RANCIÈRE, Jacques - A partilha do sensível

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E XO ex pe ri men tal o rg. Edificio Copan Av. Ipiranga, 200 B 2409 Centro CEI' 0 I 046·0 10 S ao P au lo · SI' Brasil TeI/F.x (J 1) 32.)7·461') www.exo.org.br Ed i rora .'\4 l.tda. Rua Hungria, 592 jardim Europa Cl-P 014'5'5·000 Sa o Paulo· 51 ' B ra si l T el /F ax (11) 3816·6777 www.editora34.com.br Copyright © EXO experimental org.lFditora 34 l.tda. (edicao brasileira), 2005 L e p ar ta ge d u s rn sl hl e © L a l 'a br iq uc L ~d it io ns . 2 00 0 A partilha do sensfvel Esra ed icao I "i rcalizada com 0 apoio do M in is re rio d as Relacoes Exreriores cia Franca Cett« edition (I ( 't c' r c 't ll is fe a u cc I tz p pt ti du Minisierc drs AjJrlire.>I1trrmgeres de France A fotocopia de qualquer folha deste livro e ilegal c configura uma apropriactio indcvida dos direiros inrclcctuais e patrimoniais do autor. Nota da traducdo . Edi<;,o confonne 0 Aco rdo Or tog rdf ico da Lin gu a Po rt ug ue sa. T ra du ca o d e: L e p a ft ag e d u sen si bl e Prologo . 1. Da partilha do sensivel e das relacoes qu e es ta be le ce en tr e p ol it ic a e e st et ic a . .. .. .. .. . 2. Dos regimes da arte e do pouco interesse da nocao de modernidade .. 3. Das artes mecanicas e da prornocao estetica e cientifica dos anonimos .. 4. Se e preciso conduir que a historia e ficcao, Dos modos da ficcao . 5. Da arte e do trabalho. Em que as praticas 'I da arte constituern e nao constituem uma excecao as outras praticas .. C ap a, p ro jc ro g ra fteo c c diro ra c. io c le rron ic a: Bracher cr Malta Produfiio Grdjira Revisao: R ic ar do L is ia s, A lb er to M ar ti ns I·' Edicfo . 200'5, 2' Edic;ao . 2009 ell'· Brasil. Caralogarao-na-Fonre (Sindicaro Naeional dos Eduorcs de Livros, Rj, Brasil) Raucicrc. jacques Rl12p A panilha do scnsivcl: cstdrica c p oluica ? jJClIllCS Rancicre: t raducao de Monica Costa Netto.- S a" P au lo : E XO e xp er im en ta l o rg .; E d . . 1 4 . 2 00 S. 71 p. [SBN 85·7326-321·0 1. Pilosofia tranccsa conremporancu. 2 . E st ct ic a. 3 . P cl fr ic a. 1. TiLulo. Sabre 0 autor . CDD-194

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EXO expe rimen tal o rg.

Edificio Copan Av. Ipiranga, 200 B 2409 Centro CEI' 0 I 046·0 10

Sao Paulo· SI' Brasil TeI/F.x (J 1) 32.)7·461') www.exo.org.br

Ed irora . ' \4 l.tda.

Rua Hungria, 592 jardim Europa Cl-P 014'5'5·000

Sa o Paulo· 51 ' Brasi l Tel /Fax (11) 3816·6777 www.editora34.com.br

Copyright © EXO experimental org.lFditora 34 l.tda. (edicao brasileira), 2005L e p ar ta ge d u s rn sl hl e © La l 'abriquc L~dit ions. 2000 A partilha do sensfvelEsra ed icao I "i rcalizada com 0 apoio do M in is re rio d as Relacoes Exreriores c ia F r anc a

Cett« edit ion (I ( 't c' r c 't ll is fe a u cc I tz p pt ti d u Minisierc d r s A j Jr l ir e .> I 1 t rr mg e re s d e F r a n ce

A fotocopia de qualquer folha deste livro e ilegal c configura uma

apropriactio indcvida dos direiros inrclcctuais e patrimoniais do autor.Nota da traducdo .

Edi<;,o confonne 0 Aco rdo Or tog rdf ico da L ingua Po rtugue sa.

Traducao de: Lepaftage du sensible

Prologo .

1. Da partilha do sensivel e das relacoes

que estabelece entre politica e estetica ..........

2. Dos regimes da arte e do pouco interesse

da nocao de modernidade ..

3. Das artes mecanicas e da prornocao estetica

e cientifica dos anonimos ..

4. Se e preciso conduir que a historia e ficcao,

Dos modos da ficcao .

5. Da arte e do trabalho. Em que as praticas

'I da arte constituern e nao constituem

uma excecao as outras praticas ..

Capa, projc ro grafteo c cdirorac. io c le rronica:

Brache r c r Mal ta Produfi io Grdjira

Revisao:

R ic ar do L is ia s, A lb er to M ar ti ns

I·' Edicfo . 200'5, 2' Edic;ao . 2009

ell'· Brasil. Caralogarao-na-Fonre

(Sindicaro Naeional dos Eduorcs de Livros, Rj, Brasil)

Raucicrc. jacques

Rl12p A panilha do scnsivcl: cstdrica c p oluica ?

jJClIllCS Rancicre: t raducao de Monica Costa Netto.-

Sa" Paulo: EXO experimental org.; Ed..14. 200S.

71 p.

[SBN 85·7326-321·0

1. Pilosofia tranccsa conremporancu.

2. Estctica. 3. Pclfrica. 1. TiLulo. Sabre 0 autor .

CDD-194

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Nota da traducao

i I

() conceiro de "partilha do sensfvel" [ p ar ta g e d u s e ns ib L e ]apa-

rece uma primeira vez para 0 publico brasileiro muito bem expli-

citado no Prefacio de Jacques Ranciere ao seu livro Politicas da es-

cri ta, publicado pela Editora 34 em 1995, na Colecao Trans, diri-

gida por Eric Alliez. Nesse livro - que alias consiste nurna coleta-

nea de textos inedita na Franca e, portanto, numa raridade brasileira

na bibliografta do autor - podemos ler:

"Pelo terrno de constituicao esretica deve-se en-

tender aqui a p a rt ilh a d o s en si ue l que da forma a cornu-

nidade. Pari i lba s ignifica duas coisas: a part icipacao em

urn conjunto comum e, inversamente, a separacao, a

distribuicao em quinh5es. Uma partilha do sensfvel e ,

ponanto, 0modo como se dctermina no sensivel a rela-

<;:aoentre um conjunto comum partilhado e a divisao de

partes exclusivas." (Pol i t icas c ia escri ta, p. 7, grifo 110SS0)

Mas na rraducao do l ivro 0 d e se n te n di rn e nt o : p o li ti ca e f il os o -

fia (Editora 34, 1996), uma nova opcao foi feita e 0 conceito rea-

parece como "divisao do sensfvel", Uma vez que 0 texto deA parti-

lha d o s e ns iu e l remere expliciramente as analises desenvolvidas nes-

te ultimo livro, estimamos indispensavel alertar para este fa to a fim

de nao comprometer a referencia. Quanto a nossa escolha de rea-

firmar a traducao inicial, alern de apoiar-se na preferencia do autor,

parece-nos satis fatoriamente just if icada pela citacao acima.

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I.j I

A partilha do sensfvelEstetica e polfrica

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Pr61ogo

As paginas a seguir respondem a uma dupla solici-

tacao. Em sua origem encontram-se as questoes coloca-

das por dois jovens filosofos, Muriel Combes e Bernard

Aspe, para a revista Alice, mais precisamente para a secao

"A fabrica do sensfvel" - secao esta voltada para osatos

esteticos como configuracoes da experienciavque ense-

jam novos modos do sentir e induzem novas formas da

subjetividade polfri ca. Nesse contexto, questionaram-me

sobre as consequencias das analises dedicadas em meu li-vro 0 desentendimento a "partilha do sensivel" enquan-

to cerne da polftica, e pOl'tanto a uma certa estetica da

polirica. Suas questoes, tarnbem suscitadas por uma nova

rellexao sobre as gran des teorias e experiencias vanguar-

distas de fusao da arte com a vida, comandam a estrutura

do texto que se vai ler. Minhas respostas foram desenvol-

vidas e suas pressuposicoes, tanto quanto possfvel, expli-

citadas, a pedido de Eric Hazan e Stephanie Gregoire.T odavia, essa solici tacao particular se inscreve em

urn contexto mais geral. A multiplicacao dos discursos

denunciando a crise da arte ou sua captacao fatal pelo

discurso, a generaliza<;:ao do espetaculo ou a morte da

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imagem sao indicacoes suficientes de que, hoje em dia,

e no terreno estetico que prossegue uma batalha ontern

centrada nas promessas da ernancipacao e nas ilus6es e

desilus6es da historia, Talvez a trajetoria do discurso si-

tuacionista - saido de urn movimento artfstico de van-

guarda do pos-guerra, vindo a ser nos anos 1960 crfrica

radical da polftica e, hoje, absorvido no comum do dis-curso desencantado que comp6e 0 avesso "critico" da

ordem existente - seja sintomatica das idas e vindas

contemporaneas da estetica e da polftica, e das transfer-

macoes do pensamento vanguardista em pensamento

nostalgico. Mas sao os textos de jean-Francois Lyotard

que melhor assinalam a forma como a "estetica" pode

tornar-se, nos ultimos vinte anos, 0 lugar privilegiado

em que a tradicao do pensamento enrico se metamorfo-seou em pensamento do luto. A reinterpretacao da ana-

lise kantiana do sublime transpunha para a arte 0con-

ceito que Kant havia situado alem da arte, para com isso

melhor fazer da arte urn testemunho do encontro com

o irrepresentavel que desconcerta todo pensamento - e,

a partir daf, urn testemunho contra a arrogancia da gran-

de tentativa estetico-polftica do devir-rnundo do pensa-

mento. Assim, 0 pensamento da arte tornava-se 0 lugar

onde se prolongava, apos a proclamacao do fim das uto-

pias polfticas, uma dramaturgia do abismo originario do

pensamento e do desastre de seu nao reconhecimento.

Muitas das contribuicoes conternporaneas ao pensamen-

to dos desastres da arte ou da imagem trocam em prosa

mais mediocre essa reviravolta de principio.

Essa conhecida paisagem do pensamento contern-

poraneo define 0contexto em que aqui se inscrevem es-

tas quest6es e respostas, mas nao 0 objetivo delas. Nao

se trata de reivindicar, mais uma vez, contra 0 desen can-

tamento pos-moderno, a vocacao vanguardista da arteou 0 ela de uma modernidade vinculando as conquistas

da novidade artlstica as da emancipacao. Estas paginas

nao foram motivadas pela preocupacao com uma inter-

vencao polernica, Elas se inscrevem num trabalho de Ion-

go prazo que visa restabelecer as condicoes de inteligibi-

lidade de urn debate. Isto e, em primeiro lugar, elaborar

o sentido mesmo do que e designado pelo termo esteti-

ca: nao a teoria da arte em geral ou uma teo ria da arteque rerneteria a seus efeitos sobre a sensibilidade, mas

urn regime especifico de identificacao e pensamento das

artes: urn modo de articulacao entre maneiras de fazer,

formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos

de pensabilidade de suas relacoes, implicando uma deter-

minada ideia da efetividade do pensamento. Definir as

articulacoes desse regime estetico das artes, os possfveis

que elas determinam e seus modos de transforrnacao,

este e 0objetivo atual da minha pesquisa e de urn semi-

nario mantido ha alguns anos na Universidade de Paris

VIII e no Colegio Internacional de Filosofia. Nao se en-

contrara aqui 0 resultado dessa pesquisa, cuja elaboracao

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segue seu ritmo proprio. Em cornpensacao, procurei assi-

nalar alguns marcos, historicos e conceituais, apropriados

a reforrnulacao de certos problemas que sao irremedia-

velmente confundidos por nocoes que fazem passar por

determinacoes historicas 0 que sao a p r io r i conceituais e

por determinacoes conceituais, recortes temporais. Den-

tre essas nocoes figura certamente, em primeiro lugar, a

de modernidade, hoje denominador comum de todos os

discursos disparatados que poem no mesmo saco Hol-

derlin ou Cezanne, Mallarrne, Malevitch ou Ducharnp,

arrasrando-os para 0 grande turbilhao em que se mes-

dam a ciencia cartesian a e 0parricidio revolucionario, a

era das massas e 0 irracionalismo rornantico, a proibicao

da representacao e as tecnicas da reproducao mecaniza-

da, 0sublime kantiano e a cena prirnitiva freudian a, afuga dos deuses e 0 exterrninio dos judeus da Europa. In-

dicar a pouca consistencia dessas nocoes evidentemente

nao implica uma adesao aos discursos contemporaneos

de retorno a simples realidade das praticas da arte e de

seus crirerios de apreciacao, A conexao dessas "simples

praticas" com modos de discurso, formas de vida, ideias

do pensamento e figuras da comunidade nao e fruto de

nenhum desvio malefico. Em cornpensacao,0

esforcopara pensa-la implica abandonar a pobre dramaturgia do

fim e do retorno, que nao cessa de ocupar 0 terreno da

arte, da polftica e de todo objeto de pensamento.

