Ranciere, Jacques. as Distancias Do Cinema - Prologo

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J CQUES R NCIERE s dist nci s do cinem

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  • JACQUES RANCIERE

    As distancias do cinema

  • MUSEU OE ARTi 00 A lO

    lnlcla~va 1 PREFEITURA DORIO DE JANEIRO Realiza~o 1 FUNDAI;A.O ROBERTO MARINHO Patrocinadores 1 ORGANIZA~OES GLOBO 1 VALE

    colec;ao arte fssi 1

    JACOUES RANCIERE

    As distancias do cinema

    TRADUc;Ao

    Estela dos Santos Abreu

    (ODTRAPODTO

  • La Fabrique ditions, 2003 Ttulo original : Les carts du cinma Direitos adquiridos para o Brasil por Contraponto Editora Ltda.

    Vedada, nos termos da lei, a reproduc;:ao total ou parcial deste livro, por quaisquer meios, sem a aprovac;:iio da Editora.

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    Coodernac;:ao editorial e preparac;:ao de originais: Csar Benjamn Revisiio de traduc;:iio: Anton io Monteiro Guimariies Revisiio tcnica: Tadeu Capistrano Revisao tipogrfica: Tereza da Rocha !'rojeto grfico: Aline Paiva e Andria Resende Capa: Clarice Pamplona

    Colec;:iio dirigida por Tadeu Capistrano EsCOLA DE BELAS ARTES/ UNIYERSIDAD E FEDERAL DO R10 OE JANEIRO

    1" edic;:iio: outubro de 2012 Tiragem: 2.000 exemplares

    CJJ>.JIRASIL. CATALOGA

  • Sumrio

    l. Depois da literatura 2 7 A vertigem cinematogrfica: Hitchcock-Vertov e retorno 29 Mouchette e os paradoxos da lngua das imagens 53

    11. As fronteiras da arte 83 Ars gratia artis: a potica de Minnelli 85 O corpo do filsofo: os fi lmes filosficos de Rossellini 101

    ll. Polticas dos filmes 119 Conversa em torno da fogueira: Straub e alguns outros 121 Poltica de Pedro Costa 14 7

    Origem dos textos 165

  • Prlogo

    E um da ganhei um premio. Coisa que nao me aconteca havia muito tempo: desde que era menino e acabei a escoJa. Alm disso, foi na ltlia que recebi esse premio pelo livro La Fable cinmatographique. Tal associar;ao revelou-me algo sobre a minha relar;ao como cinema. De diversas ma-neiras, aqueJe pas influenciara o meu aprendizado da sti-ma arte. Tinha havido, claro, Rossellini e aqueJa noite do inverno de 1964 em que Europa 51 me deixara tao abalado, sobretudo pela resistencia que provocava em mim aqueJa trajetria da burguesa at a santidade atravs da classe operria. Havia tambm livros e revistas que um amigo, apaixonado pela Itlia, costumava me enviar de Roma na-queJa poca e com os quais eu procurava aprender a teora do cinema, o marxismo e a lngua italiana. E havia ainda aqueJe inslito reservado nos fundos de um bar em Npoles onde, projetadas no que pareca urna espcie de lenr;ol mal esticado, as imagens de James Cagney e John Derek fala-vam italiano em versao dublada do filme em preto e branco A sombra do patbulo (Run for cover, para os puristas), de N icholas Ray.

    Se tais lembraw;as me vieram quando recebi o premio inesperado, isso nao se deu por meras raz6es de circunstan-cia. E se hoje eu as evoco nao por sentimentalismo nostl-gico. porque delineiam com bastante clareza a singulari-dade da minha aproximar;ao com o cinema. o cinema nao um objeto sobre o qual me debrucei como filsofo ou

    As distancias do clnemn Y

  • como crtico. Minha relar;ao com ele um jogo de encon-tros e distanciamentos que essas tres recordar;oes permitem de algum modo recompor; resumem tres modalidades de distancias a partir das quais tentei faJar de cinema: entre cinema e arte, cinema e poltica, cinema e teora.

