Remanejamento de Despesas

200
ISSN – 0102-7751 REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 jan./dez. 2006

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  • ISSN 0102-7751

    REVISTA DO TRIBUNAL DE CONTASDO DISTRITO FEDERAL

    R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 jan./dez. 2006

  • TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL

    COMPOSIO DE 2006

    ConselheirosManoel Paulo de Andrade Neto - PresidenteAntnio Renato Alves Rainha - Vice-PresidenteRonaldo Costa CoutoMarli VinhadeliJorge CaetanoPaulo Csar de vila e SilvaAnilcia Luzia Machado

    AuditorJos Roberto de Paiva Martins

    Ministrio PblicoCludia Fernanda de Oliveira Pereira - Procuradora-GeralMrcia Ferreira Cunha FariasDemstenes Tres AlbuquerqueIncio Magalhes Filho

  • REVISTA EDITADA PELA SEO DE DOCUMENTAOSUPERVISOVice-Presidente Conselheiro Antnio Renato Alves RainhaCOORDENAOVnia de Ftima Pereira(Chefe da Seo de Documentao)ORGANIZAOLilia Mrcia Pereira Vidigal de Oliveira(Bibliotecria)REVISOCarmen Regina Oliveira de Souza Cremasco(Bibliotecria)

    Toda correspondncia deve ser dirigida a esta Seo -TRIBUNAL DE CONTAS DO DISTRITO FEDERAL - 70070-500- SEO DE DOCUMENTAO - Praa do Buriti - Ed Costa eSilva - Braslia-DF - [email protected]

    Revista do Tribunal de Contas do DistritoFederal, n 1 - 1975 -

    Braslia, Seo de Documentao, 2006.

    CDU 336.126.55(81)(05)

    ISSN 0102-7751

  • Sumrio

    DOUTRINA

    JOS DE RIBAMAR CALDAS FURTADOCrditos adicionais versus transposio, remanejamento ou transferncia derecursos..........................................................................................................................9

    MRCIA FERREIRA CUNHA FARIASO Direito urbanstico e o direito de propriedade norte-americanos:planejamento urbano e desapropriao para fins de interesse pblico apsa deciso no caso Kelo vs. City of New London..................................................17

    CLUDIA FERNANDA DE OLIVEIRA PEREIRAA inelegibilidade de agentes pblicos, na tica do controle externo: umdebate crtico sobre a participao dos tribunais de contas.........................39

    DEMSTENES TRES ALBUQUERQUEConsulta ao Tribunal de Contas e inconstitucionalidade de leis ..................69

    INCIO MAGALHES FILHOEmpregos em comisso na administrao indireta luz da Constituio de1988..............................................................................................................................81

    CAIO CSAR ALVES TIBURCIO SILVAO TCDF e as auditorias........................................................................................93

    HUGO ALEXANDRE GALINDOLicitao parcelamento do objeto.................................................................101

    MARCOS AVELAR BORBOREMAO controle externo do prego em face da Lei de ResponsabilidadeFiscal...........................................................................................................................111

    CLUDIO HENRIQUE DE CASTROAnotaes ao poder de sigilo do estado inscrito no art. 5, inciso XXXIIIda Constituio Federal.........................................................................................119

  • A comunicao institucional e a promoo pessoal: comentrios de decisoda Corte de Contas da Itlia.................................................................................123

    IVAN BARBOSA RIGOLINAdvocacia servio continuado (Lei n 8.666/93, art. 57, II) a posio doe. TCU......................................................................................................................129Lei n 11.196/05 modifica a Lei de Licitaes.............................................137Previdncia e regime prprio devoluo administrativa de contribuiesindevidas apologia dos princpios de direito..................................................143Publicidade contrato que nem sempre pode ser licitado..........................163

    GINA COPOLAImprobidade administrativa - O elemento subjetivo do dolo...................169A necessria existncia do dolo para a configurao de ato de improbidadeadministrativa - jurisprudncia comentada.....................................................181O procedimento prprio das aes de responsabilidade por ato deimprobidade administrativa - jurisprudncia comentada............................191

  • DOUTRINA

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    CRDITOS ADICIONAIS VERSUS TRANSPOSIO,REMANEJAMENTO OU TRANSFERNCIA DE RECURSOS

    Jos de Ribamar Caldas FurtadoConselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Maranho

    Pelo princpio da proibio de estorno de verbas, vedada atransposio, o remanejamento ou a transferncia de recursos de umacategoria de programao para outra ou de um rgo para outro, semprvia autorizao legislativa (CF, art.167, VI). Por categoria deprogramao deve-se entender a funo, a subfuno, o programa, oprojeto/atividade/operao especial e as categorias econmicas dedespesas.1

    O constituinte de 1988 introduziu os termos remanejamento,transposio e transferncia em substituio expresso estorno de verba,utilizada em constituies anteriores para indicar a mesma proibio.2Em verdade, trata-se de realocaes de recursos oramentrios de umacategoria de programao para outra, ou de um rgo para outro, sempredependendo de autorizao a ser consignada por meio de lei especfica.

    J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis ressaltam que huma profunda diferena entre os crditos adicionais e as tcnicas detransposio, remanejamento e transferncia de recursos oramentrios.No caso dos crditos adicionais, o fator determinante a necessidade daexistncia de recursos; para as demais alteraes, a reprogramao porrepriorizao das aes o motivo que indicar como se materializaro.3Esses autores apontam quatro motivos que podem dar origem aoscrditos adicionais: a) variaes de preo de mercado dos bens e servios_____________1 Vide Portaria n 42, de 14/4/99 (BRASIL. Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.

    Portaria n 42, de 14/04/1999. http://www.planejamento.gov.br/orcamento/conteudo/legislacao/portarias/portaria_42_14_04_99.htm - 05/12/05).

    2 A Carta de 1967 j utilizou o termo transposio em seu artigo 61, 1, alnea a, ao proibir talprocedimento, sem prvia autorizao legal, de recursos de uma dotao oramentria para outra.

    3 MACHADO JR., Jos Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei n 4.320 comentada. 30 ed. Riode Janeiro: IBAM, 2000/2001, p. 109.

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    a serem adquiridos para consumo imediato ou futuro; b) incorreo noplanejamento, programao e oramentao das aes governamentais;c) omisses oramentrias; d) fatos que independem da ao volitivado gestor. Por outro lado, os remanejamentos, transposies etransferncias de recursos de uma dotao para outra ou de um rgopara outro tero sempre um nico motivo: repriorizaes das aesgovernamentais.4

    Como se depreende, as figuras do artigo 167, IV, da Constituiotero como fundamento a mudana de vontade do Poder Pblico noestabelecimento das prioridades na aplicao dos seus recursos, fatoque, pela prpria natureza, demanda lei especfica alterando a leioramentria. o princpio da legalidade que exige, no caso, lei emsentido estrito; o princpio da exclusividade que informa que ela especfica.

    Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles pontifica que, havendonecessidade de transposio de dotao, total ou parcial, serindispensvel que, por lei especial, se anule a verba intil ou a sua parteexcedente e se transfira o crdito resultante dessa anulao.5 Esse autordiz que concorda com Jos Afonso da Silva6 quanto tese de que aautorizao genrica prevista no artigo 66, pargrafo nico, da Lei n4.320/647 inconstitucional, uma vez que a prvia autorizao legal, aque se refere o inciso VI do artigo 167 da Constituio Federal h de serconcedida em cada caso em que se mostre necessria a transposio derecursos.8

    A verdade que, conforme ensinam J. Teixeira Machado Jr. eHeraldo da Costa Reis, as anulaes parciais ou totais de dotaesoriundas da LOA ou de crditos adicionais no tm a mesma conotaoe conceitos de remanejamentos, transposies e transferncias por terem_____________4 MACHADO JR., Jos Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei n 4.320 comentada. 30 ed. Rio

    de Janeiro: IBAM, 2000/2001, p. 103.5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 10 ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 226.6 SILVA, Jos Afonso da. Oramento-programa no Brasil. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

    1973, p. 315.7 permitida a redistribuio de parcelas das dotaes de pessoal, de uma para outra unidade

    oramentria, quando considerada indispensvel movimentao de pessoal, dentro dastabelas ou quadros comuns s unidades interessadas, a que se realize em obedincia legislaoespecfica (Lei n 4.320/64, art. 66, nico).

    8 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 10 ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p. 226.

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    objetivos completamente diversos, ainda que possam ter comocaracterstica comum a realocao de recursos oramentrios.9 Naessncia, refletem fatos diferentes que podem, ou no, traduzir mudanasou modificaes na estrutura do oramento, dependendo,exclusivamente, da natureza da deciso administrativa e do seu efeitosobre a estrutura administrativa, sobre o elenco de aes que seroexecutadas ou sobre o rol de recursos no financeiros humanos,materiais, tecnolgicos e outros que sero utilizados na execuodaquelas aes.

    Com efeito, os termos remanejamento, transposio e transfernciaevidenciam que na gesto das atividades das entidades de direito pblicointerno (Unio, Estados, Distrito Federal, Municpios, autarquias edemais entidades de carter pblico criadas por lei) podem ocorrermudanas ou modificaes de natureza administrativa, econmica,social, financeira e patrimonial, com reflexos na estrutura original dooramento e no apenas de natureza financeira ou patrimonial.

    Destaque-se que a Constituio associa os termos remanejamento,transposio e transferncia a duas situaes: a) realocao de recursosde uma categoria de programao para outra, ou seja, deslocamento defundos em nvel de funo, subfuno, programa, projeto/atividade/operao especial e das categorias econmicas de despesas10; b)destinao de recursos de um rgo para outro.

    Cumpre estabelecer a diferena entre remanejamento, transposioe transferncia:

    a) remanejamentos so realocaes na organizao de um ente pblico,com destinao de recursos de um rgo para outro. Podem ocorrer,por exemplo, em uma reforma administrativa. A extino de umrgo pode levar a Administrao a decidir pelas realocaes dasatividades, inclusive dos respectivos programas de trabalho, recursosfsicos e oramentrios, para outros rgos, sejam da administraodireta, sejam da administrao indireta. Nesse caso, no cabe a aberturade crdito adicional especial para cobertura de novas despesas, uma

    _____________9 MACHADO JR., Jos Teixeira, REIS, Heraldo da Costa. A Lei n 4.320 comentada. 30 ed. Rio

    de Janeiro: IBAM, 2000/2001, p. 110.10 Vide Portaria n 42, de 14/4/99 (BRASIL. Ministrio do Planejamento, Oramento e Gesto.

    Portaria n 42, de 14/04/1999. http://www.planejamento.gov.br/orcamento/conteudo/legislacao/portarias/portaria_42_14_04_99.htm -05/12/05).

