL. AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected] Sousa, Ana Matilde Diogo de (2017) “Porque sou imperfeita: THE END, a ópera VOCALOID sem ‘humanos’.” Revista Croma, Estudos Artísticos. ISSN 2182-8547, e-ISSN 2182-8717. 5, (9), janeiro-junho. 98-114.

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98 Porque sou imperfeita: THE END, a ópera VOCALOID

“sem” humanos

Because I am imperfect: THE END, the “humanless” VOCALOID opera

ANA MATILDE DIOGO DE SOUSA*

Artigo completo submetido a 20 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro de 2017.

Abstract: Promoted as the “first humanless op-era”, THE END is a new media performance by Keiichiro Shibuya, starring the Japanese virtual idol Hatsune Miku. Fruit of a collaboration be-tween renown creators from various fields, the physical disavowal on stage emphasizes the “thickness” and vitality of the new media, in-cluding their ephemeral and complex networks of relationality. Far from an empty shell with no agency, Miku is presented as an imperfect entity, serving as ambassador for the “weird materiali-ties” of contemporary digital culture.Keywords: 3D animation / Japanese art / glitch / new media art.

Resumo: Promovido como a “primeira ópera sem humanos”, THE END é uma performance multimédia de Keiichiro Shibuya, protagoniza-da pela ídolo japonesa Hatsune Miku. Fruto da colaboração aturada entre criadores de vários campos, o esvaziamento em palco enfatiza a “espessura” e vitalidade das novas tecnologias, inclusive das suas redes efémeras e complexas de relacionalidade. Longe de ser um invólucro sem agência, Miku é apresentada como uma entidade imperfeita, embaixatriz das “mate-rialidades estranhas” da cultura digital con-temporânea.Palavras-chave: animação 3D / arte japonesa / erro digital / arte dos novos média.

*Portugal, artista visual. Licenciada em Artes Plásticas — Pintura, Faculdade na Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Mestrado em Pintura, FBAUL. AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal. E-mail: [email protected]

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Introdução THE END é um espetáculo multimédia criado pelo músico e compositor japo-nês Keiichiro Shibuya (Tóquio, 1973), promovido como a “primeira ópera sem humanos” (Leon, 2014). Encomendado pelo Yamaguchi Center for Arts and Media, o espetáculo foi pela primeira vez apresentado nesta instituição em De-zembro de 2012. Desde então, tem sido exibido noutros locais, desde Tóquio até Paris e Amesterdão. Em todos, foi aplaudido pelo fôlego vanguardista, sen-do mesmo apelidado de “o primeiro espetáculo do terceiro milénio” (Choplin, 2013) por Jean-Luc Choplin, director do Théâtre du Châtelet, que acolheu esta performance na capital francesa em Outubro de 2013.

THE END cruza a tradição ocidental da ópera com o estado da arte da cul-tura popular japonesa. A diva escolhida por Shibuya é a ídolo virtual e ciber--celebridade Hatsune Miku, uma androide ficcional em estilo anime com lon-guíssimos totós verde-azulados, que é a mais popular mascote do sintetizador vocal VOCALOID (Figura 1). Em THE END, todas as árias e recitativos são executados por este software inovador, que permite criar sequências de canto realistas digitalmente, “dispensando” intérpretes humanos. Shibuya, semio-culto num compartimento translúcido, é a única pessoa num palco ocupado por quatro ecrãs gigantes sobrepostos, nos quais sete aparelhos de alta resolução e luminosidade projectam uma história em que Miku toma consciência da sua “morte” (Abe, 2013) (Figura 2).

Para além de Shibuya, a produção incluiu libreto do dramaturgo e romancis-ta Toshiki Okada (escritor icónico da “década perdida” japonesa), e visuais/co-realização do celebrado designer gráfico YKBX (Masaki Yokobe). A estes juntou--se uma extensa equipa de criadores especializados de vários campos: design de palco do arquitecto Shohei Shigematsu (conhecido por projectos conceptuais e colaborações com artistas como Marina Abramovic e Kanye West), design de som de Evala (artista sonoro e músico electrónico de vanguarda), programação VOCALOID de Pinocchio P (produtor de música VOCALOID originário do site NicoNico, o “YouTube japonês”), e produção de A4A Inc. (agência de produção digital especializada em projectos artísticos transdisciplinares) (Choplin et al., 2013). A contribuição mais falada, porém, foram os oito figurinos de Marc Jaco-bs, então diretor artístico da Louis Vuitton, utilizando o icónico padrão xadre-zado da marca para evocar pixéis ampliados (Master Blaster, 2012) (Figura 3).

