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Diretor-adjuntoMarcos Rezende Morandi

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Conselho Consultivo (Exclusivo deste número)Alaíde Maria Zabloski Baruffi – UFGD/Dourados; Marisa de Fátima Lomba de Farias – UEMS/Dourados; Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi – UNESP/Assis; Donaldo Belo de Souza – UERJ/Rio de Janeiro; Eudes Fernando Leite – UFGD/Dourados; Jorge Eremites de Oliveira – UFGD/Dourados; Lisandra Pereira Lamoso – UFGD/Dourados; Rosa Maria Farias Asmus – UEMS/Dourados; Adir Casaro Nascimento – UCDB/Campo Grande.

Capa e Projeto Gráfico: Kátia Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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OS (DES)CAMINHOS DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE A INFLUÊNCIA DOS POVOS BANTO NA

RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA E, EM ESPECIAL, NA UMBANDA10*

Mario Teixeira de Sá Junior11

10 Este trabalho foi apresentado originariamente, em forma de palestra, na segunda semana de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em Dezembro de 2003.

11 Doutorando em História da Universidade Estadual Paulista UNESP-ASSIS, Coordenador do Curso de Relações Internacionais, Faculdade Dourados (FAD).

RESUMOEste artigo procura examinar a relação entre as produções acadêmicas, no que diz respeito aos grupos Banto. Sugere

uma maior incursão na expressão Banto, para que se possa perceber a abrangência e as limitações de seu uso como

conceito definidor de etnias e culturas africanas. Propõe também uma maior utilização do método da etnoistória para

as pesquisas históricas em terreiros de religiosidade afro-brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: História. Etnoistória. Religião. Afro-brasileira. Umbanda. Banto. Lingüística

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ABSTRACTThis article seeks to examine the relation between the academic productions concerning the Banto groups. It suggests a greater incursion into the Banto expression, in order to notice its possibilities as definition concept of ethnic group and African cultures. It is also the intention of this article to propose a better use of ethnic historical methods to historical researches in terreiros of Africa-Brazilian religiosities.KEYWORDS: History. Ethnic History. Religion. African-Brazilian. Umbanda. Banto. and Linguistics.

1 INTRODUÇÃO

Ao ser convidado para participar da

mesa “Olhar acadêmico sobre as temáticas afro-

brasileiras” considerou-se oportuno abordar um

tema que se percebe merece dor de algumas

considerações: “Os (des) caminhos das produções

acadêmicas sobre a influência dos povos Banto na

religiosidade afro-brasileira e, em especial, sobre

a Umbanda”. O assunto é pertinente já que a

análise do mesmo recai sobre duas questões que

merecem um contínuo debate no meio acadêmico:

os conceitos de sincretismo e de cultura “Banto”,

sendo os mesmos basilares na discussão sobre

essa temática. Antes de abordar essas questões,

de forma mais específica, é necessário fazer

uma digressão aos estudos acadêmicos sobre as

religiosidades “afro-brasileiras”.

Os estudos referentes à religiosidade

“afro-brasileira”, historicamente, atribuem as

origens desses movimentos a, basicamente, três

grupos originários da África: Os Nagô, os Banto

e as nações islamizadas. Desde o final do século

XIX, o debate sobre a formação desse complexo

religioso é colocado, tendo como elementos

formadores esses três grupos. Ao se referir a eles,

Magnani declara que:

Ioruba ou Nagô - e suas divisões queto e ijexá -, jeje, fanti-ashanti são algumas das nações do chamado grupo sudanês; angola

congo, cabinda, benguela, Moçambique, do grupo Banto; haussa, peul, mandiga, tapa, nações islamizadas (1991, p.15).

Um dos precursores desses estudos no

Brasil, Nina Rodrigues (1935), afirma que os

primeiros teriam conseguido manter a tradição

africana dentro de suas práticas religiosas de uma

forma mais presente do que os outros dois grupos.

Assim, os Nagôs seriam os detentores de uma

religiosidade verdadeiramente africana, pura. Aos

Bantos coube o rótulo de misturados, enquanto os

islamizados, fortemente combatidos pelo Império,

principalmente após as Revoluções Malês da primeira

metade do século XIX e, possivelmente, tendo

alguns dos seus representantes sido deportados de

volta à África, deixaram suas marcas impressas nas

manifestações dos outros dois grupos citados, não se

constituindo em uma matriz isolada.

