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R. Faces da Acad. Campo Grande v. 1 n. 1 p. 1-104 jun. 2006
Diretora-geralMaysa de Oliveira Brum Bueno
Diretor-adjuntoMarcos Rezende Morandi
Assessoria Técnica - RevisãoAloizo Rodrigues dos Santos
Edmara Moraes VelosoLúcia Helena Paula do Canto
Maria de Fátima X. da A. de AlmeidaProdução de Arte
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© 2006 Editora UniderpProibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.Depósito Legal na Biblioteca NacionalImpresso no Brasil 2006.
Conselho Consultivo (Exclusivo deste número)Alaíde Maria Zabloski Baruffi – UFGD/Dourados; Marisa de Fátima Lomba de Farias – UEMS/Dourados; Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi – UNESP/Assis; Donaldo Belo de Souza – UERJ/Rio de Janeiro; Eudes Fernando Leite – UFGD/Dourados; Jorge Eremites de Oliveira – UFGD/Dourados; Lisandra Pereira Lamoso – UFGD/Dourados; Rosa Maria Farias Asmus – UEMS/Dourados; Adir Casaro Nascimento – UCDB/Campo Grande.
Capa e Projeto Gráfico: Kátia Barbosa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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OS (DES)CAMINHOS DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS SOBRE A INFLUÊNCIA DOS POVOS BANTO NA
RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA E, EM ESPECIAL, NA UMBANDA10*
Mario Teixeira de Sá Junior11
10 Este trabalho foi apresentado originariamente, em forma de palestra, na segunda semana de História da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, em Dezembro de 2003.
11 Doutorando em História da Universidade Estadual Paulista UNESP-ASSIS, Coordenador do Curso de Relações Internacionais, Faculdade Dourados (FAD).
RESUMOEste artigo procura examinar a relação entre as produções acadêmicas, no que diz respeito aos grupos Banto. Sugere
uma maior incursão na expressão Banto, para que se possa perceber a abrangência e as limitações de seu uso como
conceito definidor de etnias e culturas africanas. Propõe também uma maior utilização do método da etnoistória para
as pesquisas históricas em terreiros de religiosidade afro-brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: História. Etnoistória. Religião. Afro-brasileira. Umbanda. Banto. Lingüística
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ABSTRACTThis article seeks to examine the relation between the academic productions concerning the Banto groups. It suggests a greater incursion into the Banto expression, in order to notice its possibilities as definition concept of ethnic group and African cultures. It is also the intention of this article to propose a better use of ethnic historical methods to historical researches in terreiros of Africa-Brazilian religiosities.KEYWORDS: History. Ethnic History. Religion. African-Brazilian. Umbanda. Banto. and Linguistics.
1 INTRODUÇÃO
Ao ser convidado para participar da
mesa “Olhar acadêmico sobre as temáticas afro-
brasileiras” considerou-se oportuno abordar um
tema que se percebe merece dor de algumas
considerações: “Os (des) caminhos das produções
acadêmicas sobre a influência dos povos Banto na
religiosidade afro-brasileira e, em especial, sobre
a Umbanda”. O assunto é pertinente já que a
análise do mesmo recai sobre duas questões que
merecem um contínuo debate no meio acadêmico:
os conceitos de sincretismo e de cultura “Banto”,
sendo os mesmos basilares na discussão sobre
essa temática. Antes de abordar essas questões,
de forma mais específica, é necessário fazer
uma digressão aos estudos acadêmicos sobre as
religiosidades “afro-brasileiras”.
Os estudos referentes à religiosidade
“afro-brasileira”, historicamente, atribuem as
origens desses movimentos a, basicamente, três
grupos originários da África: Os Nagô, os Banto
e as nações islamizadas. Desde o final do século
XIX, o debate sobre a formação desse complexo
religioso é colocado, tendo como elementos
formadores esses três grupos. Ao se referir a eles,
Magnani declara que:
Ioruba ou Nagô - e suas divisões queto e ijexá -, jeje, fanti-ashanti são algumas das nações do chamado grupo sudanês; angola
congo, cabinda, benguela, Moçambique, do grupo Banto; haussa, peul, mandiga, tapa, nações islamizadas (1991, p.15).