1.

Da p ar tilh a do sensfvel

e das relacoes que estabelece

entre polltica e estetica

Em 0 desentendirnento.! a p o li ti c a e q ue sti on ad a a

p artir d o qu e 0 s en h or c h am a "partilba do sensiuel". Nesta

expressdo e sta ria , n o s eu m o do d e uer , a ch ave d a ju nfiio n e-

c e s sa ri a en t r e p r dt ic a s e st et ic a s e prdticas politicas?

Denomino partilha do sensfvel 0sistema de eviden-cias sensfveis que revela, ao mesmo tempo, a existencia

de urn comum e dos recortes que nele definem lugares e

partes respectivas. Uma partilha do sensfvel fixa portan-

to, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes ex-

clusivas. Essa reparticao das partes e dos lugares se fun-

da numa partilha de espa<;:os,tempos e tipos de ativida-

de que determina propriamente a maneira como urn co -

m um se presta a participacao e como uns e outros tomamparte nessa partilha, 0 cidadao, diz Aristoteles, e quem

1 Jacques Ranciere, 0 desentendimento: politica efilosofia, traducao

de Angela Leite Lopes, Sao Paulo, Editora 34, 1996, Colecao Trans.

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t oma p a r te no fato de governar e ser governado. Mas uma

outra forma de partilha precede esse tomar parte: aque-

la que determina os que tomam parte. 0 animal falan-

te, diz Aristoteles, e urn animal politico. Mas 0escravo,

se compreende a linguagem, nao a "possui". Os artesaos,

diz Platao, nao podem participar das coisas comuns por-

que eles ndo te m te mp o para se dedicar a outra coisa que

nao seja 0 seu trabalho. Eles nao podem estar em ou tro

lugar porque 0 t raba lho ndo espera . A partilha do sensf-

vel faz ver quem pode tomar parte no comum em fun-

<;:aodaquilo que faz, do tempo e do espa<;:oem que essa

atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela "ocupacao"

define cornpetencias ou incornpetencias para 0 comum.

Define 0fato de ser ou nao visivel num espa<;:ocomum,

dotado de uma palavra comum etc. Existe portanto, na

base da polftica, uma "estetica" que nao tem nada aver

com a "estetizacao da politica" propria a "era das mas-

sas", de que fala Benjamin. Essa estetica nao deve ser en-

tendida no sentido de uma captura perversa da polftica

por uma vontade de arte, pelo pensamento do povo co-

mo obra de arte. Insistindo na analogia, pode-se en t en-

de-la num sentido kantiano - eventualmente revisitado

por Foucault - como 0sistema das formas a p r io r i de-terminando 0que se da a sentir. E urn recorte dos tem-

pos e dos espacos, do visfvel e do invisfvel, da paIavra e

do ruido que define ao mesmo tempo 0 lugar e 0_ que

esta em jogo na politica como forma de experiencia, A

polftica ocupa-se do que se vi: e do que se pode dizer so-

bre 0 que e visto, de quem tern cornpetencia para ver e

qualidade para dizer, das propriedades do espa<;:oe dos

possiveis do tempo.

E a partir dessa estetica primeira que se pode colo-

car a questao das "praticas esteticas", no sentido em que

entendemos, isto e , como formas de visibilidade das pra-

ticas da arte, do Iugar que ocupam, do que "fazem" no

que diz respeito ao comum. As praticas artfsticas sao "rna-

neiras de fazer" que intervern na disrribuicao geral das

maneiras de fazer e nas suas relacoes com maneiras de ser

e formas de visibilidade. Antes de se fundar no conteu-

do imoral das fabLilas, a proscricao platonica dos poetas

funda-se na impossibilidade de se fazer duas coisas ao

mesmo tempo. A questao da fic<;:ao , antes de tudo, uma

questao de distribuicao dos lugares. Do ponto de vista

platonico, a cena do teatro, que e simultaneamente es-

pa<;:ode uma atividade publica e lugar de exibicao dos

"fantasmas", embaralha a partilha das identidades, ativi- ,

dades e espa<;:os.0 mesmo ocorre com a escrita: circulan-

do por toda parte, sem saber a quem deve ou nao falar,

a escrita desrroi todo fundamento legitimo da circulacao

da palavra, da relacao entre os efeitos da palavra e as po-sicoes dos corpos no espa<;:ocomum. Platao destaca dois

grandes modelos, duas gran des formas de existencia e de

efetividade sensivel da palavra: 0teatro e a escrita - que

virao a ser tambern formas de estruturacao para 0 regi-

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me das artes em geral. Ora, tais formas revelam-se de

saida comprometidas com urn certo regime da polftica,

urn regime de indeterrninacao das identidades:d~'des-

legitimacao das posicoes de palavra, de desregulacao das

partilhas do espayo e do tempo. Esse regime estetico da

polftica e propriamente a democracia, 0 regime das as-

sembleias de artesaos, das leis escritas intangiveis e da ins-

tituicao teatral. Ao teatro e a escrita, Platao op6e uma

terce ira forma, uma boa forma de arte, a forma coreogrd-

fica da comunidade que danca e canta sua propria uni-

dade. Em suma, Platao destaca tres maneiras a partir das

quais praticas da palavra e do corpo prop6em figuras de

comunidade. Identifica a superficie dos signos mudos:

superficie dos signos que sao, diz ele, como pinturas, E

o espayO do movimento dos COl'pOS,que se divide porsua vez em dois modelos antagonicos. De urn lado, ha 0

movimento dos simulacros da cena, oferecido as identi-

ficacoes do publico. De outro, 0 movimento autentico,

o movimento proprio dos corpos cornunitarios,

A superficie dos signos "pintados", 0 desdobramen-

to do teatro, 0 ritmo do cora dancante: tres formas de

partilha do sensivel estruturando a maneira pela qual as

artes podem ser percebidas e pensadas como artes e co-mo formas de inscricao do sentido da comunidade. Es-

sas formas definem a maneira como obras ou performan-

ces "fazem polftica", quaisquer que sejam as intencoes

que as regem, os tipos de insercao social dos artistas ou

o modo como as formas artfsticas refletem estruturas ou

movimeotos sociais. Quando sao publicados, Madame

Bovary ou A educacdo sentimental sao imediaramenre

percebidos como "a democracia em literatura", apesar da

postura aristocracica e do conformismo politico de Flau-

bert. Ate mesmo sua recusa em confiar a literatura uma

mensagem e considerada como urn testemunho da igual-

dade democratica. Ele e democrata, dizem seus adversa-

rios, na sua opcao por pintar em vez de instruir. Essa

igualdade de indiierenca e consequencia de uma opcao

poetica: a igualdade de todos os temas,2 e a negayao de

toda relacao de oecessidade entre uma forma e um con-

teudo determioados. Mas esta indiferenca, 0 que e ela

afioal senao a igualdade de tudo que advern numa pagi-

na escrita, disponivel para qualquer olhar? Essa igualda-de destroi todas as hierarquias da representayao e insti-

tu i a comunidade dos leitores como comunidade sem le -

gitimidade, comunidade desenhada tao somente pela cir-

culacao aleatoria da letra.

2 No original, "l'egalite d e to us l e s su j e ts " , expressao que ence rra du-

plicidade de scntido intraduzivel, pelo fato do termo "sujet" (su jeito) em

frances tambem signi~lcar, segundo 0 contexto, "rema' ou "objeto". no sen-

tido daquilo de que se rrata. No que diz respeito a relacao entre estetica e

pollt ica, a arnbiguidade parece rornar-se relevante, ja que para Ranciere "a

polltica e assunto de sujeitos, ou melhor, de modos de subjetivacao" e ela

"so cxiste mediante a efetuacao da igualdade de qualquer pessoa com qual-

q~~r.pessoa" (d. 0 d e se n te n di m en to , o p . c it ., pp. 47 e 71). (N. da T. )

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Uma politicidade sensivel e assim, de saida, atribuf-

da as gran des formas de partilha estetica como 0 teatro,

a pagina ou 0 coro. Essas "polfticas" seguem sua logica

propria e repropoern seus services em epocas e conrex-

tos muito diferentes. Pensemos na maneira como esses

paradigmas funcionaram no no arte/politica no final do

seculo XIX e inicio do seculo xx. Pensemos, por exern-

plo, no papel assumido pelo paradigma da pagina sob

suas diferentes formas, que excedem a materialidade da

folha escrita: temos a democracia romanesca, a dernocra-

cia indiferente da escrita, simbolizada pelo romance e seu

publico. Mas temos tambern a cultura tipografica e ico-

nografica, esse entrelacamento dos poderes da letra e da

i~agem, que exerceu um papel tao importante no Re-

nascimento e que vinhetas, fundos de lampada e inova-coes diversas da tipografia rornantica ressuscitaram. Esse

modelo embaralha as regras de correspondencia a distan-

cia entre 0 dizfvel e 0 visfvel, proprias a logica represen-

tativa. Embaralha tambem a parrilha entre as obras da

arte pura e as decoracoes da arte aplicada. E por iss~ que

teve um papel tao importante - e geralmente subesti-

mado - na transformacao radical do paradigma repre-

sentativo e nas suas implicacoes polfticas, Penso prin-

cipalmente em seu papel no movimento Arts and Crafts

e todos seus derivados (Art Deco, Bauhaus, construtivis-

rno) em que se definiu uma ideia do rnobiliario - no

sentido amplo - da nova comunidade, que tambem

inspirou uma nova ideia da superficie pictural como su-

perficie de escrita comum.

o discurso modernista apresenta a revolucao pictu-

ral abstrata como a descoberta pela pintura de seu "me-

dium" proprio: a superficie bidimensional. A revogacao

da ilusao perspectivista da terce ira dimensao devolveria

a pintura 0dominio da sua superficie propria. Mas pre-cisamente essa superficie nao tern nada de "propria".

Uma "superHcie" nao e simplesmente uma composicao

geometrica de linhas. E uma forma de partilha do sensf-

vel. Escrita e pintura erarn para Platao superficies equi-

valentes de signos mudos, privados do sopro que anima

e transporta a palavra viva. 0 plano.f nessa logica, nao

se opoe ao profundo, no sentido do tridimensional. Ele

se opoe ao "vivo". E ao ato de palavra "vivo", conduzido

pelo locutor ao seu destinatario adequado, que se opoe

a superficie muda dos signos pintados. E a adocao da

terceira dimensao pela pintura foi tambern uma respos-

ta a essa partilha. A reproducao da profundidade optica

foi re!acionada ao privilegio da historia. Participou, no

Renascimento, da valorizacao da pintura, da afirma<;:ao

de sua capacidade de captar um ato de palavra vivo, 0

mornento decisivo de uma acao e de uma significacao. A

poetica classica da representa<;:ao quis, contra 0rebaixa-

mento platonico da mimesis, dotar 0 "plano" da palavra

3 No original, " I e p l a t " . (N. da T.)

20 21

 

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ou do "quadro" de urna vida, de urna profundidade es-

pecifica, como manifestas:ao de urna acao, expressao de

uma interioridade ou transrnissao de um significado. Ela

insraurou entre palavra e pintura, entre dizivel e visivel

urna relacao de correspondencia a distancia, dan do a"imitacao" seu espas:o especifico. .