A expressão pureza Nagô remete a uma

série de significantes, como verdade, tradição,

legitimidade, dentre outros. Ela passa a simbolizar o

que há de mais legítimo e tradicional nos terreiros de

Candomblés e Xangôs12 no Brasil. Ser reconhecido

como Nagô é título que muitos almejam, mas

poucos conseguem de forma unânime dos seus

pares religiosos. Não ser Nagô ou Ioruba, é sinônimo,

no meio Nagô e de alguns intelectuais, de misturado,

impuro, não verdadeiro.

Dantas (1988, p.21), aborda essa questão

ao retomar pistas de pesquisas propostas por

Yvonne Velho (2001), Peter Fry (1982) e Patrícia

Birman (1985). A autora analisa essa “busca

obstinada” de encontrar a África no Brasil e a

sua conseqüente ligação com a pureza Nagô.

Ao perceber que essa pureza é muito mais

uma “invenção de tradições” (HOBSBAWN;

RANGER, 1984) que propriamente uma realidade

dada, e que possui uma participação efetiva de

estudiosos das religiões afro-brasileiras, inclui os

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pesquisadores, como partícipes do processo de

criação dessa pureza.

O olhar científico e imparcial, deslocado

do contexto cultural em que foi produzido, típico

do discurso cientificista do século XIX e de parte

do XX, dá lugar a uma análise comprometida com

os momentos históricos e com as “crenças” desses

produtores de conhecimentos. O questionamento

da autora remete a Chartier (1986, p.17), quando

afirma que “as percepções do social não são de

forma alguma discursos neutros”.

É ainda Dantas que argumenta que

muitos intelectuais ao realizarem as buscas das

origens dessas expressões religiosas acabam se

remetendo constantemente à África:

[ ... ] essa busca incessante de africanismos, iniciada no século passado (XIX) com Nina Rodrigues, tem tomado feições diversas, desde o cotejo mecânico e simples de traços culturais cuja semelhança com congêneres africanos é apresentada como prova de sobrevivências (Rodrigues, 1935, 1977; Ramos, 1951, 1961) até os estudos que tentam mostrar a persistência dos traços culturais como parte de um sistema religioso africano alternativo e funcional (Herskovits, 1967; Ribeiro, 1952) ou ainda como expressão de um verdadeiro pensamento africano (Bastide; 1971, 1978; Santos, 1976) (DANTAS, 1988, p.19-20).

A “criação” dessa pureza Nagô, que tem

como fonte legitimadora a sua ligação com a

África, acabou produzindo dois campos distintos

nas análises dos autores citados, nos estudos das

chamadas religiões afro-brasileiras: o verdadeiro

– O Nagô - e o falso ou impuro – os outros. Assim,

ainda seguindo os passos de Dantas:

[ ...] a Umbanda, a Macumba, os Candomblés de Caboclo e de Angola, na medida em que se afastam do modelo são tidos como ‘degenerados’, ‘deturpados’, ‘sobrevivências religiosas menos interessantes’, avaliações que permeiam os trabalhos que vão de Nina Rodrigues no fim do século passado a Roger Bastide em anos mais recentes (IBID, p.21).

A constatação de que a produção

acadêmica privilegia o Candomblé, agora adjetivado

de Nagô, pode ser assim resumida: ao procurar

a África no Brasil os intelectuais elegeram os

candomblés Nagôs como ilhas desses africanismos.

Logo, mereceram os mais aprofundados estudos.

Ao contrário, os outros modelos degenerados,

deturpados não receberam o mesmo tratamento,

já que, sem a pureza, são menos interessantes e

profícuos para estudos que os primeiros13.

Assim é vista a Macumba14, a Umbanda,

os Candomblés não-Nagô e outras formas dessas

expressões religiosas nos meios intelectualizados.

Em relação à Umbanda, é possível afirmar

que, mal saída do ventre social brasileiro que a

“gestou”, já está rotulada como “sobrevivência

menos importante”.