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    vez que as atividades j existem, inclusive os respectivos recursos nofinanceiros. Entretanto, se houver a necessidade da criao de umcargo novo, a Administrao dever providenciar a abertura de umcrdito adicional para atender a essa despesa;

    b) transposies so realocaes no mbito dos programas de trabalho,dentro do mesmo rgo. Pode acontecer que a administrao daentidade governamental resolva no construir a estrada vicinal, jprogramada e includa no oramento, deslocando esses recursos paraa construo de um edifcio para nele instalar a sede da secretaria deobras, tambm j programada e includa no oramento, cujo projetooriginal se pretende que seja ampliado. Nesse caso, basta que a leiautorize a realocao dos recursos oramentrios do primeiro parao segundo projeto;

    c) transferncias so realocaes de recursos entre as categoriaseconmicas de despesas, dentro do mesmo rgo e do mesmoprograma de trabalho. Ou seja, repriorizaes dos gastos a seremefetuados. Pode ocorrer que a administrao do ente governamentaltenha que decidir entre realocar recursos para a manuteno de umamaternidade ou adquirir um novo computador para o setoradministrativo dessa maternidade, que funciona relativamente bem,ainda que utilizando computadores antigos. A opo por recursospara a manuteno da maternidade se efetivar atravs de umatransferncia, que no se deve confundir com anulaes, parciais outotais, de dotaes para abrir crdito adicional especial. Nastransferncias, as atividades envolvidas continuam em franca execuo;nos crditos adicionais especiais ocorre a implantao de umaatividade nova.

    A realidade que, desde a edio do Cdigo de ContabilidadePblica, em 8 de novembro de 1922, os crditos adicionais suplementares, especiais e extraordinrios so tidos e havidos comoas nicas formas de alterao do oramento no decorrer do exercciofinanceiro, estando ainda em desuso as tcnicas previstas no art. 167,VI, da Constituio Federal. A no-efetividade dessa normaconstitucional, e at mesmo o desconhecimento do seu significado, impulsionada pela facilidade que se tem na abertura de crdito adicionalsuplementar, cuja autorizao pode estar prevista na lei oramentria, oque no ocorre com os procedimentos de estorno de verba, que devem

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    sempre ser autorizados por leis especficas. Acrescente-se que carece deregramento jurdico o procedimento de se autorizar, na prpria LOA, aabertura de crditos suplementares. Em conseqncia, comuns so osabusos resultantes de autorizaes sem critrios.

    necessrio esclarecer que as figuras remanejamento, transposioe transferncia no esto previstas na Lei n 4.320/64, visto que sugiramno Texto Constitucional posteriormente. Desse modo, os arts. 40 a 46da Lei n 4.320/64 cuidam exclusivamente dos crditos adicionais(suplementares, especiais e extraordinrios). L esto dispostas as regrasque devem ser observadas, relativamente indicao dos recursosoramentrios e financeiros, por ocasio da autorizao (por lei) eabertura (por decreto do Executivo) dos crditos adicionais.

    Dispe a Constituio Federal, art. 165, 811, que a leioramentria no conter dispositivo estranho previso de receita e fixao da despesa, no se incluindo na proibio a autorizao paraabertura de crditos suplementares12 e contrao de operaes de crdito,ainda que por antecipao de receita, nos termos da lei. A relao deexcees feita pelo constituinte nesse dispositivo taxativa (numerusclausus). Isso significa que a LOA no pode dar autorizao para oExecutivo proceder a remanejamentos, transposies ou transfernciasde um rgo para outro ou de uma categoria de programao para outra.Ou ainda, que os procedimentos previstos no artigo 167, VI, devem serautorizados atravs de lei especfica.

    No custa nada lembrar que, quando se trata de alocao nooramento em execuo de recursos provenientes de supervit financeiroapurado em balano patrimonial do exerccio anterior, de excesso dearrecadao ou de operaes de crdito (Lei n 4.320/64, art. 43, 1,I, II e III, in fine), a via do crdito adicional suplementar no possuirestrio, salvo o limite estabelecido na prpria lei oramentria.13Portanto, o problema reside apenas quando se faz realocao de recursos_____________11 A Lei n 4.320/64 tem dispositivo semelhante (art. 7, I).12 Isso quer dizer que a autorizao para abertura de crditos suplementares pode ser dada na

    prpria lei entria, que deve fixar o limite de tal autorizao em valores absolutos ou empercentuais. A lei que autorizar a abertura de crdito adicional especial tambm poderautorizar a suplementao do respectivo crdito, observadas as mesmas normas e princpiosaplicveis no caso da suplementao prevista na LOA.

    13 Nesses casos, a alterao do oramento se opera de forma quantitativa.

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    resultantes de anulao parcial ou total de dotaes oramentriasconstantes do oramento (Lei n 4.320/64, art. 43, 1, III, primeiraparte).14

    Agora uma questo da maior importncia para o sistemaoramentrio brasileiro: pode o Chefe do Executivo utilizar crditosadicionais suplementares ou especiais para realocar recursos nos casostpicos de remanejamento, transposio ou transferncias? A resposta no. princpio basilar da hermenutica jurdica que a lei no contmpalavras inteis. Tratando-se de termos constantes na Lei Fundamental,esse argumento de interpretao fica ainda bem mais contundente. Ocerto que, se diferente fosse, nenhum valor teriam os termos do artigo167, VI, da Constituio Federal.

    Da a concluso de grande relevo: pelo sistema idealizado peloconstituinte de 1988, os crditos adicionais suplementares abertos combase na autorizao concedida na prpria lei oramentria e comfundamento em aporte de recursos oriundos de anulao parcial ou totalde dotaes oramentrias (Lei n 4.320/64, art. 43, 1, III) s podemocorrer quando se tratar de deslocamento de recursos dentro do mesmorgo e da mesma categoria de programao.15 Ou seja, remanejamentosde recursos de um rgo para outro e transposies ou transferncias deuma categoria de programao para outra, somente podem ser autorizadosatravs de lei especfica, sob pena de antinomia com a Lei Maior.

    Entretanto, as gestes oramentrias brasileiras ainda noperceberam a vontade da Carta de 1988 nesse aspecto, fato que faz comque a prtica da abertura de crditos adicionais suplementares, combase na autorizao dada na LOA, seja utilizada como panacia, revelia do artigo 167, III, da Constituio Federal.

    Essa prtica destri a rigidez do oramento pblico pretendidapelo ordenamento jurdico ptrio, com prejuzos para todo o sistemaconstitucional oramentrio que, enfraquecido, deixa de ser veculonecessrio de planejamento das aes da Administrao Pblica, emdesfavor do regime de gesto fiscal responsvel preconizado pelo art. 1, 1,da Lei de Responsabilidade Fiscal._____________14 Exemplo: deslocamento de recursos oramentrios destinados a pagamentos de dirias para pessoal.15 Aqui a alterao no oramento qualitativa.

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    Ressalte-se que incorre no denominado crime de desvio de verbas,tipificado no artigo 31516 do Cdigo Penal, quem der s verbas pblicasaplicao diversa da estabelecida em lei. Desvio de verba, ensina HelyLopes Meirelles, a transposio de recursos de determinada dotaopara outra sem prvia autorizao legal, com infrao ao disposto noart. 167, VI, da CF.17 Se essa conduta for praticada por PrefeitoMunicipal, ser enquadrada no artigo 1, III, do Decreto-Lei n 201/6718, que comina pena mais severa. Tambm constitui ato de improbidadeadministrativa influir de qualquer forma para a aplicao irregular de verbapblica (Lei n 8.429/92, art. 10, XI19).

    _____________16 Dar s verbas ou rendas pblicas aplicao diversa da estabelecida em lei: Pena deteno, de

    um a trs meses, ou multa (CP, art. 315).17 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 10 ed. So Paulo: Malheiros, 1998, p.

    227.18 So crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipais, sujeitos ao julgamento do Poder

    Judicirio, independentemente do pronunciamento da Cmara dos Vereadores desviar, ouaplicar indevidamente, rendas ou verbas pblicas (Decreto-lei n 201/67, art. 1, III). Oscrimes definidos neste artigo so de ao pblica, punidos os dos itens I e II, com a pena derecluso, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de deteno, de trs meses a trs anos( 1). A condenao definitiva em qualquer dos crimes definidos neste artigo, acarreta a perdade cargo e a inabilitao, pelo prazo de cinco anos, para o exerccio de cargo ou funo pblica,eletivo ou de nomeao, sem prejuzo da reparao civil do dano causado ao patrimniopblico ou particular ( 2).

    19 Constitui ato de improbidade administrativa que causa leso ao errio qualquer ao ouomisso, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriao, malbaratamentoou dilapidao dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1 desta lei, e notadamente:(...) XI - liberar verba pblica sem a estrita observncia das normas pertinentes ou influir dequalquer forma para a sua aplicao irregular (Lei n 8.429/92, art. 10, XI). Independentementedas sanes penais, civis e administrativas, previstas na legislao especfica, est o responsvelpelo ato de improbidade sujeito s seguintes cominaes: (...) II - na hiptese do art. 10,ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimnio,se concorrer esta circunstncia, perda da funo pblica, suspenso dos direitos polticos decinco a oito anos, pagamento de multa civil de at duas vezes o valor do dano e proibio decontratar com o Poder Pblico ou receber benefcios ou incentivos fiscais ou creditcios,direta ou indiretamente, ainda que por intermdio de pessoa jurdica da qual seja sciomajoritrio, pelo prazo de cinco anos; (...) Pargrafo nico. Na fixao das penas previstasnesta lei o juiz levar em conta a extenso do dano causado, assim como o proveito patrimonialobtido pelo agente (Lei n 8.429/92, art. 12, II e nico).

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 2006 17

    O DIREITO URBANSTICO E O DIREITO DE PROPRIEDADENORTE-AMERICANOS: PLANEJAMENTO URBANO E

    DESAPROPRIAO PARA FINS DE INTERESSE PBLICO APS ADECISO NO CASO KELO VS. CITY OF NEW LONDON

    Mrcia Ferreira Cunha FariasProcuradora do Ministrio Pblico de Contas do DF

    1. Introduo: Takings Clause na Constituio Norte-Americana.2. O caso Kelo v. City of New London. 3. A redefinio do conceito deinteresse pblico no Direito Administrativo Norte-Americano.4. Desapropriao para Desenvolvimento Econmico naJurisprudncia da Suprema Corte. 4.1 Berman v. Parker. 4.2 Hawaiiv. Midkiff. 4.3. County of Wayne v. Edward Hatchcock. 5. Urban Renewal eDesenvolvimento Urbano. 6. Desdobramentos do Caso Kelo. 7. Concluso.