    A primeira distancia, simbolizada por aque Ja sala im-provisada onde era exibido o filme do Nicholas Ray, a da cinefilia. A cinefilia urna relar;ao com o cinema, ques-tao de paixao muito antes de ser questao de teora. Sabe--se que a paixao nao tem discernimento. A cinefilia era urna mistura dos discernimentos aceitos. Primeiro, misce-lanea dos lugares: urna peculiar diagonal trar;ada entre as cinematecas, nas quais se conservava a memria de urna arte, e os cinemas dos bairros afastados onde era exibido um ou outro filme americano mal considerado, mas no qua! os cinfilos descobriam seu tesouro na desabalada cavalgada de um western, na tensao do assalto a um ban-co ou no sorriso de urna crianr;a . A cinefilia ligava o culto da arte com a democracia dos entretenimemos e das emo-r;oes, rejeitando os critrios segundo os quais o cinema se fazia aceito pelas distinr;oes da alta cultura. Afirmava que a grandeza do cinema nao estava na elevar;ao metafsica de seus temas ou na visibilidade de seus efeitos plsticos, mas em uma imperceptvel diferenr;a na maneira de colo-car histrias e emor;oes tradicionais em imagens. Essa di-ferenr;a a cinefilia chamava de mise-en-scene sem saber muito bem o que isso quera dizer. Nao saber o que se ama e por que se ama , como costumam dizer, prprio da pai-xao. tambm o caminho de certa sabedoria. A cinefilia s consegua dar conta de seus amores com apoio em urna fenomenologa bastante rudimentar da mise-en-scene como instaura

  • belecem com as intrigas armadas por seu falso amigo Jere-my Fax? Que rela;ao podem ter com a !uta travada pelo novo mundo operrio contra o mundo da explora;ao a busca obsessiva de justi;a para seu irmao assassino em que se empenha o heri de Winchestet 73 ou as maos unidas do fora da lei Wes Mac Queen e da selvagem Colorado quan-do se veem cercados no alto de um rochedo pelas for;as da ordem em Golpe de misericrdia (Colorado Territory)?

    Para reconhecer algum vnculo entre essas coisas, seria preciso postular urna misteriosa adequa;ao entre o mate-rialismo histrico, que clava fundamento a !uta operria, e o materialismo da rela;ao cinematogrfica dos carpos com seu espa;o. Justamente nesse aspecto Europa 51 revelou-se tao perturbador. O trajera de Irene, do seu apartamento hurgues at os prdios de apartamentos do subrbio oper-rio e at a fbrica, pareca de incio reunir exatamente os dais materialismos. O comportamento fsico da herona, aventurando-se pouco a pouco por espa;os desconhecidos, fazia o andamento do enredo e a a;ao da camera coincidi-rem com a descoberta do mundo do trabalho e da opres-sao. Infel izmente bastavam para quebrar a bela linha reta materialista a simples subida de urna escada que levava Ire-ne at urna igreja e a descida que a levava at urna prostitu-ta tuberculosa - as boas obras da caridade e o itinerrio espiritual da santidade.

    Seria o caso de dizer que o materialismo da mise-en--sdme tinha sido desviado pela ideologa pessoal do dire-tor. Era essa urna nova versao do velho argumento marxis-ta enaltecendo Balzac, que, embora reacionrio, havia mostrado a realidade do mundo social capitalista. Mas as imprecisoes da esttica marxista vinham acrescentar-se as da esttica da cinefilia, dando a entender que os nicos materialistas de verdade sao aqueles que o sao sem querer.