Não se deveria causar espanto, quando os

primeiros intelectuais que se predispuseram a estudar

essa irmã bastarda do candomblé Nagô vissem a

sua origem na mistura. Arthur Ramos (1942, p.6)

ofertou uma dessas pérolas ao explicar o nascimento

da macumba - espécie de base para a formação

da Umbanda - como o “sincretismo jeje, Nagô,

muçulmano, Banto, caboclo, espírita e católico”.

Feita essa digressão ao primeiro grupo de

pesquisadores que, de Nina Rodrigues a Roger

Bastide, seguem a lógica acima, o trabalho dedicar-

se-á duas questões propostas para análise.

2 SINCRETISMO: DO QUE SE FALA?

Ao se referir à Macumba como sendo um

sincretismo de tão variadas matrizes, Ramos (1942)

fornece uma definição bem pouco explícita. Mais

que um conceito retirado de pesquisas empíricas,

em verdade, ele segue uma matriz do pensamento

culturalista europeu, do qual o autor era partícipe.

Ferreti, referindo-se a Ramos, escreve que:

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[ ...] de fato [ele] não foi um grande teórico nem um grande pesquisador de campo. A respeito de sincretismo e de aculturação, apresentou uma síntese do que outros escreveram, acrescentando detalhes, sugestões e algumas críticas. Os esquemas de classificações sobre sincretismo religioso que utiliza parecem hoje demasiadamente formais, mecanicistas, esquemáticos e de reduzido valor explicativo. (FERRETI, 1995, p.44).

Dentro dessa lógica culturalista, o

conceito de sincretismo estaria muito próximo ao

de aculturação. Hoje, esse conceito vem sofrendo

modificações que permitem trabalhar com um

ferramental teórico mais eficiente, possibilitando

análises mais profícuas, pois durante boa parte

do século XX, o conceito de sincretismo esteve

associado a visões, como a evolucionista de

justaposição (RODRIGUES, 1977), a culturalista

de aculturação (RAMOS, 1942), que destacavam

a supremacia de uma cultura sobre a outra,

quando do contato, ou por meio de visões de

convivência cultural, como no caso do pluralismo

cultural (BASTIDE, 1961). Ambas as visões são

hoje rediscutidas à luz de novas abordagens sobre

os conceitos de cultura e de contato cultural

(GEERTZ, 1996; HALL, 1999; CANCLINI, 1998;

BHABHA, 1998).

Ao perceber a cultura como um elemento

dinâmico os estudiosos desse tema trouxeram uma

grande contribuição para os estudos do sincretismo.

A cultura, vista sob essa nova perspectiva, é, não

apenas, passível, mas também propícia às trocas. No

entanto, trocas não representam, necessariamente,

descaracterização de uma cultura. Parafraseando

Raul Seixas15, ela é uma “metamorfose ambulante”

sem, contudo, deixar de possuir uma distinção em

relação a uma outra cultura.

Mais do que questões ligadas à língua,

passado comum, costumes etc., o que hoje mais

bem define o membro de um grupo étnico-cultural

é o seu sentimento de pertencimento a esse grupo

e a sua aceitação, pelo grupo. Menos fossilizado,

o conceito de cultura pode ser percebido por

meio de suas permanências mas, de igual forma,

em suas mudanças. Nesse sentido, como fica o

conceito de sincretismo?

Para tentar responder a essa questão,

poder-se-ia propor outra: por que ocorre

o sincretismo? Segundo Vasantkumar. “o

sincretismo ocorre porque os seres humanos não

aceitam automaticamente os novos elementos;

eles selecionam, modificam e recombinam

itens no contexto do contato cultural” (apud

CANEVAACCI, 1996, p.21). Partindo dessa

premissa, chega-se ao conceito de sincretismo

como sendo um processo de seleção, apropriação

e de ressignificação de elementos de uma cultura

por outra. No entanto, essas apropriações não se

dão de forma aleatória. Elas respeitam a lógica

cultural daqueles que se apropriam, ressignificam

os elementos apresentados no contato.

Não se deve, portanto, perceber esse

processo como sendo de mão única. O contato

pressupõe trocas entre ambos os grupos envolvidos.