Um dos precursores desses estudos no
Brasil, Nina Rodrigues (1935), afirma que os
primeiros teriam conseguido manter a tradição
africana dentro de suas práticas religiosas de uma
forma mais presente do que os outros dois grupos.
Assim, os Nagôs seriam os detentores de uma
religiosidade verdadeiramente africana, pura. Aos
Bantos coube o rótulo de misturados, enquanto os
islamizados, fortemente combatidos pelo Império,
principalmente após as Revoluções Malês da primeira
metade do século XIX e, possivelmente, tendo
alguns dos seus representantes sido deportados de
volta à África, deixaram suas marcas impressas nas
manifestações dos outros dois grupos citados, não se
constituindo em uma matriz isolada.
A expressão pureza Nagô remete a uma
série de significantes, como verdade, tradição,
legitimidade, dentre outros. Ela passa a simbolizar o
que há de mais legítimo e tradicional nos terreiros de
Candomblés e Xangôs12 no Brasil. Ser reconhecido
como Nagô é título que muitos almejam, mas
poucos conseguem de forma unânime dos seus
pares religiosos. Não ser Nagô ou Ioruba, é sinônimo,
no meio Nagô e de alguns intelectuais, de misturado,
impuro, não verdadeiro.
Dantas (1988, p.21), aborda essa questão
ao retomar pistas de pesquisas propostas por
Yvonne Velho (2001), Peter Fry (1982) e Patrícia
Birman (1985). A autora analisa essa “busca
obstinada” de encontrar a África no Brasil e a
sua conseqüente ligação com a pureza Nagô.
Ao perceber que essa pureza é muito mais
uma “invenção de tradições” (HOBSBAWN;
RANGER, 1984) que propriamente uma realidade
dada, e que possui uma participação efetiva de
estudiosos das religiões afro-brasileiras, inclui os
57
pesquisadores, como partícipes do processo de
criação dessa pureza.
O olhar científico e imparcial, deslocado
do contexto cultural em que foi produzido, típico
do discurso cientificista do século XIX e de parte
do XX, dá lugar a uma análise comprometida com
os momentos históricos e com as “crenças” desses
produtores de conhecimentos. O questionamento
da autora remete a Chartier (1986, p.17), quando
afirma que “as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros”.
É ainda Dantas que argumenta que
muitos intelectuais ao realizarem as buscas das
origens dessas expressões religiosas acabam se
remetendo constantemente à África:
[ ... ] essa busca incessante de africanismos, iniciada no século passado (XIX) com Nina Rodrigues, tem tomado feições diversas, desde o cotejo mecânico e simples de traços culturais cuja semelhança com congêneres africanos é apresentada como prova de sobrevivências (Rodrigues, 1935, 1977; Ramos, 1951, 1961) até os estudos que tentam mostrar a persistência dos traços culturais como parte de um sistema religioso africano alternativo e funcional (Herskovits, 1967; Ribeiro, 1952) ou ainda como expressão de um verdadeiro pensamento africano (Bastide; 1971, 1978; Santos, 1976) (DANTAS, 1988, p.19-20).
A “criação” dessa pureza Nagô, que tem
como fonte legitimadora a sua ligação com a
África, acabou produzindo dois campos distintos
nas análises dos autores citados, nos estudos das
chamadas religiões afro-brasileiras: o verdadeiro
– O Nagô - e o falso ou impuro – os outros. Assim,
ainda seguindo os passos de Dantas:
[ ...] a Umbanda, a Macumba, os Candomblés de Caboclo e de Angola, na medida em que se afastam do modelo são tidos como ‘degenerados’, ‘deturpados’, ‘sobrevivências religiosas menos interessantes’, avaliações que permeiam os trabalhos que vão de Nina Rodrigues no fim do século passado a Roger Bastide em anos mais recentes (IBID, p.21).
A constatação de que a produção
acadêmica privilegia o Candomblé, agora adjetivado
de Nagô, pode ser assim resumida: ao procurar
a África no Brasil os intelectuais elegeram os
candomblés Nagôs como ilhas desses africanismos.
Logo, mereceram os mais aprofundados estudos.
Ao contrário, os outros modelos degenerados,
deturpados não receberam o mesmo tratamento,
já que, sem a pureza, são menos interessantes e
profícuos para estudos que os primeiros13.
Assim é vista a Macumba14, a Umbanda,
os Candomblés não-Nagô e outras formas dessas
expressões religiosas nos meios intelectualizados.