E esta relacao que esta em questao na pretensa dis-

tins:ao do bidimensional e do tridimensional como "pro-

prios" a esta ou aquela arte. E na superficie plana da pa-

gina, na mudanca de funs:ao das "imagens" da literatura

ou na mudanca do discurso sobre 0 quadro, mas tam-

bern nos entrelaces da tipografia, do cartaz e das artes de-

corativas, que se prepara uma boa parte da "revolucao

antirrepresentativa" da pintura. Esta pintura, tao mal de-

nominada abstrata e pretensamente reconduzida a seumedium proprio, e parte integranre de uma visao de con-

junto de um novo homem, habitante de novos edificios ,cercado de objetos diferentes. Sua planaridade'l tern li-

gacao com a da pagina, do cartaz ou da tapecaria _ e

uma interface. E sua "pureza" antirrepresentativa inscre-

ve-se num contexto de entrelacamenm da arte Pllr;l eda

arte aplicada, que lhe confere de saida uma significas;ao

polftica, Nao e a febre revolucionaria ambiente que faz

d~Malevitch ao mesmo tempo 0autor do Qu ad ra do p re -

to so bre fo nd o b ra nco e 0arauto revolucionario das "no-

vas formas de vida". E nao e urn ideal teatral do novo ho-

mem que sela a alianca momentanea entre polfticas e ar-

tistas revolucionarios. E , antes, na interface criada entre

"suportes" diferentes, nos laces tecidos entre 0 poema e

sua tipografia ou ilustracao, entre 0 teatro e seus decora-

dores ou grafistas, entre 0 objeto decorativo e 0 poema,

que se forma essa "novidade" que vai ligar 0 artista, que

abole a figura<;:ao, ao revolucionario, inventor da vida

nova. Essa interface e polfrica porque revoga a dupla po-

ii~ica inerente a logica representariva. Esta, por urn lado,

separava 0mundo das irnitacoes da arte do mundo dos

interesses vitais e das grandezas polftico-sociais, Por ou-

tro, sua organizacao hierarquica - e particularrnente 0

primado da palavra/acao viva sobre a imagem pintada-

era analoga a ordem politico-social. Com a vitoria da

pagina romanesca sobre a cena teatral, 0entrelacarnen-

to igualitario das imagens e dos signos na superffcie pic-

rural ou tipografica, a prornocao da arte dos artesaos agrande arte e a pretensao nova de inserir arte no cenario

de cada vida em particular, trata-se de todo urn recorteordenado da experiencia sensivel que cai por terra.

E assim que 0"plano" da superficie dos signos pin-

tados, essa forma de partilha igualitaria do sensivel estig-

rnatizada pOI' Platao, intervem ao mesmo tempo como

4 No original, "platitude", que em frances nao designa apenas a su-

perficie bidimensional, mas remere tarnbern a uma ideia de banalidade au

de indistin<;:ao,estabelecendo aqui uma relacao entre a igualdade dos sujei

tos e a indistincao das artes. (N. da T.)

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principio de revolucao "formal" de uma arte e principio

de re-particao polftica da experiencia comum. Do mes-

mo modo se poderia refletir sobre ourras.gsendesformas,

a do coro e a do teatro que ja mencionei, ou outras. U~a

historia da polftica estetica, entendida nesse sentido, deve

levar em conta a maneira como essas gran des formas se

op6em ou se confundem. Penso por exemplo na maneira

como esse paradigma da superficie dos signos/formas se

opos ou se confundiu ao paradigma teatral da presenc;:a

- e nas diversas formas que esse proprio paradigma po-

de assumir, da figurac;:ao simbolista da lenda coletiva ao

coro em ato dos novos homens. A polirica ai se repre-

senta como relacao entre a cena e a sala, significacao do

corpo do ator, jogos da proximidade ou da distancia, As

prosas criticas de Mallarrne colocam exemplarmente emcena 0 jogo de rernissoes, oposicoes e assirnilacoes entre

essas formas, desde 0teatro intimo da pagina ou a coreo-

grafia caligrafica ate 0novo "oficio" do concerto.

Assim, por urn lado, essas formas aparecem como

portadoras de figuras de comunidade iguais a elas mes-

, mas em contextos muito diferentes. Mas, inversarnente,

. elas sao passiveis de rernissao a paradigmas politicos con-

. traditorios. Tomemos0

exemplo da cena tragica, ParaPlatao, ela e portadora da sindrome dernocrarica ao mes-

mo tempo que do poder da ilusao. Isolando a mimesis

em seu espaco proprio, e circunscrevendo a tragedia em

uma logica dos generos, Aristoteles, mesmo que nao se

tenha propos to a isso, redefine sua politicidade. E, no

sistema classico da representacao, a cena tragic a sera a

cena de visibilidade de urn mundo em ordem, govern a-

do pela hierarquia dos temas e a adaptacao, a esta hierar-

quia, das situacoes e maneiras de falar. 0 paradigma de-

mocratico se tomara urn paradigma monarquico. Pen-

semos tam bern na longa e contraditoria historia da reto-

rica e do modelo do "born orador". Ao longo de toda a

idade monarquica, a eloquencia democratica de Demos-

tenes significou uma excelencia da palavra, sendo a pro-

pria palavra considerada urn atributo imaginario da po-

tencia suprema, mas tam bern sempre disponivel para re-

tomar sua funcao democratica, emprestando suas formas

canonicas e suas imagens consagradas as aparicoes trans-

gressivas de locutores nao autorizados na cena publica.Pensemos ainda nos destinos conrraditorios do modelo

coreografico. Trabalhos recentes relembram os avatares

da escrita do movimento elaborada pol' Laban num con-

texto de liberacao dos corpos e transformada em mode-

1 0 das grandes dernonstracoes nazistas, antes de reencon-

trar, no contexto contestatorio da arte perforrnatica, uma

nova virgindade subversiva. A explicacao benjaminiana

pela esterizacao fatal da polftica na "era das massas" es-quece-se talvez da ligacao muito antiga entre 0unanimis-

mo cidadao e a exaltacao do livre movimento dos corpos.

Na cidade hostil ao teatro e a lei escrita, Platao recornen-

dava embalar incessantemente as criancas de colo.

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Citei essas tres formas por causa da relerencia con-

ceitual platonica e da constancia historica delas. Eviden-

temente elas nao definem a totalidade dos modos como

essas figuras de comunidade se encontram esteticamen-

te desenhadas. 0 importante e ser neste nfvel, do recor-

te sensfvel do comum da comunidade, das formas de sua

visibilidade e de sua disposicao, que se coloca a.questao

da relacao estetica/polftica. Apar~ir_g~L.p()4~:::se pensar

as intervencoes polfricas dos artistas, desde as f~~rnas li-

terarias rornanticas do deciframento da sociedade ate os

modos contemporaneos da performance e da instalacao,

passando pela poetica simbolista do sonho ou a supres-

sao dadaista ou construtivista da arte. A partir dai podem

ser colocadas em questao divers as historias imaginarias

da "modernidade" artfstica e dos vaos debates sobre a au-

tonomia da arte ou sua submissao polftica, As artes nun-

I ca emprestam as manobras de dorninacao ou de ernanci-

: pacao mais do que lhes podem emprestar, ou seja, muito

simplesmente, 0que tern em comum com elas: posicoes

e movimentos dos corpos, funcoes da palavra, reparticoes

do visfvel e do invisivel. E a autonornia de que podem

'\gozar ou a subversao que podem se atribuir repousam

sobre a mesma base.

2.

Dos reg imes da arte

e d o p ou co in te re ss e

da n0980 d e m od ern idade

A lg um as c ateg oria s ce ntra is p ara se p en sa r a cria cd o

a rt is ti ca d o seculo XX - a saber: m odern idade, vanguar-

d a e , m ais recen tem ente , po s-m od em id ad e - ta mbem thn

u m se ntid o p olitic o. E sta s c ate go ria s p ar ec em -lb e s er d e a l-

g um in te re ss e p a ra s e c on ce be r e m te rm o sp re cis os 0 q ue lig a

o " es te ti co " a o " p oli tic o "?

Nao.creioque as nocoes de rnodernidade e de van-

guarda ten ham sido bastante esclarecedoras para se pen-

. sar as novas formas de arte desde 0 seculo passado, nem

as relacoes do estetico com 0politico. Elas de fata con-

fund em duas coisas bem diferentes: uma coisaea histo-

ricidade propria a um regime das artesern geral. Out~-a,

sao as decisoes deruptura au a:ntecipas:ao_quese operamno interior desse regime. A nocao de modernidade este-

tica recobre, sem lhe atribuir um conceito, a singulari-

dade de um regime particular das artes, isto e , um tipo

espedfico de liga<;:aoentre modos de producao das obras

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ou das praticas, formas de visibilidade dessas praticas e

modos de conceiruacao destas ou daquelas.

Uma digressao se imp6e aqui para esclarecer essa

nocao e situar 0problema. No que diz respeito ao que

chamamos arte, pode-se com efeito distinguir, na tradi-

c;:aoocidental, tres gran des regimes de identiticacao. Em

primeiro lugar, ha 0 que proponho chamar urn regime

etico das imagens. Neste regime, "a arte" nao e identifi-

cada enquanro tal, mas se encontra subsumida na ques-

tao das imagens. Ha urn tipo de seres, as imagens, que e

objeto de uma dupla questao: quanto a sua origem e, por

conseguinte, ao seu teorde verdade; e quanto ao seu des-

tino: p~usos que tern e os e,f~itos que induzem. Perren-

ce a esse regime a questao ci~~-i~agens da divindade, do

, direito ou proibicao de produzir tais imagens, do estatu-

to e significado das que sao produzidas. Como a ele per-

tence tam bern toda a polemica plat6nica contra os sirnu-

lacros da pintura, do poem a e da cena. Platao nao sub-

mete, como e dito com frequencia, a arte a polftica. Essa

./ d istincao em si nao faz sentido para ele. Para Platao, a

arte nao existe, apenas existern artes, maneiras de fazer.

E e entre elas que ele traca a linha divisoria: existem ar-

tes verdadeiras, isto e, saberes fundados na imitacao deurn modelo comjins..definidos, e ~im.ulacro.s...dearte que

imitarn simples aparencias. Essas imitacoes, diferenciadas

quanto a origem, 0 sao em seguida quanto a destinacao:

pela rnaneira como as imagens do poema dao as crian-

c;:ase aos espectadores cidadaos uma certa educacao e se

inscrevem na partilha das ocupacoes da cidade. E neste

sentido que falo do regime etico das imagens. Trata-se.]

nesse regime, de saber no que 0modo de,ser das irnagens ~

concerne ao ethos, a maneira de ser dos indivfduos e . das (

coletividades. E essa questao impede a "arte'; de,se indi-I

vi4ualizar enquanto taP )

~ A partir da l, podc-se cornprecnder 0 paralogismo contido em to-

das as tcnrarivas para deduzir do cstaruto ontol6gico das imagens as carac-

te rtsticas das arre s (por exemplo, as incessanres tcnta tivas para extrair da

tcologia do (cone a ideia do "proprio" da pinrura, da fotografia ou do ci-

nema), Essa tenrativa poe em relacao de causa e efeiro as propriedades de

dois regimes de pcnsamenro que se excluern, 0 mesmo problema e colo-

cado pcla analise benjaminiana da aura . Com eieito, Benjamin estabelece

uma dcducao equivoca do valor ritual da imagcm ao valor de unicidade da

obra de arte, "E urn faro de importfincia decisiva que a obra de arte nao

possa deixar de perder sua aura a partir do mornenro em que nela nao res-

ta mais nenhurn vesttgio de sua funcao ritual. Em outros rermos, 0 valor

de unicidade proprio a obra de arte 'autentica' se funda ncsse ritual que, na

origem, foi 0 supor te de seu antigo valor de ur ilidade" (A obrade arte na

era de sua reprodutibilidade tecnica). Esse "faro", na realidade, e apenas 0

ajusrarnenro problemarico de dois esquemas de rransforrnacao: 0 esquema

histor icists da "secular izacao do sagrado" eo esquema economico da trans-

formacao do valor de uso em valor de troca. Mas J a onde 0service sagrado

define a destinacao da esratua ou da pintura como imagens, a ideia mesma

de uma especificidade da arte e de uma propriedade de unicidade de suas

"obras" nao pode aparecer. 0 rettaimento de urn e necessario a emergen-

cia da outra. Nao se segue absolutamente que a segunda seja a forma trans-

forrnada do primeiro. 0 "em outros terrnos" supoe equivalentes duas pro-

posicoes que nao 0 sao em absoluto e permite todas as passagens entre a

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Do regime etico das imagens se separa 0 regime poe-

tico - ou representativo - das artes. Este identifica 0

fato da arte - ou antes, das artes - no par po ies is lmi-

mes is . 0 prindpio mimetico, no fundo, nao e um prin-

dpio normativo que diz que a arte deve fazer c6pias pare-

cidas com seus modelos. E, antes, um prindpio pragma-

tico que isola, no dominio geral das artes (das maneiras

de fazer), certas artes particulares que executam coisas es-

pedficas, a saber, imitacoes. Tais irnitacoes nao se enqua-

dram nem na verificacao habitual dos produtos das artes

por meio de seu uso, nem na legislacao da verdade sobre

os discursos e as imagens. Nisto consiste a grande ope-

racao efetuada pela elaboracao aristotelica da mimes i s e

pelo privilegio dado a acao tragica. E 0fe ito do poema,

a fabricacao de uma intriga que orquestra acoes repre-sentando homens agindo, que importa, em detrimento

do se r da imagem, c6pia interrogada sobre seu modelo.