O resultado desta colaboração é uma experiência imersiva e “hauntológi-ca”, em que Miku se vê deslocada da narrativa familiar dos ídolos pop japone-ses, mergulhando num uncanny valley de beleza surreal. Alicerçando-se na teo-ria dos media de autores como Jussi Parrika, o objectivo deste artigo é analisar

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THE END à luz das componentes formais e narrativas que destacam as “mate-rialidades esquisitas” de Miku.

1. O princípio do fimÉ irónico que as palavras “o primeiro espetáculo do terceiro milénio”, a propósi-to de THE END, se refiram a uma forma de arte — a ópera — cuja continuidade nas salas de espetáculo do século XXI tem preocupado todos os envolvidos na sua produção e divulgação (Teachout, 2014). É certo que THE END pode ser classificado, mais apropriadamente, como uma “pós-ópera”, com afinidades em propostas radicais como a anti-ópera Neither, de Morton Feldman e Samuel Beckett, ou as óperas para televisão de Robert Ashley. Porém, THE END man-tem a “estrutura usada por Mozart e Wagner” (Kodera, 2014) – árias, recitati-vos, abertura e clímax — – , bem como o seu modo emblemático: a tragédia. Pro-vocador, Shibuya afirma ser “adequado lidar com a morte […] usando o medium como caixão” («THE END» Artist Interview, 2013), reiterando essa mobilização deliberada de uma arte “morta” ou anacrónica.

Para além de Miku, THE END é coprotagonizado pelo Animal (Doubutsu) e a Visitante (Houmonsha). O Animal é uma espécie de peluche em forma de rato gi-gante, qual versão abastardada de mascotes infantis como os populares Pokémon ou Totoro do estúdio Ghibli. Já a Visitante é uma doppelganger grotesca de Miku que assume diferentes configurações, desde uma cópia imperfeita lembrando os clones falhados de Ripley em Alien, até a um Cthulhu feito de olhos e bocas gigan-tes, com longas madeixas de cabelo esverdeado que se agitam como tentáculos. As conversas existencialistas de Miku com o Animal e a Visitante constituem par-te significativa do enredo, desenrolando-se inicialmente num compartimento austero, cinzento, com apenas um sofá e candeeiro (Figura 4).

No primeiro recitativo, “Miku and Animal” (Miku to dōbutsu), Miku levita no centro desta sala, enquanto o Animal caminha à sua volta. Um travelling viaja sobre dunas, fábricas e o seu corpo, penetrando pelas narinas numa visão en-doscópica que revela um interior palpitante e carnal, muito diferente dos cor-pos robóticos a que Miku surge habitualmente associada (Figura 5). No primei-ro verso, o Animal diz-nos que “A luz incide sobre um objecto/ e ele torna-se existente/ Tudo é assim/ Especialmente nós” (Okada, 2013), (re)situando efi-cazmente THE END, às primeiras palavras e imagens, num plano de vitalidade material que contraria a sua suposta desmaterialização “sem humanos”.

Tal duplicidade encontra-se imbuída nos próprios dispositivos cénicos. Na superfície vazia do ecrã, que, no design de palco de Shigematsu, se transforma num objecto tridimensional com profundidade e camadas, em que as imagens

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Figura 1 ∙ Direita: Box art do software Vocaloid2 Character Vocal Series 01: Hatsune Miku, 2007. © Crypton Future Media, INC. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Hatsune_Miku#/media/File:Hatsune_Miku_cover.png. Esquerda: YKBX, Poster para a apresentação de THE END no Yamaguchi Center for Arts and Media, 2012. Fonte: https://sociorocketnewsen.files.wordpress.com/2012/11/the-end.jpgFigura 2 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 3 ∙ Marc Jacobs e equipa, figurinos para THE END, 2012. © LOUIS VUITTON. Fonte: http://www.oystermag.com/marc-jacobs-louis-vuitton-collaborate-with-japanese-virtual-pop-star-hatsune-mikuFigura 4 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Miku à direita, a Visitante ao meio, e o Animal à esquerda. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 5 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 6 ∙ Concerto holográfico “ao vivo” de Hatsune Miku, 2009. © Crypton Future Media, INC © Sega. Fonte: http://static.sfstation.com/wp-content/uploads/2015/12/makuusa.jpg

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Figura 7 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. A Visitante na sua forma “cthulhuesca”. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 8 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 9 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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projectadas sobre diferentes telas se sobrepõem num complexo jogo de esca-las, cores, texturas e planos. Na “fortaleza electrónica” (Abe, 2013) criada pela música encorpada de Shibuya, aliada à programação sonora de Evala para um sistema de surround sound 10.2. Ou mesmo na tradução simultânea do japonês para inglês, integrada na componente sonora do espectáculo, em que as falas são “dobradas” por uma voz feminina do sistema operativo dos computadores Mac (Shibuya, 2013), evidenciando a fisicalidade das línguas e do processo de interpretação. Os diálogos estão igualmente minados por loops, más ligações telefónicas, conversas cruzadas, ou frases ditas e escritas no ecrã que são apa-gadas ou corrigidas, reforçando a irredutibilidade das palavras ao seu significa-do, tantas vezes corrompido por erros humanos e mecânicos.