Em relação à Umbanda, é possível afirmar
que, mal saída do ventre social brasileiro que a
“gestou”, já está rotulada como “sobrevivência
menos importante”.
Não se deveria causar espanto, quando os
primeiros intelectuais que se predispuseram a estudar
essa irmã bastarda do candomblé Nagô vissem a
sua origem na mistura. Arthur Ramos (1942, p.6)
ofertou uma dessas pérolas ao explicar o nascimento
da macumba - espécie de base para a formação
da Umbanda - como o “sincretismo jeje, Nagô,
muçulmano, Banto, caboclo, espírita e católico”.
Feita essa digressão ao primeiro grupo de
pesquisadores que, de Nina Rodrigues a Roger
Bastide, seguem a lógica acima, o trabalho dedicar-
se-á duas questões propostas para análise.
2 SINCRETISMO: DO QUE SE FALA?
Ao se referir à Macumba como sendo um
sincretismo de tão variadas matrizes, Ramos (1942)
fornece uma definição bem pouco explícita. Mais
que um conceito retirado de pesquisas empíricas,
em verdade, ele segue uma matriz do pensamento
culturalista europeu, do qual o autor era partícipe.
Ferreti, referindo-se a Ramos, escreve que:
58
[ ...] de fato [ele] não foi um grande teórico nem um grande pesquisador de campo. A respeito de sincretismo e de aculturação, apresentou uma síntese do que outros escreveram, acrescentando detalhes, sugestões e algumas críticas. Os esquemas de classificações sobre sincretismo religioso que utiliza parecem hoje demasiadamente formais, mecanicistas, esquemáticos e de reduzido valor explicativo. (FERRETI, 1995, p.44).
Dentro dessa lógica culturalista, o
conceito de sincretismo estaria muito próximo ao
de aculturação. Hoje, esse conceito vem sofrendo
modificações que permitem trabalhar com um
ferramental teórico mais eficiente, possibilitando
análises mais profícuas, pois durante boa parte
do século XX, o conceito de sincretismo esteve
associado a visões, como a evolucionista de
justaposição (RODRIGUES, 1977), a culturalista
de aculturação (RAMOS, 1942), que destacavam
a supremacia de uma cultura sobre a outra,
quando do contato, ou por meio de visões de
convivência cultural, como no caso do pluralismo
cultural (BASTIDE, 1961). Ambas as visões são
hoje rediscutidas à luz de novas abordagens sobre
os conceitos de cultura e de contato cultural
(GEERTZ, 1996; HALL, 1999; CANCLINI, 1998;
BHABHA, 1998).
Ao perceber a cultura como um elemento
dinâmico os estudiosos desse tema trouxeram uma
grande contribuição para os estudos do sincretismo.
A cultura, vista sob essa nova perspectiva, é, não
apenas, passível, mas também propícia às trocas. No
entanto, trocas não representam, necessariamente,
descaracterização de uma cultura. Parafraseando
Raul Seixas15, ela é uma “metamorfose ambulante”
sem, contudo, deixar de possuir uma distinção em
relação a uma outra cultura.
Mais do que questões ligadas à língua,
passado comum, costumes etc., o que hoje mais
bem define o membro de um grupo étnico-cultural
é o seu sentimento de pertencimento a esse grupo
e a sua aceitação, pelo grupo. Menos fossilizado,
o conceito de cultura pode ser percebido por
meio de suas permanências mas, de igual forma,
em suas mudanças. Nesse sentido, como fica o
conceito de sincretismo?
Para tentar responder a essa questão,
poder-se-ia propor outra: por que ocorre
o sincretismo? Segundo Vasantkumar. “o
sincretismo ocorre porque os seres humanos não
aceitam automaticamente os novos elementos;
eles selecionam, modificam e recombinam
itens no contexto do contato cultural” (apud
CANEVAACCI, 1996, p.21). Partindo dessa
premissa, chega-se ao conceito de sincretismo
como sendo um processo de seleção, apropriação
e de ressignificação de elementos de uma cultura
por outra. No entanto, essas apropriações não se
dão de forma aleatória. Elas respeitam a lógica
cultural daqueles que se apropriam, ressignificam
os elementos apresentados no contato.