Tal e 0prindpio da mudanca de luncao do modelo dra-

matico de que falava acima. 0 prindpio de delimitacao

extema de urn dominic consistente de irnitacoes e, por-

tanto, ao mesmo tempo, um prindpio normativo de in-

clusao, Ele se desenvolve em formas de normatividade:

que definem as condicoes segundo as quais as imitacoes

podem ser reconhecidas como pertencendo propriarnen-

te a uma arte e apreciadas, nos limites dessa arte, como

boas ou ruins, adequadas ou inadequadas: separacao dorepresentavel e do irrepresendvel, distincao de generos '.

em funcao do que e representado, prindpios de adap-

tacao das formas de expressao aos generos, logo, aos te-

mas representados, distribuicao das sernelhancas segun-

do prindpios de verossirnilhanca, conveniencia ou cor-

respondencia, criterios de distincao e de comparacao en-

tre as artes etc.

Denomino esse regime poetico no sentido em queidentifica as artes - que a idade classica chamara de "be-

las-artes" - no interior de uma classificacao de manei-

ras de fazer, e consequentemente define maneiras de fa-

zer e de apreciar imitacoes benfeitas. Chamo-o represen-

tatiuo, porquanto e a nocao de representacao ou de m i-

mes is que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar.

Mas, repito, a mimes i s nao e a lei que submete as artes a

semelhanca, E , antes, 0vinco na distribuicao das mane i-

ras de fazer e das ocupacoes sociais que torna as artes vi-

sfveis, Nao e um procedimento artistico, mas urn regi-

me de visibilidade das artes. Urn regime de visibilidade

das artes e , ao mesmo tempo, 0 que autonomiza as artes,

explicacao materialista da arte e sua transformacao em reologia profana, E

assim que a teorizacao benjaminiana da passagem do cultual ao exposicionalsustenta hoje tres discursos concorrentes: 0 que celebra a desmisrificacao

moderna do misticismo artistico, ° que dota a obra e seu espa<;:ode exposi-

<;::10os valores sagrados da representacao do invisivel e 0 que contrapoe,

aos tempos remotos da presen<;:ados deuses, 0 abandono do "ser-exposro"

do homem.

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mas tambern 0que articula essa autonomia a uma ordem

geral das maneiras de fazer e das ocupacoes, Precisamen-

te 0que eu evocava acima a proposito da logica represen-

tativa, Esta entra numa relacao de analogia global com

uma hierarquia global das ocupacoes polfricas e sociais:

o primado representativo da a<;:aosobre os caracteres, ou

da narracao sobre a descricao, a hierarquia dos generossegundo a dignidade dos seus temas, e 0 proprio prima-

do da arte da palavra, da palavra em aro, entram em ana-

logia com coda urna visao hierarquica da comunidade.

A esse regime representativo, contrapoe-se 0 regime

das artes que denomino este t ico, Estetico, porque a iden-

tificacao da arte, nele, nao se faz mais por uma distincao

no interior das maneiras de fazer, mas pela distincao de

urn modo de ser sensivel proprio aos produtos da arte.A palavra "estetica" nao remete a uma teoria da sensibi-

lidade, do gosto ou do prazer dos amado res de arte. Re-

mete, propriamente, ao modo de ser espedfico daquilo

que pertence a arte, ao modo de ser de seus objetos. No

regime estetico das artes, as coisas da arte sao identifica-

das por pertencerem a urn regime espedfico do sensivel.

Esse sensfvel, subtraido a suas conexoes ordinarias, e ha-

bitado por uma potencia heterogenea, a potencia de urn

pensamento que se tornou ele proprio estranho a si mes-

mo: produto identico ao nao-produto, saber transforma-

do em nao-saber, logos identico a urn pathos, intencao do

inintencional etc. Essa ideia de urn sensivel tornado es-

tranho a si mesmo, sede de urn pensamento que se tor-

nou ele proprio estranho a si mesmo, e 0 nucleo invaria-

vel das identificacoes da arte que configuram original-

mente 0 pensamenco estetico: a descoberta por Vico do

"verdadeiro Homero" como poeta apesar de si mesmo,

o "genio" kantiano que ignora a lei que produz, 0"esta-

do estetico" de Schiller, feito da dupla suspensao da ati-vidade do entendimento e de passividade sensivel, a defi-

nicao dada por Schelling da arte como identidade de urn

processo consciente e de urn processo inconsciente etc.

Ela percorre igualmente as autodefinic;:oes das artes pro-

prias a idade moderna: ideia proustiana do livro inteira-

mente calculado e absolutamente subtraido a vontade;

ideia mallarmiana do poema do espectador-poeta, escri-

to "sern aparelho de escriba" pelos passos da danc;:arinailetrada; pratica surrealista da obra expressando 0 incons-

ciente do artista com as ilusrracoes fora de moda dos ca-

ralogos ou folhetins do seculo precedente; ideia bresso-

niana do cinema como pensamento do cineasta extraido

dos corpos dos "modelos" que, repetindo sem pensar as

palavras e gesros que dita para eles, manifestam, sem 0

seu conhecimento ou 0 deles, a verdade que lhes e pro-

pria etc. ,

Inutil prosseguir com as definicoes e exemplos. E

preciso, porern, assinalar 0 cerne do problema. 0 regi-

me estetico das artes e aquele que propriamente identi-

fica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qual-

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quer regra especffica, de toda hierarquia de temas, gene-

ros e artes. Mas, ao faze-Io, ele implode a barreira mime-

tica que distinguia as maneiras de fazer arte das outras

maneiras de fazer e separava suas regras da ordem das

ocupacoes sociais. Ele afirma a absoluta singularidade da

arte e destroi ao mesmo tempo todo criterio pragmati-

co dessa singularidade. Funda, a uma so vez, a autono-

mia da arte e a identidade de suas formas com as formas

pelas quais a vida se forma a si mesma. 0 estado estetico

schilleriano, que e 0 primeiro - e, em certo sentido,

inultrapassavel - manifesto desse regime, marca bern

essa identidade fundamental dos contraries. 0 estado es-

tetico e pura suspensao, momento em que a forma e ex-

perimentada por si mesma. 0 momenta de formacao de

uma humanidade especifica.A partir dai, pode-se compreender as funcoes exer-

cidas pela nocao de modernidade. Pode-se dizer que 0

regime estetico das artes e 0 verdadeiro nome daquilo

designado pela denominacao confusa de modernidade.

Mas "rnodernidade" e mais do que uma denorninacao

confusa. Em suas diferentes versoes, "modernidade" eo

conceito que se empenha em ocultar a especificidade

desse regime das artes e 0proprio sentido da especifi-

cidade dos regimes da arte. Traca, para exalta-la ou de-

plora-la, uma linha simples de passagem ou de ruptura

entre 0 antigo e 0moderno, 0 representative eo nao-re-

presentativo ou antirrepresentativo. 0 'ponto de apoio

dessa historicizacao simplista foi a passagem a nao-figu-

racao na pintura. Essa passagem foi teorizada numa as-

similacao sumaria com urn destino global antimimeti-

co da "modernidade" artistica. Quando os arautos dessa

modernidade viram os lugares onde se exibia este bern-

-comportado destino da modernidade invadidos por to-

da especie de objetos, maquinas e dispositivos nao iden-

tificados, comecaram a denunciar a "tradicao do novo",

uma vontade de inovacao que reduziria a modernidade

artistica ao vazio de sua autoproclamacao. Mas e 0pon-

to de partida adotado que nao convern. 0 pulo para fora

da mimes is nao e em absoluto uma recusa da figuracao.

E seu momenta inaugural foi com frequencia denorni-

nado rea l i smo , 0qual nao significa de modo algum a va-

lorizacao da sernelhanca, mas a destruicao dos limitesdentro dos quais ela funcionava. Assim, 0 realismo rorna-

nesco e antes de tudo a subversao das hierarquias da re-

presentacao (0 primado do narrative sobre 0 descritivo

ou a hierarquia dos ternas) e a adocao de urn modo de

focalizacao fragmentada, ou proxima, que imp6e a pre-

senca bruta em detrimento dos encadeamentos racionais

da historia, 0 regime estetico das artes nao op6e 0 anti-

go e0

moderno. Op6e, mais profundamente, dois regi-mes de historicidade. E no interior do regime mimetico

que 0 antigo se op6e ao moderno. No regime estetico da

arte, 0 futuro da arte, sua distancia do presente da nao-

-arte, nao cessa de colocar em cena 0passado.

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Aqueles que exaltam ou denunciam a "tradicao do

novo" de fato esquecem que esta tern por exato cornple-

mento a "novidade da tradicao". 0 regime estetico das

artes nao cornecou com decis6es de ruptura artistica. Co-

mecou com as decis6es de reinterpretacao daquilo que a

arte faz ou daquilo que a faz ser arte: Vico descobrindo

o "verdadeiro Hornero", isto e , nao urn inventor de fi-bulas e tipos caracterfsticos, mas urn testemunho da lin-

guagem e do pensamento imageticos dos povos dos tem-

pos antigos; Hegel assinalando 0verdadeiro tema da pin-

tura de genero holandesa: nao as historias de estalagem

ou descricoes de interiores, e sim a liberdade de urn povo

impressa em reflexes de luz; Holderlin reinventando a

tragedia grega; Balzac contrapondo a poesia do geologo

que reconstitui mundos a partir de vestigios e de fosseisaquela que se contenta em reproduzir algumas agitacoes

da alma; Mendelssohn recompondo a Paixdo segundo

Sao Mateus etc. 0 regime estetico das artes e antes de

tudo urn novo regime da relacao com 0antigo. De fato,

ele transforma em principio de artisticidade essa relacao

de expressao de urn tempo e urn estado de civilizacao que

antes era considerada a parte "nao-artistica" das obras

(aquela que se perdoava alegando a rudeza dos tempos em

que vivera 0autor). Ele inventa suas revolucoes baseado

na mesma ideia que 0 leva a inventar 0museu e a his to-

ria da arte, a nocao de classicismo e as novas formas da

reproducao .. . Ese entrega a invencao de novas formas de

vida com base em uma ideia do que a arte [oi , teria sido.

Quando os fururistas ou os construtivistas proclamam 0

fim da arte e a idenrificacao de suas praticas aquelas que

edificam, ritmam ou decoram os espac;:ose tempos da vi-

da em comum, eles prop6em urn fim da arte como iden-

tificacao com a vida da comunidade, que e rributaria da

releitura schilleriana e romantica da arte grega comomodo de vida de uma comunidade - alias, em sintonia

com as novas praticas dos inventores publicitarios que

nao prop6em, eles, revolucao alguma, mas somente uma

nova maneira de se viver em meio as palavras, imagens

e mercadorias. A ideia de modernidade e uma nocao

equivoca que gostaria de produzir urn corte na configu-

racao complexa do regime estetico das artes, reter as for-

mas de ruptura, os gestos iconoclastas etc, separando-os

do contexto que os autoriza: a reproducao generalizada,

a interpreracao. a historia, 0museu, 0patrimonio ... Ela

gostaria que houvesse urn sentido unico, quando a tern-

poralidade propria ao regime estetico das artes e a de

uma co-presenc;:a de temporalidades hererogeneas.