    1. INTRODUO: TAKINGS CLAUSE NA CONSTITUIO NORTE-AMERICANA

    No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamouscrime, unless on a presentment or indictment of a Grand Jury, except incases arising in the land or naval forces, or in the Militia, when in actualservice in time of War or public danger; nor shall any person be subject forthe same offence to be twice put in jeopardy of life or limb, nor shall becompelled in any criminal case to be a witness against himself, nor be deprivedof life, liberty, or property, without due process, of law; nor shall privateproperty be taken for public use, without just compensation. (QuintaEmenda Constituio dos Estados Unidos da Amrica).1

    No h dvida acerca da relao existente entre probreza edesenvolvimento urbano. Aquela favorece sobremaneira o crescimento_____________1 A ltima parte da Emenda, que se l: nem ser propriedade privada tomada para uso

    pblico, sem justa compensao, conhecida como the takings clause, aplicvel aosEstados por meio da Dcima-Quarta Emenda.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 200618

    desordenado da cidade, fenmeno observado em todo os pases emdesenvolvimento. O crescimento desordenado das cidades na AmricaLatina, por motivos polticos, econmicos e sociais, deixa espao parauma srie de movimentos descoordenados e inconseqentes, e a faltade meticuloso planejamento urbano, que atenda aos anseios da populaolocal, causa de diversos males, refletindo em ndices de educao,criminalidade e sade (inclusive mental), dentre outros.

    tarde para que o Brasil, inclusive o Distrito Federal, resgatem oEstado de Direito em matria de desenvolvimento urbano, conferindocompetncia de zoneamento e planejamento ao Poder Executivo, pormeio de mecanismos e de profissionais talhados para a tarefa e queconsiderem ampla participao da sociedade, cabendo ao PoderLegislativo traar linhas mestras de desenvolvimento. Imperioso se faz,ainda, o efetivo florescimento das muito faladas parcerias pblico-privadas, importantssimas nesta como em tantas outras reas. So elas,ao lado de uma estrutura normativa e oramentria, que do forma e cor poltica de habitao Norte-Americana, a compreendidos o desenvolvimentoeconmico das cidades e o redesenvolvimento urbano. tarde, mas absolutamente necessrio que no se pense a tarefa impossvel.

    O julgamento do controvertido caso Kelo vs. City of New London,pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 23 de junho de 2005, teveampla e estrondosa cobertura na mdia. O caso vem sendo consideradouma das mais importantes decises da Corte em 2005 e uma das maissignificativas e polmicas de toda a histria da Corte Suprema em matriade Direito Administrativo, Direito de Propriedade e Desapropriao.De uma parte, para os defensores do direito de propriedade privada, ocaso vem sendo alardeado como a gota dgua, uma clara demonstraoda maioria dos integrantes da Corte contra a proteo da propriedadeprivada. De outra parte, para os governos locais, aos quais cabem asdecises a respeito do planejamento urbansitico, a deciso no caso Kelo maravilhosamente libertadora, um verdadeiro divisor de guas aclarificar, de uma vez por todas, quem manda em termos dedesenvolvimento e planejamento urbano.

    O presente estudo tem o objetivo de demonstrar que o caso Kelo,a despeito das incisivas palavras da Ministra Sandra Day OConnor2,nada mais do que uma conseqncia de decises anteriores da Corte_____________2 Relatora do voto dissidente.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 2006 19

    Suprema, uma mera contiunidade natural do pensamentoadministrativista norte-americano. Nem por isso deixa a deciso de serda mais suma relevncia, pois revela definitiva tendncia noplanejamento urbano, de costa a costa: aclara competncias e serve deexcelente fonte de estudo no Direito Comparado. Particularmente, noque diz respeito ao conceito de interesse pblico e de funo social dapropriedade, o caso lana luzes que refletem no Direito AdministrativoBrasileiro, merecendo detalhado e refletido exame.

    2. O CASO KELO V. CITY OF NEW LONDON

    New London uma cidade histrica e porturia, situada beirado Rio Thames, no sudeste do estado de Connecticut, na NovaInglaterra3, nordeste dos Estados Unidos, regio formada pelos Estadosde Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts e Rhode Island,alm do j citado Estado. O voto do Ministro STEVENS4 no caso Kelodemonstra a situao scio-econmica da cidade, no final do sculoXX: uma municipalidade em frangalhos5, que, em 1998, exibia taxade desemprego quase duas vezes maior do que a mdia estadual, com amaior emigrao de habitantes desde 1920.

    A rea de Fort Trumbull era a que mais merecia ateno. A NewLondon Development Corporation (NLDC), uma sociedade sem finslucrativos, estabelecida para auxiliar o governo local a elaborar umapoltica de desenvolvimento econmico6, foi autorizada pelo Conselhoda Cidade de New London a formalmente submeter seus planos aogoverno estadual para reviso. O plano apresentado inclua oestabelecimento de um complexo de pesquisa pela Pfizer, Inc., que,esperava-se, atrairia novos negcios a fixarem-se na regio, totalizando90 acres na rea de Fort Trumbull. O Conselho da Cidade aprovou o_____________3 Regio formada pelos Estados de Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Rhode

    Island e Connecticut. Boston a capital financeira e cultural da regio.4 John Paul Stevens, nomeado pelo Presidente Ford, entrou em exerccio em 19 de dezembro

    de 1975.5 a distressed municipality (todas as tradues para o portugus contidas neste estudo foram

    feitas livremente pela autora.6 A NLDC tem como finalidade estabelecer parcerias pblico-privadas que sirvam de estmulo

    ao desenvolvimento econmico da cidade de New London, aumentando a receita de tributos,fomentando a criao de empregos, e melhorando a qualidade de vida dos moradores dacidade (in http://www.nldc.org).

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 200620

    plano em janeiro de 2000, designando a NLDC como o agenteresponsvel por sua implementao. A NLDC foi tambm autorizada aadquirir propriedade para desenvolvimento do plano, inclusive por meiode desapropriao, em nome da cidade de New London. A maior partedos 90 acres foi adquirida, mas em relao aos autores da ao, asnegociaes falharam, tendo sido iniciado o processo de desapropriaoem novembro de 2000.

    Os nove autores da ao judicial mantinham quinze propriedadesem Fort Trumbull, dez das quais utilizadas para moradia dosproprietrios ou de suas famlias, e cinco, mantidas como investimento.

    Em dezembro de 2000, os autores da ao defenderam no Tribunalde Segunda Instncia de New London7 que a desaproprieo de seusimveis estaria em violao do conceito de interesse pblico contidona Emenda Cinco da Constituio norte-americana. O Tribunal concedeuaos autores segurana proibindo a desapropriao das propriedadeslocalizadas na zona 4A do projeto, mas no na zona 38.

    Em seguida, ambas as partes apelaram Corte Suprema do Estadode Connecticut, que julgou, por maioria, que as desapropriaestencionadas pelo governo local eram vlidas. A deciso teve porfundamento o Captulo 132 da Constituio Estadual, que reza que adesapropriao de reas urbanas, ainda que construdas, como parte deum projeto de desenvolvimento urbano, considerada no interesse pblicoe revela um uso pblico. A Corte, portanto, manteve a deciso a quorelativamente parcela 3, mas reformou a deciso, no que diz respeito

    _____________7 New London Superior Court.8 O projeto dividia-se em sete parcelas, a saber:

    Parcela 1 designada para estabelecimento de um hotel beira da gua, centralizado emuma pequena vila urbana, na qual seriam estabelecidos restaurantes e um shopping center,assim como marinas para uso recreativo e comercial.Parcela 2 nesta zona seriam construdas aproximadamente 80 novas residncias,organizadas em uma comunidade urbana e ligadas por meio de um passeio pblico aorestante do projeto, com previso de um parque estadual e um museu.Parcela 3 - 90.000 ps quadrados, ou mais, de rea destinada a pesquisa e a escritrios.Parcela 4A rea de 2,4 acres a ser utilizada para suporte ao parque estadual, comoestacionamento e comrcio varejista para visitantes, ou para suporte marina.Parcela 4B rea destinada marina, renovada, alm de passeio pblico.Parcelas 5,6 e 7 espao destinado a escritrios e comrcio varejista, estacionamento eusos comerciais relacionados ao rio.

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    parcela 4A, sob o argumento de que o uso pretendido da rea haviasido suficientemente definido e havia merecido razovel ateno no cursodo processo de planejamento.

    A Corte Suprema dos Estados Unidos recebeu os recursos doslitigantes (writ of certiorari) com o propsito de examinar se a decisode um governo local de promover desapropriaes para afinalidade de desenvolvimento econmico envolvia um interessepblico, tal como requerido por fora da Quinta Emenda daConstituio dos Estados Unidos da Amrica.

    Assim recapitulou o Ministro da Suprema Corte relator do processo9:when this Court began applying the Fifth Amendment to the

    States at the close of the 19th century, it embraced the broader and morenatural interpretation of public use as public purpose () Thedisposition of this case therefore turns on the question whether the Citysdevelopment plan serves a public purpose. Without exception, our caseshave defined that concept broadly, reflecting our longstanding policy ofdeference to legislative judgments in this field.

    Os requerentes em Kelo argumentaram que: a) desenvolvimentoeconmico no poderia ser considerado interesse ou uso pblico; b) ouso do instituto de desapropriao nessas circumstncias deturparia oconceito de interesse social; c) a transferncia de propriedade de umcidado a outro seria estimulada se o caso fosso decidido a favor dacidade de New London; d) uma razovel certeza de que os benefciosao pblico iriam de fato ocorrer seria imperativa.

    A Ministra OConnor10 apresentou voto divergente, no que foiacompanhada pelos Ministros Renquist, Scalia e Thomas11 (o ltimo_____________9 125 S. CT. 2655: quando esta Corte comeou a empregar a Quinta Emenda aos Estados no

    final do sculo XIX, abraou a mais ampla e mais natural interpretao de uso pblicocomo um propsito pblico (...) A disposio deste caso volta-se a perguntas a respeito dese um plano de desenvolvimento de uma cidade presta-se ao conceito de propsito pblico.Sem excees, as nossas decises tm definido esse conceito de foma abrangente, refletindonossa poltica de deferncia ao pensamento do legislativo nesse campo.

    10 A Ministra Sandra Day OConnor tomou assento na Suprema Corte em 25 de setembro de1981 e foi nomeada pelo Presidente Reagan. Aposentou-se em 31 de janeiro de 2006.

    11 O Ministro William H. Renquist foi nomeado pelo Presidente Nixon e tomou assento em 7de janeiro de 1972; foi ainda nomeado Chief Justice pelo Presidente Reagan em 25 desetembro de 1986, e faleceu no cargo em 3 de setembro de 2005. O Ministro Antonin Scalia

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    apresentou declarao de voto). O entendimento esposado no voto daMinistra OConnor no sentido de que a Suprema Corte, por doissculos, aplicara em suas decises o princpio da limitao dos poderespblicos, e que essa prtica estaria a ser, com a deciso em debate,abandonada, para permitir a desapropriao de propriedade privada esua transferncia para outro indivduo ou entidade privada, apenas porqueos ltimos seriam capazes de gerar mais benefcios comunidade, ou,em ltima anlise, maoir renda tributria. Desapropriao para fins dedesenvolvimento econmico, que constitui o caso em anlise, seriainconstitucional para a corrente vencida por promover o bem pblicoapenas incidentalmente; o voto dissedente da Ministra refuta, tambm,a pertinncia da jurisprudncia apontada, particularmente os casosBerman e Midkiff (adiante apresentados).