Assim,

o sincretismo refere-se – quer como processo, quer como resultado – a todos os níveis socioculturais de tipo voluntário e coercitivo, explícito e implícito, inovador e renovador. Ele diz respeito àqueles trânsitos entre elementos culturais nativos e alheios que levam a modificações, justaposições e reinterpretações, que a cada vez mais podem incluir contradições, anomalias, ambigüidades, paradoxos e erros (CANEVACCI, 1996, p.22).

Se as culturas não são passivas ao travarem

contatos umas com as outras, que critérios seriam

utilizados nessas “opções sincréticas”?. Permanecendo

apenas no campo do sincretismo religioso, pela

proposta deste estudo, seguem-se algumas pistas

deixadas por Weber e Durkheim que, são indicadoras

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do caminho a seguir. Segundo Durkheim, “a

verdadeira função da religião não é a de nos fazer

pensar [...], mas de nos fazer agir, de nos ajudar a

viver” (1978, p.166). Na mesma linha, Weber coloca

que “as ações cuja motivação é religiosa ou mágica

aparecem em sua existência primitiva, orientadas para

esse mundo” (1969, p.328).

Ora, dentro dessa análise, qual seriam os

interesses “orientados para esse mundo” que teriam

“ajudado a viver” os africanos, os descendentes

de africanos e de outros segmentos sociais que

compartilhavam das mesmas crenças e necessidades

desse mundo? E, ainda: que papel o sincretismo

representaria nesses “interesses mundanos”? Ferreti

proporciona uma boa resposta:

O sincretismo afro-brasileiro foi também um meio de adaptação do negro à sociedade colonial católica dominante. Foi um meio de ajudá-lo a viver e de lhe dar forças para suportar e vencer as dificuldades da existência, de enfrentar problemas práticos, sem se preocupar com a coerência lógica do sincretismo (FERRETI, 1995, p.18).

Essa lógica não ficou restrita ao período

colonial. Em cada momento histórico esses

grupos se ordenavam e, ainda se ordenam, e ao

realizarem sincretismos, estavam dando respostas

às suas necessidades de vida. As apropriações, as

combinações (VIANNA, 2002), e as ressignificações

realizadas seguiram uma lógica pragmática, dentro

dos embates de forças que a sociedade brasileira

vivia, onde o instrumental religioso seria de grande

validade para responder a essas questões. Sincretizar

significava, então, realizar as ações acima expressas,

sem, contudo, perder a lógica do entendimento

do grupo que vivenciava o sincretismo. As

transformações realizadas deveriam estar dentro

de um universo possível de ser reconhecido pelos

partícipes desses modelos religiosos.

Isso remete a uma segunda questão: A

partir de que matrizes culturais foram realizadas

essas ressignificações, combinações e apropriações

necessárias em um movimento sincrético? Uma

primeira resposta seria que a matriz utilizada é a

Banto. É sobre o conceito de Banto que se dará

prosseguimento à discussão.

3 BANTO:UM CONCEITO ÉTNICO?

Essa segunda questão merece uma

atenção especial. Bem menos aprofundada pelos

estudos acadêmicos brasileiros que a discussão

sobre o conceito de sincretismo, é a que se refere

à expressão Banto. Os estudiosos da religiosidade

“afro-brasileira” unem-se em uma só voz para

afirmar que expressões religiosas como a Macumba,

a Umbanda e alguns tipos de Candomblés, para

citar apenas os mais pesquisados, são de origem

Banto. Mas o que significa essa expressão? Grosso

modo, ela é utilizada como sinônimo de grupo

étnico. Essa simplificação conceitual tem deixado

as discussões sobre as religiões de origem Banto,

em um estrato superficial. Seguem algumas

questões sobre essa expressão.

Segundo Peter Fry (1986, p.42), a

categoria Banto refere-se a um grupo lingüístico

e não a um grupo étnico. Ora, como é possível

realizar pesquisas sobre expressões religiosas

tendo como ponto de partida um caráter

lingüístico tão genérico, que não permite perceber

as especificidades desses grupos.