A nocao de modernidade parece, assim, como in-

ventada de proposito para confundir a inteligencia das

rransforrnacoes da arte e de suas relacoes com as outras

esferas da experiencia coletiva. Parece-rne haver duas

grandes forrnas dessa conlusao. Ambas se apoiam, sem

analisa-la, na contradicao constitutiva do regime esteti-

co das artes que faz da arte uma forma aut/mama da vida

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e, com isso, afirma, ao mesmo tempo, a autonomia da

arte e sua identilicacao a urn momenta no processo de

autoformacao da vida. Dai deduzem-se as duas gran des

variantes do discurso sobre a "modernidade". ~prim~ei-

ra quer uma modernidade simplesmente identificada a

autonomia da arte, uma revolucao "anrimimetica" da

arte identica a conquista da forma pura, enfim nua, da

arte. Cada arte afirmaria entao a pura potencia de arte

explorando os poderes proprios do seu medium especi-

fico. A modernidade poetica ou literaria seria a explora-

<;:aodos poderes de uma linguagem desviada do seu uso

comunicacional. A modernidade pictural seria 0 retorno

da pintura ao que the e proprio: 0pigmento colorido e

a superficie bidimensional. A modernidade musical se

identificaria a linguagem de doze sons, livre de toda ana-logia com a linguagem expressiva etc. E essas modernida-

des especificas estariam numa relacao de analogia a dis-

tancia com uma modernidade polfrica, capaz de se iden-

tificar, conforme a epoca, com a radicalidade revolucio-

naria ou com a modernidade sobria e desencantada do

born governo republicano. 0 que se chama "crise da ar-

te" e essencialmente a derrota desse paradigma moder-

nista simples, cada vez mais afastado das misturas de ge-

neros e de suportes, como das polivalencias polfticas das

formas contemporaneas das artes.

Essa derrota e evidentemente sobredeterminada pe-

la segunda grande forma do paradigma modernista, que

se poderia chamar de mode rn i t a r i smo . Denomino assim

a identificacao das formas do regime estetico das artes as

formas de execucao de uma tarefa ou de urn destino pro-

prio da modernidade. Na base dessa idenrificacao esta

uma interpretacao especifica da contradicao matricial da

"forma" estetica, Valoriza-se a deterrninacao da arte co-

mo forma e autoforrnacao da vida. No ponto de parti-da encontra-se a referencia insuperavel que constitui a

nocao schilleriana de educad io estetica d o h om e m . Ela fi-

xou a ideia de que dorninacao e servitude sao antes de

tudo distribuicoes onrologicas (atividade do pensamen-

to versus passividade da materia sensivel) e definiu urn es-

tado neutro, urn estado de dupla anulacao em que ati-

vidade de pensamento e receptividade sensivel se tornam

uma unica realidade, constituindo algo como uma novaregiao do ser - a da aparencia e do jogo livres - que

torna pensavel essa igualdade que a Revolucao Francesa,

segundo Schiller, mostra ser impossivel materializar di-

retamente. E esse modo especffico de habitacao do mun-

do sensivel que deve ser desenvolvido pela "educacao es-

tetica" para formar homens capazes de viver numa co-

munidade politica livre. Sobre essa base, construiu-se a

ideia da modernidade como tempo dedicado a realizacao

sensivel de uma humanidade ainda latente do homem.

Quanto a esse aspecto, pode-se dizer que a "revolucao es-

tetica" produziu uma nova ideia da revolucao politica,

como realizacao sensivel de uma humanidade comum

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existindo ainda somente enquanto ideia. Foi assim que

o "estado esterico" schilleriano tornou-se 0 "programa

estetico" do romantismo alernao, 0programa resumido

no rascunho redigido em comum por Hegel, Holderlin

e Schelling: a realizacao sensivel, nas formas de vida e de

crenca populares, da liberdade incondicional do pensa-

mento puro. E foi esse paradigma de autonomia esteti-ca que se tornou 0 novo paradigma da revolucao, e per-

mitiu ulteriormente 0breve, mas decisivo, encontro dos

artesaos da revolucao marxista e dos artesaos das formas

da nova vida. A falencia dessa revolucao determinou 0

destino - em dois tempos - do modernitarismo. Num

primeiro tempo, 0 modernismo artfstico foi contrapos-

to, com seu potencial revolucionario autentico de recusa

e promessa, a degenerescencia da revolucao polftica. 0surrealismo e a Escola de Frankfurt foram os principais

vetores dessa contramodernidade. No segundo tempo, a

falencia da revolucao polftica foi pensada como falencia

de seu modelo ontologico-estetico. A modernidade, en-

tao, tornou-se algo como um destino fatal fundado num

esquecimento fundamental: essencia heideggeriana da

tecnica, corte revolucionario da cabeca do rei e da tradi-

cao humana, e, finalmente, pecado original da criatura

humana, esquecida da sua divida para com 0Outro e da

sua subrnissao as potencias heterogeneas do sensivel.

o que se chama de pos-modernismo e propriamen-

te 0 processo dessa reviravolta. N um primeiro tempo, 0

pos-rnodernismo trouxe a tona tudo aquilo que, na evo-

lucao recente das artes e de suas formas de pensabilidade,

arruinava 0 edificio teorico do modernismo: as passagens

e as misturas entre as artes que arruinavam a ortodoxia

da separacao das artes inspirada por Lessing; a rufna do

paradigma da arquitetura funcionalista e 0 retorno da li-

nha curva e do ornamento; a rufna do modelo picturallbidimensionallabstrato atraves dos retornos da figura<;ao

e da significacao e a lenta iJ1VaSaOdo espa<;ode exposi-

cao das pinturas por forrnas tridimensionais e narrativas,

da pop art a arte das instalacoes e as "camaras" da video-

-arte;6 as novas cornbinacoes da palavra e da pintura, da

escultura monumental e da projecao de sombras e luzes;

a explosao da tradicao serial atraves das misturas de ge-

neros, epocas e sistemas musicais. 0 modelo teleologicoda modernidade tornou-se insustentavel, ao mesmo tem-

po que suas distincoes entre os "proprios" das diferentes

artes, ou a separacao de um dorninio puro da arte. 0

pos-modernismo, num certo sentido, foi apenas 0 nome

com 0 qual certos artistas e pensadores tomaram cons-

ciencia do que tinha sido 0modernismo: uma tentativa

desesperada de fundar urn "proprio da arte" atando-o a

uma teleologia simples da evolucao e da mptura histo-

ricas. E nao havia de fato necessidade de se fazer, desse

6 Cf Raymond Bellour, "La chambre", in L 'entre-images 2, Paris,

P.O.L., 1999.

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reconhecimento tardio de um dado fundamental do re-

gime estetico das artes, um corte temporal efetivo, 0 fim

real de um perfodo historico.

Mas, precisamente, 0 que se seguiu mostrou que 0

pos-rnodernismo era mais do que isso. Muito rapida-

mente, a alegre licenca pos-rnoderna, sua exaltacao do

carnaval dos simulacros, mesticagern e hibridacoes de to-dos os tipos, transformou-se em contestacao dessa liber-

dade ou autonomia que 0 principio modernirario dava

- ou teria dado - a arte a missao de cumprir. Do car-

naval voltou-se entao a cena primitiva, Todavia, a cena

primitiva pode ser tomada em dois sentidos: ponto de

partida de um processo ou separacao original. A fe mo-

dernista tinha se atrelado a ideia dessa "educacao esteti-

ca do homem" que Schiller extraira da analitica kantia-na do belo. A reviravolta pos-moderna teve como base

reorica a analise feita por Lyotard do sublime kantiano,

reinterpretado como cena de uma distancia fundadora

entre a ideia e toda representacao sensivel. A partir dai,

o pos-modernismo entrou no grande concerto do luto e

do arrependimento do pensamento modemitario. E a

cena da distancia sublime acabou resumindo todos os ti-

pos de cenas de pecado ou distancia original: a fuga hei-

deggeriana dos deuses; 0irredutivel freudiano do objeto

nao-simbolizavel e da pulsao de morte; a voz do Abso-

lutamente Outro pronunciando a proibicao da represen-

tacao; 0assassinio revolucionario do Pai. 0 pos-moder-

nismo tornou-se entao a grande nenia do irrepresentavel/

intratavel/irrecobravel, den unci ando a loucura moderna

da ideia de uma autoernancipacao da humanidade do

homem e sua inevitavel e interrninavel conclusao nos

campos de exterminio.

A nocao de vanguarda define 0 tipo de tema que

convern a visao modernista e proprio a conectar, segun-do essa visao, 0esretico e 0politico. Seu sucesso esta me-

nos na conexao cornoda que produz entre a ideia artls-

tica da novidade e a ideia da direcao politica do movi-

mento, do que na conexao mais secreta que opera entre

duas ideias de "vanguarda". Existe a nocao topografica e

militar da forca que marcha a frente, que detern a inte-

ligen cia do movimento, concentra suas forcas, deterrni-

na 0 sentido da evolucao historica e escolhe as orienta-<;:oespolfticas subjetivas. Enfim, ha essa ideia que liga a

subjetividade polftica a uma determinada forma - do

partido, do destacamento avancado extraindo sua capa-

cidade dirigente de sua capacidade para ler e interpretar

os signos da historia. E ha essa outra ideia de vanguarda

que se enraiza na antecipacao esretica do futuro, segun-

do 0 modelo schilleriano. Se 0 conceito de vanguarda

tern um sentido no regime estetico das artes, e desse lado

que se deve encontra-lo: nao do lado dos destacamentos

avancados da novidade artistica, mas do lado da inven-

<;:aode formas sensiveis e dos limites materiais de uma

vida por vir. E isso que a vanguarda "estetica" trouxe a

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vanguarda "polftica", ou que ela quis ou acreditou lhe

trazer, transformando a polftica em programa total de

vida. A historia das relacoes entre partidos e movimen-

tos esteticos e antes de mais nada a historia de uma con-

fusao, as vezes complacentemente entretida, em outros

momentos violentamente denunciada, entre essas duas

ideias de vanguarda, que sao, com efeito, duas ideias di-ferentes da subjetividade polfrica: a ideia arquipolftica do

partido, isto e , a ideia de uma inteligencia polftica que

concentra as condicoes essenciais da transtormacao, e a

ideia rnetapolftica da subjetividade polftica global, a

ideia da virtualidade nos modos de experiencia sensfveis

inovadores de antecipacao da comunidade por vir. Mas

essa confusao nada tern de acidental. Nao e que, segun-

do a doxa conremporanea, as pretensoes dos artistas auma revolucao total do sensfvel tenham preparado 0 ter-

reno para 0 totalitarismo. Trata-se, porern, do fato de

que a propria ideia de vanguarda polftica esta dividida

entre a concepcao estraregica e a concepcao esterica de

vanguarda.

3.

D as a rte s mecanicas

e da prornocao estetica e c ien t ff ica

dos anonirnos

Em um de seu s tex tos , 0 se nh or fa z u m a a pro xim ac do

en tre 0 d e se n vo lv im e n to d a s a rt es " m e cd n ic as ", q ue s ao a fl-

t og ra fi a e 0 c in em a , e 0 n as cim e nto d a " no va b is to ri a ': P o-

d er ia e xp li ci ta r e ss a aprox imac i io? A id eia d e Ben ja min se-

gundo a qua l, no in ic io do seculo xx, com a ajuda dessas

aries , a s massas a dqu ir em visib ilid ad e e nqu an to ta is, c or -r es po n de ri a a e ss a aprox imacdo?