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    Esse paradoxo pareca confirmar, na poca, minha visao desconsolada de A Linha geral: aquelas torrentes de leite e a multidao de porquinhos mamando em urna parca em estado de extase me haviam provocado certa nusea, ao passo que arrancavam gargalhadas de um pblico cuja maioria devia, como eu, simpatizar com o comunismo e acreditar nos mritos da agricultura coletivizada. costu-me dizer que os fil mes militantes s convencem quem j est convencido. Mas o que dizer quando o suprassumo do filme comunista tem efeito negativo sobre os j con-vencidos? O afastamento entre cinefi lia e comunismo nao pa reca reduzir-se apenas aos casos em que os princpios estticos e as rela;oes sociais eram bem distantes de ns, como na sequencia final de A nova saga do cla Taira (Shin Heike Monogatari) de Mizogushi, em que o filho revolta-do, quando passa com os companheiros de armas e ve l embaixo, na pradaria, a sua frvola mae divertindo-se na companhia de gente da classe privilegiada, pronuncia a frase final: "Divirtam-se, rica;os! O amanha nos perten-ce." provvel que a sedu;ao dessa cena estivesse em nos fazer sa borear tanto os encantos visuais do Velho Mundo condenado quanto as virtudes ribombantes da palavra que anunciava o novo.

    Como reduzir a distancia, como pensar a adequa;ao en-tre o prazer que se tem com sombras projetadas numa tela, a inteligencia de urna arte e a de urna visao do mundo? o que se acreditava, na poca, poder se indaga r a urna teora do cinema. Mas nenhuma combina;ao entre os clssicos da teora marxista e os clssicos do pensamento sobre o cine-ma me permitiu decidir sobre o carter idealista ou mate-rialista, progressista ou reacionrio, de urna subida ou urna descida de escada. E nenhuma combina;ao desse tipo pode-ra jamais facultar a determina;ao de critrios que distin-

    As distancias do cinema 1.1

  • guissem, no cinema, o que era arte e o que nao era, ou concluir se urna dada mensagem poltica est sugerida por certa disposi~ao dos carpos em um plano ou em urna se-quencia de dais planos.

    Talvez fosse o caso de inverter a perspectiva e indagar sobre aquela unidade entre arte, forma de emoc,:ao e visao coerente do mundo que se busca com urna assim chamada "teora do cinema". Caberia indagar se o cinema nao exis-te justamente so b a forma de um sistema de afastamentos irredutveis entre coisas que levam o mesmo nome sem se-rem membros de um mesmo corpo. Na verdade, o cinema urna multidiio de coisas. o lugar material onde vamos nos divertir com o espetculo de sombras, na expectativa de que essas sombras nos tragam urna emoc,:ao mais secreta do que aquela expressada pela condescendente palavra "diversao". tambm o que se acumula e se sedimenta em ns dessas presenc,:as a medida que sua realidade se desfaz e se altera: aq uele outro cinema que recomposto por nos-sas lembranc,:as e com nossas palavras at diferir muitssi-mo do que a projec,:ao apresentou . O cinema tambm um aparelho ideolgico produtor de imagens que circulam na sociedade e nas quais esta reconhece o presente de seus ti-pos, o passado de sua lenda ou os futuros que imagina para si. ainda o conceito de urna arte, isto , de urna li-nha divisria problemtica que distingue, dentre as produ-

    ~6es do savoir-faire de urna indstria, aquetas que mere-cem ser consideradas habitantes do grande reino artstico. Mas o cinema tambm urna utopa: aqueta escrita do movimento que foi celebrada na dcada de 1920 como a grande sinfona universa l, a manifesta~ao exemplar de urna energa que anima ao mesmo tempo a arte, o trabalho e a coletividade. O cinema pode, enfim, ser um conceito filosfico, urna teoria do prprio movimento das coisas e

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    do pensamento, como em Gilles Deleuze, cujos dais livros falam, em cada pgina, dos filmes e de seus procedimentos sem por isso tornar-se urna teoria ou urna filosofa do cine-ma, mas antes urna metafsica.