Assim, em THE END, o aparente esvaziamento do palco enfatiza outras di-mensões físicas que se reforçam e transmutam entre si, capturando as “mate-rialidades esquisitas” (Parikka, 2012, p. 97), efémeras e confusas que Miku, no limiar entre orgânico e inorgânico, original e derivativo, corporaliza.

2. Materialidades esquisitasApesar das comparações recorrentes com personagens de ficção como Rei Toei (Idoru, de William Gibson), Miku tem menos a ver com visões futuristas de singularidade tecnológica do que com presentes renegociações dos papéis de autor, trabalho e espectador naquele que é um dos mais complexos e abran-gentes fenómenos participativos da Web 2.0. Resultado da criação colaborativa em massa de conteúdos multimédia gerados por fãs, a sua voz e imagem são utilizadas para produzir canções, vídeos e ilustrações, numa multiplicidade in-findável de estilos e formatos, sem que exista uma obra original ou dominante. Apesar de não ser possível tratar o fenómeno a fundo no âmbito deste artigo, bastará dizer que a escolha de Miku para protagonista de THE END prende-se menos com uma filiação de Shibuya na cultura VOCALOID, face à qual assu-me alguma distância (Shibuya, 2013), do que com o modo como Miku epitoma a rede material embutida em conceitos centrais à mediasfera do século XXI, como “produsage” (Alex Bruns), “spreadable media” ou “convergence culture” (Henry Jenkins).

O teórico dos media Jussi Parrika classifica esta rede como “materialidades reais mas estranhas que não se submetem necessariamente aos olhos e orelhas humanos” (Parikka, 2012, p. 96), desde modulações de energia elétrica, mag-nética e luminosa, até topologias complexas de relacionalidade, intersticiali-dade e co-afectividade — estas particularmente relevantes num espectáculo cujas condições de produção e recepção são elas próprias complexas, enquanto

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arte vanguardista produzida por profissionais no contexto de uma subcultura popular regida por amadores (surpreendentemente, THE END tem tido uma recepção bastante positiva, se de alguma estranheza, entre os fãs da música pop de Miku, indicando um importante potencial de sobreposição de públicos). Não obstante, no discurso quer de críticos como de fãs, a materialidade de Miku é frequentemente rasurada, reduzida a um involucro controlado por actantes hu-manos que nela projectam as suas fantasias.

No entanto, como diz o Animal, tal como os outros objectos no campo de vi-são, também a luz dá “corpo” a Miku, seja nas lâmpadas LED dos computadores pessoais ou nos concertos holográficos produzidos pela sua companhia-mãe, a Crypton Future Media, em que recorrendo a uma tecnologia de projecção sofis-ticada, a ídolo virtual canta e dança “ao vivo” diante de multidões extasiadas. A propósito destes, uma entrevistada no YouTube admira-se que “Então não está nada mesmo ali; e eles vão a um concerto ver nada que está mesmo ali?” (Fine Brothers Entertainment, 2013). Esta observação, emblemática do modo como Miku perturba noções antropocêntricas convencionais de materialidade, res-soa tanto com o “esvaziamento” do palco em THE END, como com a vontade de, segundo o corealizador YKBX, inserir movimentos “que nenhum humano real, mas apenas gráficos de computador conseguem fazer” («THE END» Ar-tist Interview, 2013), e.g. levitar, voar, despedaçar-se, duplicar-se ou assumir di-ferentes escalas.

O final de THE END, em que Miku chora lágrimas de sangue, reforça o seu desvio face aos padrões prescritivos do “corpo limpo e apropriado” (Kristeva, 1982, p. 72). Esta temática abjecta, que perpassa o espectáculo, é encapsulada pela Visitante, um ser humano “desconstruído” e paródia grosseira de Miku — tão (não) parecida com Miku como Miku com um humano —, que ameaça a sua autoimagem e estabilidade psicológica ao interrogá-la sobre a morte e a imperfeição (Figura 7). Em “What’d You Come Here For?” (Nani shi ni kita no?), Miku acusa-a de ser contranatural, fazendo dieta para imitá-la, assim repetindo acusações que frequentemente recaem sobre si própria (e.g. artificialidade do corpo feminino normativo e mercantilizado).

Já em “Aria for Death” (Shi no aria), Miku afunda-se e afoga-se num ocea-no onde clones inanimados e despedaçados flutuam à sua volta, como bonecas desmembradas (Figura 8). A Visitante, bem como estas réplicas sem vida, inde-xam, assim, diferentes etapas materiais de Miku, desde a sua hibridização com os humanos que a utilizam — perto do final, em “Aria for Voices and Words” (Koe to kotoba no aria), a Visitante acaba por fundir-se com Miku, tornando-se numa só —, até às suas múltiplas e potenciais “mortes”.

