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Pós-Graduação em Direito Público Disciplina: Direito Constitucional Aplicado LEITURA COMPLEMENTAR – AULA 3 Índice LEITURA COMPLEMENTAR I – PÁG 02 à 30 LEITURA COMPLEMENTAR II – PÁG 31 à 46

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Pós-Graduação em Direito Público

Disciplina: Direito Constitucional Aplicado

LEITURA COMPLEMENTAR – AULA 3

Índice

LEITURA COMPLEMENTAR I – PÁG 02 à 30

LEITURA COMPLEMENTAR II – PÁG 31 à 46

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"I went to the woods because I wanted to live deliberately... I

wanted to live deep and suck out all the marrow of life! To put

to rout all that was not life and not, when I came to die, discov-

er that I had not lived."

By Henry David Thoreau

SUMÁRIO: I – Introdução histórica; II – A Constituição e o Ordena-

mento Jurídico; III – As incompatibilidades; III.1 – As antinomias –

conflito de normas; III.2 – A colisão de princípios; III.3 – As incoerên-

cias – conflitos de valor; IV – Inconstitucionalidade e ilegitimidade; V

– A Ordem de Valores Supralegais; V.1 – O Conceito de Valor; VI – Di-

reito constitucional escrito; VI.1 – Norma constitucional de grau infe-

rior em face de norma constitucional de grau superior; VI.2 – Norma

constitucional violadora de direito supralegal positivado na Consti-

tuição; VII – Direito constitucional não escrito; VII.1 – Violação aos

princípios constitutivos não escritos perante o sentido da Constitui-

ção; VIII – Sistema Misto de controle; VIII.1 – Controle de legitimida-

de da norma; IX – Jurisprudência do STF – Adin nº 815-3; X –

Conclusão; XI – Bibliografia.

I – INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Inicialmente, uma retomada histórica se faz mister para indicar a época em

que se desenvolveu a formulação teórica das normas constitucionais inconstitucio-

nais, tentando compreender a importância e preocupação do jurista alemão Otto

Bachof (elemento fundador dessa polêmica), seu ambiente político e as aspirações da

Alemanha no pós-Guerra, transmudando de um Estado Totalitário para um Estado de

Direito.

Assim, partindo do ponto em que a história da humanidade é feita pelos ho-

mens, e como seres racionais que são, extremamente mutáveis e de ambições das

mais criativas, a Europa dos anos 40 não poderia ser diferente. Vivenciou o holocaus-

to de uma Alemanha dominada pelo medo e pelo regime totalitário irracional, em

que as pessoas perderam seu senso de pessoalidade dentro do sistema.

Impulsionados pela força propulsora de uma crise econômica decorrente da

perda na 1º Grande Guerra, os alemães impuseram-se um Estado de não-direito, ali-

cerçado em bases discriminatórias e preconceituosas, que não correspondiam aos

anseios primários de um poder legítimo e justo.

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Superada essa fase totalitária de anulação da individualidade humana, o pós-

Guerra na Alemanha determinou aos juristas da época toda uma reformulação de sua

Ordem Jurídica Constitucional, objetivando a criação de um Estado Social de Direito.

Assim exposto, foi nesse contexto de transição, de mudanças na Ordem Jurí-

dica da Alemanha, que o professor Otto Bachof apresentou suas idéias sobre o tema

em uma conferência em Heidelberg, precisamente em 20 de julho de 1951.

A grande virtude desse renomado jurista fora sua preocupação com que não

houvessem, no corpo da Constituição, normas que conflitassem com os preceitos fun-

damentais de justiça, lastreados pelo Direito Natural, uma vez que é o próprio povo,

titular do poder constituinte, que deve consentir com as propostas constitucionais,

no intuito de que seja um puro reflexo daquele sentimento de justiça incrustado em

cada membro da coletividade. Ainda a esse respeito, Karl Schimid diz, no Congresso

Jurídico de Constança, em 1947: "Temos que aprender de novo que a justiça está

antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias intocáveis pela

vontade dos homens que podem fazer das leis direito – seja o legislador quem for, um

tirano ou um povo" (1).

Talvez, preliminarmente, sob a ótica política, o cerne do questionamento

encontra seu nascedouro na seguinte indagação: Como pode um Estado de Direito

conceder direitos e determinar obrigações a seus cidadãos, se tal Direito não está

alinhado com os preceitos fundamentais de justiça de um povo? Qual a legitimidade

desse direito? Como torná-lo obrigatório? Como aplicá-lo efetivamente?

Acredito que pode ter sido essa a real preocupação do jurista alemão, que

vivenciando uma troca de regime jurídico, tenta resguardar aquilo que de mais into-

cável existe na sociedade: seus valores fundamentais. Escorada no sentimento de

justiça que deve permear toda a sociedade, a norma constitucional só será legítima

se ela mesma respeita esses valores.

II – A CONSTITUIÇÃO E O ORDENAMENTO JURÍDICO

Nas relações de direito constitucional, compreendemos que a Teoria do Or-

denamento Jurídico está intimamente ligada às questões de: Unidade, Coordenação,

Validade, Antinomias e relações entre Ordenamentos. Ainda nessa trilha, é funda-

mental a apresentação da idéia filosófica sobre a Teoria Tridimensional do Direito,

do professor Miguel Reale. Assenta-se a idéia do Direito ser uma integração normati-

va de fatos segundo valores, concedendo os postulados fundamentais de um povo

como parâmetros ou nortes orientadores do Constituinte Originário e Derivado.

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Por esse prisma, um Estado de Direito caracteriza-se pela obrigatoriedade

em que são colocadas e conservadas todas as normas jurídicas provenientes de um

Poder Soberano, que se diz legítimo pela soberania popular que assim o consagrou.

A obrigatoriedade das normas advém da situação em que todos as seguem

por terem a profunda convicção de que tais normas são válidas, isto é, possuem vali-

dade formal (vigência), validade social (efetivas) e validade ética (fundamento).

Sob esta ótica, enfileiramos nosso entendimento pelo que se entende por

validade ética nas lições de Stammler, trazidas ao nosso convívio pelo professor Mi-

guel Reale (2), como sendo: "O Direito deve ser sempre ‘uma tentativa de Direito Jus-

to’, por visar à realização de valores ou fins essenciais ao homem e à coletividade".

Percebe-se então que o lastro da validade ética está na presença de valores

expressos ou implícitos, que são eleitos, no consenso geral, por uma sociedade de

homens livres como aquilo que já está sedimentado e presente na consciência coleti-

va. Corporifica-se em algo inalienável e irredutível, em constante aperfeiçoamento,

operando assim a legitimidade e obrigatoriedade do Direito. Logo, podemos observar

que o Ordenamento Jurídico possui esse conjunto de valores que geram o lastro de

validade ética.

Com arrimo nos argumentos expendidos, esse Ordenamento deve possuir

características próprias que o distingue de um mero amontoado de normas. Tal fato é

a própria unidade que um Sistema de Direito, como fruto de um Ordenamento, deve

possuir para ter operacionalidade, ressalvando-se a hipótese de incoerências, onde

haja a quebra da unidade.

Compreendendo, então, que a perspectiva do Direito deve ser entendida

como um Sistema, sustentando-se na unidade e na ordenação, conceitua-se Sistema,

na visão de Kant, assinalado por Claus-Wilhelm Canaris (3), como sendo a Unidade sob

uma idéia de conhecimentos variados ou um conjunto de conhecimentos ordenado

segundo princípios.

Por consegüinte, cabe destacar a visão Kelseniana do fundamento de valida-

de do Ordenamento Jurídico. Nele, a Constituição em seu sentido lógico-jurídico é

caracterizada como a norma fundante do Ordenamento e, no sentido jurídico-

positivo, como a positivação dos preceitos reguladores dessa Ordem. Nesse passo,

funciona como o fundamento de validade do Ordenamento Jurídico.

Validade assim, apresenta-se, sob uma ótica particular, como um dos graus

de sanção dentro de incompatibilidades normativas realizadas dentro do mesmo âm-

bito normativo. Se houver incompatibilidade material ou formal com os preceitos

fundamentais prescritos pela Constituição, deve ser declarada inválida essa norma,

uma vez que a validade é pressuposto para a norma ser seguida. Nesta passagem,

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Norbeto Bobbio (4) enuncia que a validade é a pertinência de uma norma a um Orde-

namento.

Seguindo esse raciocínio, escalonamos os graus de sanção das normas exis-

tentes dentro das incompatibilidades normativas, denominando-as de invalidade e

ilegitimidade. A primeira, já descrita acima, encontra lugar dentro do mesmo âmbito

normativo pelo conflito real que ocorra entre normas, em que a inferior não obedeça

a superior, seja no conteúdo ou na forma. Já a ilegitimidade tem seu campo de atu-

ação num plano superior e abrangente, em que a própria Constituição irá buscar sua

validade para realmente ser legítima ou não.

III – AS INCOMPATIBILIDADES

As incompatibilidades podem ser classificadas em duas categorias próprias:

as antinomias, que ocorrem dentro do mesmo âmbito normativo e as incoerências,

que ocorrem em diferentes ambientes, numa esfera que transcende a própria órbita

interna, tendo em vista uma relação norteada pela coordenação e subordinação, que

indicará o rumo a ser tomado pelo legislador constituinte.

A meu ver, os conflitos podem se manifestar entre normas, entre princípios

e entre valores. Para solucionar o conflito de normas usamos os critérios hermenêu-

ticos tradicionalmente conhecidos (hierárquico, cronológico e especialidade). Para

solucionar a colisão de princípios usamos a técnica da ponderação de interesses. No

entanto, para solucionar a colisão de valores, estes plasmados no texto constitucio-

nal ou não, iremos nos socorrer no sistema de controle de legitimidade da norma,

que é o objeto deste trabalho. Sistema esse, ainda de lege ferenda. Primeiro, fale-

mos das antinomias.

III.1 – AS ANTINOMIAS – CONFLITO DE NORMAS

Na intenção de conceituar, chamamos ao nosso convívio os ensinamentos de

Tércio Sampaio Ferraz Jr., a que alude a professora Maria Helena Diniz (5): "A antino-

mia jurídica é a oposição que ocorre entre duas normas contraditórias (total ou par-

cialmente), emanadas de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo

que colocam o sujeito numa situação insustentável pela ausência ou inconsistência

de critérios aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento dado".

(grifo nosso).

Nesse contexto, a Teoria Geral do Direito elenca três critérios que, em um

primeiro momento, irão conseguir mostrar saídas sensatas ao intérprete para que,

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dentro de duas normas, possa esquecer uma e aplicar a outra, é o que se denomina

de interpretação ab-rogante. Utliza-se principalmente, quando há duas normas ela-

boradas e promulgadas ao mesmo tempo pela mesma autoridade competente, no

mesmo plano hierárquico e ambas gerais, ex. gr., dentro de uma mesma Lei Federal.

Não devemos esquecer que estamos no campo da aplicação do Direito, em que o in-

térprete somente detém o poder de não aplicar a norma, deixando-a de lado, como o

magistrado faz diante do caso em concreto, visto que só o Poder Legislativo possui a

competência constitucional de revogar as normas jurídicas.

Assim, tradicionalmente o conflito de regras se desenrola na dimensão da

validade e, por isso, é resolvido pela aplicação hermenêutica dos critérios hierárqui-

cos (lex superior derogat inferiori), cronológico (lex posterior derogat priori) e da

especialidade (lex specialis derogat generali).

No entanto, superado o conflito de normas, irá surgir a colisão de princípios

(6), que é resolvida pela técnica da ponderação de interesses. O que veremos a se-

guir.