Não se deve, portanto, perceber esse
processo como sendo de mão única. O contato
pressupõe trocas entre ambos os grupos envolvidos.
Assim,
o sincretismo refere-se – quer como processo, quer como resultado – a todos os níveis socioculturais de tipo voluntário e coercitivo, explícito e implícito, inovador e renovador. Ele diz respeito àqueles trânsitos entre elementos culturais nativos e alheios que levam a modificações, justaposições e reinterpretações, que a cada vez mais podem incluir contradições, anomalias, ambigüidades, paradoxos e erros (CANEVACCI, 1996, p.22).
Se as culturas não são passivas ao travarem
contatos umas com as outras, que critérios seriam
utilizados nessas “opções sincréticas”?. Permanecendo
apenas no campo do sincretismo religioso, pela
proposta deste estudo, seguem-se algumas pistas
deixadas por Weber e Durkheim que, são indicadoras
59
do caminho a seguir. Segundo Durkheim, “a
verdadeira função da religião não é a de nos fazer
pensar [...], mas de nos fazer agir, de nos ajudar a
viver” (1978, p.166). Na mesma linha, Weber coloca
que “as ações cuja motivação é religiosa ou mágica
aparecem em sua existência primitiva, orientadas para
esse mundo” (1969, p.328).
Ora, dentro dessa análise, qual seriam os
interesses “orientados para esse mundo” que teriam
“ajudado a viver” os africanos, os descendentes
de africanos e de outros segmentos sociais que
compartilhavam das mesmas crenças e necessidades
desse mundo? E, ainda: que papel o sincretismo
representaria nesses “interesses mundanos”? Ferreti
proporciona uma boa resposta:
O sincretismo afro-brasileiro foi também um meio de adaptação do negro à sociedade colonial católica dominante. Foi um meio de ajudá-lo a viver e de lhe dar forças para suportar e vencer as dificuldades da existência, de enfrentar problemas práticos, sem se preocupar com a coerência lógica do sincretismo (FERRETI, 1995, p.18).
Essa lógica não ficou restrita ao período
colonial. Em cada momento histórico esses
grupos se ordenavam e, ainda se ordenam, e ao
realizarem sincretismos, estavam dando respostas
às suas necessidades de vida. As apropriações, as
combinações (VIANNA, 2002), e as ressignificações
realizadas seguiram uma lógica pragmática, dentro
dos embates de forças que a sociedade brasileira
vivia, onde o instrumental religioso seria de grande
validade para responder a essas questões. Sincretizar
significava, então, realizar as ações acima expressas,
sem, contudo, perder a lógica do entendimento
do grupo que vivenciava o sincretismo. As
transformações realizadas deveriam estar dentro
de um universo possível de ser reconhecido pelos
partícipes desses modelos religiosos.
Isso remete a uma segunda questão: A
partir de que matrizes culturais foram realizadas
essas ressignificações, combinações e apropriações
necessárias em um movimento sincrético? Uma
primeira resposta seria que a matriz utilizada é a
Banto. É sobre o conceito de Banto que se dará
prosseguimento à discussão.
3 BANTO:UM CONCEITO ÉTNICO?
Essa segunda questão merece uma
atenção especial. Bem menos aprofundada pelos
estudos acadêmicos brasileiros que a discussão
sobre o conceito de sincretismo, é a que se refere
à expressão Banto. Os estudiosos da religiosidade
“afro-brasileira” unem-se em uma só voz para
afirmar que expressões religiosas como a Macumba,
a Umbanda e alguns tipos de Candomblés, para
citar apenas os mais pesquisados, são de origem
Banto. Mas o que significa essa expressão? Grosso
modo, ela é utilizada como sinônimo de grupo
étnico. Essa simplificação conceitual tem deixado
as discussões sobre as religiões de origem Banto,
em um estrato superficial. Seguem algumas
questões sobre essa expressão.
Segundo Peter Fry (1986, p.42), a
categoria Banto refere-se a um grupo lingüístico
e não a um grupo étnico. Ora, como é possível
realizar pesquisas sobre expressões religiosas
tendo como ponto de partida um caráter
lingüístico tão genérico, que não permite perceber
as especificidades desses grupos.