    Essa multiplicidade, que recusa qualquer teora unit-ria, suscita reac,:oes diversas. Alguns querem separar o joio do trigo: o que tem a ver com a arte cinematogrfica e o que tem a ver com indstria do entretenimento ou com propaganda. Outros preferem distinguir o filme como tal, o conjunto dos fotogramas, planos e movimentos de came-ra que sao estudados di ante do monitor, das lembranc,:as deformantes e palavras que se acrescentam. Talvez esse ri-gor traduza urna visao estreita. Limitar-se a arte esquecer que a prpria arte s existe como fronteira instvel que precisa, para existir, ser constantemente atravessada. O ci-nema pertence ao regime esttico da arte no qua! j nao vigoram os antigos critrios da representac,:ao que discrimi-nam as belas-artes e as artes mecanicas, colocando cada qua! no seu devido lugar. Pertence a um regime da arte em que a pureza das formas novas foi muitas vezes buscar seus modelos na pantomima, no circo ou no grafismo comer-cial. Limitar-se aos planos e procedimentos que comp6em um filme esquecer que o cinema arte contanto que seja um mundo, que aqueJes planos e efeitos que se esvaem no instante da projec,:iio precisam ser prolongados, transfor-mados pela lembranc,:a e pela palavra que tornam o cinema um mundo compartilhado bem alm da realidade material de suas projec,:oes.

    Para mim, escrever sobre o cinema assumir ao mesmo tempo duas posic,:6es aparentemente contrrias. A primeira que nao h nenhum conceito que rena todos esses cine-mas, nenhuma teora que unifique todos os problemas que eles suscitam. Entre o ttulo Cinma que designa os dois

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  • volumes de Gilles Deleuze e a grande sala com poltronas vermelhas de antigamente, onde eram exibidos, em sequen-ca, o jornal da tela, o documentrio e o filme, entremeados pelos picols do intervalo, o que h urna mera rela~ao de homonmia. J a outra posi~ao diz, ao inverso, que toda homonmia instaura um espa~o comum de pensamento, que o pensamento do cinema o que circula nesse espa~o, pensa de dentro esses afastamentos e se esfor~a para determinar este ou aquele vnculo entre dois cinemas ou dois "proble-mas do cinema". Esta bem pode ser justificada como urna posi~ao de amador. Nunca dei aula de cinema, de teora ou de esttica do cinema. Encontrei-me com o cinema em v-rios momentos de minha vida: no entusiasmo cinflo da dcada de 1960, nas inquieta~oes da dcada de 1970 quan-to as rela~oes entre cinema e histria, ou no questionamento que se fez na dcada de 1990 dos paradigmas estticos que haviam servido para pensar a stima arte. Mas a posi~ao de amador nao a do ecltico que opoe a riqueza da colorida diversidade emprica aos rigores cinzentos da teora. O ama-dorismo tambm urna posi~ao terica e poltica, a que re-cusa a autoridade dos especialistas, sempre a reexaminar o modo como as fronteiras entre suas reas se tra~am na en-cruzilhada das experiencias e dos saberes. A poltica do amador afirma que o cinema pertence a todos aqueJes que, de urna ou de outra maneira, viajaram dentro do sistema de desvos que esse nome instaura, e que cada um se pode per-mitir tra~ar, entre este ou aquele ponto dessa topografa, um itinerrio prprio, peculiar, o qual acrescenta ao cinema como mundo e ao seu conhecimento.

    * Edi~oes brasileiras: A imagem-movimento. Sao Paulo: Brasiliense, 1985; A imagem-tempo. Sao Paulo: Brasiliense, 1990. Ambas as tradu~oes sao de Stella Senra. [N.R.]