Seguindo, Lopes (2003) nos revela que:

[ ... ] os Bantos, povos da África Meridional, estão representados por povos que falam entre 700 e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico até o cabo da Boa Esperança. O termo “Banto” foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek e significa “o povo”, não existindo propriamente uma unidade banta na África. As principais línguas deste tronco são: o ajauá, falado em terras contidas hoje em Moçambique, Malauí

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e Zaimbábue; o ganguela, na fronteira leste de Angola e oeste de Zâmbia; cuanhama, no Sudoeste africano contido em Angola e Namíbia; o iaco-cuango-casai, no Zaire; macua, em Moçambique; quicongo, no Congo, Cabinda e Angola; quimbundo, em Angola (acima do rio Cuanza e ao redor de Luanda); quinguana, no Zaire; quioco, no Nordeste de Angola; ronga, em Moçambique e Zimbábue; suaíle, na Tanzânia, Zanzibar e Moçambique; suto, na África do Sul; tonga, em Moçambique e Zimbábue; xona, em Moçambique, Zimbábue e Botsuana; umbundo, em Angola, abaixo do rio Cuanza e na região de Benguela ( apud PRANDI, 2000 p.53).

Além da expressão Banto congregar uma

pluralidade de línguas e dialetos, ainda é preciso

pensar em termos da forma de identificação dos

escravos desse “grupo”, quando de sua chegada

ao Brasil. Uma forma usual de se (re)batizar os

escravos era utilizar um primeiro nome cristão e

um segundo que, a princípio identifica a sua nação

africana. Assim, usando como exemplo a cidade

do Rio de Janeiro, os negros que ali chegavam

eram, em maior número, os das nações:

[...] mina, cabinda, congo, angola ou (loanda), cacanje (ou angola), benguela e moçambique. As menos numerosas, muitas incorporadas às nações principais eram gabão, anjico, monjola, moange, rebola (líbolo), cajenje (jinga?), cabunda (bundo), quilimane, inhambane, mucena e mombaça (KARASCH, 2000 p.45).

No entanto, buscar nesses “sobrenomes”

um lugar de origem precisa é muito perigoso,

já que muitas vezes eles representam mais um

ponto de partida da África do que propriamente

da nação do escravo. Pode-se apenas afirmar,

com as informações ofertadas nos nomes a região

da qual provieram a maioria desses escravos. Em

termos geográficos, está se referindo às partes

centro-oeste e oriental do continente africano,

o que o coloca em um espaço físico onde, por

certo, existiu uma rica diversidade cultural e, por

conseguinte, religiosa16.

Estudos lingüísticos recentes acusam uma

significativa presença de expressões de origens

Banto. Lopes afirma que

dentro da presença afro-negra no Brasil, verifica-se uma predominância das culturas bantas, que colaboraram para a formação da cultura brasileira, principalmente através de suas línguas, entre elas o Quicongo, o Umbundo e o Quibundo (LOPES, 2003, p.18).

Baseado em Mendonça (1948), Lopes

afirma que as línguas do grupo Banto contribuíram

de forma mais significativa para a construção da

Língua Portuguesa do que as do tronco Sudanês.

A expressividade da participação das

línguas de origem Banto, associadas a uma série

de outras contribuições, como as etiquetas sociais

(beijar a mão, uso de bengala, ...), roupas, a

arte, a cozinha, instrumentos musicais, canções,

danças (lundu, batuque, capoeira), danças teatrais

(cucumbi, congada) e rituais funerais (KARASCH,

2000, p. 292-340) levam a questionar o costume

de se afirmar que as religiões de matriz Banto

perderam suas tradições africanas. Karasch afirma

que “ao contrário eu diria que a cidade do Rio

[de Janeiro] também preservou muitos costumes e

religiões africanas, mas que vieram primariamente

do Centro-Oeste Africano e da África Oriental”

(idem, p.27). Mergulhar na cultura dos povos

dessas regiões torna-se primordial para que se possa

compreender como se deu a dinâmica cultural

que auxiliou na formação da cultura brasileira, de

uma forma geral, e da Umbanda de uma forma

específica. É necessária uma releitura das fontes

históricas, por “novos” caminhos propostos.

Para um maior sucesso nessa questão, é

mister uma metodologia que siga dois caminhos:

o primeiro é o de se extrapolar o universo dos

intelectuais que têm servido como referências

aos trabalhos sobre a influência dos Banto na

cultura brasileira. Os estudos sendo, em boa

parte, voltados para as religiões de origem

ioruba, acabam gerando uma carência de

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informações sobre as especificidades culturais e,

especificamente, religiosas dos grupos de origem

Banto. Conhecer de forma mais aprofundada essa

diversidade cultural é questão primordial para que

se possa avançar nos estudos desse campo.