Seguindo, Lopes (2003) nos revela que:
[ ... ] os Bantos, povos da África Meridional, estão representados por povos que falam entre 700 e duas mil línguas e dialetos aparentados, estendendo-se para o sul, logo abaixo dos limites sudaneses, compreendendo as terras que vão do Atlântico ao Índico até o cabo da Boa Esperança. O termo “Banto” foi criado em 1862 pelo filólogo alemão Willelm Bleek e significa “o povo”, não existindo propriamente uma unidade banta na África. As principais línguas deste tronco são: o ajauá, falado em terras contidas hoje em Moçambique, Malauí
60
e Zaimbábue; o ganguela, na fronteira leste de Angola e oeste de Zâmbia; cuanhama, no Sudoeste africano contido em Angola e Namíbia; o iaco-cuango-casai, no Zaire; macua, em Moçambique; quicongo, no Congo, Cabinda e Angola; quimbundo, em Angola (acima do rio Cuanza e ao redor de Luanda); quinguana, no Zaire; quioco, no Nordeste de Angola; ronga, em Moçambique e Zimbábue; suaíle, na Tanzânia, Zanzibar e Moçambique; suto, na África do Sul; tonga, em Moçambique e Zimbábue; xona, em Moçambique, Zimbábue e Botsuana; umbundo, em Angola, abaixo do rio Cuanza e na região de Benguela ( apud PRANDI, 2000 p.53).
Além da expressão Banto congregar uma
pluralidade de línguas e dialetos, ainda é preciso
pensar em termos da forma de identificação dos
escravos desse “grupo”, quando de sua chegada
ao Brasil. Uma forma usual de se (re)batizar os
escravos era utilizar um primeiro nome cristão e
um segundo que, a princípio identifica a sua nação
africana. Assim, usando como exemplo a cidade
do Rio de Janeiro, os negros que ali chegavam
eram, em maior número, os das nações:
[...] mina, cabinda, congo, angola ou (loanda), cacanje (ou angola), benguela e moçambique. As menos numerosas, muitas incorporadas às nações principais eram gabão, anjico, monjola, moange, rebola (líbolo), cajenje (jinga?), cabunda (bundo), quilimane, inhambane, mucena e mombaça (KARASCH, 2000 p.45).
No entanto, buscar nesses “sobrenomes”
um lugar de origem precisa é muito perigoso,
já que muitas vezes eles representam mais um
ponto de partida da África do que propriamente
da nação do escravo. Pode-se apenas afirmar,
com as informações ofertadas nos nomes a região
da qual provieram a maioria desses escravos. Em
termos geográficos, está se referindo às partes
centro-oeste e oriental do continente africano,
o que o coloca em um espaço físico onde, por
certo, existiu uma rica diversidade cultural e, por
conseguinte, religiosa16.
Estudos lingüísticos recentes acusam uma
significativa presença de expressões de origens
Banto. Lopes afirma que
dentro da presença afro-negra no Brasil, verifica-se uma predominância das culturas bantas, que colaboraram para a formação da cultura brasileira, principalmente através de suas línguas, entre elas o Quicongo, o Umbundo e o Quibundo (LOPES, 2003, p.18).
Baseado em Mendonça (1948), Lopes
afirma que as línguas do grupo Banto contribuíram
de forma mais significativa para a construção da
Língua Portuguesa do que as do tronco Sudanês.
A expressividade da participação das
línguas de origem Banto, associadas a uma série
de outras contribuições, como as etiquetas sociais
(beijar a mão, uso de bengala, ...), roupas, a
arte, a cozinha, instrumentos musicais, canções,
danças (lundu, batuque, capoeira), danças teatrais
(cucumbi, congada) e rituais funerais (KARASCH,
2000, p. 292-340) levam a questionar o costume
de se afirmar que as religiões de matriz Banto
perderam suas tradições africanas. Karasch afirma
que “ao contrário eu diria que a cidade do Rio
[de Janeiro] também preservou muitos costumes e
religiões africanas, mas que vieram primariamente
do Centro-Oeste Africano e da África Oriental”
(idem, p.27). Mergulhar na cultura dos povos
dessas regiões torna-se primordial para que se possa
compreender como se deu a dinâmica cultural
que auxiliou na formação da cultura brasileira, de
uma forma geral, e da Umbanda de uma forma
específica. É necessária uma releitura das fontes
históricas, por “novos” caminhos propostos.