III.2 – A COLISÃO DE PRINCÍPIOS

Os princípios informam todo o sistema jurídico. Eles são normas e as normas

compreendem as regras e os princípios. As regras, segundo o mestre de Harvard,

Dworkin, são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (7). Enquanto os princípios, além

de atuarem normativamente, podem ser relevantes, em caso de conflito, para um

determinado problema legal, mas não estipulam uma solução particular (8). Na feliz

síntese do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, os princípios são abstrações

de segundo grau, normas de normas, em que se buscam exprimir proposições comuns

a um determinado sistema de leis (9). Eles dispõem de maior grau de abstração e me-

nor densidade normativa. Como enunciados genéricos que são, estão a meio passo

entre os valores e as normas na escala da concretização do Direito e com eles não se

confundem, assim observa com muita acuidade o professor Ricardo Lobo Torres (10).

Como principal característica, são funcionais. Cimentam a unidade do Orde-

namento, indicam o conteúdo de direito de determinado tempo e lugar, fixando,

assim, os standards de justiça (11). As disposições principiológicas sintetizam a idéia

de direito e justiça vigentes no momento social, por refletirem diretamente os valo-

res escolhidos pela sociedade no texto constitucional. Desta sorte, dirigem-se aos

Poderes de Estado, condicionando-os na aplicação e interpretação das normas (12).

Os princípios laboram como a principal ferramenta na solução de distúrbios

sistemáticos que, de vez em vez, assolam o Ordenamento Jurídico. A visão formalista

do passado cede a uma visão substancial na análise do Direito. O conteúdo demonstra

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sua força. Os intérpretes mais arraigados à visão formalista estão se curvando peran-

te a eficácia jurídica insofismável dos princípios. A fase do pós-positivismo (13) inaugu-

ra uma nova concepção sobre a eficácia e importância dos princípios. A normativida-

de dos princípios (14), cada vez mais acentuada pela sua positivação em texto consti-

tucional, traduz uma eficácia vinculativa e obrigatória sobre comportamentos públi-

cos ou privados, bem como sobre a interpretação e a aplicação de outras normas (15).

Passamos a linha divisória da ordem jusprivatista (os princípios estavam insertos nos

Códigos) para a ordem juspublicistica (inserção no texto Constitucional) (16).

Assim, os princípios podem entrar em conflito num caso concreto, como por

exemplo, na aplicação da norma antielisiva. De um lado, a legalidade tributária e a

liberdade privada, protegendo o contribuinte das investidas do fisco na busca de seu

patrimônio e, de outro, a capacidade contributiva, autorizando o fisco a identificar o

patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte, como pres-

creve o artigo 145, § 1°, da CF 88.

Não nos resta alternativa, senão recorremos à técnica da ponderação de

interesses, na busca de compor esses pontos de tensão principiológica. O professor

Luis Roberto Barroso, com seu curial brilhantismo, entende tratar-se de uma linha de

raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas (nor-

mas), associá-lo a determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se

reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo

como referências máximas as decisões fundamentais do constituinte (17).

Essa técnica torna-se mister quando, de fato, estiver caracterizada a colisão

entre, pelo menos, dois princípios constitucionais incidentes sobre um caso concreto

(em pauta, na aplicação da norma antielisão, os princípios da legalidade e da liber-

dade conflitam com o princípio da capacidade contributiva).

Desta sorte, para solucionar o conflito, deverá o juiz aplicar o princípio da

proporcionalidade (18) na sua tríplice dimensão: a) adequação, a restrição a cada um

dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) necessida-

de, tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto

e c) proporcionalidade estrita, o benefício logrado com a restrição a um interesse

tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico (19).

Na terceira dimensão do princípio da proporcionalidade, a estrita, devemos

ainda, aplicar o raciocínio baseado na Lei de Ponderação (20), ordenando que quanto

mais intensa for a intervenção em um direito tanto mais graves devem ser as razões

que a justificam. Para isso, é necessário passar por três fases: 1) determinar a inten-

sidade da intervenção; 2) determinar as razões que a justificam; 3) ponderação estri-

ta, por meio de atribuição de pesos específicos aos interesses em jogo (21). Neste ca-

so, a restrição imposta a um interesse deve ser a mínima possível para que seja in-

dispensável à sua convivência com o outro, de forma a que nenhum deles desapareça

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por completo. Se isso acontecer, não haverá ponderação de interesses, e sim, pre-

ponderância de interesses, pois o pressuposto dessa técnica é a convivência harmôni-

ca dos interesses. Logo, os dois interesses sobrevivem juntos, lado a lado. Na verda-

de, há um acordo de interesses, onde cada um cede espaço ao outro, sem sacrifícios

por inteiro de nenhum deles.

III.3 – AS INCOERÊNCIAS – CONFLITOS DE VALOR

Neste item encontra-se o suporte principal do pensamento de nosso estudo.

Primeiramente, desejo lastrear essa tese na Teoria da Argumentação de que o racio-

cínio jurídico é detentor. A argumentação, em oposição à tradição cartesiana, reve-

la-se nas palavras de Chaim Perelman, descritas com muita clareza em um dos clássi-

cos da literatura jurídica internacional, que foi traduzido para o português pelo pro-

fessor Plauto Faraco de Azevedo (22), como sendo: "A argumentação tem seu sentido

no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo

exato de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos [...]" (grifo

nosso).

A Teoria da Argumentação não nos deixa sucumbir às forças irracionais, aos

canhões do poder, às vontades impostas, enfim, à violência. Pelo contrário, coloca à

nossa disposição ferramentas de muita utilidade. Serviçal do Direito, colima a repulsa

a qualquer ato belicoso, que possa, por vias, até oblíquas, despojar o intérprete do

Direito de seus apetrechos necessários ao combate à opressão ou qualquer forma de

tolhimento dos valores intrínsecos e essenciais pertencentes ao homem, por ser o

próprio homem a maior fonte desses valores.

É de se notar que a argumentação jurídica tem um campo próprio de opera-

ção. Utiliza a norma como seu arrimo fundamental. Será a própria norma que indica-

rá os limites máximos e mínimos para a argumentação, tendo em vista a sua própria

elasticidade. Assim é que o intérprete poderá articular de várias formas para com-

preendê-la sem usurpar da Teoria, pois ultrapassando os limites do razoável, estaria

deturpando a própria mens legis. Seria, então, o rompimento da norma, devendo ela

ser eliminada, porque não mais condiz com os fatos reais da vida e com os valores

nela realizados. Por assim dizer, haveria um choque para o sistema, podendo conta-

miná-lo com conceitos distorcidos sobre os valores essenciais daquele povo. Por isso

devemos ir à nascente da norma constitucional, na busca de legitimá-la ou não. Des-

ta forma, em espeque na Teoria Tridimensional do Direito, do professor Miguel Rea-

le (23), que iremos encontrar a segunda fundamentação das normas constitucionais

inconstitucionais (ilegítimas), porque, assim, assevera: "A norma jurídica é a indica-

ção de um caminho, porém, para percorrer um caminho, devo partir de determinado

ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a

determinado valor".

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Na elaboração de uma nova Carta Constitucional, haverá o rompimento com

a antiga Ordem, sendo recepcionado o Direito anterior compatível com essa nova

Ordem e revogado o incompatível, partindo para uma nova produção de Direito. Des-

ta sorte, o constituinte em sua jornada de elaboração da norma constitucional, que é

um processo de integração normativa, leva em conta a forte carga de valor existente

na sociedade, ficando, assim, vinculado aos valores essenciais do homem.

Tendo como o produto final desse processo a norma constitucional, deverá

ela comportar-se, perante o Direito, consoante entendimento do professor Miguel

Reale (24): "A norma é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou não de-

ve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor".

Diante do exposto, depreende-se que o valor detém uma autonomia viva

frente ao Ordenamento Jurídico. Se pensássemos numa Ordem Jurídica sem valores,

ainda assim haveriam valores que determinariam o conteúdo das normas, pois eles

fundam o dever ser da norma, nascem com os homens, são indissociáveis desses e

possuem funções bem determinadas de criar, alterar e modificar a realidade. De toda

a sorte, seriam o parâmetro para uma nova realidade.

Logo, toda a produção de Direito será oriunda de uma Carta Constitucional

que deverá estar em consonância com a Ordem de Valores de um povo, inserido em

determinada cultura, sob pena de ser declarada ilegítima a norma constitucional que

estiver em desalinho com ela. Daí surge a preocupação do legislador constituinte

originário e derivado de seguir a trilha dos valores essenciais de um povo. Assim, se-

gundo Hessen (25): "[...] os valores essenciais de um povo trajam as vestes da imutabi-

lidade e permanência, em cada tempo e espaço social, autorizando o próprio povo,

que é o legítimo detentor do poder constituinte, a excluir da Constituição normas

que colidam com esses valores essenciais". Este é o elemento fundamental na abor-

dagem da colisão de valores, a troca de lente.

ORDENS DIFERENTES, DIFERENTES AMBIENTES

Nesta linha de montagem, as incoerências seriam algo inaceitável, por coli-

direm com aquilo que de mais sagrado existe no corpo social. Estaríamos, portanto,

frente a uma incoerência quando houvesse esse choque entre uma norma constituci-

onal e um valor essencial (valores que são consagrados pelo direito supralegal). E,

nesse conflito, ou se elimina uma das referências ou ter-se-á uma probabilidade mui-

to grande de injustiça.

Exemplo disso, é a contradição existente entre o artigo 100 e artigo 33 dos

ADCTs, ambos da Carta Política de 1988, consoante doutrina da professora Maria He-

lena Diniz (26).

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IV – INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGITIMIDADE

Pelo descrito acima, infere-se que há uma distinção entre os conceitos de

inconstitucionalidade e ilegitimidade, assim como ocorre entre antinomias e incoe-

rências.

Por inconstitucionalidade a doutrina é fértil em conceituá-la de forma a

abranger situações de contradição material ou formal entre um ato normativo e uma

disposição da Constituição. Assim dispõe Marcelo Neves (27): "A definição de lei in-

constitucional deve denotar não só a incompatibilidade resultante de contradição ou

contrariedade entre conteúdos normativos (legal e constitucional), mas também a

proveniente da desconformidade entre procedimento de produção normativa (legisla-

tiva) e conteúdo normativo (constitucional)". Ou ainda por Regina Maria Macedo Nery

Ferrari, citada por Clèmerson Merlim Clève (28) como sendo: "Um ato normativo cujo

conteúdo ou cuja forma contrapõe-se, de modo expresso ou implícito, ao conteúdo

de dispositivo constitucional".

Já a ilegitimidade, comporta-se num plano de maior abrangência, sendo

vinculante e transcendendo a Ordem Jurídica. É a própria Constituição que deverá

estar alinhada com a Ordem de Valores essenciais de um povo, sob pena de banimen-

to da norma constitucional desobediente aos valores que por ela deveriam ser consa-

grados e realizados, ainda que sejam valores não positivados no texto constitucional.

É a garantia do Ordenamento Jurídico.

A norma deverá ser declarada ilegítima por meio de Ação Declaratória de

Legitimidade, dentro de um processo de controle de legitimidade da norma constitu-

cional a ser realizado perante um Tribunal Constitucional. Declarada a ilegitimidade

da norma constitucional, o povo, na qualidade de titular do poder constituinte, usan-

do de sua soberania, será consultado sobre a permanência ou alteração da norma

constitucional em vigor. Esse desenho, de lege ferenda, afigura-se de acordo com o

modo de democracia participativa escolhida pelo povo na própria Constituição, artigo

1º, § único c/c artigo 14, incisos I, II, e III ambos da CF88. Logo, o titular do poder

constituinte originário constatará que algum valor essencial por ele escolhido não

está sendo atendido na sua plenitude, porque a norma declarada ilegítima não o rea-

liza.

V – A ORDEM DE VALORES SUPRALEGAIS

Para alcançar a serenidade de uma Carta Magna vinculada às idéias funda-

mentais de justiça, os valores essenciais de um povo, sedimentados na consciência

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coletiva ou que virão a ser, devem ser elementos condicionantes do sistema jurídico.