Assim, buscar africanistas brasileiros,

portugueses, franceses, ingleses, americanos etc,

além de intelectuais dos países africanos que

estudam as culturas desses grupos é fundamental17.

Seguindo as pistas fornecidas pela

lingüística, parece interessante dedicar uma

atenção especial aos povos da África central

que falam o Quibundo, Kicongo e Umbundo, já

que algumas pesquisas (KARASCH, 2000, p. 50-

58; LOPES, 2003, p. 18; PRANDI, 2000, p.59)

sugerem que os grupos étnicos que utilizavam

essas línguas representavam a maioria dos grupos

africanos que chegaram ao Brasil. Estar-se-ia,

assim, limitando uma área geográfica, étnica e

cultural que se circunscreve, grosso modo, aos

atuais Congo e Angola.

A pequena produção científica brasileira

sobre esses grupos é uma lacuna que tem prejudicado

o entendimento da formação da cultura brasileira de

uma forma mais plena e sobre as culturas Banto que

chegaram ao Brasil, de uma forma mais específica.

Um segundo passo, que se associa ao

primeiro, e que se apresenta como sugestão é

a utilização do método da etnoistória para as

pesquisas. A História vem avançando, a passos

largos, na aproximação com outras disciplinas

afins. Desde os Annales, para não se retroagir a

discussão para o século XIX, passando pelas fases

da chamada Nova História, tem-se percebido

que as nossas pesquisas se tornam mais fecundas

quando se apropriam, devidamente, de novos

objetos, abordagens e problemas, para lembrar

Le Goff18 . Uma interface que se mostra fecunda

para a formação de um instrumental capaz de dar

respostas a essas questões é a aproximação da

Antropologia, da Arqueologia e da História.

A partir de uma análise diacrônica,

processual, típica das produções científicas da

disciplina da História, associada a uma outra,

sincrônica, típica dos estudos antropológicos, além

de uma análise arqueológica do espaço físico,

para citar apenas uma possibilidade, dos terreiros,

é possível uma interseção bastante fecunda,

proporcionando um instrumental para análise de

grandes possibilidades.

Por meio de estudos de fontes históricas19

confrontadas com pesquisas de campo – trabalhos

etnográficos e arquelógicos, é possível perceber

um pouco mais os caminhos da religiosidade afro-

brasileira até a chegada de seus formatos atuais.

Essa afirmação pode ser comprovada

partindo de experiências deste autor com

pesquisas de campo em terreiros do Rio de

Janeiro/RJ e de Dourados/MS (SÁ JUNIOR, 2004),

além de realizar análises comparativas com outros

trabalhos de campo (BRUMANA; MARTÍNEZ,

1991; NEGRÃO, 1996).

Falando em especial dessas pesquisas,

foram encontradas, por exemplo, nos pontos

cantados dos terreiros cariocas e douradenses

, verdadeiras pistas que são fecundas para a

compreensão dessa problemática.

Citando apenas um exemplo, ao reunir

alguns pontos cantados20 que foram coletados

conseguiu-se perceber alguns elementos sobre o

grupo cabinda. Os registros a seguir comprovam

tal afirmação:

Ô negro cabinda, que fala Nagô

É negro da costa fina , é filho de babalaô.

*

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Rei congo com canbida

Não podem viajá/misturá

Rei congo vem por terra

Cabinda vem pelo má(r).

*

Cabinda mamanhê ô

Cabinda mamanhá

Ou lhe mata, ou lhe solta,

Ou lhe deixa trabalhá/saravá

Eu vi cabinda trabalhando

E agora cabinda eu estou lhe chamando.

Sobre o primeiro registro nota-se um

aparente erro no que diz respeito à língua falada.