    3. A REDEFINIO DO CONCEITO DE INTERESSE PBLICO NO DIREITO NORTE-AMERICANO

    A clusula Takings12, tambm conhecida como a:just compensation clause (clusula da justa compensao), serves as a

    limitation on the exercise of the police power () it is not essential thata majority of the public benefit from the governmental action or program.() In the process of expanding the definition of what was a public useby incorporating public benefit or purpose analysis, the definition ofpublic use became a legislative function. Thus, an action of a stateadministrative agency requires the authorization by the state legislature inorder to further a public use.13

    O propsito pblico, ou o interesse pblico, conceitomultifacetado. Por no ser facilmente identificado ou delimitado, no _________________________________________________________________________

    foi nomeado pelo Presidente Reagan e tomou assento em 26 de setembro de 1986; oMinistro Clarence Thomas foi nomeado pelo Presidente Bush e tomou assento em 23 deoutubro de 1991.

    12 Takings conceito mais amplo do que o de desapropriao, tal como conhecido no DireitoBrasileiro, pois inclui a desapropriao por utilidade pblica, a desapropriao por interessesocial, e tambm a regulamentao administrativa (relativa a zoneamento urbano, porexemplo) considerada pelo Poder Judicirio como exorbitante. No caso em hiptese, contudo,que envolve physical takings, a traduo mais precisa seria o termo desapropriao.

    13 BURKE, Barlow. Understanding the Law of Zoning and Land Use Controls. Newark: LexisNexis, 2002, pp.11, 15.

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    conceito finito e objetivo. Deve-se compreender o conceito, portanto,em Direito Administrativo, por meio de uma ponderao dos interessesenvolvidos em cada caso concreto. Em busca de uma compreeenso dafuno social da propriedade, devem-se considerar direitos individuaise metaindividuais.14

    A noo do conceito de interesse pblico, ademais, caleidoscpica, porque alterna suas cores e configuraes de acordocom quem a manipula. Para Marx, por exemplo, o interesse pblico eraum disfarce da burguesia. Mais recentemente, tericos e filsofosfeministas argumentam que o interesse pblico , invariavelmente,implicitamente condicionado a gnero.15

    Historicamente, o conceito de interesse pblico :serves as a limitation on the exercise of the police power () it is

    not essential that a majority of the public benefit from the governmentalaction or program. () In the process of expanding the definition ofwhat was a public use by incorporating public benefit or purpose analysis,the definition of public use became a legislative function. Thus, an actionof a state administrative agency requires the authorization by the statelegislature in order to further a public use.16

    Planejamento urbano hoje, evidente, pressupe muito mais doque a aludida burocracia entre quatro paredes. A epistemologia doplanejamento deve levar em considerao, ao menos, seis fatores: dilogo;experincia; conhecimento do ambiente local; conhecimento apreciativoou contemplativo; evidncias simblicas ou no-verbais; e planejamentode ao.17

    _____________14 A respeito da funo social da propriedade, cf. Farias, Marcia. Terras Pblicas: alienao e uso.

    Braslia: Braslia Jurdica, 2005, p. 94.15 SANDERCOCK, Leonie. Towards Cosmopolis: Planning for Multicultural Cities. Chichester:

    John Wiley and Sons, p.197.16 BURKE, Barlow. Understanding the Law of Zoning and Land Use Controls. Newark: Lexis

    Nexis, 2002, pp.11, 15: Historicamente, o conceito de interesse pblico vem de umaestrutura de referncia da teoria poltica liberal em que especialistas desinteressados,trabalhando no mbito de instituies do Estado-Nao moderno, objetivam e racionalmenteanalisam um problema e alcanam uma soluo de interesse pblico. [O conceito] presumiaa abilidade de um certo e escolhido grupo de especialistas posicionar-se fora dos processossociais e decidir o que era melhor para todos.

    17 SANDERCOCK, Leonie, ob.cit., p. 82.

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    No que diz respeito ao conceito de uso pblico, o termo pblicoque est constantemente em mutao: a cidade ideal uma poltica deincluso fundamentada no entendimento de que existem mltiplospblicos, ou (...) um pblico heterogneo.18

    Inicialmente, a jurisprudncia americana limitava o conceito deuso pblico ao uso por todos, ou uso pelo pblico (Cole v. City of LaGrange), ea desapropriao que tomasse um imvel particular para transferi-lo aoutro particular era inaceitvel. (Karesh v. City Council, em que o governolocal tencionava desapropriar um imvel para construo e explorao,por particulares, de um estacionamento e de um centro de convenes).

    Sob a perspectiva de urban renewal19, contudo, o conceito de usopblico passou a oferecer mais ampla compreenso. Isso porque essafuno do planejamento urbano recorria, em grande extenso, desapropriao da propriedade privada para regenerao de reasurbanas desgastadas, transformando-as, na maioria das vezes, emdesenvolvimentos de uso misto (residencial e comercial). Nos projetosde desenvolvimento, o rgo governamental ou a entidade sem finslucrativos em parceria pblico-privada detinham a rea desapropriadapor curto perodo de tempo, repassando-a a outros particulares apssubdividi-la.

    4. DESAPROPRIAO PARA DESENVOLVIMENTO ECONMICO NAJURISPRUDNCIA DA SUPREMA CORTE

    Few issues have captured the attention of state legislatures in recentyears as dramatically as eminent domain has in the wake of last years U.S.Supreme Court ruling in Kelo v. City of New London. Various versions ofeminent domain reform are or have been considered in 45 states. Proposalsrange from broad, constitutional prohibitions to procedural changes inthe use of eminent domain. APA is closely monitoring state action onthis important planning issue. () APA believes states, not the federal

    _____________18 Idem, p. 197.19 Tcnica de planejamento urbano praticada nos Estados Unidos, sobretudo entre o final da

    dcada de 40 do sculo passado e o incio da dcada de 70, em que a desapropriao deimveis de propriedade privada para implementao de projetos cvicos era amplamenteutilizada. Tambm conhecido na Inglaterra como urban regeneration, essa funo deplanejamento urbano foi aplicada em cidades por todo o mundo.

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    government, are the appropriate venue for redevelopment reform. Reformdone right will guarantee fairness while benefiting communities. However,legislation must be carefully crafted to avoid unintended consequencesthat threaten to hobble the ability of local citizens to improve theirneighborhoods and quality of life.20

    A afirmao, feita no stio da American Planning Association nainternet, seguida de uma lista de projetos de lei estaduais provocadospela deciso da Suprema Corte no caso Kelo. A importncia atribuda aKelo pela APA reflete a que juristas, polticos, funcionrios pblicos,engenheiros e arquitetos, e vrios setores da sociedade civil, atriburam deciso. Ambientalistas tambm esto-se preocupando com possveisefeitos negativos do caso sobre o meio ambiente: o desenvolvimentopropiciado por grandes empresas de construo e indstrias no podecompetir, em termos financeiros ( gerao de receita de impostos e deempregos), com a preservao de reas verdes, iniciativa, contudo,igualmente relevante.

    A pergunta que se coloca : Kelo, de fato, alterou tanto assim ajurisprudncia da Suprema Corte? Em nosso ponto de vista, no. Aseguinte anlise da jurisprudncia aplicvel ao caso demonstrar esta tese.

    4.1. BERMAN V. PARKER

    Em Berman v. Parker, o apelante era proprietrio de um imvelcomercial, no qual funcionava uma loja de departamentos. A propriedadeem si no apresentava sinais de desgaste, mas localizava-se em umarea considerada desgastada.21 O caso definiu o conceito de propsitopblico, em amplo sentido, a ser avaliado sob a perspectiva de cadacaso concreto.

    O Decreto de Redesenvolvimento do Distrito de Columbia, de1945, foi considerado constitucional pela Suprema Corte:

    as applied to the taking of [the] appellants building and land(used solely for commercial purposes) under the power of eminentdomain, pursuant to a comprehensive plan prepared by an administrativeagency for the redevelopment of a large area of the District of Columbia

    _____________20 In http://www.planning.org/legislation/eminent domain/21 BURKE, ob. cit., p.15.

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    so as to eliminate and prevent slum and substandard housing conditions even though such property may later be sold or leased to other privateinterests subject to conditions designed to accomplish these purposes.22

    No caso em anlise, assim votou o Ministro Douglas23:Subject to specific constitutional limitations, when the legislature

    has spoken, the public interest has been declared in terms well-nighconclusive. In such cases the legislature, not the judiciary, is the mainguardian of the public needs to be served by social legislation, whether itis Congress legislating concerning the District of Columbia or the Stateslegislating concerning local affairs. This principle admits of no exceptionmerely because the power of eminent domain is involved. The roleof the judiciary in determining whether that power is being exercised fora public purpose is an extremely narrow one. () We do not sit todetermine whether a particular housing project is or is not desirable. Theconcept of the public welfare is broad and inclusive. The values itrepresents are spiritual as well as physical, aesthetic as well as monetary. Itis within the power of the legislature to determine that thecommunity should be beautiful as well as healthy, spacious as wellas clean, well-balanced as well as carefully patrolled. In the presentcase, the Congress and its authorized agencies have made determinationsthat take into account a wide variety of values. It is not for us to reappraisethem. If those who govern the District of Columbia decide that theNations Capital should be beautiful as well as sanitary, there isnothing in the Fifth Amendment that stands in the way.24

    _____________22 O Decreto foi considerado constitucional enquanto aplicado desapropriao do imvel

    construdo do apelante e da rea no construda (utilizados unicamente para fins comerciais),de acordo com um plano compreeensivo preparado pela agncia administrativa para oredesenvolvimentode de uma extensa rea do Distrito de Columbia, no intento de eliminare previnir favelas e condies de habitao inferiores ainda que a propriedade possaadiante ser vendida ou alugada para outros interesses privados, sujeitos a condies designadasa atingir esses propsitos. Berman v. Parker, 348 U.S. 26 (1954).

    23 William O. Douglas tomou assento em 17 de abril de 1939. Foi nomeado pelo PresidenteFranklin Roosevelt e aposentou-se em 12 de novembro de 1975.