Valores esses que possuem uma carga muito forte de realidade, feita dos fatos e re-

lações de natureza política, econômica e social.

Os valores (29) essenciais de um povo são esses bens jurídicos na sua forma

maximamente otimizada, porque constituem, em última análise, aquilo que o Direito

positivado ou não almeja conferir aos seus sujeitos, dentre o muito a que estes aspi-

ram ou perseguem, partindo da valoração de fatos e situações históricas, donde a

normatização. Logo, vinculam o dever-ser de forma a jungir, no tempo e espaço, a

obrigatoriedade legítima, que traz os valores, com o princípio que os realiza e a nor-

ma que os concretiza.

Portanto, é plausível perceber a existência de uma infindável gama de valo-

res existentes ou a se descobrir, que predominando na sociedade, o direito vem a

positivar. Esses valores foram o ponto de partida na elaboração das normas jurídicas.

Todos os valores que já conhecemos como: paz, ordem, segurança, bem-estar, de-

senvolvimento, intimidade, igualdade, acomodação, liberdade, respeito, conforto,

solidariedade, dignidade e justiça, de uma forma ou de outra fundaram as normas.

Neste sentido, observa Revorio (30) que a ordem de valores fundantes das normas jurí-

dicas há de ser social, humana, científica e dialética, e que, do ponto de vista socio-

lógico, os valores cumprem três funções: a) dar coerência e sentido ao código de

normas e modelo destas; b) coagir psiquicamente as pessoas; c) contribuir para a

integração social da comunidade.

Estando eles jungidos ao cerne da norma-princípio ou da intenção dela, fi-

cam assim positivados ou não, explícitos ou implícitos. Note-se, então, a multiplici-

dade de valores que o Direito reconhece e, que a cada dia, consagra em seus princí-

pios e normas. Reconhecimento este que também se observa nas normas constitucio-

nais, pois, como norma suprema, tem seu fundamento de legitimidade assentado

nesses valores, objetivando sempre realizá-los. O exemplo mais característico está

nas normas programáticas. Essas trazem um programa de Estado visando à concreti-

zação de valores consagrados na sociedade, ex. gr., construir uma sociedade livre,

justa e solidária, artigo 3° , inciso I, da Constituição Federal de 1988. Tais normas

explicitam comandos-valores que dirigem-se ao legislador para realizá-los na elabo-

ração da norma, ao administrador público para aplicá-los de ofício e ao juiz para efe-

tivá-los no caso concreto.

Há quem sustente a possibilidade de hierarquizar os valores, tanto na filoso-

fia quanto no Direito. Assim não concordamos. Nesse sentido, observa Francisco Men-

ton Marques de Lima (31): "É importante frisar que a posição de um valor na escala

axiológica depende da sua necessidade em determinado tempo e espaço". No entan-

to, o Tribunal Constitucional Federal Alemão elaborou uma ordem hierárquica dos

valores para o Direito: (a) Em primeiro grau a proteção e liberdade da pessoa; (b) Em

segundo grau estão os direitos, a integridade física e moral, a inviolabilidade corpo-

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ral, a intimidade pessoal, o segredo das comunicações, a inviolabilidade do domicílio,

o direito a fixar livremente sua residência; (c) Em terceiro grau, a proteção à propri-

edade e à liberdade de escolha profissional; (d) Em quarto grau está a liberdade de

exercício profissional.

Na esteira do pensamento do profesor Otto Bachof, os valores fundamentais

estão plasmados no direito supralegal positivado ou não no texto constitucional. Por

tais razões sempre haverá uma ordem de valores a ser respeitada, dentro de cada

contexto social, temporal e espacial. Assim, não concordamos com a hierarquia de

valores suscitada acima, pois elas ficam suscetíveis às variações sociais, dependendo

do momento histórico vivenciado por aquela sociedade. Neste sentido, Mário Ferreira

dos Santos (32) explica que há uma hierarquia nos valores em-si, para-si e para-

outrem. Os valores em-si apresentam uma hierarquia, pois há valores que valem mais

que outros. Os valores para-si apresentam uma hierarquia variante, pois variarão de

acordo com o interesse do seu ser na sua existência. Os valores para-outrem também

possuem hierarquia variante, pois o que hoje oferece maior desirabilidade para um

ser, pode não oferecer posteriormente. Na verdade, se o valor possui uma hierarquia

que varia de acordo com o contexto social, é o mesmo que dizer que não há hierar-

quia.

Por fim, corroborando com o alcance e significado desse enunciado, o pro-

fessor Edvaldo Brito (33) explicita seu pensamento dessa forma: "[...] o "conceito"

Constituição (essência) carece de permanente estudo no âmbito da Teoria da Consti-

tuição, seja porque ele não se encaixa, apenas, no de Constituição jurídica, seja

porque os valores fundamentais devem conformar as normas inseridas nessa Cons-

tituição jurídica para que elas tenham legitimidade". (grifo nosso).

V.1 – O CONCEITO DE VALOR

A conceituação do que vem a ser valor é muito discutida e difundida entre

os filósofos que se ativeram ao assunto. O professor Reale conclui que é impossível

definir o valor e recorre a Lotze para dizer que valor é o que vale. Já Robert Alexy

conceitua o valor a partir da diferenciação dos significados "algo tem um valor e algo

é um valor". No entanto, podemos simplificar e conceituar o valor, no sentido filosó-

fico, como "aquilo que é bom, útil, justo, honesto, belo, agradável para o homem" (34)

e que conduz à perfeição, rumo a Deus. Ou ainda, na filosofia Realeana (35), "os valo-

res apresentam uma forma de ser que não é subordinada ao espaço nem ao tempo.

Eles não admitem nenhuma possibilidade de quantificação. Enquanto tais os valores

são imensuráveis. Eles fazem referência ao plano do ‘dever-ser’". Logo, o valor é um

ente autônomo, acessível a partir do âmbito do dever-ser, que estima a realidade

como ela deveria ser, ou seja, sob a ótica de algum valor. Finalmente, os valores são

atualizados, objetivados nos objetos culturais, embora não sejam reduzidos a eles.

Uma verdadeira compreensão e interpretação dos valores passa por uma análise pre-

cisa da realidade histórico-cultural humana, porque é aí que eles se manifestam.

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O valor (36), no sentido jurídico, entende-se como a máxima revelação do

complexo de bens, direitos, interesses, poderes e faculdades das pessoas, dos gru-

pos, das coletividades e do próprio Estado – em sua função estrutural de meio para a

consecução dos fins da sociedade organizada.

VI – DIREITO CONSTITUCIONAL ESCRITO

VI.1 – NORMA CONSTITUCIONAL DE GRAU INFERIOR EM FACE DE NORMA CONSTI-

TUCIONAL DE GRAU SUPERIOR

Em supedâneo nas correntes doutrinárias alemãs, especialmente Krüger e

Giese, esses autores acreditavam na hipótese de serem materialmente inconstitucio-

nais as normas de grau inferior (norma só formalmente constitucional) infensas a

preceito nuclear da Constituição. Relatado por Otto Bachof, suas defesas espelham-

se na seguinte afirmação (37): "Contudo, poderia suceder que uma norma constitucio-

nal de significado secundário, nomeadamente uma norma só formalmente constituci-

onal, fosse de encontro a um preceito material fundamental da Constituição: ora, o

facto é que por constitucionalistas tão ilustres como Krüger e Giese foi defendida a

opinião de que, no caso de semelhante contradição, a norma constitucional de grau

inferior seria inconstitucional e inválida".

O professor Otto Bachof, analisando essa situação, irá desconsiderar a hipó-

tese da norma de grau superior conter timbre de direito supralegal, porque essa hi-

pótese configuraria outra situação e a inconstitucionalidade, na realidade, adviria do

contraste com o direito supralegal, e não no fundamento de escalonar com graus a

diferentes tipos de normas irrogando superioridade a umas pela corporificação de

princípios basilares da Constituição, como conceberam Krüger e Giese.

No entanto, houve na doutrina pátria quem sustentasse que haveria, com

base no tipo de normas formal e materialmente constitucionais, um diferente peso

normativo para certas normas que trouxessem conteúdo fundamental, expressando

preceitos nucleares do Estado de Direito. Portanto, serão qualificadas de inconstitu-

cionais aquelas que contrariassem as normas de maior peso normativo, posto que

essas normas contêm o âmago vital do Estado, sua espinha dorsal, sua fonte revela-

dora, sua própria identidade.

Essa discussão fora preconizada pelo Prof. Nelson Sousa Sampaio que defla-

grou a contenda à época da Emenda Constitucional nº 01/69 que punia com a perda

do mandato parlamentar a infidelidade partidária, que se encontrava apoiada em

instruções partidárias, subordinando o parlamentar à vontade do partido e não à sua

livre consciência política. Desta sorte, amordaçado estava o parlamentar, ficando o

exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos ao sabor dos comandos

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impostos pelo partido. Assim, descreve o professor Nelson Sousa Sampaio (38): "En-

quanto a inviolabilidade do legislador é consagrada no artigo 32, sua negação, sob

forma de fidelidade partidária coativamente prescrita, se encontra no bojo do artigo

152 do diploma constitucional. Jungido às instruções partidárias, como se poderá

sustentar que o legislador brasileiro somente deve obediência aos ditames de sua

consciência?"

O cerne de seu pensamento estribava-se na idéia de que dentro do texto

constitucional poderiam existir normas de mais alto valor contrapondo-se a normas

de mais baixo valor (peso), havendo, assim, um escalonamento, uma dosimetria axio-

lógica entre as normas. Constata-se essa formulação na seguinte passagem (39): "Minha

tese, pois, não é nenhuma inovação, a não ser na doutrina brasileira. Ademais, nada

tem de revolucionário, tendo, antes, a feição do óbvio, porquanto somente considero

inaplicável uma norma do constituinte originário quando em flagrante e insanável

conflito com outra norma do mesmo texto constitucional reputada de maior peso ou

de mais alto valor".

VI.2 – NORMA CONSTITUCIONAL VIOLADORA DE DIREITO SUPRALEGAL PO-

SITIVADO NA CONSTITUIÇÃO

A idéia central do trabalho do professor Otto Bachof encontra guarida na

análise do relacionamento vivo que existe entre o direito supralegal, vinculador do

constituinte originário, colocando limites a um Poder originariamente ilimitado, com

sua obra, a Constituição.

Entende que, como o direito supralegal é inerente ao Estado de Direito,

atribui também às normas formalmente constitucionais a incrustação desse direito,

tendo já destacado ser matéria de Constituição o direito supralegal. Assim, classifica

de inconstitucional a norma legal que infringir norma constitucional positivadora de

direito supralegal (tanto faz ser formal ou material a norma constitucional) e qualifi-

ca de ilegítima, no atributo de sua obrigatoriedade, a norma constitucional que vio-

lar direito supralegal positivado na Constituição. Destaca-se ainda que coloca no

mesmo patamar de igualdade o direito supralegal com conteúdo fundamental da

Constituição. Na sua dicção (40), compreende que: "[...] a incorporação material

(Ipsen) dos valores supremos na Constituição faz, porém, com que toda a infração de

direito supralegal, deste tipo, apareça necessária e simultaneamente como violação

do conteúdo fundamental da Constituição".

Desta sorte, com o amadurecimento dos Estados de Direito, podemos encon-

trar com melhor clareza a aceitação dos preceitos de direito natural. Nas Constitui-

ções atuais deparamo-nos mais e mais com normas que detêm essa nobreza de corpo-

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rificar os direitos inerentes ao homem. Afinal, há uma positivação real desses precei-

tos na Constituição.

Neste sentido, hoje temos positivado na Constituição mais um instrumento

de jurisdição constitucional, qual seja, a argüição de descumprimento de preceito

fundamental, nos moldes do § 1º, do artigo 102 da CF88. Esta medida judicial visa a

proteger o preceito fundamental, que mais se coaduna com o direito supralegal posi-

tivado, pois no conceito de Clémerson Mèrlin Clève (41) "[...] os preceitos fundamen-

tais são aquelas normas constitucionais que garantem a identidade da Constituição".