Em primeiro lugar, talvez exista urn equivoco a ser

esdarecido quanto a nocao de "artes rnecanicas". Apro-

ximei urn paradigma cientffico de urn paradigma esteti-

co . A tese benjaminiana, por sua vez, supoe outra coisa

que me parece duvidosa: a deducao das propriedades es-

teticas e polfticas de uma arte a partir de suas proprieda-

des tecnicas, As artes mecanicas induziriam, enquanto

artes mecdn icas , uma modificacao de paradigma artfsti-

co e uma nova relacao da arte com seus temas. Essa pro-

posicao remete a uma das teses mestras do modernismo:

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a que vincula a diferenca das artes a diterenca de suas

condicoes tecnicas ou de seu suporte ou medium especf-

fico. Essa assirnilacao pode ser compreendida no modo

modernista simples ou segundo a hiperbole modernita-

ria. Eo sucesso persistente das teses benjaminianas sobre

a arte na era da reproducao mecanica se deve, sem duvi-

da, a passagem que asseguram entre as categorias da ex-

plicacao rnaterialisra marxista e da ontologia heidegge-

riana, referindo 0 tempo da modernidade ao desdobra-

mento da essencia da tecnica, De fato, esse vinculo en-

tre 0estetico e 0onto-tecnologico teve 0destino comum

das categorias modernistas. No tempo de Benjamin, de

Duchamp ou de Rodchenko, ele acompanhou a fe nos

poderes da eletricidade e da rnaquina, do ferro, vidro

ou concreto. Com a reviravolta dita "pos-moderna", eleacompanha 0retorno ao icone, aquele que faz do veu de

Veronica a essencia da pintura, cinema ou fotografia.

E preciso, no meu entender, que se tome as coisas

ao inverso. Para que as artes mecanicas possam dar visibi-

lidade as massas ou, antes, ao indivfduo anonimo, preci-

sam primeiro ser reconhecidas como artes. Isto e, devem

primeiro ser praticadas e reconhecidas como outra coi-

sa, e nao como tecnicas de reproducao e difusao, 0 mes-

mo princtpio, portanto, confere visibilidade a qualquer

um e faz com que a fotografia e 0cinema possam ser ar-

tes. Pode-se ate inverter a formula: porque 0 anonimo

tornou-se urn tema artfstico, sua gravacao pode ser uma

arte. Que 0anonimo seja nao so capaz de tornar-se arte,

mas tambern depositario de uma beleza especifica, e algo

que caracteriza propriamente 0regime estetico das artes.

Este nao so cornecou bern antes das artes da reproducao

mecanica, como foi ele que, com sua nova maneira de

pensar a arte e seus temas, tornou-as possfvel,

o regime estetico das artes e, antes de tudo, a rut-

na do sistema da representacao, isto e, de urn sistema em

que a dignidade dos temas comandava a hierarquia dos

generos da representacao (tragedia para os nobres, come-

dia para a plebe; pintura de historia contra pintura de ge-

nero etc). 0 sistema da representacao definia, com os ge-

neros, as situacoes e formas de expressao que convinham

a baixeza ou a elevacao do tema. 0 regime estetico das

artes desfaz essa correlacao entre tema e modo de repre-sentacao. Tal revolucao acontece prirneiro na literatura.

Que uma epoca e uma sociedade possam ser lidas nos

traces, vestimentas ou gestos de urn individuo qualquer

(Balzac), que 0 esgoto seja revelador de uma civilizacao

(Hugo), que a filha do fazendeiro e a mulher do ban-

queiro sejam capturadas pela mesma potencia do estilo

como "rnaneira absoluta de ver as coisas" (Flaubert), to-

das essas formas de anulacao ou de subversao da oposi-

cao do alto e do baixo nao apenas precedem os poderes

da reproducao mecanica. Eles tornam possfvel que esta

seja mais do que a reproducao mecanica. Para que urn

dado modo de fazer tecnico - urn uso das palavras ou

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da camera - seja qualificado como pertencendo a arte,

e preciso primeiramente que seu tema 0seja. A fotogra-

fia nao se constituiu como arte em razao de sua nature-

za tecnica, 0 discurso sobre a originalidade da fotografia

como arte "indicial" e urn discurso bastante recente, que

pertence menos a historia da fotografia que a historia da

reviravolta pos-moderna evocada acima? Tambern naofoi imitando as maneiras da arte que a fotografia tornou-

-se arte. Benjamin rnostra-o bern a proposito de David

Octavius Hill: e atraves da pequena pescadora anonima

de New Haven, e nao de suas grandes cornposicoes pic-

turais, que ele faz a fotografia entrar no mundo da arte.

T ambern nao foram os temas etereos e os flous artisticos

do pictorialismo que asseguraram 0estatuto da arre foro-

grafica, mas sim a assuncao do q ua lq ue r u m : os emigran-tes de T he S te er ag e de Stieglitz, os retratos frontais de

Paul Strand ou de Walker Evans. A revolucao tecnica vern

depois da revolucao estetica. Mas a revolucao estetica e

antes de tudo a gloria do qua lquer um - que e pictural

e literaria, antes de ser fotografica ou cinernatografica.

Acrescentemos que ela pertence a ciencia do escri-

tor antes de pertencer a do historiador. Nao foram 0ci-

nema e a fotografia que determinaram os temas e os rno-

dos de focalizacao da "nova historia". Sao a nova cien-

cia historica e as artes da reproducao mecanica que se

inscrevem na mesma logic a da revolucao estetica. Passar

dos grandes acontecimentos e personagens a vida dos

anonimos, identificar os sintomas de uma epoca, socie-

dade ou civilizacao nos detalhes Infimos da vida ordi-naria, explicar a superficie pelas camadas subterraneas e

reconstituir mundos a partir de seus vestigios, e urn pro-

grama literario, antes de ser cientffico. Nao se trata ape-

nas de compreender que a ciencia historica tern uma pre-

-historia literaria. A propria literatura se constitui como

urna determinada sintomatologia da sociedade e contra-

poe essa sintomatologia aos gritos e ficcoes da cena pu-

blica. No prefacio de Cromwel l , Hugo reivindicava paraa literatura uma historia dos costumes que se opunha a

historia dos acontecirnentos praticada pelos historiado-

res. Em Gu er ra e p a z, T olstoi contrapunha os documen-

tos da literatura, tirados das narrativas e testemunhos da

acao de inumeraveis atores anonimos, aos documentos

dos historiadores tirados dos arquivos - e das ficcoes -

daqueles que acreditam comandar as batalhas e fazer a

historia. 0 conhecimento historico integrou a oposicao

quando contrapos a velha historia dos principes, batalhas

e tratados, fundada na cronica das cortes e relatorios di-

plornaticos, a historia dos modos de vida das massas e

dos ciclos da vida material, fundada na leitura e interpre-

7 A vocacao polernica ancimodernista dessa descoberta tardia da

"origem" da fotografia, calcada sobre 0mito da invencao da pinrura por

Dibutade, aparece claramence, tanto em Roland Barthes (A cdmara clara)

como em Rosalind Krauss (0 fotogrdfico).

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tacao das "testernunhas mudas". 0 surgimento das mas-

sas na cena da historia ou nas "novas" imagens nao signi-

fica 0 vinculo entre a era das massas e a era da ciencia e

da tecnica. Mas simalogica estetica de urn modo devisi-

bilidade que,'p0r urn 1;190,xevogaas escalas de grandeza

cia tradicao representativa e,,,por outro, revoga 0mode-

10 oratorio da palavra em proveito da Ieitura dossignossobre os corpos das coisas, dos homens e das sociedades. '

o conhecimento historico e herdeiro disso. Mas eie

sepa~~ ~ condicao de seu novo objeto '( a ~ida dos anoni-

mos) de sua origem literaria e da politica da literatura em

que se inscreve. 0que ele deixa de lado - e que 0 ci-

nema e a fotografia retomam - e a logica que a tradi-

cao romanesca, de Balzac a Proust ate 0 surrealismo, faz

aparecer, esse pensamento do verdadeiro do qual Marx,Freud, Benjamin e a tradicao do "pensamento critico"

sao herdeiros: 0banal torna-se belo como rastro do ver-

dadeiro. E ele se torna rastrod~~~~d~ddr~~'~ .~~~~~~-

carrnos de sua evidencia para dele fazer urn hienSgllfo,

uma figura mitologica ou Iantasmagorica. Essa dime~sao

fantasrnagorica do verdadeiro, que pertence ao regime

estetico das artes, teve urn papel essencial na constitui-

cao do paradigma critico das ciencias humanas e sociais.

A teoria marxista do fetichismo e seu testemunho rnais

fulgurante: e preciso extirpar a mercadoria c,le.,§Y<1.~p~r.~n-

cia trivial, transforrna-la em objet9J~nJaSmagQr.icQ."para,

que nela seja lida a expressao das contradicoes de.uma.so-

ciedade. 0 conhecimento historico entendeu fazer uma

selecao no interior da configuracao estetico-politica que

lhe da seu objeto. E aplaina essa fantasmagoria do ver-

dadeiro nos conceitos sociologicos positivistas da men-

talidade/expressao e da crenca/ignorancia,

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4.

Se e preciso concluir

que a historia e ficcao,

Dos modos da ficcao

E melhor cornecar pelo segundo, a "positividade"

da ficcao analisada no texto a que voce se refere.8 Essa

positividade implica, por si mesma, uma dupla questao:

a questao geral da racionalidade da ficcao, is to e , da dis-

tincao entre ficcao e falsidade, e a questao da distincao

- ou indistincao - entre os modos de inteligibilidade

apropriados a construcao de historias e aqueles que ser-vern a inteligencia dos fenomenos historicos, Cornece-

mos pelo corneco. A separacao da ideia de ficcio da ideia

de mentira define a especificidade do regime representa-

tivo das artes. Este autonomiza as formas das artes no

que diz respeito a economia das ocupacoes comuns e a

contraeconomia dos simulacros, propria ao regime eti-

co das imagens. E precisamente 0 que esta em jogo na

Poet ica de Aristoteles. As formas da mimes is poetica sao

af subtraidas a suspeita platonica relativa a consistencia

e a destinacao das imagens. A Poetica proclama que a

ordenacao de acoes do poema nao significa a feitura de

urn simulacro. E urn jogo de saber que se da num espa-

co-tempo determinado. Fingir nao e propor engodos,

porem elaborar estruturas inteligiveis. A poesia nao tern

contas a prestar quanto a "verdade" daquilo que diz, por-

que, em seu principio, nao e feita de imagens ou enun-

o s e nh o r s e r e fi re a i de ia d e f ic r ;a o c omo e s se n ci alme nt epositiva. 0qu e s e d e ve e n te nd er e xa ta m en te p or is so ? Q ua is

sa o o s u in cu lo s en tre a H isto ria n a qu al es ta mo s " em ba rc a-

dos" e as bistorias c on ta d as ( ou d es co ns tr uid a s) p el as a rt es

n arr ativa s? E co mo c om pree nd er qu e o s e nu nc ia do s poeti-

c os o u lite rd rio s " ga nb am c orp o ' : qu e te nh am e fiito s re ais,

a o in ue s d e s er em r efle xo s d o r ea l? A s id eia s d e " co rp osp oli-

ticos" ou de "co rpos d a com un i dade " s ao m ais do que m e-

t df or as ? E ss a r ef le xa o i m pl ic a um a r ed ef in ir ;a o d a u to p ia ?

Ha dois problemas ai, alguns costumam confundi-

-los para melhor construir 0fantasma de uma realidade

historica que seria feita apenas de "ficcoes", 0 primeiro

problema concerne a relacao entre historia e historicida-

de, isto e , a relacao do agente historico com 0ser falan-

teo 0 segundo, concerne a ideia de fic<_;:ao a relacao en-

tre a racionalidade ficcional e os modos de explicacao da

realidade historica e social, entre a razao das ficcoes e a

razao dos fatos.

8 Jacques Ranciere, "La fiction de mernoire: a propos du Tombeau

d 'Alexandre de Chris Marker", in Trafic, nO29, Primavera 1999, pp. 36-

47.

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ciados, mas de ficcoes, isto e , de coordenacoes entre atos.

Outra consequencia tirada por Arisroteles e a da supe-

rioridade da poesia, que confere uma logica causal a uma

ordenacao de acontecimentos, sobre a historia, condena-

da a apresentar os acontecimentos segundo a desordem

ernpfrica deles. Dito de outro modo - e isso e eviden-

ternente algo que os historiadores nao gostam muito deolhar de perro -, a nitida separacao entre realidade e

ficcao representa rambern a impossibilidade de uma ra-

cionalidade da historia e de sua ciencia.