    24 Sujeito a limitaes constitucionais especficas, quando o Poder Legislativo j deliberou, ointeresse pblico foi declarado em termos bastante conclusivos. Em casos que tais, oLegislativo, no o Judicirio, o maior guardio das necessidades pblicas a serem servidaspela legislao social, seja quando o Congresso legisla para o Distrito de Columbia, sejaquando os Estados legislam a respeito de assuntos locais. Esse princpio no admite

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    O requisito de uso pblico em Berman foi aplicado a toda a reaem que o plano de urban renewal estava sendo desenvovido. O fato deque o lote comercial em que a loja de departamentos estava localizadano apresentava desgaste no foi considerado pela Corte, que rejeitouo argumento de que o requisito de uso pblico deva ser satisfeitoimvel a imvel25:

    If owner after owner were permitted to resist these redevelopmentprograms on the ground that his particular property was not being usedagainst the public interest, integrated plans for redevelopment wouldsuffer greatly. The argument pressed on us is, indeed, a plea to substitutethe landowners standard of the public need for the standard prescribedby Congress. But as we have already stated, community redevelopmentprograms need not, by force of the Constitution, be on a piecemeal basis lot by lot, building by building.26

    Berman serve de reforo teoria segundo qual, em termos depoder de polcia, inclusive em matria de desapropriao, no deve oPoder Judicirio analisar o mrito do ato administrativo, no que pertine maior ou menor convenincia de sua prtica para o bem-estar comum,substituindo-se o Poder Legislativo pelo Poder Judicirio. O casodemonstra, ainda, que a organizao e o planejamento da cidade cabem_________________________________________________________________________

    nenhuma exceo meramente porque o poder de desapropriao est em questo.O papel do Judicirio em determinar se o poder [ de desapropriao] est sendo exercidopara um propsito pblico extremamente estreito. (...) Ns no nos sentamos para determinarse um projeto de habitao em especfico ou no desejvel. O conceito de bem-estarpblico amplo e inclusivo. Os valores por ele represetados so espirituais tanto quantofsicos, estticos tanto quanto monetrios. no mbito desse poder que o Legislativodeterminar se a comunidade deve ser bonita, alm de saudvel; espaosa, almde limpa; equilibrada, alm de cuidadosamente patrulhada. No caso presente, oCongresso e as agncias autorizadas tomaram deliberaes que consideram uma grandevariedade de valores. No nosso papel reavali-las. Se aqueles que governam o Distritode Columbia decidem que a Capital da Nao deve ser bonita, alm de sanitria,no h nada na Quinta Emenda que o impea. (Berman v. Parker).

    25 Berman v. Parker.26 Se proprietrio aps proprietrio fossem autorizados a resistir os programas de

    redesenvolvimento sob o argumento de que o seu imvel em particular no estava sendousado contra o interesse pblico, os planos integrados para redesenvolvimento sofreriarmenormemente. Mas, como j afirmado, programas de redesenvolvimento econmico nonecessitam, pela fora da Constituio, ser em fatias lote por lote, prdio por prdio.

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    ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo; e que particulares que sejamproprietrios de imveis em reas objeto de projetos de desenvolvimentoeconmico (incluindo-se, nesse conceito, habitao digna), no podemopor seu direito ao plano elaborado pelo Poder Pblico, ainda que seusimveis sirvam, isoladamente, a um propsito pblico lato sensu (geraode empregos e de impostos; embelezamento da rea combalida etc.).

    4.2. HAWAII V. MIDKIFF

    A terra, no Estado do Hava, era concentrada nas mos de poucos,que alugavam suas propriedades. O Poder Legislativo local tencionourequerer aos proprietrios que vendessem suas terras aos inquilinos, mas,devido forte carga tributria federal, os proprietrios recusaram-se avender suas terras. Entretanto, ao desapropriar os imveis, o PoderLegislativo tornaria as vendas involuntrias, reduzindo, assim, asconseqncias tributrias. Como a mediao falhara no processo devenda, os proprietrios ajuizaram a ao, requerendo que a norma quepermitiu a desapropriao das terras fosse considerada inconstitucional.

    O Tribunal de Primeira Instncia temporariamente obstou oEstado a proceder contra as propriedades privadas. Em dezembro de1979, o Tribunal declarou que os objetivos da norma encontravam-senos limites do poder de polcia, e que os meios que o Estado haviaescolhido para alcanar esses objetivos no eram arbitrrios, capciososou escolhidos de m f.27

    O Tribunal de Apelao (Court of Appeals), considerou a normacomo a naked attempt on the part of the the state of Hawaii to takethe private property of A and transfer it to B solely for Bs private useand benefit.28

    A Corte Suprema decidiu que a norma havaiana era constitucional,porque objetivava corrigir deficincias no mercado imobilirio, e essaera uma hiptese de uso pblico, legitimadora, portanto, da desapropriaoproposta.

    _____________27 Citao extrada do voto da Ministra O Connor.28 Idem; uma tentativa explcita da arte do Estado do Hava de tomar a propriedade privada

    de A e transferi-la a B unicamente para seu prprio uso privativo e benefcio.

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    4.3. POLETOWN NEIGHBORHOOD COUNCIL V. CITY OF DETROIT

    Em Poletown, a Suprema Corte do Estado de Michigan examinouum caso de redesenvolvimento urbano na cidade de Detroit. PoletownNeighborhood Council, uma associao civil, e mais dez residentes daregio de Poletown, em Detroit, ajuizaram ao contra a cidade deDetroit e sua Empresa de Desenvolvimento Econmico (EconomicDevelopment Corporation) para obstar a desapropriao de terras queseraim posteriormente transferidas General Motors Corporation paraa construo de novas fbricas de montagem em linha.

    O caso discute a questo de se os governos locais podemdesapropriar imveis para depois transferi-los a uma empresa privadaem nome de desenvolvimento econmico. A Corte decidiu que o usodo instituto da desapropriao - eminent domain para fins deredesenvolvimento econmico legtimo, ainda que, ao fim eincidentalmente, a empresa tambm aufira benefcios. Poletown reafirmaque o benefcio pblico h de ser claro e significativo, mas nonecessariamente garantido.

    O voto dissidente no processo, proferido pelo Ministro Fitzgerald29,argumenta no sentido de que, no caso em anlise, a transferncia depropriedade General Motors aps o decreto expropriatrio, no poderiaser considerada incidental em relao desapropriao, porque forajustamente por meio da aquisio e do uso da propriedade por parte daGeneral Motors que o propsito pblico de promover novos empregosseria atingido. O voto tambm menciona que a jurisprudncia citada nadiscusso do processo (referente a casos nas Cortes de Maryland e deMinnesota) no guardava identidade com Poletown porque, em Poletown,a localizao da propriedade no fora escolhida pelo municpio, mas, aocontrrio, indicada como desejvel pela General Motors.30 Argui-se, emcontraposio a esse entendimento, que as observaes do votodissidente so irrelevantes, porque o projeto de redesenvolvimento deveestar muito bem estruturado e seguir uma srie de formalidades, bemcomo ser discutido em diferentes fruns e arenas; a localizao dapropriedade, ainda, no aprovada se no apresentar relevantes_____________29 Ryan Fitzgerald, Ministro da Suprema Corte do Estado de Michigan.30 Poletown Neighborhood Council v. City of Detroit, 410 Mich. 616.

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    benefcios ao redesenvolvimento, independentemente de quem a defineou sugere.

    4.4. COUNTY OF WAYNE V. EDWARD HATCHCOCK

    Neste caso, a Suprema Corte do Estado de Michigan reverteu seuentendimento em relao a Poletown, adotando interpretao mais restritada clusula takings na Constituio Estadual, ao contrrio de suadeliberao em Poletown, em que a inconstitucionalidade arguda foraem relao Constituio Federal.

    O caso em foco tratava de uma renovao do AeroportoMetropolitano no condado de Wayne, a qual envolvia a aquisio depropriedades lindeiras, por meio de um processo voluntrio. Nem todosos proprietrios, contudo, aderiram ao programa voluntrio, e as terrasadquiridas resultaram num formato de tabuleiro de xadrez, o que tornoua continuidade do projeto impossvel. Assim, o condado precisou iniciaruma srie de desapropriaes.

    A Suprema Corte de Michigan estabeleceu trs testes no corpodessa deciso para determinar se as desapropriaes para fins dedesenvolvimento econmico seriam admissveis.

    Primeiramente, necessidade pblica extrema31 deve requerer uma aocoletiva.

    Em segundo lugar, a propriedade adquirida por meio dedesapropriao deve permanecer sob a superviso do municpio apstransferncia a uma entidade privada (com clusula de aplicao aoprojeto, por exemplo). Por ltimo, a propriedade deve ser selecionadaem considerao a fatos de significncia pblica independente32, e no escolhidapela entidade privada beneficiria.

    Como Hatchcock apresentara restries inexistentes najurisprudncia relativamente ao uso de eminet domain para fins dedesenvolvimento econmico, a ateno da comunidade jurdica, do setorpblico, dos defensores do direito de propriedade, dos planejadoresurbanos, e da sociedade como um todo, voltou-se a Kelo, com todointeresse, quando o caso subiu Suprema Corte._____________31 public necessity of the extreme sort.32 facts of independent public significance.

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    5. URBAN RENEWAL E DESENVOLVIMENTO URBANO

    Urban renewal, conceito j definido acima, processo de larga escalaque objetiva eliminar decadncia por meio de eminent domain (espcie dedesapropriao). Uma das mais fervorosas crticas de urban renewal, nosanos 50, foi Jane Jacobs, escritora e ativista, falecida em 25 de abril de2006.

    My attack, escreveu ela, (...) is based on the principles and aims thathave shaped modern, orthodox city planning and rebuilding. () Thereis a wistful myth that if only we had enough money to spend () wecould wipe out all our slums in ten years, reverse decay in the great, dull,gray belts that were yesterdays and day-before-yesterdays suburbs, anchorthe wandering middle class and its wandering tax money, and perhapseven solve the traffic problem.33

    Eminent domain ferramenta utilizada em projetos de urban renewalpara desenvolvimento econmico, para revitalizar bairros em decadnciae para a expanso de servios governamentais voltados comunidade.Alguns exemplos do uso dessa ferramenta em projetos urbanos nosEstados Unidos incluem:

    o Lincoln Center for the Performing Arts (Nova Iorque); a revitalizao do Times Square (Nova Iorque); o complexo do Boston Convention and Exhibition Center (Boston); a revitalizao da regio de baixa-renda de Dudley Street (Boston).Community Development (desenvolvimento comunitrio) o conceito

    que tomou forma em contraposio ao urban renewal. Nesse diapaso, ogoverno federal criou, em 1974, o Community Development Block Grant(CDBG), um programa de governo que oferece recursos financeiros scomunidades para a resoluo de uma vasta gama de problemas urbanos.O programa gerido pelo Department of Housing and Urban Development_____________33 JACOBS, Jane. The Death and Life of Great American Cities. New York: Vintage

    Books, Random House, Inc., 1961, p.4.Minhas crticas () esto baseadas nos princpios e objetivos que deram forma ao modernoe ortodoxo planejamento urbano (...) H um mito esperanoso de que se apenas nstivssemos dinheiro suficiente para gastar (...), ento poderamos acabar com todas asfavelas em dez anos; reverter a decadncia no grandes e cinzentos cintures que foramontem e antes-de-ontem nossos subrbios; ancorar a classe mdia viajante e sua receitatributria viajante; e talvez at resolver o problema do trnsito.