Esse nobre pensamento filosófico não se coaduna com medidas legislativas

arbitrárias, desprovidas de qualquer conteúdo mínimo dos valores incrustados na Or-

dem Jurídica. Assim como não reduz o direito natural a mera formalidade, como sen-

do algo imutável e universal, mas, pelo contrário, admite, relativizando que, como

defensor desse direito, não pode ficar consignado que o respeito e obrigatoriedade

aos preceitos do Direito Natural sejam consectários de mera aceitação dos postula-

dos, devido à sua natureza formal. Não fica atrelado apenas a essa formalidade. Não

é o formalismo desses preceitos que atribui ao direito natural a sua força vinculante,

e sim, pelo reconhecimento efetivo de respeito à regra moral e à obediência à busca

da Justiça.

Acentua ainda que não está demonstrado o fato de que positivar o direito

supralegal signifique ter esgotado seu conteúdo. A natural existência de valores me-

tafísicos que ainda não foram positivados confirma essa assertiva.

Acredita também que a positivação do direito supralegal tem a finalidade de

controlar as tensões existentes no choque entre esse direito e o direito positivo. E

ainda, mesmo alçando o direito supralegal ao cargo de imutabilidade dentro da Cons-

tituição, não se tem nenhuma garantia que esse direito será resguardado para sem-

pre, tendo em vista a possibilidade de quebra da Ordem Jurídica por meio da força

dos canhões de outrora ou por meio da força do capital predatório. Esse último, pelas

aparências, veste-se com o manto protetor da estabilidade, da segurança, proferindo

o discurso da salvação, mas, no fundo, bem lá no fundo, na parte mais recôndita e

profunda do iceberg, traz toda a perversidade daqueles que não têm compromisso

com os valores essenciais de um povo, como a justiça, a dignidade, a honestidade e o

equilíbrio. Na realidade traduz-se numa falácia, pois apenas são guiados pelo valor

financeiro das relações. A tentativa de igualar os natural e socialmente desiguais

certamente não vislumbra obter a atenção desse salvador, posto que esse programa

ideológico não se coaduna com sua natureza.

A legitimidade da Constituição, portanto, advém da obrigatoriedade de suas

normas. A escolha do rumo legítimo pelo Constituinte originário deve ter como obje-

tivo fixo atender aos ditames da regra moral, escorando-se nos princípios informado-

res e criadores da Ordem Jurídica. Razão pela qual, devem traduzir a busca pela jus-

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tiça, evitando assim condutas desarrazoadas, desequilibradas, descompassadas, des-

proporcionais com os valores fundamentais. Somente nesse caso estaremos falando

de uma Ordem Jurídica legítima, por refletir a essência valorativa de seu povo. Nesta

trilha, o professor Otto Bachof demonstra toda a nobreza de sua concepção ideológi-

ca na seguinte passagem (42): "Esta obrigatoriedade só existirá, em primeiro lugar, se

e na medida em que o legislador tome em conta os <<princípios constitutivos de toda

e qualquer ordem jurídica>> e, nomeadamente, se deixe guiar pela aspiração à justi-

ça e evite regulamentações arbitrárias". Mas, além disso, só existirá ainda – e nesta

medida vou além do limite antes mencionado, traçado por E.v. Hippel (43) - se o legis-

lador atender aos mandamentos cardeais da lei moral, possivelmente diferente se-

gundo o tempo e o lugar, reconhecida pela comunidade jurídica, ou, pelo menos, não

os renegar conscientemente.

Reconhecendo essa ordem de valores conformadora da Constituição, acres-

centa-se o conhecimento doutrinário do professor Edvaldo Brito (44), que pontifica no

seguinte trecho: "É por causa da necessidade de conformação dessas normas com

esses valores que se pode examinar se o legislador delas exorbitou, ou não, da sua

função que é de potência e não de competência. Ainda que seja, como o é, uma po-

tência, o legislador constituinte não poderá ferir o direito suprapositivo, balizador

desse legislador". É neste sentido que a doutrina alemã fala de normas constitucio-

nais (da Constituição jurídica) inconstitucionais (se ferem valores fundamentais cons-

tantes da Constituição essência).

Por outro lado, a legitimidade da Constituição não se reduz à positivação dos

preceitos naturais em seu texto, sob pena de equacionar a legitimidade numa igual-

dade entre o poder e o direito. Vai mais além esse conceito. O direito supralegal po-

sitivado na Constituição não cria direito, mas antes tem a função de reconhecer to-

talmente os direitos inerentes ao homem já assegurados pela razão natural de sua

existência. Seria uma conclusão errada irrogar a função de criador de direito ao di-

reito supralegal, haja vista a sua condição de pré-direito positivo de que é detentor.

Saliente-se que nos regimes de Estado de não direito, as Constituições refletem o

poder do Ditador, e nem por isso, mesmo sem estar positivado, o direito supralegal

deixará de existir. Melhor nas palavras do professor Otto Bachof (45): "A restrição da

legitimidade de uma Constituição à sua positividade redundaria ao fim e ao cabo,

como E. v. Hippel convincentemente mostrou, na igualdade poder = direito [...] (46)".

Por fim, cabe ainda uma última preocupação do professor Otto Bachof, que

coloca a afirmação de que todo o direito supralegal positivado pertence à Constitui-

ção, dela não podendo ser alijado. Contudo, no que diz respeito ao direito suprale-

gal não positivado, paira a dúvida: faria parte do Direito Constitucional na qualidade

de elemento não escrito da Ordem Jurídica?

A dúvida é pertinente, já que demonstra a séria preocupação do jurista

compromissado com o Direito. Além de ser louvável, é de uma dignidade de caráter

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incontestável, por consignar um sentimento tão nobre de reflexão perante sua inter-

rogação. Compreendendo a dúvida, iremos buscar as respostas no próprio Ordena-

mento Jurídico, que respeita essa vinculação do direito supralegal não positivado.

Respeito esse que encontramos incorporado em sede constitucional quando falamos

do Princípio da Razoabilidade e, antes da Emenda à Constituição nº 19/98, do Princí-

pio da Eficiência, hoje positivado no artigo 37 caput da Magna Carta. A doutrina, ca-

pitaneada pelo professor Celso Antônio Bandeira de Mello, é segura em afirmar a

existência desses princípios em nosso Ordenamento, mesmo sabendo da não positiva-

ção. Nem poderia deixar de ser. São princípios que estão alinhados com a Ordem de

Valores essenciais, por acentuarem o equilíbrio das atitudes, o sopesamento dos fa-

tos e a adequada conduta para se alcançar o fim colimado pela norma. Reconhecem

o valor de sua natureza, o equilíbrio. São, portanto, balizas orientadoras tanto da

Administração Pública quanto da Privada.

VII – DIREITO CONSTITUCIONAL NÃO ESCRITO

VII.1 – VIOLAÇÃO AO DIREITO SUPRALEGAL NÃO POSITIVADO

Anteriormente abordada, suscita-se a indagação de se saber se o direito su-

pralegal não positivado também faria parte do direito constitucional, na qualidade de

elemento não escrito da Ordem Jurídica e se poderia existir norma constitucional que

violasse esse direito supralegal não positivado.

Nesse tema, o professor Otto Bachof responde a seus questionamentos de

forma a admitir a incorporação desse direito supralegal não positivado na Constitui-

ção, não obstante reconhecer que, na Alemanha, a Constituição já teria positivado

vastamente o direito supralegal, sendo muito generosa nesse processo de incorpora-

ção.

Na linha de seu pensamento, aduz dois argumentos que irão afastar quais-

quer dúvidas para o reconhecimento da obrigatoriedade do direito supralegal não

positivado. Primeiramente, sustenta que uma Ordem Jurídica deverá ter o direito

supralegal a ela inerente para que possa ser chamada de legítima. Segundo, quando a

Constituição reconhece efetivamente a existência do direito supralegal ao realizar a

positivação em seu texto, não poderá alegar um reconhecimento parcial, ou seja,

deverá reconhecer todo o direito supralegal, inclusive o não positivado. Conclusão a

que se chega é que não se reconhece um direito somente pela metade. Reconhece-se

por completo a sua existência.

Como já citado, a incorporação de direito supralegal em nosso Ordenamento

ocorre de forma sistemática, deixando crer como é importante esse questionamento

no direito atual. Não obstante as críticas a seu pensamento, esse direito supralegal

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não positivado faz parte da Ordem Jurídica, tendo como manifestações consistentes

de seus postulados os princípios da Razoabilidade, da Proporcionalidade, da Eficiên-

cia, agora positivado, e quem sabe, da Cooperação Mútua e da Responsabilidade Fis-

cal, consagrando a existência, portanto, de uma Ordem de Valores Supralegais.

Infere-se, então, que norma constitucional infensa a direito supralegal não

positivado é carecedora de legitimidade, no que toca à sua obrigatoriedade.

VIII – SISTEMA MISTO DE CONTROLE

VIII.1 – CONTROLE DE LEGITIMIDADE DA NORMA

Inicialmente, por lealdade ao debate, a tese aqui proposta é de lege feren-

da. Não há previsão constitucional para o controle de legitimidade como defende-

mos. No entanto, boa parte do pensamento tem sustentação na Carta de 1988, como

a idéia da participação popular nas decisões políticas fundamentais para a nação. Em

nosso caso, o ideal consubstancia-se em conferir efetividade e aplicabilidade à Cons-

tituição. Vale dizer, o princípio constitucional de democracia participativa (artigo 1º,

§ único) e o direito político de participação popular (artigo 14) devem ser exercidos

concretamente pelo titular do poder constituinte, i.e., pelo povo. Estaremos, sim,

confirmando a prática da soberania popular e não deixando-a abandonada numa "fo-

lha de papel", como Ferdinand Lassale prescreveu em sua obra clássica "A Essência da

Constituição". A Constituição pode ou não representar o efetivo poder social mas, na

hipótese de não espelhar os fatores reais de poder, seria apenas a folha de papel. No

Estado Democrático de Direito, devemos concretizar os mecanismos de participação

popular nas decisões políticas fundamentais, sob pena de ficarmos com uma demo-

cracia participativa apenas em uma folha de papel.

Após muita análise no seio doutrinário, verificamos que, na esteira da dou-

trina italiana, o referendo (47) vincula-se à deliberação sobre ato prévio dos órgãos

estatais, para ratificar ou rejeitar lei já em vigor ou projeto de lei, projeto ou norma

constitucional, enquanto o plebiscito (48) seria uma consulta de "caráter geral, ou

pronunciamento popular sobre fatos ou eventos (e não atos normativos) excepcionais

e que, justamente por isso fogem à disciplina constitucional (49)".

Neste sentido (50), Santi Romano considera o referendo como na aprovação ou

desaprovação de um ato normativo, seja ele de uma carta constitucional, seja uma

lei ordinária ou um ato jurídico. Oswaldo Aranha Bandeira de Melo defende o refe-

rendo como "the gun behind the door" para os casos de emergência, pois na sua for-

ma facultativa é organizado de modo a ser usado só em ocasiões extraordinárias,

como último recurso legal de que o povo possa lançar mão contra os excessos dos

legisladores, parece-nos ser uma garantia de paz e progresso, evitando os abusos.

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José Afonso da Silva entende que referendo versa sobre aprovação de textos de pro-

jeto de lei ou emenda constitucional, já aprovados; o referendo ratifica ou rejeita o

projeto aprovado. Para Dalmo de Abreu Dallari, o referendo consiste numa consulta à

opinião pública para a introdução de uma emenda constitucional ou mesmo uma lei

ordinária, quando esta afeta um interesse público relevante. Assim, em vários países,

o referendo é obrigatório para o caso de reforma constitucional, como Cuba, Pana-

má, Peru, Paraguai, Venezuela, Áustria, Dinamarca, França, Suécia, Coréia, Filipinas

e Japão.