Para um maior sucesso nessa questão, é
mister uma metodologia que siga dois caminhos:
o primeiro é o de se extrapolar o universo dos
intelectuais que têm servido como referências
aos trabalhos sobre a influência dos Banto na
cultura brasileira. Os estudos sendo, em boa
parte, voltados para as religiões de origem
ioruba, acabam gerando uma carência de
61
informações sobre as especificidades culturais e,
especificamente, religiosas dos grupos de origem
Banto. Conhecer de forma mais aprofundada essa
diversidade cultural é questão primordial para que
se possa avançar nos estudos desse campo.
Assim, buscar africanistas brasileiros,
portugueses, franceses, ingleses, americanos etc,
além de intelectuais dos países africanos que
estudam as culturas desses grupos é fundamental17.
Seguindo as pistas fornecidas pela
lingüística, parece interessante dedicar uma
atenção especial aos povos da África central
que falam o Quibundo, Kicongo e Umbundo, já
que algumas pesquisas (KARASCH, 2000, p. 50-
58; LOPES, 2003, p. 18; PRANDI, 2000, p.59)
sugerem que os grupos étnicos que utilizavam
essas línguas representavam a maioria dos grupos
africanos que chegaram ao Brasil. Estar-se-ia,
assim, limitando uma área geográfica, étnica e
cultural que se circunscreve, grosso modo, aos
atuais Congo e Angola.
A pequena produção científica brasileira
sobre esses grupos é uma lacuna que tem prejudicado
o entendimento da formação da cultura brasileira de
uma forma mais plena e sobre as culturas Banto que
chegaram ao Brasil, de uma forma mais específica.
Um segundo passo, que se associa ao
primeiro, e que se apresenta como sugestão é
a utilização do método da etnoistória para as
pesquisas. A História vem avançando, a passos
largos, na aproximação com outras disciplinas
afins. Desde os Annales, para não se retroagir a
discussão para o século XIX, passando pelas fases
da chamada Nova História, tem-se percebido
que as nossas pesquisas se tornam mais fecundas
quando se apropriam, devidamente, de novos
objetos, abordagens e problemas, para lembrar
Le Goff18 . Uma interface que se mostra fecunda
para a formação de um instrumental capaz de dar
respostas a essas questões é a aproximação da
Antropologia, da Arqueologia e da História.
A partir de uma análise diacrônica,
processual, típica das produções científicas da
disciplina da História, associada a uma outra,
sincrônica, típica dos estudos antropológicos, além
de uma análise arqueológica do espaço físico,
para citar apenas uma possibilidade, dos terreiros,
é possível uma interseção bastante fecunda,
proporcionando um instrumental para análise de
grandes possibilidades.
Por meio de estudos de fontes históricas19
confrontadas com pesquisas de campo – trabalhos
etnográficos e arquelógicos, é possível perceber
um pouco mais os caminhos da religiosidade afro-
brasileira até a chegada de seus formatos atuais.
Essa afirmação pode ser comprovada
partindo de experiências deste autor com
pesquisas de campo em terreiros do Rio de
Janeiro/RJ e de Dourados/MS (SÁ JUNIOR, 2004),
além de realizar análises comparativas com outros
trabalhos de campo (BRUMANA; MARTÍNEZ,
1991; NEGRÃO, 1996).
Falando em especial dessas pesquisas,
foram encontradas, por exemplo, nos pontos
cantados dos terreiros cariocas e douradenses
, verdadeiras pistas que são fecundas para a
compreensão dessa problemática.
Citando apenas um exemplo, ao reunir
alguns pontos cantados20 que foram coletados
conseguiu-se perceber alguns elementos sobre o
grupo cabinda. Os registros a seguir comprovam
tal afirmação:
Ô negro cabinda, que fala Nagô
É negro da costa fina , é filho de babalaô.
*
62
Rei congo com canbida
Não podem viajá/misturá
Rei congo vem por terra
Cabinda vem pelo má(r).
*
Cabinda mamanhê ô
Cabinda mamanhá
Ou lhe mata, ou lhe solta,
Ou lhe deixa trabalhá/saravá
Eu vi cabinda trabalhando
E agora cabinda eu estou lhe chamando.
Sobre o primeiro registro nota-se um
aparente erro no que diz respeito à língua falada.