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Figura 10 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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Figura 11 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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3. Porque sou imperfeitaO mal-estar psico-emocional de Miku parece, ademais, repercutir-se numa agitação social fora de câmara, narrada pelo Animal, que comenta a passagem de helicópteros e discursos exaltados à distância, numa cidade sem recolha de lixo onde os corvos estão por todo o lado. Em “The Gas Mask and the Gas” (Gazu Masuku to Gazu), Miku com uma máscara de gás flutua ao abandono numa bru-ma tóxica, amarelada, de ar tornado irrespirável devido ao colapso da estrutura social, mental e/ou biológica. Afinal, é “a separação do lixo [que] torna possível a cultura” (Morrison, 2015, p. 80), seja este resíduos urbanos, o “lixo interiori-zado” das almas impuras (Morrison, 2015, p. 85), ou o fedor dos cadáveres — a Visitante comenta mesmo que, ao contrário de Miku, os humanos têm cheiro, e o seu odor mais potente é o da morte (Figura 9).

Esta sensação de catástrofe iminente torna-se explícita no clímax “Because I am Imperfect” (Watashi ga fukanzen da kara), quando o Animal consome Miku, dando origem a um Superanimal, híbrido de dragão com a cara de Miku. O voo labiríntico desta criatura fantástica é acompanhado por planos de câmara que variam em distância e dinamismo, deste visões afastadas até à proximidade de uma GoPro, mostrando o Superanimal correndo frente a um gigantesco sol em chamas e dançando entre uma chuva de cometas ou bombas, num mundo

Figura 12 ∙ Vista de THE END no Théâtre du Châtelet em Paris, 2013. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ey8oj8S-j3U&t=3561s

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virtual em desintegração. No final, o Superanimal volta a mutar-se, transfor-mando-se num monstro digno de videojogo de terror, em que os corpos de Miku e do Animal se fundem com as mandíbulas do dragão, lembrando as ex-periências loucas de um qualquer Dr. Frankenstein (Figura 10).

Esta criatura “outrificada” não é necessariamente má, mas um reduto das “materialidades esquisitas”, algumas perturbadoras, de Miku. Embora a sua raison d’être enquanto VOCALOID seja falar, porque Miku depende da contínua utilização da sua voz e imagem pelos fãs, um hipotético momento sem entrada de dados corresponderia à sua “morte” por obsolescência (“Consigo falar a ve-locidades muito mais rápidas do que isto/ porque nunca fico sem fôlego/ mas sem palavras para dizer a seguir/ […] pararia agora mesmo”). Porém, é nesta in-completude, e não apesar dela, que a sua “vida” encontra significado (“Eu sou eu porque sou imperfeita”).

Tal conclusão pressente-se, à partida, na modelação tridimensional em THE END, cujos modelos digitais — ao contrário das texturas lisas e lustrosas dos produtos típicos de Miku (e.g. videojogos Hatsune Miku: Project DIVA da Sega, concertos holográficos da Crypton Future Media) — são agitados por for-mas rebeldes, manchas carnudas e sombreados irregulares. Em vez de cores brilhantes, o filtro acinzentado confere ao espectáculo um ambiente contem-plativo, contrastando com explosões de intensidade luminosa e cromática em momentos específicos da história. Os flashes de luz, estática, glitch e sobreposi-ções completam uma estética do erro digital que insiste na irredutível “espessu-ra” e vitalidade dos corpos virtuais (Figura 11).

No final do espectáculo, Shibuya e Miku sobem ao palco em conjunto para agradecer ao público, enfatizando a agência e corresponsabilidade de Miku na construção da obra (Figura 12).

ConclusãoTHE END é uma pós-ópera de Keiichiro Shibuya protagonizada pela ídolo vir-tual japonesa Hatsune Miku, resultado de uma aturada criação colectiva. Con-tracenando com um Animal e uma Visitante, Miku é mergulhada num tema pa-radigmático deste medium — a morte —, reflectindo sobre a condição humana e não-humana. Em mundos que vão desde uma sala de estar ascética até fluídos aquosos, gases tóxicos, visões endoscópicas e espaços cósmicos de guerra ou destruição natural, os seus corpos são submetidos a um reportório extenso de mutações e movimentos impossíveis. O design de palco e de som, enfatizan-do a fisicalidade do ecrã e da música, ressoa com os flashes, falhas, sobrepo-sições e irregularidades que inquietam a imagem digital. Miku é representada

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como uma entidade imperfeita, mutável e transitória que, longe de ser um in-volucro desprovido de agência, serve de embaixatriz das “materialidades es-quisitas”, mais ou menos palpáveis, da cultura tecnológica contemporânea.

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