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    (HUD), aproximadamente o equivalente ao Ministrio das Cidadesbrasileiro. Os recursos pblicos so repassados por meio de uma frmulaespecificada em norma federal a 1180 unidades de governo local(municpios ou consrcios de municpios) e estadual.

    O desenvolvimento comunitrio fomentado de vrias formas.Uma delas por meio de regenerao com base em uma determinadacultura, ou seja, o desenvolvimento baseado em um grupo cultural outnico (bairros tnicos). Outra forma de abordar o desenvolvimento apartir de um determinado evento revitalizador, como os Jogos Olmpicos,a Copa do Mundo, o Carnaval. Recentemente, nos Estados Unidos, torna-se popular o redesenvolvimento centrado em projetos de uso misto(residencial e comercial) em torno de pontos de trnsito de grandecirculao (como estaes de trem ou metr).34

    6. DESDOBRAMENTOS DO CASO KELO

    Kelo foi estampado em todas as manchetes. Alguns argumentamque a Corte Suprema decidiu o caso mal, por uma srie de razesdiferentes. E por razes diferentes este estudo busca demonstrar que ocaso no apresenta modificao no pensamento da Corte, no que dizrespeito clusula takings ou aplicao da Quinta Emenda. Osargumentos mais utilizados por aqueles que se opem decisomajoritria da Suprema Corte so a seguir demonstrados e refutados.

    Kelo favorece um sistema perverso em que propriedadesprivadas de pessoas de baixa e mdia renda e de minoriasso entregues a poderosos

    O primeiro argumento assacado contra a deciso da Suprema Corte que os mais prejudicados por ela sero os economicamente frgeis; ouque os maiores beneficirios da deciso sero provavelmente os cidadosde desproporcionada influncia e poder no processo poltico decisrio,neste conceito includos grandes empresrios e construtoras.35_____________34 Um bom exemplo desse tipo de projeto o que est sendo construdo em torno da estao

    de metr de Woodland, na linha verde do Massachusetts Transit Authority (MBTA), compreviso de residncias, escritrios, lojas e estacionamento. Tais projetos tm forte apeloambiental, pois diminuem o trnsito de veculos, ao colocar moradores, empregos e serviosprximos uns dos outros, e promove, ainda, uma srie de direitos civis, como justia ambientale moradia para pessoas de baixa e mdia renda.

    35 ORNE, Christian M. Kelo v. New London: An Opportunity Lost to Rehabilitate the Takings Clause.6 Nev. L.J. 272.

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    Sob a perspectiva scio-econmica, o desenvolvimentocomunitrio, tal como praticado hoje, no ir surtir os efeitos temidospelos defensores do direito de propriedade. O processo judicirioenvolveu apenas 15 propriedades, embora o projeto inteiro englobasse90 acres de terra urbana. Essas 15 propriedades, como j mencionado,pertenciam a 9 peticionrios que no constituam necessariamentefamlias de baixa renda ou minorias; de lembrar que 5 das propriedadeseram mantidas a ttulo de investimento. importante relembrar que aaquisio de propriedade por meio de desapropriao mais onerosa,poltica e economicamente, do que a aquisio direta, sempre preferida.A especulao imobiliria que muitos temem, portanto, provavelmenteno se concretizar.36

    A American Planning Association APA, um dos amicus curiae nocaso Kelo, em apoio aos recorridos, assim se manifestou:

    communities should use incentives such as increased developmentdensities and favorable zoning policies as their primary redevelopmenttool, and should resort to eminent domain only as a tool of last resortwhen incentives are insufficient to implement redevelopment plans.37

    O argumento de que a propriedade privada agora est muito maisvulnervel nos Estados Unidos, que ser tomada fora de uns para serdada a outros, no objetivo de aumentar a receita de impostos para ogoverno, exagerado, e no pode ser atribudo a Kelo. Isso porque, comoa Trial Court (o Tribunal a quo) concluiu, o fato de a Pfizer ter sidobeneficiada no pode ser considerado como a motivao principal oumesmo o efeito do projeto de redesenvolvimento. Essa motivao eesse efeito foram, na verdade, a vantagem que o governo localvislumbrou em auferir vantagem para a populao de New London,como um todo, do interesse manifestado pela empresa em estabelecer-se na rea de North Trumbull._____________36 Cf. http://www.planning.org/amicusbriefs/pdf/kelo.pdf37 Idem. As comunidades devem usar incentivos tais como densidades de desenvolvimento

    maiores e polticas de zoneamento mais favorveis como suas ferramentas primrias deredesenvolvimento, e devem recorrer desapropriao apenas como uma ferramenta deltimo recurso, quando os incentivos forem insuficientes para implementar os planos deredesenvolvimento.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 200634

    Os governos municipais (locais) e estaduais agora sentir-se-o vontade para utilizar amplamente o eminentdomain em seus projetos de desenvolvimento econmico

    Os que imaginaram que a deciso da Suprema Corte serviria deincentivo para que os governos locais e estaduais se sentissem livres aforar cidados americanos a abrir mo de suas propriedades,conquistadas a duras penas, erraram, de longe, em suas previses.38 Naverdade, exatamente o oposto ocorreu: os Legislativos estaduais correrama propor e a aprovar leis protetoras da propriedade privada nos limitesde seus Estados.

    At a data de 17 de agosto de 2006, em que este artigo foisubmetido a publicao, a legislao restritiva do uso de eminent domainnos Estados encontrava-se assim39:

    Estados que j tiveram leis e emendas constitucionaispromulgadas: Alaska, Colorado, Florida, Georgia, Idaho,Illinois, Indiana, Iowa, Kansas, Kentucky, Louisiana, Maine,Minnesota, Missouri, Nebraska, New Hampshire, Pennsylvania,South Carolina, South Dakota, Tennessee, Utah, Vermont,West Virgina e Wisconsin (24 Estados);

    Estados aguardando sano ou veto do Governador: NorthCarolina;

    Estados em que tais normas foram vetadas pelo Governador:Arizona, Iowa e New Mexico;

    Estados em que a proposta legislativa foi aprovada em umadas Casas mas ainda no na outra: New Jersey;

    Estados em que propostas legislativas restritivas foramabortadas nas comisses legislativas: Alabama, Connecticut,Hava, Maryland, Mississippi, Nova Iorque, Oaklahoma, RhodeIsland, Virginia, Washington, Wyoming (11 Estados);

    Estados em que propostas legislativas foram introduzidas:California, Massachusetts, Ohio.40

    _____________38 Cf, a ttulo de exemplo, Fuhrmeister, Ashley J. In the name of economic development:

    reviving public use as a limitation on the eminent domain power in the wake of Kelo v. Cityof New London. 54 Drake Law Rev., 71.

    39 In http://www.planning.org/legislation/eminentdomain/edlegislation.htm#140 Total de Estados que j propuseram propostas administrativas (aprovadas, rejeitadas, em

    curso, abortadas): 43, de um total de 50.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 2006 35

    O Legislativo Federal tambm passa por um momento de reflexo.Muitas propostas legislativas foram apresentadas em ambas Casas, masa iniciativa principal da Cmara, H.R. 4128, de autoria do DeputadoJames Sensenbrenner (Republicano de Wisconsin). Essa proposta,aproada em novembro de 2005 por 376 votos a 38, foi encaminhada Comisso Judiciria no Senado. A norma proposta busca limitar o usodo instituto de eminent domain de forma contundente: o Estado oumunicipalidade que promover, por meio de desapropria, a transfernciade propriedade de um particular a outro no receber verbas do governofederal para desenvolvimento econmico por dois anos.41

    O Congresso j aprovou outra proposta legislativa a respeito doassunto. Trata-se de uma emenda a uma lei federal (P.L. 109-115) queprobe o uso de verbas federais apropriadas nos termos da lei paraprojetos de desenvolvimento econmico que beneficiem,primordialmente, particulares. A norma, promulgada em 30 denovembro de 2005, determina, ainda, a realizao de estudos peloGeneral Accountability Office GAO sobre o uso de eminent domainpara fins de desenvolvimento econmico, conferindo ao rgo um anopara apresentao de seu relatrio (novembro de 2006).42 As conclusesdo GAO sero de suma relevncia para o destino do emprego do institutode desapropriao para fins de desenvolvimento econmico, e, ainda,para a definio do conceito de interesse pblico. O relatrio do GAO,contudo, s estar disponvel aps sua apresentao ao Congresso.43

    O governo proponente de um plano de redesenvolvimentodeve apresentar prova de que o plano ter sucesso

    No que diz respeito necessidade de prova do sucesso projetado deum plano de redesenvolvimento, a deciso concluiu que o governo local fezuma sria projeo dos benefcios esperados, e submeteu-se a todas asregras e condies necessrias. Mais certeza do que isso seria exignciairracional, o que, por si s, causaria uma incerteza.

    A deciso contrria jurisprudncia anteriorNo que diz respeito jurisprudncia envolvida, Hatchcock pode

    ter induzido expectativas que levaram a um horizonte de mudana na_____________41 Kelo and Counting, Planning, American Planning Association, v. 72 n. 6 Jun. 2006, p. 27-28.42 Idem, p. 28.43 Alm disso, o GAO no est sujeito ao FOIA Act (Freedom of Information Act), como os

    demais Ministrios e Agncias do governo.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 200636

    jurisprudncia da Suprema Corte, relativamente desapropriao (physicaltakings) e ao conceito de uso ou interesse pblico (public use requirement).Muitos aguardavam, em Kelo, uma deciso por testes (tests-like decision),tal como ocorreu em Hatchcock. A frustao que se sucedeu provocouuma comoo sem precedentes na histria recente de decises daSuprema Corte em casos de Direito Administrativo.

    7. CONCLUSO

    Kelo no alterou dcadas de precedentes da Suprema Corte, masconsolidou o entendimento da Corte a respeito do conceito de interessepblico, motivo pelo qual definitivamente merece a discusso quepromoveu. A deciso tambm um marco para o planejamento urbano:o voto do Relator menciona a palavra plan (plano, projeto), ou termosequivalentes mais de quarenta vezes. O voto enfatiza ainda o quanto aexcelncia no planejamento fundamental para o uso constitucional doinstituto de desapropriao (eminent domain).44

    Outra conseqncia importante da deciso refere-se ao papel deplanejadores urbanos e funcionrios pblicos em decises pertinentesao desenvolvimento e ao planejamento da cidade. Um projeto bem feitoe tendo como fim o interesse pblico (em seu sentido lato) capaz dejustificar os diferentes meios empregados pelo governo na aquisio deterras.