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    Por isso falei em outros textos de "fbula cinematogrfi-ca" e nao de teora do cinema. Com isso quis me situar em um universo sem hierarquia, onde os filmes que nossas per-cep~oes, emo~oes e palavras recompoem contam tanto quanto os que estao gravados na pelcula; em que as teoras e estticas do cinema sao consideradas como outras tantas histrias, como aventuras singulares do pensamento as quais a existencia mltipla do cinema deu vida. Durante quarenta ou cinquenta anos guardei na lembran~a- ao mes-mo tempo que descobria novas filmes ou novas discursos sobre o cinema- filmes, planos, frases mais ou menos defor-mados. Em momentos diversos, confrontei minhas lembran-

    ~as com a realidade dos filmes, ou entao rediscuti sua inter-preta~ao. Revi Amarga esperanfa (They Live by Night), de Nicholas Ray, para sentir de novo a impressao fulgurante daquele momento em que Bowie se encontra com Keechie na porta de urna garagem. E nao achei de novo esse plano porque ele nao existe no filme. Mas tentei entender a for~a singular da quebra de narrativa que eu havia concentrado nesse plano que imaginara. Revi duas vezes Europa 51: a primeira vez, para derru bar minha interpreta~ao anterior do fi lme e validar o desvo de Irene, que sai da topografa do mundo operrio que o primo, o jornalista comunista, prepa-rara para ela e passa para o outro lado, para o lado em que os espetculos do mundo social j nao se deixam aprisionar pelos esquemas de pensamento elaborados pelo poder, pela mdia ou pela ciencia social; e a segunda vez, para questio-nar a oposi~ao demasiado fcil entre os esquemas sociais da

    represenra~ao e o irrepresentvel da arte. Revi os western de Anthony Mann para compreender o que neles me havia fas-cinado: nao apenas o prazer infantil das cavalgadas pelos grandes espa~os ou o prazer adolescente de ver pervertidos os critrios j dados da arte, mas a perfei~ao de um equil-

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  • bro entre duas coisas- o rigor aristotlico do enredo que, ao longo de reconhecimentos e peripcias, d a cada um a felicidade ou a infelicidade que !he cabe, e a maneira como o corpo dos heris interpretados por James Stewart sub-traa-se, pela prpria mincia de seus gestos, ao universo tico que clava sentido aquele rigor da a~ao. Revi A linha geral e compreendi por que eu o havia rejeitado trinta anos antes: nao pelo contedo ideolgico do filme, mas por sua forma, urna cinematografa concebida como tradu~ao ime-diata do pensamento em urna linguagem prpria do visvel. Para apreci-lo, teria sido necessrio compreender que aquelas torrentes de leite e aquelas ninhadas de porquinhos nao eram de fato torrentes de leite nem porquinhos, mas ideogramas sonhados de urna nova lngua. A f em tal ln-gua, contudo, havia sucumbido j antes da f na coletiviza-

    ~ao agrcola . Por isso aqueJe filme mostrava-se, em 1960, fsicamente insuportvel, talvez porque fosse preciso esperar para perceber-lhe a beleza, vendo nele apenas a esplendida utopa de urna lngua que sobreviveu a catstrofe de um sistema social.

    A partir de tais errancias e retornos, era possvel discer-nir o ncleo central entendido pelo termo "fbula cinema-togrfica". Esse nome sugere primeiro a tensao que est na origem dos desvos do cinema, a tensao entre arte e hist-ria. O cinema nasceu na poca da grande desconfian~a em

    rela~ao as histrias, no tempo em que se pensava que urna arte nova estava nascendo e j nao contava histrias, nao descrevia o espetculo das coisas, nao apresentava os esta-dos de alma das personagens, mas inscrevia diretamente o produto do pensamento no movimento das formas. Apare-ceu entao o cinema como a arte mais indicada para realizar tal sonho. "O cinema verdade; urna histria urna menti-ra", disse Jean Epstein. Poda-se entender essa verdade de

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    diversas maneiras. Para Jean Epstein, era a escrita da luz, imprimindo na pelcula nao a imagem das coisas, mas as

    vibra~oes de urna matria sensvel trazida a imaterialidade da energa. Para Eisenstein, era urna linguagem de ideogra-mas que traduzia diretamente o pensamento em estmulos sensveis, lavrando como um tratar as consciencias soviti-cas; para Dziga Vertov, o fio estendido entre todos os gestos que construam a realidade sensvel do comunismo. A "teo-ra" do cinema foi primeiro sua utopa, a ideia de urna es-crita do movimento, adequada a urna nova era na qua! a

    reorganiza~ao racional do mundo sensvel coincidira com o prprio movimento das energas desse mundo.