Somando argumentos favoráveis ao referendo, podemos apresentar o profes-

sor Paulo Bonavides, que cita o professor Jorge Xifras Heras advogando as seguintes

razões (51): "[...] serve de anteparo à onipotência eventual das assembléias parlamen-

tares; torna verdadeiramente legítima pelo assenso popular a obra legislativa dos

parlamentos; dá ao eleitor uma arma com que sacudir o ‘jogo dos partidos’; faz do

povo, menos aquele espectador, não raro adormecido ou indiferente às questões pú-

blicas, do que um colaborador ativo para a solução de problemas delicados e da mais

alta significação social; promove a educação dos cidadãos; bane das casas legislativas

a influência perniciosa das camarilhas políticas; retira dos ‘bosses’ o domínio que

exercitavam sobre o governo".

Assim, o sistema misto de controle de legitimidade seria realizado em duas

fases. Na primeira fase, o exercício da democracia participativa terá seu início com a

propositura de uma Ação Declaratória de Legitimidade da norma constitucional pe-

rante um Tribunal Constitucional. Esse Tribunal não tem apenas a função de guardar

a Constituição, mas também de proteção da Ordem de Valores supralegais. A legiti-

midade ativa para a propositura da Ação fica a cargo dos Chefes dos Poderes Executi-

vo e Legislativo Federal e Estadual, do Procurador Geral da República, das entidades

de classe com representatividade nacional e da iniciativa popular com participação

de pelo menos cinco Estados da Federação.

Na segunda fase, sendo declarada ilegítima a norma constitucional, o Tribu-

nal Constitucional remeterá o processo ao Congresso Nacional, que realizará uma

consulta popular por meio de um referendo. Assim o povo, na qualidade de titular do

poder constituinte, será consultado sobre a permanência ou alteração da norma

constitucional em vigor. Neste caso, estaríamos dando efetividade à Constituição no

exato termo de que o poder emana do povo e em nome dele deve ser exercido. Este

desenho afigura-se de acordo com o modo de democracia participativa escolhida pelo

povo na própria Constituição, artigo 1º, § único c/c artigo 14, incisos I, II, e III ambos

da CF88. Logo, o titular do poder constituinte originário constatará que algum valor

essencial por ele escolhido não está sendo atendido na sua plenitude, porque a nor-

ma declarada ilegítima não o realiza. Essa solução visa a colmatar a quebra da uni-

dade no Ordenamento Jurídico.

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Nesse passo, além de politizar mais a sociedade, pelos debates políticos que

surgiriam, provocaríamos um deslocamento da força popular, que somente compare-

ce às urnas de quatro em quatro anos, por apenas alguns minutos. Advogamos a tese

de que o exercício da soberania popular e a discussão de questões que afetem dire-

tamente o cotidiano formarão pessoas mais responsáveis e conscientes.

Assegura-se, então, o ciclo de legitimidade, pois o poder de criar uma Cons-

tituição estaria retornando a seu titular originário. O próprio poder que concede é o

que pode retirar.

IX – O ENTENDIMENTO DO STF – ADIN Nº 815-3

No direito brasileiro, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal manifes-

tou seu entendimento sobre o tema no leading case, Adin 815-3, que foi proposto

pelo Governador do Rio Grande do Sul, questionando a constitucionalidade dos pará-

grafos 1º e 2º do artigo 45 da Carta Política de 1988. O argumento central da Ação

Direta de Inconstitucionalidade está escorado no tratamento desigual e desproporci-

onal feito ao voto dos cidadãos brasileiros. Acentua, juridicamente, que a norma

constitucional em pauta fere princípios constitucionais superiores, que estão alber-

gados pelas cláusulas pétreas, e por consubstanciarem concreções positivas do direi-

to supralegal, estariam num patamar superior de hierarquia. Alega a violação dos

princípios da Igualdade (artigo 5º da CRFB/88), da Igualdade do Voto (artigo 14 da

CRFB/88), do exercício, pelo povo, do poder (artigo 1º prágrafo único da CRFB/88),

da cidadania (artigo 1º, inciso II, da CRFB/88), da Democracia (artigo 1º da CRFB/88)

e do Regime Federativo (artigo 60, parágrafo quarto, inciso I c/c artigo 1º da

CRFB/88). E sob fundamento lógico-jurídico, explica de forma técnica que há uma

real desproporção e discriminação na divisão existente entre a população do país,

participação no PIB e composição do Congresso Nacional. Assim, demonstra que a

região do SUL/SUDESTE detém 57,7% da população do país, participa de 77,4% do PIB

e compõe de 45% o Congresso Nacional. Enquanto isso, a região NORTE/NORDESTE

detém 42,3% da população, participa com 22,6% do PIB e compõe de 54,3% o Con-

gresso Nacional. Complementa, ainda, exemplificando que essas distorções invadem

todas as atividades legislativas, ocorrendo esse fenômeno na Comissão Mista de Pla-

nos, Orçamentos Públicos e Fiscalização do Congresso Nacional e na Comissão Mista

criada para avaliar exatamente os desequilíbrios regionais. Dessa forma, sublinha que

há uma disparidade, um descompasso real nessa divisão, que se torna discriminatória

e injusta, tendo em vista que atribui pesos diferentes a cidadãos absolutamente

iguais. Há uma colisão entre os valores de justiça e de eqüidade.

A título de reconhecimento, há entendimento doutrinário na mesma linha da

argumentação do Governador do Rio Grande do Sul, consignado pela voz do professor

José Afonso da Silva (52) que pontifica: Essa expressão – voto com valor igual para to-

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dos, constante do artigo 14 – é mais do que a simples relação de igualdade de voto

entre eleitores. Ela, além do princípio one man, one vote, traz a idéia da igualdade

regional da representação, segundo a qual a cada eleito, no País, deve corresponder

o mesmo número ou um número aproximado de habitantes. Contraria a regra do va-

lor igual o fato de que um voto, por exemplo, no Acre, vale cerca de vinte vezes mais

do que um voto em São Paulo, pois para se eleger um Deputado Federal naquele bas-

tam cerca de dezesseis mil votos, enquanto neste são necessários aproximadamente

trezentos mil votos.

E por último, o Supremo Tribunal Federal, na dicção do Sr. Ministro Moreira

Alves, discorda do pensamento desenvolvido pelo Governador do Rio Grande do Sul,

lembrando que esse Governador não sustenta que as normas impugnadas são violado-

ras de direito supralegal não positivado na Constituição. E sim, que as normas impug-

nadas ferem direito supralegal positivado na Constituição ou ferem normas de grau

superior da Constituição.

Ressalta a impossibilidade de controle do Poder Constituinte Originário por

parte do Poder Judiciário, um Poder Constituído. O Supremo Tribunal Federal, como

órgão máximo do Poder Judiciário, tem a função precípua de guardião da Constitui-

ção, no sentido de impedir qualquer ataque à Constituição por meio de atos infra-

constitucionais. Assim que se observa a sua jurisdição. Admitir a função de verificar

se o constituinte originário desrespeitou o direito suprapositivo seria despropositada

e usurpadora de uma função, que cabe somente ao constituinte originário. Do contrá-

rio, teríamos que fazer uma nova Constituição.

Dissolve, também, a idéia de hierarquia entre normas constitucionais apoia-

da em normas de grau superior, como as cláusulas pétreas. Compreende que esse

entendimento não tem cabimento no sistema de rigidez constitucional adotado pela

Constituição de 1988 (a rigidez constitucional coloca limites à atividade legislativa).

As cláusulas pétreas servem como limites ao constituinte derivado, impondo-lhe mai-

or rigidez na escolha das matérias que poderão ser alteradas por via de Emenda

Constitucional, e não como parâmetro de superioridade frente às outras normas.

Porquanto, assevera que todas as normas inseridas no texto constitucional são ditas

constitucionais, não cabendo a denominação de normas formal ou materialmente

constitucionais.

Ademais, como prescrito na ementa da Adin, verifica-se que o fundamento

do julgado foi igual ao que ocorreu em Portugal, quando o Tribunal Constitucional

Português rechaçou a hipótese de norma constitucional inconstitucional (53), mas não

adentrou no fundo da questão. O Supremo Tribunal Federal descartou a questão jul-

gando pela impossibilidade jurídica do pedido. Porém, não penetrou no cerne do

problema para discutir sobre a órbita dos valores capitais vinculantes do constituinte

originário, que traduz o pano de fundo dessa Adin. O STF poderia ter avançado nesta

matéria, sendo o guardião também da Ordem de Valores.

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X – CONCLUSÃO

O momento de concluir um trabalho talvez seja o mais difícil. As preocupa-

ções com a clareza no raciocínio e na consistência técnica sempre geram perturba-

ções. Em apertada síntese podemos dizer que:

(a) A hipótese de norma constitucional inconstitucional restaria configurada

quando houvesse a violação de valores fundamentais de justiça, sedimentado em

direito supralegal não positivado na Constituição, levando a crer que os valores a

sustentar essas normas estariam em colisão, pois o processo de concretização dos

valores é feito por meio dos princípios, depois pelas normas e depois pelos demais

atos normativos, inclusive as sentenças. Logo, restaria insustentável a permanência

das incoerências no Ordenamento Jurídico. A violação à Ordem de Valores, em medi-

da insuportável dos postulados fundamentais de justiça, importaria no controle de

legitimidade da norma, pois não foi possível a resolução das antinomias pelos crité-

rios da hermenêutica e da técnica da ponderação de interesses. Pensamento que

sustentamos em espeque nas reflexões do professor Otto Bachof;

(b) O controle de legitimidade da norma constitucional seria realizado em

duas fases. A base de sustentação desse controle é a democracia participativa, um

sistema misto de controle. A primeira fase é exercida pelo mais alto órgão técnico da

Justiça, um Tribunal Constitucional. Nele, o Tribunal reconheceria a existência da

incoerência das normas constitucionais e enviaria ao Congresso Nacional para que

realizasse uma consulta popular, sob a forma de referendo, visando à permanência

ou à alteração do texto constitucional.

Em suma, desejo aqui plantar uma semente no intuito de gerar uma reflexão

atualizada sobre o tema. A intenção maior está no repensar contínuo do direito. A

preservação do Estado de Direito coloca-se na necessidade de garantir um mínimo

existencial de justiça a todos, sem discriminações. Acredito que os dias de hoje de-

vem ser escritos com os olhos no amanhã. Porquanto, algumas perguntas colocadas

pela filosofia do direito mais valem pelas indagações que provocam do que pelas res-

postas que produzem.

NOTAS

1 Apud: BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra, Al-

medina, 1994. p.45.

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23

2 REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. São Paulo: Saraiva, 20° ed,

2002. p. 115.

3 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na

Ciência do Direito. Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2º ed, 1996. p.10

4 Op. cit. p.60

5 DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 2º ed, 1996. p

19.

6 Princípios são normas que ordenam que algo seja realizado em uma medida

tão ampla quanto possível das possibilidades fáticas ou jurídicas. Princípios são, por-

tanto, mandamentos de otimização. Como tais, eles podem ser preenchidos em graus

diferentes. A medida ordenada do cumprimento depende não só das possibilidades

fáticas, senão também das jurídicas, in ALEXY, Robert. Ob. cit., p. 75.

7 DWORKIN, apud BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 253.

8 DWORKIN, apud BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., p. 254.

9 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo, Rio de

Janeiro: Forense, 1998, p. 61.

10 TORRES, Ricardo Lobo. Ob. cit., p. 79.

11 CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no

Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 1995. p. 35.