    Por fim, preciso lembrar que a revitalizao de reaseconomicamente destrudas por meio de projetos de redesenvolvimentoeconmico e aquisio de propriedades prtica comum fora dosEstados Unidos. Projetos de redesenvolvimento urbano por meio dedesapropriaes foram executados com sucesso em Berlin, Wittenberg,Ruhr, Nuremberg e Munique (Alemanha); em Utrecht (Holanda) e emViena (ustria), dentre outras cidades.45

    No Brasil, o caso Kelo pode ser aplicado a uma srie de aes eprojetos de governo. O conceito de interesse pblico, na hiptese do_____________44 DOWLI NG, Timothy, et al. The Good News About Takings. Chicago: American Planning

    Association, 2006, p. 44.45 KUSHNER, James. Comparative Urban Planning Law: An Introduction to Urban Land Development

    Law in the United States through the Lens of Comparing the Experience of Other Nations. Durham,North Carolina: Carolina Academic Press, p. 425-446.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 2006 37

    planejamento urbano e relativamente ao desenvolvimento econmico,traduz-se num propsito de revitalizao, de acordo com criteriosoplanejamento dos setores governamentais envolvidos, desde que asaudincias pblicas previstas sejam amplamente divulgadas e haja, defato, participao da sociedade. Essa participao, contudo, noconduzir, necessariamente, concluso do Poder Pblico, mas deverser considerada no processo decisrio. As sugestes oferecidas, acatadasou no, devero merecer, nas decises adotadas, justificativas claras eprecisas. Por fim, o caso merece ainda estreita observao, sobretudono que diz respeito s informaes e concluses que vierem a serapresentadas no relatrio do GAO.

    ANEXO 1

    Sede mundial de Pesquisa e Desenvolvimento da Pfizer, Inc.,inaugurada em New London em junho de 2001. A Pfizer gastou $7,7milhes em pesquisa em 2004. A empresa identifica a comunidadecomo um dos seus nove valores centrais. O Centro de Pesquisa trouxe aNew London 1.600 novos empregos e contabilizou em 2004 $2.3 milhesem receita de tributos. A base do imposto sobre propriedade territorialurbana atualmente de 60% do valor dos imveis, de acordo com oprojeto de desenvolvimento, e passar a 100% a partir de 2010.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 17-38, 200638

    ANEXO 2

    Mapa do Projeto de Desenvolvimento Econmico de FortTrumbull, New London, Connecticut

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 2006 39

    A INELEGIBILIDADE DE AGENTES PBLICOS,DA TICA DO CONTROLE EXTERNO:

    UM DEBATE CRTICO SOBRE A PARTICIPAODOS TRIBUNAIS DE CONTAS

    Cludia Fernanda de Oliveira PereiraProcuradora do Ministrio Pblico de Contas do DF

    1. INTRODUO

    Muito se tem falado sobre a necessidade de combater a corrupo,mal esse que assola todo o mundo. Segundo Pieth, a corrupo mesmouniversal.1

    Mas que exatamente quer dizer corrupo?Marcos Fernandes Gonalves da Silva, em seu livro A Economia

    Poltica da Corrupo no Brasil, recorda que a palavra corrupo tem origemlatina (corruptione), que denota no s putrefao, como tambmdesmoralizao, seduo e suborno. Segundo o autor, existe uma miradede definies e classificaes, adotando aquela segundo a qual acorrupo pode ser dividida em transativa (envolve transferncias derenda a serem repartidas entre as partes envolvidas), extorsiva (associadaao pagamento de propina para evitar algum tipo de prejuzo maior aopagador), defensiva (envolve o pagamento de propina via coero),preventiva (o pagamento ou a entrega de presente visando algum favorno futuro), nepotista (refere-se indicao de parentes e amigos),autogerativa (envolve um ato para beneficiar o prprio agente pblico)e de apoio (praticada para encobrir a corrupo j existente).2_____________1 PIETH, Mark. Cooperao Internacional de combate corrupo. In A corrupo e a economia

    p. 199. Em semelhante sentido, Kimberly Elliott afirma: o comportamento corrupto permaneceubquo. Ele ocorre tanto em democracias quanto em ditaduras militares, em todos os nveis dedesenvolvimento e tambm em todos os tipos de sistemas econmicos, de economias de capitalismoaberto, como a dos Estados Unidos, por exemplo, at economias de planejamento central,como a da ex-Unio Sovitica. ELLIOTT, Kimberly Ann (org.), introduo, op. cit. p. 17.

    2 SILVA, op. cit., pp. 22 e 24, nota de rodap n 9.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 200640

    Em sentido semelhante, segundo Jos Eduardo Cardozo, a palavratem muitas acepes e significados; trs pelo menos:

    O primeiro, de natureza estritamente jurdica ou legal, associa acorrupo ao desvio de um agente pblico dos deveres decorrentes doexerccio da funo pblica por buscar vantagens indevidas para si ou paraterceiro. No segundo, de perfil econmico, a corrupo passa a designar autilizao da funo pblica como forma de maximizao da renda pessoaldaquele que a exerce. E, finalmente, o terceiro, talvez mais calcado noplano da tica das relaes entre o Estado e as pessoas privadas, busca dar palavra corrupo o sentido de qualquer violao do interesse comumou coletivo, em funo da preocupao com ganhos particulares.3

    Mas do mesmo autor que se pode extrair um conceito repleto desimbolismo e bastante real:

    A corrupo uma doena perigosa. Um pequeno foco, um corpoindefeso, cresce pouco a pouco, se agiganta. Vai tomando conta de tudopor onde passa. Transforma, da noite para o dia, clulas sadias em tumormaligno. Seu combate exige terapias violentas, radicais. Um tratamentodado em intensidade menor do que a necessria, alm de no exterminaro mal, torna mais difcil seu combate futuro. As clulas cancerosas ficammais resistentes e a cura cada vez mais remota. Quando a corrupo tomaconta de um setor da administrao pblica, o membro atingido tem queser prontamente amputado. Uma amputao parcial no resolve. Qualquerponto deixado a salvo voltar a se multiplicar, ainda com mais fora. At,por metstase, tomar conta de tudo. Na luta contra essa doena no hmeio-termo. Ou ela morre, ou mata.4

    Para alm da busca de uma definio, estudos os mais variadospretendem conhecer as causas e efeitos desse mal, para, ento, combat-lo.

    Segundo Cardozo, o Brasil perde algo em torno de 100 bilhespor ano com a corrupo, nas trs esferas de governo: isso equivale adez vezes o oramento inteiro da cidade de So Paulo, a maior cidadebrasileira e da Amrica Latina.5

    _____________3 CARDOZO, op. cit. pp. 16-17.4 CARDOZO, op. cit. p. 112.5 O impacto da corrupo no emboprecimento do pas. Disponvel em http://

    www.golrh.com.br. Acesso em 1/set/2003.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 2006 41

    Fica fcil perceber, portanto, que somente com a ajuda de todosser possvel triunfar. preciso de fato combater, com fora, energia eveemncia. Em duas palavras: fraternidade e solidariedade entre os entespblicos e a sociedade.

    Seguramente, no se ter uma nao forte sem que fortes sejamas suas instituies, e, para que as instituies sejam fortes, necessitamunir-se nessa misso, j que todo esse estado de impunidade e corrupo,grassando solto, ameaa o prprio Estado Democrtico de Direito. Almdisso, o poderes constitudos juntos passam a ser, num contexto comoesse, apenas instrumentos legitimadores, diante da pouca ou nenhumaeficcia de suas aes. De fato, a corrupo solapa a legitimidade dasinstituies pblicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e ajustia, bem como o desenvolvimento integral dos povos.6

    Hoje, a Administrao Pblica vive uma verdadeira revoluo,em que as relaes so lateralizadas, o que evidencia a tendncia pluralizao das instituies participativas. Essas profundastransformaes da sociedade passam a demandar, tambm,transformaes do Estado. A Administrao passa a ser vista como umservio, prestado ao pblico, que necessita da cooperao e colaboraode todos, tornando-se eficiente e mais legtima.

    Diogo de Figueiredo Moreira Neto quem resume esse fenmenoem seu livro Mutaes de Direito Administrativo. A seu ver, deve-sesempre optar pela consensualidade que se justifica pelas seguintes razes:pelo potencial criativo e operativo dos prprios entes da constelaoestatal (cooperao); pelo potencial criativo e operativo dos prpriosentes da constelao social (colaborao); pela reduo dos custos parao Estado e sociedade (economicidade); pela simplificao da mquinagestora do Estado (agilidade); pelo reforo da mquina reguladora doEstado (publicizao) e pela racionalizao da atribuio decompetncias entre as entidades e rgos dos Estados (subsidiariedade).7

    Nesse contexto, de suma relevncia a participao dos Tribunaisde Contas, notadamente no campo da inelegibilidade dos agentespblicos. Esse um exemplo marcante de como instituies juntaspodem atuar tempestivamente no controle dos atos da administrao_____________6 Prembulo da Conveno Interamericana no Combate Corrupo.7 MOREIRA NETO, Diogo Figueiredo. Mutaes de direito administrativo. p. 28.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 200642

    pblica, prevenindo ou, s vezes, ao menos remediando, a atuao deagentes pblicos mprobos e corruptos.

    Esse artigo visa a relatar, assim, a experincia que o MinistrioPblico, que atua junto ao TCDF, iniciou, h muitos anos, quase umadcada, at evoluir para o oferecimento de uma representao do parquetno ano de 1998, finalmente analisada no exerccio de 2001. Visa, ainda,a debater, criticamente, os efeitos da atual prtica ento encetada nocampo da inelegibilidade dos agentes pblicos e a real colaboraoprestada pelas Cortes de Contas.

    2. O CONTROLE EXTERNO

    Como sabido, os Tribunais de Contas so uma instituio secular,prevista, por iniciativa de Rui Barbosa, por meio do Decreto no. 966-A/90, e, mais tarde, inserida na primeira Constituio Republicana de1891. De l para c, as Cortes de Contas sofreram algunsaperfeioamentos, at redundar, no seu apogeu, com a Carta atual de1988, por meio da qual o Tribunal de Contas vem previsto na Seo IX,artigos 70 a 75, atinente Fiscalizao Contbil, Financeira eOramentria, exercendo, ao lado do Congresso Nacional, o controleexterno, um controle de natureza tcnico-poltica.

    Registre-se que, na bem lanada pgina de Jos Afonso da Silva, aatuao do Legislativo pode ser considerada um controle de naturezapoltica, mas, mesmo assim, sujeito prvia apreciao tcnico-administrativa do Tribunal de Contas competente, que, assim, seapresenta como rgo tcnico, e suas decises so administrativas, nojurisdicionais.8 O mestre no se deixa impressionar, nesse aspecto, pelaexpresso julgar contas, disposta no artigo 71, II da Constituio Federal,como de competncia dos referidos Tribunais: A mesma expresso tambm empregada no art. 49, IX, em que se d ao Congresso nacionalcompetncia para julgar anualmente as contas prestadas pelo presidenteda Repblica e nem por isso se dir que ele exerce funo judicante.