    Quando foi solicitado que os artistas soviticos produ-zissem imagens positivas do novo homem, e quando os ci-neastas alemaes foram projetar suas luzes e sombras nas histrias formatadas pela indstria hollywoodiana, a pro-messa virou do avesso. O cinema, que deveria ser a nova arte da nao representa~ao, pareca tomar exatamente o rumo contrrio: restaurava o encadeamento das a~oes, os esquemas psicolgicos e os cdigos expressivos que as outras artes vinham tentando quebrar. A montagem, que fora o sonho de urna nova lngua do mundo novo, pareca, em Hollywood, estar de volta as fun~oes tradicionais da arte narrativa: a decupagem das a~oes e a intensifica~ao dos afetos que garantem a identifica~ao dos espectadores com histrias de amor e de sangue. Essa evolu~ao refor~ou diversos ceticismos: o olhar desencantado sobre urna arte decada ou, ao contrrio, a revisao irnica do sonho da nova lngua. Tambm refor~ou de vrios modos o sonho de um cinema que encontrara sua verdadeira voca~ao: e assim foi, com Bresson, a reafirmac;ao de um corte radical entre a montagem e o automatismo espirituais, prprios do cine-matgrafo, e os jogos teatrais do cinema. Ao contrrio,

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  • com Rossellini ou Andr Bazin, foi a afirma\=ao de um cine-ma que deveria ser antes de tudo urna janela aberta para o mundo: um meio de decifr-lo ou de faze-lo revelar sua verdade nas prprias aparencias.

    Julguei necessrio retomar essas periodiza\=es e oposi-\=Oes. Se o cinema nao cumpriu a promessa de urna nova arte da nao representa\=aO, talvez isso nao se deva a submis-sao a leido comrcio. A prpria vontade de identific-lo a urna lngua da sensa\=aO era contraditria. Pediam-lhe que realizasse o sonho de um sculo de literatura: substituir as histrias e personagens de outrora pelo estender-se impes-soa l dos signos escritos sobre as coisas ou a restitui\=ao das velocidades e intensidades do mundo. Mas a literatura ti-nha conseguido veicular esse sonho porque seu discurso das coisas e de suas intensidades sensveis permaneca ins-crito no duplo jogo das palavras que furtam aos olhos a riqueza sensvel que faz cintilar nas mentes. O cinema mos-tra o que mostra; s podia retomar o sonho da literatura a custa de assim fazer um pleonasmo: os porquinhos nao po-dem ser, a um s tempo, porquinhos e palavras. A arte do cinematgrafo s pode ser o desenvolvimento das for\=aS especficas de sua mquina. Existe atravs de um jogo de desvios e de impropriedades. Este livro tenta analisar a l-guns aspectos desse jogo a luz de urna trplice rela\=aO. Pri-meiro, a rela\=ao do cinema com a literatura, que !he oferece seus modelos narrativos, dos quais ele tenta se libertar. tambm sua rela\=ao com os dois polos nos quais secos-tuma pensar que a arte se perde: quando ela reduz seu a l-cance a mera fun\=ao de entretenimento; quando ela quer, ao contrrio, excede-lo para transmitir pensamentos e dar aulas de poltica.

    A rela\=ao entre cinema e literatura aqui ilustrada por dois exemplos buscados em poticas bem diversas: o cine-