12 Não custa assinalar a consagrada definição dos princípios pelo professor Celso

Antônio Bandeira de Mello, em seu Curso de Direito Administrativo, p. 450, que, pela

extensão e profundidade do conceito, sempre é citada pela maioria dos doutrinado-

res pátrios: "Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verda-

deiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas

compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteli-

gência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no

que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico[..].".

13 SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 41. Pela clareza e profundidade da obra, recomen-

damos a leitura do que há de melhor na literatura constitucional carioca.

14 Os princípios têm normatividade? Para essa indagação houve resposta, em

1952, por Crisafulli, que já atribuía ao princípio a qualidade de norma como determi-

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24

nante de uma ou de muitas outras normas subordinadas, assim como Norberto Bobbio

na sua conhecida obra Teoria do Ordenamento Jurídico, apud ESPÍNDOLA, Ruy Samu-

el, Conceitos de Princípios Constitucionais. São Paulo: RT, 1998. p. 56, fazendo men-

ção, ainda, a Paulo Bonavides.

15 ESPÍNDOLA, Ruy Samuel, ob. cit., p. 55.

16 Tendo em vista a riqueza de elementos e conceitos, recomendamos a esme-

rada obra de ESPÍNDOLA, Ruy Samuel, ob.cit.

17 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Pau-

lo: Saraiva, 1996. p.185.

18 Para um estudo mais aprofundado desse tema, recomendamos a belíssima

obra de BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da Proporcionalidade e o controle de

constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília

Jurídica, 1996.

19 SARMENTO, Daniel. Ob.cit., p.104.

20 ALEXY, Robert. Ob.cit., p.78.

21 A atribuição de peso específico torna-se tarefa árdua, já que interesses e

valores não possuem uma escala de grandeza com hierarquia. São grandezas quanti-

tativamente imensuráveis. O que se contorna pelo uso da lógica do razoável, de Luís

Recaséns Siches, que a definiu: "La logica de lo humano o de lo razonable es una ra-

zón impregnada de puntos de vista estimativos, de critérios de valorización, de pau-

tas axiológicas, que además leva a sus espaldas como allecionamiento las ensinanzas

recebidas de la experiência [...]" (Apud: SARMENTO, Daniel. ob. cit. p.106.) Assim,

também, o professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ensina-nos que interesses e

razões são dados apenas experimentalmente referenciáveis, sujeitos a valorações

subjetivas, exigindo, não uma lógica para conhecer, mas uma lógica para decidir.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Legitimidade e discricionariedade. Rio de Ja-

neiro: Forense, 1998. p. 55.

22 FULLER, Lon L. O Caso dos Exploradores de Caverna. Tradução de Plauto Fa-

raco de Azevedo. São Paulo: Sergio Antonio Fabris, 1993. Introdução, p. XII.

23 REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. São Paulo: Editora Saraiva,

5° ed, 1994. p.119.

24 REALE, Miguel. Ob Cit. p.125.

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25

25 Apud: LIMA, Francisco Melton Marques de. O resgate dos valores na interpre-

tação constitucional. São Paulo: ABC Editora, 2001. p.58.

26 DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. São Paulo: Saraiva, 2º ed, 1996.

Essa autora alega uma antinomia real na Constituição Federal de 1988, concretizada

no conflito entre o artigo 33 das Disposições Constitucionais Transitórias e os artigos

5º e 100 da Carta Política, no que tange ao pagamento dos precatórios judiciais. A

contradição estaria consubstanciada na desigualdade feita pelo artigo 33 dos ADCTs,

que dispõe de forma discriminatória aos credores do Erário Público anteriores à Cons-

tituição. Esses credores somente irão receber seus créditos em face da Fazenda Pú-

blica no prazo de oito anos. Enquanto isso, os novos credores que se habilitarem após

a promulgação da Constituição, irão receber no prazo exíguo de um ano, consoante

artigo 100 da Carta Magna. Então, afirma que seria uma desigualdade evidente esse

tratamento diferenciado para quem se coloca na mesma situação perante o Erário

Público. Os credores anteriores à Constituição sofreriam claro prejuízo, recebendo

uma punição temporal de oito anos, pelo simples fato de terem cobrado seu crédito

anteriormente à promulgação da Constituição. Desta forma, ficaria criada uma lacu-

na na ordem de pagamentos. Aqueles que chegaram em primeiro, antes da promul-

gação da Constituição, seriam ultrapassados pelos afortunados credores que chega-

ram mais tarde, depois de promulgada a Constituição. Seu argumento central apóia-

se na violação de princípios constitucionais consagrados na Constituição Federal, co-

mo a isonomia e fundamentos de justiça, consubstanciados no respeito à ordem de

pagamentos pelo critério cronológico de ajuizamento dos precatórios judiciais. Ponti-

fica, neste passo, que: "Ao dispor que os precatórios judiciais, pendentes na data da

promulgação da Constituição, sofrerão paralisação por oito anos, a norma constituci-

onal, de perfil transitório, está a desigualar pessoas colocadas na mesma situação

jurídica de credores do Poder Público ". Cabe assinalar que a transitoriedade do arti-

go 33 das ADCTs se consumou em 30/06/1997. No entanto, a EC 30/2000 restaurou o

parcelamento do precatório em até dez anos, salvo os de natureza alimentar, repris-

tinando a incoerência.

27 NEVES, Marcelo. Teoria da Inconstitucionalidade das Leis. São Paulo: Saraiva,

1988. p. 74.

28 CLÈVE, Clèmerson Merlim. A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no

Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 1995. p.29.

29 LIMA, Francisco Menton Marques de. Ob. cit., p.203.

30 REVORIO, Francisco Javier Díaz. Los valores superiores en la constituciòn es-

pañola, p.34, apud in LIMA, Francisco Menton Marques de. Ob. cit., p.39.

31 Op. Cit. p.68.

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26

32 LIMA, Francisco Menton Marques de. Ob. cit., p.68.

33 BRITO, Edvaldo. Limites da Revisão Constitucional. São Paulo: Sergio Fabris,

1993. p. 35.

34 ROCHA, Antônio Luiz de Souza. Ética e a crise global em que vivemos, p.141,

apud in LIMA, Francisco Menton Marques de. O resgate dos valores na interpretação

constitucional. Fortaleza: ABC Editora, 200. p.29.

35 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, p.187, apud GARCIA, Angeles Mateos. A

teoria dos valores de Miguel Reale. São Paulo: Saraiva, 1999. pp.14 e 20.

36 LIMA, Francisco Menton Marques de. Ob. cit., p. 202.

37 Ob. Cit. p. 55.

38 SAMPAIO, Nelson Sousa. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado

Federal, nº 85, jan./ mar., 1985. p. 06.

39 Ob. Cit. p.08

40 Ob. Cit. p.63.

41 Apud: DANTAS, Ivo. O valor da Constituição. Do controle de constitucionali-

dade como garantia de supralegalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2º

ed, 2001. p.260.

42 Ob. Cit. p. 42 e 43.

43 Loc. Cit., p. 548. O próprio E.v. Hippel traça hoje estes limites manifesta-

mente mais pelo largo, como creio poder concluir do seu escrito sobre Die Krise des

Staatsgedankens und die Grenzen der Staatsgewalt ( Stuttgart, 1950 ): cfr. Aí em

especial, p. 53, onde Hippel fala dos limites de competência <<que, tendo em conta

Deus, a Humanidade, cada homem individualmente considerado, bem como as comu-

nidades naturais, valem por si como limites à autoridade do Estado>>, e onde estes

limites são designados <<como o mínimo de exigências que também o Estado tem de

respeitar para poder ser visto como um Estado no sentido de uma ordem com força

obrigatória>>.

44 Ob. Cit. p.35.

45 Ob. Cit. p.45

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46 Loc. Cit., p.548. Cfr. Ainda a este respeito Karl Schmid, com Congresso Jurí-

dico de Constança, em 1947 (DRZ 1947, 205 ss., 206): << Temos de aprender de novo

que a justiça está antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias

intocáveis pela vontade do homem que podem fazer das leis direito – seja o legisla-

dor quem for, um tirano ou um povo. Velar por isso é a nossa função, a função pró-

pria dos juristas. Se o esquecermos, degradamo-nos em auxiliares e servos do po-

der>>.

47 Referendo vem de ad referendum e origina-se da prática, em certas localida-

des suíças, desde o século XV – como os cantões de Valais e Grisons – de consultas à

população para que se tornassem válidas as votações nas Assembléias cantonais.

48 Plebiscito vem do latim plebis + scitum e originariamente designava, na Roma

antiga, a decisão soberana da plebe, expressa em votos.

49 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebis-

cito e iniciativa popular. São Paulo: Editora Ática, 1991. p.33 apud in MELO, Mônica

de. Plebiscito, Referendo e Iniciativa Popular. Mecanismos constitucionais de partici-

pação popular. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2001. p.114.

50 Recomendamos a belíssima obra da Procuradora de Estado de São Paulo, Mô-

nica Melo, que realizou profunda pesquisa sobre o tema, podendo com isso adicionar

ao nosso meio uma cultura jurídica da melhor qualidade. MELO, Mônica de. Plebisci-

to, Referendo e Iniciativa Popular. Mecanismos constitucionais de participação popu-

lar. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 2001. pp.111, 112, 115, 119.

51 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros, 10º ed, 1996.

p.285.

52 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:

Malheiros, 14º ed, 1997. p.338.

53 Discussão a respeito da legitimidade da norma constitucional proibitiva do

lock-out, ver: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constitui-

ção. Coimbra, Portugal: Almedina, 2002. p.235.

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Currículo Resumido:

ANDRÉ LUIZ CARVALHO ESTRELLA

Procurador do Estado do Rio de Janeiro, advogado, membro do Instituto Bra-

sileiro de Direito Constitucional.

Como citar este texto:

ESTRELLA. André Luiz Carvalho. Normas constitucionais inconstitucionais (Verfas-

sungswidrige Verfassungsnormen). Fonte:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5021. Material da 3ª aula da Discipli-

na: Direito Constitucional Aplicado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Televirtu-

al de Direito Público– Anhanguera-Uniderp

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INCONSTITUCIONALIDADES: O VOTO DE MARSHALL (1803) E A MODULAÇÃO DE EFEITOS DA LEI 9.868/1999

ÁREA DO DIREITO: Constitucional

RESUMO: A defesa da supremacia da Constituição tornou-se ob-jetivo prioritário nos tempos atuais, carentes de princípios e de ética.

PALAVRAS-CHAVE: Constituição - Supremacia - Defesa.

ABSTRACT: Constitution's supremacy became priority at this very time, wanting principles and ethics.

KEYWORDS: Constitution - Supremacy - Defense.

Sumário: 1. Constituição, cidade sitiada - 2. O caso Marbury vs. Madison e o voto de Marshall - 3. A declaração de constitu-cionalidade no controle concentrado - 4. A Lei 9.868/1999 e

seu art. 27 - 5. Em defesa das muralhas: 5.1 A Súmula vincu-lante 8 do STF.

“É necessário o povo lutar pela lei como pelas muralhas” (HERÁCLITO, Fragmento LXXXIX).

1. CONSTITUIÇÃO, CIDADE SITIADA1

A polis, como representação do Estado grego, encerra em si a ideia de Consti-tuição desde que este pacto fundacional vem organizar politicamente a sociedade humana. E como “cidade”, encravada pelos ajuntamentos e movimentos dos grupos e interesses nestes nossos países de tortuoso e errático caminho democrático, a Consti-

tuição encontra-se permanentemente sob assédio dos descaminhos aéticos de gover-nantes e governados.

Dobel2 descreve bem “Como e por que um Estado se corrompe”:

“A teoria da corrupção compreende as seguintes proposições:

1. Certos padrões de lealdade moral e virtude cívica são necessários para manter uma ordem política justa, equitativa e estável. A privatização das preocupa-

ções morais e a decorrente ruptura da lealdade e da virtude cívicas são os atributos cardeais de um Estado corrupto.