    Certo, tambm, que o Tribunal de Contas, por seu um rgo decontrole, no est subordinado ao Poder Legislativo. Nem tampoucocompe o Poder Judicirio. rgo sui generis que realiza o chamado_____________8 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. p. 635.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 2006 43

    controle externo, j que o controle interno de natureza administrativa,exercido dentro da prpria estrutura interna de cada poder, de formaintegrada, com a justa finalidade de apoiar o controle externo.9

    Tramitam, contudo, vrias propostas de Emenda ConstituioFederal, tendentes a extinguir os Tribunais de Contas, sob inmerosargumentos, dentre eles, a completa ineficincia destas Cortes, quegastariam bem mais do que os supostos benefcios que trariam para opas, alm de fatos outros lamentveis, envolvendo a prtica de corrupode vrios de seus prprios membros, o que a mdia tem veiculado. Tudoisso gerou tambm a criao de uma CPI sobre os Tribunais de Contasno Congresso Nacional.

    Para alm dessas crticas, outras giram em torno da ineficcia dasdecises dos Tribunais de Contas, visto que no se conseguem atingircom seus provimentos os efeitos almejados.10

    Sobre os Tribunais de Contas, citem-se Trevisan e outros:Como, na maioria das vezes, os aspectos formais so observados

    cuidadosamente pelos fraudadores, o Tribunal, ao aprovar as contas doMunicpio, passa atestado de idoneidade a um grande nmero de corruptose exime publicamente de culpa quem desvia dinheiro pblico no pas. Naforma como atua hoje, os TCs no contribuem significativamente para ofim da corrupo.11

    _____________9 Percebe-se aqui que no se est a falar do to em voga e controvertido controle externo da

    Magistratura e do Ministrio Pblico, os quais so objeto da EC n 45, que criou os ConselhosNacionais do MP e de Justia. Lamentavelmente, os Tribunais de Contas no esto submetidos jurisdio deste, conforme entendimento do prprio Conselho Nacional de Justia (Pedidode Providncias n 248/06). Visando corrigir tal distoro, est em trmite no CongressoNacional o PL n 6151/05.

    10 De minha parte, tiver oportunidade de afirmar: De qualquer sorte, as crticas devemcontribuir para aperfeioar o sistema de controle e cobrar efetivamente a boa e escorreitaatuao dessas Cortes de Contas, sem, contudo, extingui-las. O Direito Comparado (...)fornece prticas para aperfeioar o controle, que no encontram eco na nossa legislao. Soalgumas delas: a participao dos membros do staff ou servidores no prprio Conselho,reduzindo critrios de indicao meramente poltica; a recorribilidade das decises doTribunal, para rgo diverso; a legitimidade do Ministrio Pblico Especial quanto s aesde responsabilidade, como no Tribunal de Contas da Itlia; e o fortalecimento das Cortes deContas com a delimitao das matrias sobre as quais exerceria jurisdio nica. De qualquerforma, preciso que as decises dos Tribunais de Contas sejam respeitadas, eliminado ocontrole meramente formal e burocrtico, para dar lugar a um controle moderno e eficaz, comtotal independncia. PEREIRA, Cludia Fernanda de Oliveira. Reforma Administrativa: oEstado, o servio pblico e o servidor. p. 80).

    11 TREVISAN, Antoninho Marmo et alli. O combate corrupo nas prefeituras do Brasil. p. 23.

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    Um aspecto de particular relevncia neste debate a discusso dainelegibilidade dos agentes pblicos, matria que ser tratada a seguir.

    3. OS EFEITOS DAS DECISES DOS TRIBUNAIS DE CONTAS NO CAMPO DAINELEGIBILIDADE

    a Lei Complementar n 64/90, no artigo 1, I, alnea g12, quedispe sobre a inelegibilidade daqueles que tiverem suas contas relativasao exerccio de cargos ou funes pblicas rejeitadas por irregularidadeinsanvel e por deciso irrecorrvel do rgo competente, salvo se aquesto houver sido ou estiver sendo submetida apreciao do PoderJudicirio, para as eleies que se realizarem nos cinco anos seguintes,contados a partir da data da deciso.

    A esse respeito, leciona Joel Cndido:A deciso irrecorrvel a que se refere o legislador a do rgo

    administrativo que, no caso, so os Tribunais de Contas da Unio, dosEstados ou Tribunais de Contas ou Conselhos de Contas do Municpio,onde houver.13

    Mas a lei em questo no esclarece, com clareza, a que vcioinsanvel se refere, j que o julgamento pelas Cortes de Contas podeabranger contas regulares com ressalvas, que no causem dano ao Errio,mas que podem conter falhas. A princpio, este tipo de julgamento noconduziria inelegibilidade, porque a deciso no foi pela irregularidade.

    Haveria que se questionar ademais a subjetividade do termoirregularidades insanveis, encontrado na citada Lei Complementar, poisencerra a possibilidade, muitas vezes comum, de o administradorressarcir o dano pelo qual considerado responsvel, a fim de dar porencerrado o processo de apurao, no havendo julgamento de mrito._____________12 Art. 1 So inelegveis:

    I - para qualquer cargo: (...)g) os que tiverem suas contas relativas ao exerccio de cargos ou funes pblicas rejeitadaspor irregularidade insanvel e por deciso irrecorrvel do rgo competente, salvo se aquesto houver sido ou estiver sendo submetida apreciao do Poder Judicirio,para as eleies que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data dadeciso; (no consta o grifo no original).

    13 CNDIDO, Joel. Direito eleitoral brasileiro, p. 126.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 2006 45

    Para o TCU hiptese que confere ressalvas nas contas:O simples ressarcimento do dbito apenas repara leso material

    causada ao Errio, bastando, por si s, para fundamentar o julgamentopela regularidade com ressalvas, se no for acompanhado da indispensvelprestao de contas ou de razes que justifiquem, de forma aceitvel, aomisso ou a ocorrncia anteriormente impugnada (Acrdo n 63/94).

    Joel Cndido parece discordar:A questo no pacfica na jurisprudncia. Essa irregularidade

    insanvel deve se erigir em improbidade administrativa, e no secircunscrever s a erro de aspecto formal (...)

    (...) Deve-se esclarecer que eventual ressarcimento, de parte doinvestigado, aos cofres pblicos, no impedir sua inelegibilidade. Oressarcimento tem natureza retributiva; a inelegibilidade tem naturezamoral.14

    Por outro lado, as decises proferidas pelas Cortes de Contastambm admitem recursos, que podem variar muito, at o esgotamentofatal. Isso ocorre se os recursos no forem interpostos ou, acasooferecidos, j tenham sido todos examinados. Nessa hiptese, a decisotorna-se irrecorrvel, podendo dar-se a sua reviso em casosextremamente limitados. No TCU e no TCDF a hiptese de recursode reviso, que pode ser interposto at 5 (cinco) anos aps o julgamento.

    Da mesma forma que sucede no processo civil ordinrio, o recursode reviso assemelha-se ao rescisria, e no se trata, portanto, deum tipo de recurso, mas, sim, de uma nova relao jurdico-processual.De conseguinte, em nenhuma hiptese, poder-se- aguardar o transcursodaquele prazo (repita-se, de 5 anos, normalmente), para, ento, s apartir da, ser considerado irrecorrvel a deciso, para os efeitos da LeiComplementar n 64/90.15

    Alm desses questionamentos, outros devem citados, como osque serviram de base para que os Tribunais de Contas de todo o pas,reunidos em 2003 na Paraba, elaborassem a Carta de Joo Pessoa, assim:_____________14 Idem, Ibidem.15 A jurisprudncia do TSE coincide com o ora defendido, como por exemplo a Rec. 12.007-PA,

    Ministro Pdua Ribeiro: Creio que no se pode considerar reviso como sendo recurso paratornar o julgado do Tribunal de Contas no definitivo, por pendente de uma nova deciso.

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 200646

    A primeira medida a enfocar seria a revogao da disposio legal(artigo 1, letra g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990) quedeclara inelegveis os administradores que tenham suas contas rejeitadas,na parte que lhes possibilita obter o registro de suas candidaturas, desdeque comprovem que esto contestando, judicialmente, a legitimidade dareprovao de suas contas. O que se exige no a demonstrao de que ascontas estejam corretas. Basta, simplesmente, o oferecimento, em juzo,de razes, mesmo desprovidas de fundamento. Em outras palavras, aexigncia que se faz meramente cartorial, satisfeita com uma breve certido,passada por escrivo competente, dizendo estar em trmite ao refutatriada viabilidade da deciso impugnada. Com isso, escancaram-se as portas corrupo, malversao, ao locupletamento. A revogao do dispositivolegal apontado exigncia da sociedade.

    3.1 A EXPERINCIA DO TCDF

    O MP de Contas do DF h algum tempo se ressentia de umaanlise mais acurada nesse campo.

    Por meio das Representaes ns 16, 17, 18, 19 e 20, todas elasde 1993, o parquet visou a debater, no TCDF, denncias envolvendo aatuao de uma Associao sem fins lucrativos e rgos do GDF.Verificou-se, segundo Relatrios produzidos pelo MPDFT, a utilizaode suprimento de fundos de forma indevida; a utilizao de notas fiscaisfrias; desvio de recursos, etc.

    Naquela ocasio, a Representao n 16 (Processo n 6.475/93),as de n 17, 18 e 19 (Processo n 6.476/93) e a de n 20 (6.479/93)foram arquivadas, em virtude da existncia dos Autos n 5.603/92. OMinistrio Pblico de Contas do DF recorreu, sem xito.

    Digno de registro que os Autos n 5.603/92 foram igualmentearquivados.

    Correlatamente, os Autos n 7.344/93, que deveriam cuidar daTomada de Contas Especial (TCE) instaurada para apurar todas essasirrregularidades, seguiu a sorte de todos os anteriores, vez que aAssociao-beneficiria resolveu ressarcir os cofres pblicos. Nadaobstante, o Corpo Tcnico e o MP tentaram, em vo, demonstrar queapesar de a Associao haver reparado o prejuzo causado aos cofres

  • R. Tribunal de Contas do Distrito Federal, 32, t.1 : 39-68, 2006 47

    pblicos, no poderiam ser consideradas corretas e bem prestadas ascontas apresentadas pela entidade filantrpica em questo, pelo fato deque os documentos comprobatrios de despesas continhamimpropriedades, inclusive alteraes fraudulentas, e at grosseiras,configurando ilcito penal.

    Vale a pena transcrever parte do parecer ministerial:

    Lamentvel, ao ver do Ministrio Pblico, a atitude de imoralidadeque os autos espelham. Pior ainda, quando se v que ditos acontecimentosdatam de 1991, e que o Processo n 5.603 do ano de 1992 e que s agoraem 1994, chegou-se concluso de que as acusaes levadas a efeito pelaPromotoria so pertinentes. Paira sobre a Associao terrvel pecha sobrea lisura de seus atos, estando presidida poca por Parlam