A revolucao estetica redistribui 0jogo tornando so-

lidarias duas coisas: a indefinicao das fronteiras entre a

razao dos fatos e a razao das ficcoes e 0 novo modo de

racionalidade da ciencia historica. Declarando que 0

principio da poesia nao e a ficcao, mas urn determinado

arranjo dos signos da linguagem, a idade romantica tor-

na indefinida a linha divisoria que isolava a arte da juris-

dicao dos enunciados ou das imagens, bern como aque-

la que separava a razao dos fatos e a razao das historias.

Nao que ela tenha, como se diz as vezes, consagrado 0

"autorelismo" da linguagem, separada da realidade. Mui-

to pelo contrario. A idade rornantica forca de fato a lin-

guagem a penetrar na materialidade dos traces atraves

dos quais 0mundo historico e social se torna visfvel a si

mesmo, ainda que sob a forma da linguagem muda das

coisas e da linguagem cifrada das imagens. E a circula-

<;aonessa paisagem de signos que define a nova ficcio-

nalidade: a nova maneira de contar historias, que e , an-

tes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao univer-

so "ernpfrico" das acoes obscuras e dos objetos banais. A

ordenacao ficcional deixa de ser 0 encadeamento causal

aristotelico das acoes "segundo a necessidade e a veros-

similhanca", T orna-se uma ordenacao de signos. T oda-

via, essa ordenacao literaria de signos nao e de forma al-guma uma autorrreferencialidade solitaria da linguagem.

E a identificacao dos modos da construcao ficcional aos

modos de uma leitura dos sign os escritos na configura-

<;aode urn lugar, urn grupo, urn rnuro, uma roupa, urn

rosto. E a assimilacao das aceleracoes ou desaceleracoes

da linguagem, de suas prolusoes de imagens ou altera-

coes de tom, de todas suas diferencas de potencial entre

o insignificante e 0 supersignificante, as modalidades da

viagem pela paisagem dos traces significativos dispostos

na topografia dos espa<;os, na fisiologia dos drculos so-

ciais, na expressao silenciosa dos corpos. A "ficcionaii-

dade" propria da era estetica se desdobra assim entre dois

polos: entre a potencia de significacao inerente as coisas

mudas e a potencializacao dos discursos e dos nfveis de

significacao.

A soberania estetica da literatura nao e , portanto, 0

reino da ficcao. E , ao contrario, urn regime de indistin-

<;aotendencial entre a razao das ordenacoes descritivas e

narrativas da ficcao e as ordenacoes da descricao e inter-

pretacao dos fen6menos do mundo historico e social.

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Quando Balzac instala 0 leitor diante dos hieroglifos en-

trelacados na fachada instavel e heteroclita de L a m aiso n

d u c ha t qu i p elo te9 ou 0 faz entrar, com 0 heroi de A p ele

d e o na gr o, na loja do antiquario onde se acumulam em

desordem objetos profanos e sagrados, selvagens e civi-

lizados, antigos e modernos, que resumem, cada urn, urn

mundo; quando faz de Cuvier 0verdadeiro poeta quereconstitui todo urn mundo a partir de urn fossil, esta-

belece urn regime de equivalencia entre os signos do no-

vo romance e os signos da descricao ou da interpretacao

dos Ienomenos de uma civilizacao, Ele forja essa nova

racionalidade do banal e do obscuro que se contrapoe as

grandes ordenacoes aristotelicas e se tornara a nova racio-

nalidade da historia da vida material oposta as historias

dos grandes feitos e dos grandes personagens.

Assim se encontra revogada a linha divisoria aris-

totelica entre duas "historias" - ados historiadores e a

dos poetas -, a qual nao separava somente a realidade

e a ficcao, mas tam bern a sucessao empirica e a necessi-

dade construida. Aristoteles fundava a superioridade da

poesia, que conta "0 que poderia suceder" segundo a ne-

cessidade ou a verossirnilhanca da ordenacao das acoes

poeticas, sobre a historia, concebida como sucessao em-

pirica dos acontecimentos, "do que sucedeu". A revolu-

s:aoestetica transforma radical mente as coisas: 5! testernu-

nho e a ficcao pertencem a urn mesmo regime de senti-

do. De urn lado, 0 "empirico" traz as marcas do verda-

deiro sob a forma de rastros e vestigios. "0 que sucedeu"

remete po i s diretamente a urn regime de verdade, urn

regime de mostracdo de sua propria necessidade.I'' Dooutro, "0 que poderia suceder" nao tern mais a forma au-

ronoma e linear da ordenacao de acoes. A "historia" poe-

tica, desde entao, articula 0 realismo que nos mostra os

rastos poeticos inscritos na realidade mesma e 0 artificia-

lismo que monta maquinas de cornpreensao complexas.

Essa articulacao passou da literatura para a nova arte

da narrativa: 0cinema. Esre eleva a sua maior potencia

o duplo expediente da impressao muda que fala e da

montagem que calcula as potencias de significancia e os

valores de verdade. E < ? cinema docurnentario, 0 cinema

que se dedica ao "real" e, neste sentido, capaz de uma in-

vencao ficcional mais forte que 0 cinema de "ficcao", que

se dedica facilmente a certa estereotipia das acoes e dos

ripos caracteristicos. 0 tumulo d e A l ex a nd r e de Chris

Marker, objeto do artigo ao qual voces se referem, fie-

ciona a historia da Russia do tempo dos tsares na epoca

9 Novela de Balzac, publicada pela primeira vez com essetitulo em

junho de 1842, na edicao Fume de La comedie humaine (Scenes de la vie

priuee, tomo I), onde aparece logo apos 0Prologo. (N. da T.)

10 "Mostracao", grifo nosso, no original: "monstration"; neologismo

do frances. (N. da T.)

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do pos-comunisrno atraves do destino de urn cineasta,

Alexandre Medvedkine. Nao faz dele urn personagem

ficcional, nao conta historias inventadas sobre a URSS.

Joga com a combina<;:ao de diferentes ripos de rastros

(entrevistas, rostos significativos, documentos de arqui-

yo, trechos de filmes documentarios e de fic<;:aoetc.) para

propor possibilidades de pensar essa historia, 0 real pre-

cisa ser ficcionado para ser pensado. Essa proposicao de-

ve ser distinguida de todo discurso - positivo ou nega-

rivo - segundo 0qual tudo seria "narrativa", com al-

ternancias entre "grandes" e "pequenas" narrativas. A no-

<;:aode "narrativa" nos aprisiona nas oposicoes do real e

do artiffcio em que se perdem igualmente positivistas e

desconstrucionistas. Nao se trata de dizer que tudo e fie-

cao, Trata-se de constatar que a flc<;:aoda era estetica de-

finiu modelos de conexao entre apresentacao dos fatos e

formas de inteligibilidade que tornam indefinida afron-

teira entre razao dos fatos e razao da fic<;:ao,e que esses

modos de conexao foram retomados pelos historiadores

e analistas da realidade social. Escrever a historia e escre-

ver historias pertencem a urn mesmo regime de verdade.

Isso nao tern nada a ver com nenhuma tese de realidade

ou irrealidade das coisas. Em compertsacfio, e claro que

urn modelo de fabricacao de historias esta ligado a uma

determinada ideia da historia como destino comum,

com uma ideia daqueles que "fazem historia", e que essa

interpenetracao entre razao dos fatos e razao das histo-

rias e propria de uma epoca em que qualquer urn e con-

siderado como cooperando com a tarefa de "fazer" a his-

toria. Nao se trata pois de dizer que a "Historia" e feita

apenas das historias que nos nos contamos, mas simples-

mente que a "razao das historias" e as capacidades de agir

como agentes historicos andam juntas. A politica e a ar-

te, tanto quanta os saberes, constroern "ficcoes", isto e,rearranjos materials dos signos e d~s imagens, das rela-

coes entre 0que se ve e 0que se diz, entre 0 se faz e 0

que se pode fazer.

Reencontramos aqui a outra questao que se refere

a relacao entre literalidade e historicidade, Os enuncia-

dos politicos ou literarios fazem efeito no real. Definem

modelos de palavra ou de acao, mas tam bern regimes de

intensidade sensivel. Tracarn mapas do visivel, trajetorias

entre 0 visivel e 0 dizfvel, relacoes entres modos do ser,

modos do fazer e modos do dizer. Definem variacoes das

intensidades sensiveis, das percepcoes e capacidades dos

COl·pOS.Assim se apropriam dos humanos quaisquer, ca-

yam distancias, abrem derivacoes, modificam as manei-

ras, as velocidades e os trajetos segundo os quais aderem

a uma condicao, reagem a situacoes, reconhecem suas

imagens. Reconfiguram 0mapa do sensivel confundindo

a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos

cidos naturais da producao, reproducao e subrnissao, 0

homem e urn animal politico porque e urn animal lite-

rario, que se deixa desviar de sua destinacao "natural"

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pelo poder das palavras. Essa l i teralidade e ao mesmo

tempo a condicao e 0efeito da circulacao dos en uncia-

dos literarios "propriamente ditos". Mas os enunciados

se apropriam dos corpos e os desviam de sua destinacao

na medida em que nao sao corpos no sentido de orga-

nismos, mas quase-corpos, blocos de palavras circulan-

do sem pai legitimo que os acompanhe ate urn destina-tario autorizado. Por isso nao produzem COlpoScoleti-

vos. Antes, porem, introduzem nos COl'pOSoletivos ima-

ginarios linhas de fratura, de desincorporacao, Como se

sabe, is so sempre foi a obsessao dos governantes e dos

teoricos do born governo, preocupados com a "desclas-

sificacao" produzida pela circulacao da escrita, E tam-

bern, no seculo XIX, a obsessao dos escritores "propria-

mente ditos", que escrevem para denunciar essa literali-

dade que transborda a instituicao da literatura e desvia

suas producoes. E verdade que a circulacao desses qua-

se-corpos determina modificacoes na percepcao sensfvel

do comum, da relacao entre 0comum da lingua e a dis-

> tribuicao sensfvel dos espac;:ose ocupacoes. Desenham,

assim, comunidades aleatorias que contribuem para a

formacao de coletivos de enunciacao que repoem ern

questao a distribuicao dos papeis, dos territories e das

linguagens - em resumo, desses sujeitos politicos que

recolocam em causa a partilha ja dada do sensivel. Mas

precisamente urn coletivo politico nao e urn organismo

ou urn corpo comunitario. As vias da subjetivacao poll-

tica nao sao as da idenrificacao imaginaria, mas as da de-

. ~ " 1 ' , . " 11sincorporacao uerana .

Nao estou seguro de que a nocao de utopia de conta

desse trabalho. E uma palavra cujas capacidades de de-

finicao foram completamente devoradas por suas pro-

priedades conotativas: ora 0 louco devaneio Ievando a ca-

tastrofe totalitaria, ora, ao inverso, a abertura infinita dopossfvel que resiste a todas as oclusoes totalizantes. Do

ponto de vista que nos ocupa, 0das recontiguracoes do

sensivel comum, a palavra utopia carrega duas significa-

<;:oescontraditorias. A utopia e 0 nao-lugar, 0 ponto ex-

tremo de uma reconfiguracao polemics do sensivel, que

rompe com as categorias da evidencia. Mas rambem e a

configuracao de urn born lugar, de uma partilha nao po-

lernica do universo sensivel, onde 0 que se faz, se ve e se

diz se ajustam exatamente. As utopias e os socialismos

uropicos funcionaram com base nessa ambiguidade: por

urn lado, como revogacao das evidencias sensiveis nas

quais se enralza a normalidade da dominacao; por outro,

como proposicao de urn estado de coisas no qual a ideia

da comunidade encontraria suas forrnas adequadas de in-

corporacao, no qual seria portanto suprimida a contes-

IISobre esta quesrao, perrnito-me remeter a meu livro Les Nom s de

l 'h is to ire, Paris, Le Seuil, 1992 [edicao brasileira: O s n om es da h is t6 ri a: u m

e ns ai o d e p oe ti ca d o s ab er , rraducao de Eduardo Guimaraes e Eni Puccinelli

Orlandi, Sao Paulo, EduclPontes, 1994].