2. A grande desigualdade de riqueza, poder e status, criada pela capacidade humana de egoísmo e orgulho, gera a corrupção sistemática do Estado. Os membros das classes mais altas sacrificam sua lealdade civil básica para ganhar posições ou

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mantê-las e a desigualdade estabelecida solapa a lealdade e o bem-estar substantivo dos cidadãos em geral.

3. Essa mudança da qualidade moral da vida do cidadão, combinada com a de-sigualdade, gera facções. As facções são centros objetivos de riqueza, poder, polícia e política que, por sua própria dinâmica, usurpam funções políticas e governamentais

de importância vital. A política facciosa acarreta a tentativa sistemática de corrom-per as agências públicas e a lei. Ser membro de uma facção e praticar o faccionismo muda o caráter moral das pessoas, solapa sua lealdade à comunidade e estimula o

egoísmo radical ou uma lealdade limitada às próprias facções.

4. O conflito de facção e a contínua desigualdade estendem a corrupção a to-da à cidadania. A violência torna-se cada vez mais o substrato dominante de todas as

relações e o discurso político fica reduzido a uma racionalização transparente. A fun-ção pública, a lei e a justiça transformam-se em instrumentos das facções e das clas-ses. A população destituída e as classes altas tornam-se cada vez mais polarizadas. A

política facciosa e demagógica, os levantes esporádicos e a cooptação passam a mar-car as relações políticas, à medida que a sociedade gira num ciclo irrequieto de ten-tativas abortadas de 'restauração' e 'reforma', rumo à alienação, à violência e à anar-

quia institucional cada vez maiores.

5. A socialização da educação, da vida familiar, da religião e dos militares também sustenta os valores comunais e a lealdade, por vezes até mesmo depois da

corrupção do processo político. A corrupção final do Estado envolve o fracasso dos cidadãos em apoiar voluntariamente essas estruturas primárias.”

Fala-se “Estado”, fala-se “Sociedade” pois, conforme esclarece Hesse:3

“A concepção tradicional parte da distinção entre 'Estado' e 'Sociedade', situ-ando o Estado como uma dada unidade e a Sociedade como uma pluralidade dada, uma defronte à outra e sem qualquer relação.

(...) Os pressupostos de tal dualismo desapareceram no Estado democrático e social contemporâneo. A vida 'social' deixou de ser possível sem uma organização responsável, organizadora e planificadora. Ao contrário, o 'Estado' democrático não

se constitui senão através da cooperação social. Também a vida social se encontra em relação mais ou menos estreita com a vida estatal, no processo de formação da unidade política. A importância atual do Estado para a vida econômica e social, assim

como a influência 'social' sobre a atividade estatal, inclusive a participação 'social' naquele excluem uma contraposição carente de qualquer relação.”

Daí que a corrupção política é dizer, dos assuntos estatais, envolve Esta-do/Sociedade, como uma unidade indissociável, impossível de separar e, portanto, passíveis de sofrerem o mesmo patológico processo.

Rodrigo Boldrini4 destaca bem que:

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“Uma Constituição é feita para surtir efeitos práticos e para condicionar, efe-tivamente, a vida em sociedade. Uma Constituição é feita para ser praticada e reali-zada. E mais que isso, uma Constituição é feita para transformar a realidade a ela submetida. É o Direito que deve condicionar a realidade injusta e não a realidade

injusta que deve submeter o Direito.”

E aduz:

“Ocorre que, no Brasil, esse processo de conformação da realidade enfrenta dificuldades para sua plena realização. E essas dificuldades de realização são expres-são da chamada crise constitucional de inefetividade. (...) uma crise de concretiza-ção dos preceitos constitucionais. As raízes dessa crise penetram profundamente na

história política e social do nosso País.”

Parece ocorrer que não temos uma cultura da tradição: Nação jovem, que não conhece bem o seu nome, fomos colhidos pelo incorreto significado da Modernidade,

como o desprezo pelo antigo, pelo conservador, voltando as costas para a Europa Ibérica, de onde viemos e voltando-nos para o vizinho do Norte cuja formação se di-ferencia da nossa dali trazendo, por vezes, alguns dos seus piores aspectos.

Pela falta, portanto, de uma educação política que nos conduza ao conheci-mento do que somos, efetivamente, de uma identidade nacional - a Constituição, que consubstancia esse significado, deixa de ter maior expressão social e política, em

uma Nação que se reconheça como tal.

“Que é uma nação?” indaga Franklin de Oliveira5 e responde:

“Uma Nação é, fundamentalmente, uma realidade histórica que se realiza através de características exatamente definidas. Para que ela exista não basta que seja uma comunidade territorial. Precisamente porque é um produto da história, toda nação só se concretiza através de longa vida em comum. A comunidade de terri-

tório, qualquer que seja sua importância, será sempre um dado insuficiente se não coexistir com a comunidade idiomática e a comunidade de vida econômica. A comu-nidade de língua permite a comunicação humana, atuando ainda como instrumento

de cultura. Com a comunidade econômica tem-se a base material para a elaboração do produto histórico. Mas esta elaboração não se tornará possível se não se estabele-cer entre os ocupantes de determinado território uma comunidade de vida psíquica,

fonte do caráter nacional. E quem estabelece essa comunidade de vida psíquica? A língua? Não, a língua é agente, instrumento. Quem a estabelece é a cultura que, pelo seu poder coesivo, surge no contexto da vida nacional, tanto como causa quanto co-

mo efeito. Como causa, quando atua como modelador da alma nacional, pela trans-missão das ideias, dos sentimentos, das aspirações - então atua como força criadora. Mas também ela atua como força conservadora, mantenedora das conquistas obtidas,

preservadora dos bens adquiridos, protetora e ampliadora do patrimônio acumulado ao longo do tempo. É quando se mostra como efeito e, assim, converte-se em expres-são mais alta da comunidade espiritual, cuja vida espelha. A cultura é a instituição

mais permanente de uma nação, pois cada nação tem um patrimônio espiritual que reflete sua fisionomia, fixa o seu caráter. É esta comunidade cultural que forja os

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indestrutíveis liames que fazem irmãos os ocupantes de um território, os que usam a mesma língua - os membros de uma nação.”

Esse componente da identidade nacional, segundo o Larousse, “a convicção do indivíduo de pertencer a um grupo social, a qual repousa sobre um sentimento de comunidade geográfica, linguística, cultural e que ocasiona certos comportamentos

específicos” - cumpre distinguir de nacionalismo, conforme Benedicto Ferri de Bar-ros:6

“Nacionalismo é uma coisa, consciência de nacionalidade é outra. Estamos fa-lando desta última. As nações novas atrasaram-se no processo de autoidentificação e autonomização que definem as nações modernas.”

Por outro lado, assim esclarece:

“Não chegaremos ao ecumenismo planetário humanista, que é a grande utopia dos tempos atuais - sem uma longa e penosa experiência de convivência internacio-nal. E esta convivência só se pode estabelecer entre personalidades nacionais distin-

tas, maduras, perfeitamente conscientes de sua identidade.”

Esses elementos todos influirão no que Hesse denomina “vontade de Consti-tuição”, levando à sua efetiva realização na coexistência social.

2. O CASO MARBURY VS. MADISON E O VOTO DE MARSHALL

Em A Suprema Corte e a Constituição,7 Charles E. Beard ressalta excertos da decisão, historiando os fatos:

“Neste famoso caso, decidido em 1803, o presidente Marshall aplicou resolu-tamente, pela vez primeira, em nome da Suprema Corte, o princípio de que o Judici-ário Federal tinha o direito de apreciar a constitucionalidade dos atos do Congresso.

O caso teve origem em um requerimento de Marbury à Suprema Corte, solicitando um mandamus que obrigasse o secretário de Estado, Madison, a comissioná-lo Juiz de Paz do Distrito de Columbia - cargo para o qual fora nomeado nos últimos dias da

administração Adams: ao assumir a presidência, Mr. Jefferson, irritado com a sórdida precipitação dos federalistas em se apossar do maior número possível de cargos pú-blicos, recusou-se a comissionar Marbury. Na primeira parte do parecer, Marshall

discute se Marbury teria o direito legal de exigir que lhe dessem posse, e se o remé-dio seria o mandamus. As conclusões foram afirmativas, mas a concessão do manda-mus foi denegada, pois a autoridade conferida à Suprema Corte pelo Ato Judiciário,

de expedir mandamus, não era autorizada, no caso, pela Constituição. Os princípios gerais em que Marshall, como presidente, baseou a sentença aparecem nos seguintes excertos de seu arrazoado. Cotejando-os com as doutrinas enunciadas por Hamilton,

Paterson e outros próceres da Convenção, verifica-se que Marshall absorvera perfei-tamente o espírito da Constituição”:

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“Portanto, a autoridade dada à Suprema Corte pelo ato que a instituiu, de emitir mandamus contra as autoridades da República, não está na Constituição; e cabe esclarecer se uma jurisdição conferida deste modo pode ser exercida.

O problema de se um ato contrário à Constituição pode se tornar lei do país é um problema do mais vital interesse para a Nação.

(...) Ou bem a Constituição é uma lei mais alta, suprema, inalterável por mei-os ordinários, ou está no nível dos atos legislativos comuns e é, assim, alterável

quando à legislatura lhe aprouver.

Certamente todos os povos que possuem constituições escritas consideram as mesmas a lei fundamental e suprema da Nação e, ipso facto, admitem a teoria de

que um ato de legislatura contrário à Constituição é nulo.

É uma teoria essencialmente ligada às constituições escritas e, em conse-quência, esta Corte deve considerá-la um dos princípios fundamentais da sociedade.

Não é, nem pode ser esquecida, no estudo da questão.

Deste modo, a própria fraseologia da Constituição confirma e fortalece o prin-cípio, tido como essencial a todas as constituições escritas, de que uma lei contrária

à Constituição é nula; e que os Tribunais, como os demais poderes, são obrigados a respeitar a Constituição.”

Essa é a origem de toda uma tradição do controle da constitucionalidade das leis e atos normativos e a demonstração de como se encontram vinculadas Nação e Constituição.

O pacto fundacional que é uma Constituição dirige-se primeiramente àquilo que existe como Nação - comunidade humana, existente num território, relacionado por vínculos étnicos, históricos, linguísticos, religiosos e econômicos, para instituí-la Estado.

3. A DECLARAÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE NO CONTROLE CONCENTRADO

“Aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo” (George San-tayana).

“Só conheço uma medida de medir: a Constituição do país” (Jutta Limbach).8

A questão do controle de constitucionalidade, decorrente da rigidez constitu-cional, ampara-se fundamentalmente no princípio da supremacia da Constituição que

dá existência ao pacto fundacional, pelo que a Constituição situa-se no ápice do or-denamento jurídico, dando a este unidade política e coerência sistemática.

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São, assim, os dois primeiros instrumentos básicos da defesa da Constituição: o controle difuso, sob a égide do princípio democrático e o controle concentrado, em atendimento ao princípio da supremacia constitucional.

Excluídos esses pressupostos, exclui-se o Estado Democrático de Direito (art. 1.º da CF/1988).

Refere Giorgio Agamben:9

“Um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Es-tados ocidentais mostra uma divisão - clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa - entre ordenamentos que regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que preferem não regula-

mentar explicitamente o problema. Ao primeiro grupo pertencem a França (onde nasceu o estado de exceção moderno, na época da Revolução) e a Alemanha; ao se-gundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e os Estados Unidos. Também a doutrina se divi-

de, respectivamente, entre autores que defendem a oportunidade de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e outros, dentre os quais se desta-ca Carl Schmitt, que criticam sem restrição a pretensão de se regular por lei o que,

por definição, não pode ser normatizado.

(...)