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    ma narrativo clssico de Hitchcock retira de um enredo po-licial o esquema de um conj unto de opera\=oes feitas para criar e depois dissipar urna ilusao; a cinematografa moder-nista de Bresson, que parte de um texto literrio para cons-truir um fi lme no qua! se demonstre a especificidade de urna linguagem das imagens. No entanto, ambas as tentati-vas sentem de modos diversos a resistencia de seu objeto. Em duas cenas de Um corpo que cai (Vertigo), a habilidade do mestre do suspense em fazer coincidir o re lato de urna maquinar;ao intelectual coma encena\=ao de um fascnio vi-sual acaba nos surtindo o efeito que nao nada acidental, pois tcm a ver com a prpria relar;ao entre mostrar e dizer. O virtuose perde o jeito quando defronta como que cons-titu o ncleo "literrio" da obra que adapta. O romance policial de fato um objeto dplice; suposto modelo de urna lgica narrativa que dissipa as aparencias, levando dos indcios a verdade, ele tambm fisgado pelo seu oposto: a lgica de desaparecimento das causas e de entropia do sen-tido cujo vrus a grande literatura comunicou aos generos " menores". Pois a literatura nao um mero reservatrio de histrias ou um modo de cont-las; urna maneira de cons-truir o mundo onde histrias podem acontecer, fatos se li-gam, aparencias se mostram. A prova disso dada de ma-neira diferente qu ando Bresson adapta urna obra literria herdeira da grande tradi\=ao natura lista . A relar;ao entre a lngua das imagens e a lngua das palavras aparece em Mouchette com faces invertidas. A op\=ao pela fragmenta-\=aO, destinada a exclu ir o risco da "representar;ao", e o cuidado com que o cineasta timpa a tela da sobrecarga lite-rria das imagens tem o efeito paradoxal de obrigar o mo-vimento das imagens a modos de encadeamento narrativo dos quais a arte das palavras se havia libertado. E assim, o desempenho dos corpos que falam que deve tornar visvel

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  • a consistencia perdida dessa arte. Mas, para isso, deve recu-sar a oposir;:ao demasiado simples feta pelo cineasta entre o "modelo" do cinematogrfo e o ator do "teatro fi lma-do". Se verdade que Bresson simboliza os vcios do teatro com a representar;:ao que faz de Hamlet ero estilo trovado-resco, a forr;:a de elocur;:ao que d a sua Mouchette vem se-cretamente do encontro no qual cineastas herdeiros do tea-tro brechtiano, como Jean-Marie Straub e Danielle Huillet, conferem aos operrios, camponeses e pastores tomados de emprstimo aos dilogos de Pavese ou de Vittorini. Litera-tura, cinematografa e teatralidade aparecem, entao, nao como o que prprio de artes especficas, mas como figuras estticas, relar;:oes entre a forr;:a das palavras e a forr;:a do visvel, entre os encadeamentos das histrias e os movimentos dos carpos, que cruzam as fronteiras trar;:adas entre as artes.

    Com que carpo se pode transmitir a forr;:a de um texto tambm o problema de Rossellini quando ele se vale da te-levisao para trazer ao grande pblico o pensamento dos fi-lsofos. A dificuldade nao est na banalidade da imagem rebelde diante das profundidades do pensamento, como quera opiniao generalizada, mas em que tanto a densidade da imagem como a do outro pensamento nao permitem que se estabeler;:a entre eles urna simples relar;:ao de causa e efeito. Rossellini precisa, pois, dar um carpo bem peculiar aos fi lsofos para fazer sentir urna dessas densidades nas formas da outra. Mais urna vez, essa passagem entre dais regimes de sentido entra em jogo quando a arte cinemato-grfica, com Minnelli, p6e em cena- e em canr;:oes- a rela-r;:ao da arte com o entretenimento. Caberia pensar que o falso problema de saber ande urna acaba e o outro comer;:a tivesse desaparecido a partir do momento em que os cam-pe6es da modernidade artstica opuseram a arte perfeita

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    dos saltimbancos a emor;:ao obsoleta das histrias. Mas o mestre da comdia musical revela que todo o trabalho da arte- com ou sem maiscula - est em construir as transi-r;:oes de uma at o outro. O puro desempenho o limite utpico para o qual tende, sem poder nele desaparecer, a tensao entre o jogo das formas e a emor;:ao das histrias de que vive a arte das sombras cinematogrficas.