Não seria comum ao negro cabinda falar Nagô,

já que essa seria uma expressão geral para um

tipo de língua falada na África Ocidental. Mas,

aprofundando mais a questão, pode-se sugerir

que, mesmo antes da discussão dos intelectuais

brasileiros sobre a superioridade Nagô, essa questão

poderia estar colocada dentro dos próprios grupos

escravos (FERRETI, 1995, p. 65-67). Por meio de

estudos preliminares, feitos sobre os cabindas na

Internet,21 pode-se perceber que eles se colocavam

como superiores em relação aos outros congêneres,

também partícipes do grupo Banto. Falar Nagô e ser

filho de babalaô poderia ser um sinal diacrítico de

superioridade desse grupo, o que parece confirmado

no segundo ponto que opõe congo e cabinda,

ambos de matriz Banto.

Ainda sobre o primeiro registro, “ele é

negro da costa fina”, ou seja, não tem as costas

marcadas como os demais negros, sugerindo um

tipo de tratamento especial a eles22. O terceiro

registro reforça a idéia de não submissão dos cabinda

quando se refere à sua luta contra a escravidão,

também percebida nos estudos preliminares

citados. Corroborando com essa afirmativa, foi

encontrado um documento intitulado Tratado de

Simulambuco23, datado de 1885, que tem como

subtítulo, ao texto que segue em destaque, a

seguinte frase: “O mais evoluído dos povos Bantos:

o Cabinda”. Nele é afirmado que:

Os aborígenes de Cabinda sempre se tinham mostrado mais evoluídos, mesmo ao tempo do seu achamento pelas primeiras expedições marítimas lusitanas, procurando desde então contatar com o exterior. Muitos de seus filhos voluntariamente embarcavam nas naus como tripulantes, adquirindo novos conhecimentos e novos hábitos que reforçaram a sua já costumeira superioridade cultural em relação aos demais povos da região central e meridional do continente africano24.

Nesse sentido pode-se perceber a

importância do método etnoistórico nas pesquisas

relativas à religiosidade chamada genericamente

de Banto. A partir de um trabalho de campo, a

observação dos pontos cantados nos terreiros,

pôde-se chegar a uma questão histórica: a de

autodefinição de superioridade dos cabindas em

relação aos outros grupos étnicos Banto. Essa

informação remete a importantes discussões,

como a proposta por Ferreti (1995), no que diz

respeito à disputa por superioridade entre os

Banto e sudanês, mas permite ir além, ao abrir

um espaço de pesquisa sobre as possibilidades

e conseqüências entre a idéia de superioridade

entre os próprios Bantos e de como isso pode

ter influenciado na formação cultural brasileira e,

especificamente, na religiosidade.

Não se pretende que os registros orais

- aqui, no caso, os pontos cantados nos terreiros

- sejam documentos com verdades irrefutáveis,

(mas de igual forma não se deve agir assim com

os escritos?)25, mas que eles sirvam de vetores

apontando para caminhos possíveis para a

reconstituição da história desses grupos no Brasil.

Finalizando, qual seria a importância do

Page 11: R. Faces da Acad. Campo Grande v. 1 n. 1 p. 1-104 jun. · PDF fileMaysa de Oliveira Brum Bueno ... Coordenador do Curso de Relações ... Ioruba ou Nagô - e suas divisões queto e

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conhecimento histórico das culturas que serviram de

matrizes para a religiosidade dita de origem Banto?

Ora, se ao conceituar cultura como algo dinâmico, em

eterno movimento, é preciso partir de algum ponto

para que se possam perceber as ressignificações,

combinações e apropriações por meio das quais

essas matrizes se transformaram. Se as escolhas não

foram feitas de forma aleatória, conhecer os grupos

culturais que realizaram essas “escolhas” torna-se

fundamental, já que a partir dessas matrizes poder-

se-á compreender melhor o leque de opções desses

universos e os caminhos de contatos culturais entre

as diversas matrizes que formaram a religiosidade

afro-brasileira, de uma forma geral, e da Umbanda

de uma forma específica.

Fica aqui, à guisa de sugestão, uma proposta

que se crê fecunda para que se possa aprofundar

o conhecimento sobre as culturas da região centro-

oeste africana e compará-las com as religiões afro-

brasileiras, oriundas dessa matriz. E, para finalizar, a

frase instigante de Brumana e Martinez ao dizerem

que a Umbanda “diz sobre a realidade brasileira e

não diz pouco” (1991, p.143). Quanto mais estudos

forem realizados sobre essa expressão religiosa mais

se conhecerá sobre o Brasil.

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