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tacao a respeito das relacoes das palavras com as coisas,

que constitui 0 nucleo da polftica. Em A n oite d os p ro le -

tdr ios , eu havia analisado desse ponto de vista 0 encon-

tro complexo entre os engenheiros da utopia e os opera-

rios.12

0 que os engenheiros saint-simonianos propu-

nham era urn novo corpo real da comunidade, no qual

as vias fluviais e os trilhos tracados no chao tomariam 0

lugar das ilus6es da palavra e do papel. 0 que os opera-

rios fazem nao e opor a pratica a utopia, mas devolver a

esta ultima seu carater de "irrealidade", de montagem de

palavras e de imagens, proprio para reconfigurar 0terri-

torio do visfvel, do pensavel e do possivel. As "ficcoes"

da arte e da polfrica sao, portanto, heterotopias mais do

que utopias.

5.

Da arte e do trabalho.

Em que as praticas da arte

constituem e nao constituem

uma excecao as outras praticas

Na bipotese d e u m a " fiib ric a d o s en siu el" , 0 vinculo

en tre a prd tic a a rtis tic a e su a a pa ren te ex ter io rid ade , o u

se ja , 0 t raba lho , e e ss en c ia l C omo 0 s e nh o r c o n ce b e e s se v in -c u lo ( ex cl us d o, d is ti nc d o. i nd ij er en c a .. .)? P o de -s e f o la r d o

" ag ir h um a no " e m g er al e n ele e ng lo ba r a s p rd ti ca s a rtls ti-

c as , o u e sta s c on st itu ir ia m u m a e xc ec do a s o utr as p rd ti ca s?

12 Cf. Jacques Ranciere, A n oite d os p ro le td rio s: a rq uiu os d o s on ho o pe -

rdrio, traducao de Marilda Pedreira, Sao Paulo, Companhia das Letras,

1988. (N. da T.)

Pela nocao de "fabrica do sensivel", pode-se enten-

der primeiramente a constituicao de urn mundo sensivel

comum, uma habitacao comum, pelo entrelacamento de

uma pluralidade de atividades humanas. Mas a ideia de

"partilha do sensive1" implica algo mais. Urn mundo

"conium" nao e nunca simplesmente 0 e thos , a estadia

comum, que resulta da sedimentacao de urn deterrnina-

do nurnero de atos entrelacados. E sempre uma distri-

buicao polernica das maneiras de ser e das "ocupacoes"

num espa<;:ode possiveis. A partir dai e que se pode co-

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locar a questao da relacao entre 0 "ordinario" do traba-

lho e a "excepcionalidade" artistica. E aqui, mais uma

vez, a referencia platonica pode ajudar a colocar os ter-

mos do problema. No terceiro livro da Republ ica , 0 fa-

zedor de mimes i s e condenado nao mais apenas pela fal-

sidade e pelo carater pernicioso das imagens que propoe,

mas segundo urn principio de divisao do trabalho que jahavia servido para excluir os artesaos de todo espa<;:opo-

litico com urn: 0fazedor de mimes i s e, por definicao, urn

ser duplo, Ele faz duas coisas ao mesmo tempo, quando

o princfpio de uma sociedade bern organizada e que cada

urn faca apenas uma s6 coisa, aquela a qual sua "nature-

za" 0destina. Em certo sentido, isso diz tudo: a ideia do

trabalho nao e a de uma atividade determinada ou a de

urn processo de transforrnacao material. E a ideia de uma

partilha do sensfvel: uma impossibilidade de fazer "ou-

tra coisa", fundada na "ausencia de tempo". Essa "irn-

possibilidade" faz parte da concepcao incorporada da co-

munidade. Ela coloca 0 trabalho como encarceramento

do trabalhador no espa<;:o-tempo privado de sua ocupa-

<;:ao,sua exclusao da participacao ao comum. 0 fazedor

de mimes i s perturb a essa partilha: ele e 0homem do du-

plo, urn trabalhador que faz duas coisas ao mesmo tem-

po. 0 mais importante talvez seja 0 correlato: 0 fazedor

de mimes i s confere ao principio "privado" do trabalho

uma cena publica, Ele constitui uma cena do comum

com 0que deveria determinar 0 confinamento de cada

urn ao seu lugar. E nessa re-partilha do sensfvel que con-

siste sua nocividade, mais ainda do que no perigo dos si-

mulacros que amolecem as almas. Assim, a pratica artis-

tica nao e a exterioridade do trabalho, mas sua forma de

visibilidade deslocada. A partilha dernocratica do sensf-

vel faz do trabalhador urn ser duple. Ela tira 0artesao do

"seu" lugar, 0espa<;:odomestico do trabalho, e the da 0

"tempo" de estar no espa<;:odas discussoes publicas e na

identidade do cidadao deliberante. A duplicacao mime-

tica a obra no espa<;:oteatral consagra e visualiza essa dua-

lidade. E, do ponto de vista de Platao, a exclusao do fa-

zedor de mimes i s vai de par com a constituicao de uma

comunidade onde 0 trabalho esta no "seu" lugar.

o principio de ficcao que rege 0 regime represen-

tativo da arte e uma maneira de estabilizar a excecao ar-

ti~'t'i~~:de arribui-la a uma tekhne, 0que quer dizer duas

coisas: a arte das irnitacoes e uma tecnica e nao uma

mentira. Ela deixa de ser urn simulacro, mas cessa ao

mesmo tempo de ser a visibilidade deslocada do traba-

lho como partilha do sensfvel. 0 imitador nao e mais 0

ser duplo ao qual e preciso opor a polis onde cada urn s6

faz uma coisa. A arte das imitacoes pode inscrever suas

hierarquias e exclusoes pr6prias na grande divisao entre

artes liberais e artes mecanicas.

o regime estetico das artes transforma radical men-

te essa reparticao dos espa<;:os.Ele nao recoloca em cau-

sa apenas a duplicacao mimetica em proveito de uma

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imanencia do pensamento na materia sensivel. Coloca

tambern em causa 0 estatuto .neutralizado. da t r : . k b n c , _ ~ ,

ideia da tecnica como imposicao 4 < : . 1 l J : D " Q forma .de..pen-:-

samento a uma materiaine~t~. Isto e, faz vir a tona nova-

mente a partilha dasocupa~i5es que sustenta a reparticao

dos dominios de atividade. E essa operacao teo rica e po-

lItica que esta no centro das Cartas sobre a educacdo este-tica do homem de Schiller. Na esteira da definicao kan-

tiana do julgamento estetico como julgamento sem con-

ceito - sem submissao do dado intuitivo a deterrnina-

<;:aoconceitual -, Schiller assinala a partilha polftica, ou

seja, 0que esta em jogo nessa operacao: a partilha entre

os que agem e os que suportam; entre as classes cult iva-

das, que tern acesso a uma totalizacao da experiencia vi-

vida, e as classes selvagens, afundadas nas Iragrnenracoes

do trabalho e da experiencia sensfvel, 0 estado "esteti-

co" de Schiller, suspendendo a oposicao entre entendi-

mento ativo e sensibilidade pass iva, quer arruinar, com

uma ideia da arte, uma ideia da sociedade fundada sobre

a oposicao entre os que pensam e decidem e os que sao

destinados aos trabalhos materiais.

Essa suspensi io do valor negativo do trabalho tor-

nou-se, no seculo XIX, a afirrnacao de seu valor positi-

vo como forma da efetividade comum do pensamento e

da comunidade. Tal rnutacao passou pela transformacao

da suspensao, propria ao "estado estetico", em afirmacao

positiva da vontade estetica. 0 romantismo proclama 0

devir-sensfvel de todo pensamento e 0 devir-pensamen-

to de toda materialidade sensivel como 0 objetivo mes-

mo da atividade do pens amen to em geral. A arte, assim,

torna-se outra vez urn simbolo do trabalho. Ela anteci-

pa 0 fim - a supressao das oposicoes - que 0 trabalho

ainda nao esta em condicoes de conquistar por e para si

mesmo. Mas 0 faz na medida em que e producao, iden-tidade de urn processo de efetuacao material e de uma

apresenracao a si do sentido da comunidade. A produ-

<;:aose afirma como 0principio de uma nova partilha do

sensivel, na medida em que une num mesmo conceito os

termos tradicionalmente opostos da atividade fabrican-

te e da visibilidade. Fabricar queria dizer habitar 0 espa-

<;:o-tempo privado e obscuro do trabalho alimenticio.

Produzir une ao ato de fabricar 0de tornar visivel, defi-

ne uma nova relacao entre 0Jazer e 0 ver. A arte anteci-

pa 0 trabalho porque ela realiza 0 principio dele: ' ! : . trans-

formacao da materia sensfvel em apresentacao a si da co-

munidade. Os textos do jovem Marx que conferem ao

trabalho 0 estatuto de essencia generica do homem so sao

possiveis sobre a base do programa esretico do idealismo

alemao: a arte como transformacao do pensamento em

experiencia sensivel da comunidade. E e esse programa

inicial que funda 0pensamento e a pratica das "vanguar-

das" dos anos 1920: suprimir a arte enquanto atividade

separada, devolve-la ao trabalho, isto e, a vida que ela-

bora seu proprio sentido.

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Nao pretendo dizer com isso que a valorizacao mo-

derna do trabalho seja somente 0efeito do novo modo

de pensamento da arte. Por um lado, 0modo estetico do

pensamento e bem mais do que um pensamento da arte.

Ii, uma ideia do pensamento, ligada a uma ideia da par-

tilha do sensivel. Por outro lado, tambern e preciso pen-

sar0

modo como a arte dos artistas foi definida a partirde uma dupla prornocao do trabalho: a prornocao eco-

nornica do trabalho como nome da atividade humana

fundamental, mas tambem as lutas proletarias para fazer

sair 0 trabalho da sua noite - de sua exclusao da visibi-

lidade e da palavra comuns. Ii, preciso sair do esquema

preguic;:oso e absurdo que op6e 0culto estetico da arte

pela arte a potencia ascendente do trabalho operario. Ii,

como trabalho que a arte pode adquirir 0 carater de ati-

vidade exdusiva. Mais atentos do que os desmistifica-

dores do seculo XX, os criticos conternporaneos de Flau-

bert assinalam 0 que vincula 0 culto da frase a valoriza-

c;:aodo trabalho dito sem frase: 0 esteta flaubertiano e um

quebrador de pedras. Arte e producao poderao se iden-

tificar no tempo da Revolucao Russa porque dependem

de um mesmo principio de reparticao do sensivel, de

uma mesma virtude do ato que inaugura uma visibilida-

de ao mesmo tempo que fabrica objetos. 0 culto da ar-

te sup6e uma revalorizacao das capacidades ligadas a

propria ideia de trabalho. Mas esta e menos a descober-

ta da essencia da atividade humana do que uma recom-

posicao da paisagem do visivel, da relacao entre 0fazer,

o ser, 0ver e 0 dizer. Qualquer que seja a especificidade

dos circuitos economicos nos quais se inserem, as prati-

cas artisticas nao constituem "uma excecao" as outras

praticas. Elas representam e reconfiguram as partilhas

dessas atividades.

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Sabre a autor

Jacques Ranciere e Professor Emerito de Estetica e Polftica na

Universidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000. Entre

suas ulti rnas obras publicadas na Franca, destacarn-se L' i nconsc i cn t

esthl t ique (200 I) , L a fo b Le cinematograpbique (2001), L e d es ti /I rl n

images (2003), L e s s ce ne s d u p eu pl e (2003), Ma la is e d a n s l 'e s tM t iq ll l'

(2004), L a h aine d e L a dem ocra tic (2005), L e s p ec ta te u r e m tl ll l' ip t'

( 20 0 8) cM omen ts p o L it iq u es : i nt er ve n ti on s 1977-2009 (2009). Allte.,

de A p ar tilh a d o s en siu el, teve os seguintes livros publicados no Bra-

sil: A n o ite d o s p ro le td ri os (Companhia das Letras, 1988), O s n am e s

d a h is tr J ri a (Educ/Pontes, 1994), P o li tic as d a e sc ri ta (Editora 34,

1995), 0desen t end imen to (Editora 34, 1996) e 0me s tr e i gn o r an te

(Autentica, 2004). Escreve regularmente para a F o Lh a d e S. Paulo c

para a revista L es C ah ie rs d u C in em a.

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