    Esse limite utpico tambm o que fez pensar que o cinema fosse capaz de suprimir os afastamentos entre arte, vida e poltica. O cinema de Dziga Vertov apresenta o exemplo completo de urna ideia do cinema como comu-nismo real, identificado com o prprio movimento da li-gar;:ao entre todos os rnovirnentos. Esse comunismo cine-matogrfico que recusa tanto a arte das histrias quanto a poltica dos estrategistas s poda desencorajar os especia-listas de urna e da outra. Mas ele permanece corno o des-vio radical que permite pensar a tensao nao resolvida en-tre cinema e poltica. Passado o tempo da f na linguagem nova da vida nova, a poltica do cinema viu-se aprisiona-da nas contradir;:oes que sao prprias as expectat ivas da arte crtica. O modo corno sao vistas as ambiguidades do cinema j marcado pela duplicidade do que se espera dele: que suscite consciencia, pela clareza de um desvela-mento, e energa, pela apresentar;:ao de urna estranheza; e que revele a uro s tempo toda a ambiguidade do mundo e corno lidar com essa arnbiguidade. Projeta -se no cinema a obscuridade da relar;:ao que se pressup6e entre a clareza da visao e as energas da ar;:ao. Se o cinema pode esclarecer a ar;:ao, ser talvez questionando a evidencia dessa rela-r;:ao. Jean-Marie Straub e Danielle Huill et fazem isso dan-do a dais pastores a tarefa de discutir as aporas da justi-r;:a. Pedro Costa, por sua vez, reinventa a realidade do itinerrio e das emincias de um pedreiro ca bo-verdiano,

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  • entre o passado do trabalho explorado e o presente do desemprego, entre as vielas coloridas da favela e os cubos brancos dos conjuntos habitacionais. Bla Tarr segue len-tamente a marcha acelerada de urna menina para a morte que resume o engodo das grandes esperan~as. Tariq Te-guia cruza, no Oeste argelino, o tra~ado meticuloso de um agrimensor com o longo percurso de migrantes a caminho das terras prometidas da prosperidade. o cinema nao apresenta um mundo que tocara a outros transformar. Ele junta do seu jeito o mutismo dos fatos e o encadeamento das a~6es, a razao do visvel e sua simples identidade con-sigo mesmo. A eficcia poltica das formas da arte deve ser construda pela poltica em seus prprios cenrios. O mes-mo cinema que diz em nome dos revoltados "O amanha nos pertence" assinala igualmente que nao pode oferecer outros aman has senao os seus prprios. o que Mizogushi mostra em outro filme, O Intendente Sansho (Sansho Dayu), no qua! se canta a histria da famlia de um gover-nador de provincia afastado do cargo por causa da solici-tude que manifestou em rela~ao aos camponeses oprimi-dos: sua mulher raptada e seus filhos sao vendidos como escravos para trabalharem em urna mina. Para que o fi lho Zushio possa fugir a fim de encontrar a mae cativa e cum-prir a palavra dada de libertar os escravos, a irma de Zushio, Anju, ve-se abrigada a imergir lentamente nas guas de um lago. Mas essa culmina~ao da lgica da ac;:ao tambm sua bifurcac;:ao. Por um lado, o cinema participa do combate pela emancipa~ao; por outro, ele se desfaz nos crculos que se formam na superfcie de um lago. Zushio adorar essa lgica dupla, demitindo-se de suas

    fun~6es assim que os escra vos sao libertados para ir a o encontro da mae cega, que est na ilha. Todos os desvos do cinema podem ser resumidos no movimento pelo qual

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    o filme, que acaba de encenar a grande !uta pela liberda-de, nos fala, em sua ltima panoramica: "Eis os limites do que eu posso. O resto com voces."

    O Intendente Sansho (Sansho Dayu), Kenji M izoguchi, 1954.

    As dist ancias do cinema 25

    Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_01Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_02Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_03Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_04Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_05Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_06Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_07Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_08Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_09Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_10Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_11Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_12Ranciere, Jacques. As distancias do cinema - Prologo_Page_13