Não seria comum ao negro cabinda falar Nagô,
já que essa seria uma expressão geral para um
tipo de língua falada na África Ocidental. Mas,
aprofundando mais a questão, pode-se sugerir
que, mesmo antes da discussão dos intelectuais
brasileiros sobre a superioridade Nagô, essa questão
poderia estar colocada dentro dos próprios grupos
escravos (FERRETI, 1995, p. 65-67). Por meio de
estudos preliminares, feitos sobre os cabindas na
Internet,21 pode-se perceber que eles se colocavam
como superiores em relação aos outros congêneres,
também partícipes do grupo Banto. Falar Nagô e ser
filho de babalaô poderia ser um sinal diacrítico de
superioridade desse grupo, o que parece confirmado
no segundo ponto que opõe congo e cabinda,
ambos de matriz Banto.
Ainda sobre o primeiro registro, “ele é
negro da costa fina”, ou seja, não tem as costas
marcadas como os demais negros, sugerindo um
tipo de tratamento especial a eles22. O terceiro
registro reforça a idéia de não submissão dos cabinda
quando se refere à sua luta contra a escravidão,
também percebida nos estudos preliminares
citados. Corroborando com essa afirmativa, foi
encontrado um documento intitulado Tratado de
Simulambuco23, datado de 1885, que tem como
subtítulo, ao texto que segue em destaque, a
seguinte frase: “O mais evoluído dos povos Bantos:
o Cabinda”. Nele é afirmado que:
Os aborígenes de Cabinda sempre se tinham mostrado mais evoluídos, mesmo ao tempo do seu achamento pelas primeiras expedições marítimas lusitanas, procurando desde então contatar com o exterior. Muitos de seus filhos voluntariamente embarcavam nas naus como tripulantes, adquirindo novos conhecimentos e novos hábitos que reforçaram a sua já costumeira superioridade cultural em relação aos demais povos da região central e meridional do continente africano24.
Nesse sentido pode-se perceber a
importância do método etnoistórico nas pesquisas
relativas à religiosidade chamada genericamente
de Banto. A partir de um trabalho de campo, a
observação dos pontos cantados nos terreiros,
pôde-se chegar a uma questão histórica: a de
autodefinição de superioridade dos cabindas em
relação aos outros grupos étnicos Banto. Essa
informação remete a importantes discussões,
como a proposta por Ferreti (1995), no que diz
respeito à disputa por superioridade entre os
Banto e sudanês, mas permite ir além, ao abrir
um espaço de pesquisa sobre as possibilidades
e conseqüências entre a idéia de superioridade
entre os próprios Bantos e de como isso pode
ter influenciado na formação cultural brasileira e,
especificamente, na religiosidade.
Não se pretende que os registros orais
- aqui, no caso, os pontos cantados nos terreiros
- sejam documentos com verdades irrefutáveis,
(mas de igual forma não se deve agir assim com
os escritos?)25, mas que eles sirvam de vetores
apontando para caminhos possíveis para a
reconstituição da história desses grupos no Brasil.
Finalizando, qual seria a importância do
63
conhecimento histórico das culturas que serviram de
matrizes para a religiosidade dita de origem Banto?
Ora, se ao conceituar cultura como algo dinâmico, em
eterno movimento, é preciso partir de algum ponto
para que se possam perceber as ressignificações,
combinações e apropriações por meio das quais
essas matrizes se transformaram. Se as escolhas não
foram feitas de forma aleatória, conhecer os grupos
culturais que realizaram essas “escolhas” torna-se
fundamental, já que a partir dessas matrizes poder-
se-á compreender melhor o leque de opções desses
universos e os caminhos de contatos culturais entre
as diversas matrizes que formaram a religiosidade
afro-brasileira, de uma forma geral, e da Umbanda
de uma forma específica.
Fica aqui, à guisa de sugestão, uma proposta
que se crê fecunda para que se possa aprofundar
o conhecimento sobre as culturas da região centro-
oeste africana e compará-las com as religiões afro-
brasileiras, oriundas dessa matriz. E, para finalizar, a
frase instigante de Brumana e Martinez ao dizerem
que a Umbanda “diz sobre a realidade brasileira e
não diz pouco” (1991, p.143). Quanto mais estudos
forem realizados sobre essa expressão religiosa mais
se conhecerá sobre o Brasil.
REFERÊNCIAS
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô.
Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz. São
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