Assim, na República de Weimar, cuja Constituição estabelecia no art. 48 os poderes do presidente do Reich nas situações em que a 'segurança pública e a ordem' (die öffentliche Sicherheit und Ordnung) estivessem ameaçadas, o estado de exceção desempenhou um papel certamente mais determinante do que na Itália, onde o insti-

tuto não era previsto explicitamente, ou na França, que o regulamentava por meio de uma lei e que, porém, recorreu amiúde e maciçamente ao état de siège e à legis-lação por decreto.

(...)

A história do art. 48 da Constituição de Weimar é tão estreitamente entrela-çada com a história da Alemanha de entre as duas guerras, que não é possível com-

preender a ascensão de Hitler ao poder sem uma análise preliminar dos usos e abusos desse artigo nos anos que vão de 1919 a 1933.

(...)

De fato, o texto do art. 48 estabelecia:

Se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seriamente (erheblich) conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas

necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, eventualmen-te com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parci-

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almente os direitos fundamentais (Grundrechte) estabelecidos nos arts. 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.

O artigo acrescentava que uma lei definiria, nos aspectos particulares, as mo-dalidades do exercício desse poder presidencial. Dado que essa lei nunca foi votada, os poderes excepcionais do presidente permaneceram de tal forma indeterminados

que não só a expressão 'ditadura presidencial' foi usada correntemente na doutrina em referência ao art. 48, como também Schmitt pôde escrever, em 1925, que 'ne-nhuma constituição do mundo havia, como a de Weimar, legalizado tão facilmente

um golpe de Estado' (SCHMITT, 1995, p. 25).

(...)

O estado de exceção em que a Alemanha se encontrou sob a presidência de Hindenburg foi justificado por Schmitt no plano constitucional a partir da ideia de que o presidente agia como 'guardião da constituição' (SCHMITT, 1931); mas o fim da República de Weimar mostra, ao contrário e de modo claro, que uma 'democracia

protegida' não é uma democracia e que o paradigma da ditadura constitucional fun-ciona sobretudo como uma fase de transição que leva fatalmente à instauração de um regime totalitário.”

Conforme destaca Werner Jaeger,10 Platão se nos apresenta, na sua última e grande obra, “As leis, como o legislador filósofo que regula a vida, nos seus porme-nores, mediante leis escritas”.

Em As leis “pretende impregná-las, até, com a ideia da educação: a lei, 'a educadora do povo', procurando 'fazer derivar a autoridade da lei de uma fonte que lhe desse a suprema validade'”:

“Esta fonte é a 'reta razão' (orthos logos) e o legislador é o sábio que põe esta razão por escrito. O consentimento do povo converte esta palavra escrita em lei.

A lei é, portanto, pensamento arrazoado (logimós) que se converteu em dog-ma poleos, é dizer, que foi sancionado pela cidade.”

Essa sequência que Platão estabelece para a feitura da lei explica bem a ra-zão do princípio da supremacia da Constituição, como dogma poleos, ao qual ascende

toda a estrutura do ordenamento jurídico.

García de Enterría11 refere o “sistema que vai consagrar-se definitivamente, embora com matizes significativos, na segunda pós-guerra - o sistema austríaco, obra

pessoal e sem dúvida genial (uma das maiores criações históricas devidas a um só jurista) de Kelsen, sistema expressado pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920 e aperfeiçoado na sua reforma de 1929” que difere da judicial review norte-

americana, do controle difuso para um controle concentrado do Tribunal Constituci-onal e que mantém a intocabilidade da lei e sua especial validez até a declaração de inconstitucionalidade: “de onde se infere a natureza constitutiva das Sentenças do

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Tribunal Constitucional e seu valor ex tunc e não retroativo, somente pro futuro - e erga omnes”.

Tal concepção fortalece a autoridade da lei a qual permanece, efetivamente, em vigor até sua exclusão do ordenamento jurídico.

A perda da autoridade da lei vem assinalada por Hannah Arendt já em Crises da República (1969)12 quando registra:

“Na primavera de 1970 a Associação do Foro da Cidade de New York celebrou seu centenário com um simpósio sobre a sombria questão: A lei estará morta?”

E considerando-se que a lei suprema - a Constituição e sua observância pode-rão, eventualmente, subordinar-se a essa indagação, deve-se sopesar bem as conse-quências jurídico-políticas da sua resposta.

4. A LEI 9.868/1999 E SEU ART. 27

As Leis 9.868/1999 e 9.882/1999, mostram-se emblemáticas naquilo que levou Otto Bachof13 a ressaltar o papel do juiz na ordem constitucional e a problemática

da lei na ordem social e o significado do direito na contemporaneidade:

“A relação do homem com a lei mudou totalmente! Isto aparece atualmente por um sentimento muito generalizado de profundo mal estar e, ainda, de radical

desconfiança; de uma desconfiança que, salvo para uma minoria, não se funda ver-dadeiramente num conhecimento racional das causas, mas na impressão dominante, imprecisa, não por isso falsa, de que a lei, em outro tempo escudo da liberdade e do

Direito, converteu-se hoje precisamente numa ameaça para esses bens.

(...)

(Mas) a verdadeira razão desse mal estar e dessa desconfiança é muito (mais) profunda. Há que busca-la na problemática mesma da lei moderna, na sua transfor-mada função; uma problemática que o legislador conhece muito bem e admite; e que permite que a desconfiança frente à lei apareça como não enfrentada e com isso

antecipamos o resultado. (...)

A lei sofreu, na no transcurso do século XIX, ampla mudança de funções mas especialmente desde o tempestuoso desenvolvimento das duas guerras mundiais. A

lei - no seu sentido clássico, a norma geral e abstrata do comportamento humano para certo tempo, não se encontra já no primeiro plano da realidade normativa. No moderno 'Estado Social', 'Estado de prestações', 'Estado distribuidor' - ou como se lhe

queira chamar -, a lei passou em primeiro plano como ato de conformação política orientado para um fim, como uma medida determinada a superar esta situação to-talmente concreta e, por isso, planejada a curto prazo e negociada comumente no

conflito de grupos contrapostos de interesses. Tais leis são atos de direção política não por isso dispensadas de sujeição ao valor da justiça; mas não são primariamente

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desse valor, senão de uma vontade de conformação política condicionada à situação e ao momento.

(...)

A utilidade e a finalidade políticas vieram em primeiro lugar; (...) um absolu-tismo da maioria parlamentar e dos grupos de partidos que a dominam (...).”

E conclui:

“Mas se esse desenvolvimento é inevitável - ao menos em parte - necessita também de um contrapeso: uma força que se preocupe de que, ao menos, os valores

superiores do Direito e da ordem, que a Constituição estabeleceu como fundamen-tais, permaneçam protegidos; uma força que decida, ao mesmo tempo, com a maior autoridade possível, se num conflito eventual esses valores ficaram salvaguardados,

assegurando o restabelecimento da paz jurídica.

Essa força somente pode ser o juiz.”

E então adentra-se a questão da Lei 9.868/1999 e, em especial, o disposto no seu art. 27.

Referida lei “dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconsti-tucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tri-

bunal Federal”.

E o art. 27 estabelece:

“Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsi-

to em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”

Primeiramente - é de notar - o tom “constitucional” do dispositivo, pois quem poderá determinar competências ao STF ou qualquer outro órgão estatal - senão a

Constituição?!

Tratando-se, no caso, de lei ordinária, fica patente a sua inconstitucionalida-de.

Quanto à matéria veiculada pelo mesmo dispositivo legal: cuida-se, aqui, da denominação doutrinária à técnica de modulação dos efeitos da decisão, in casu do Supremo - pelo próprio Supremo - e pela mesma razão acima referida, também in-

constitucional: as competências, seu alcance e abrangência, em nosso ordenamento, advêm unicamente da Constituição, ao instituir o órgão e suas atribuições.

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Ademais - e sobretudo, há que considerar o princípio de segurança jurídica o qual demanda, dentre outros aplicáveis, o princípio da claridade da lei (e aqui, ad argumentandum tantum, à vista das inconstitucionalidades ocorrentes) e a tal se opõe o dispositivo, porque ao referir o princípio da segurança jurídica vem alegá-la

citando, ao mesmo tempo, o “excepcional interesse social”.

O que é, “interesse social”?

Conceitos indeterminados ocorrem no Direito, alguns de alto grau de indeter-minação e devem ser evitados: Bobbio14 registra apenas interesse nacional; Celso Bastos15 não registra; nem Nelson Saldanha16 ou De Plácido e Silva17 ou J. M. Othon Sidou18 ou Maria Chaves de Mello19 ou o Dicionário Aurélio.20

E excepcional interesse social? Qual a medida, o critério que possa trazer se-gurança nessa aferição?

“A liberdade política - afirma Montesquieu21 no famoso Capítulo XI - em um cidadão, é aquela tranquilidade de espírito que provém da convicção que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o governo seja tal que cada cidadão não possa temer outro.”

Neste momento, precisamente, há que retomar o voto de Marshall, em 1803 - conclusivo sobre a não concessão de writ em Marbury vs. Madison dado que a Consti-tuição não fixara tal competência originária à Suprema Corte.

Eis seus candentes termos, na parte principal:

“Dá-se, em suma, um caso evidente de mandamus para a entrega da comissão ou da certidão de seu registro e só nos falta examinar:

I - Se o Tribunal tem competência para expedi-lo.

A lei orgânica dos tribunais judiciários dos Estados Unidos autoriza o Supremo Tribunal 'a expedir alvarás de mandamus nos casos justificados pelos princípios e es-

tilos legais, a quaisquer tribunais instituídos, ou pessoas que exerçam funções, sob a autoridade dos Estados Unidos.

(...)

A atribuição, portanto, dada ao Supremo Tribunal pela lei que estabelece os tribunais judiciários dos Estados Unidos, para expedir alvarás de mandamus a funcio-nários públicos, não se mostra assente na Constituição e obriga a examinar se pode

ser exercida uma comissão assim conferida.

A questão se uma resolução da legislatura incompatível com a Constituição pode tornar-se lei do país, é uma questão profundamente interessante para os Esta-

dos Unidos, mas felizmente, de nenhuma dificuldade proporcional à sua magnitude.

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Para resolvê-la, basta o reconhecimento de certos princípios que foram longa e oti-mamente estabelecidos.

Que o povo tem direito originário de estabelecer para o seu futuro governo os princípios que se lhe antolharem mais concernentes à sua própria felicidade, são os alicerces sobre que se assenta todo o edifício americano.

(...)

É uma proposição por demais clara para ser contestada, que a Constituição veta qualquer deliberação legislativa incompatível com ela; ou que a legislatura pos-

sa alterar a Constituição pelos meios ordinários.

Não há meio termo entre estas alternativas. A Constituição ou é uma lei supe-rior e predominante, e lei imutável pelas formas ordinárias; ou está no mesmo nível

conjuntamente com as resoluções ordinárias de legislatura e, como as outras resolu-ções, é mutável quando a legislatura houver por bem modificá-la.

Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então não é lei a resolução legis-lativa incompatível com a Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então as constituições escritas são absurdas tentativas da parte do povo para delimitar um poder por sua natureza ilimitável.”22

Sempre atuais, as colocações de Marshall trazem à reflexão a necessidade de manter, ativa e vigilante, a ordem da supremacia da Constituição e da autoridade da lei, como norteios indispensáveis à segurança dos indivíduos e, no todo, à comunida-

de.

5. EM DEFESA DAS MURALHAS

Fustel de Coulanges23 narra a fundação da cidade:

“Fundava-se a cidade de uma só vez, inteiramente, em um só dia.

(...)

Sobre o sulco sagrado, ou pouco atrás, levantavam-se depois as muralhas sa-gradas. Ninguém poderia tocá-las, mesmo para separá-las, sem permissão dos pontí-fices.

(...)

Todas as cidades se construíram para serem eternas.”

As leis - “(...) os antigos não viam nelas obra humana. Não é afirmação vã a de Platão, de que obedecer às leis é obedecer aos deuses. Platão não faz mais do

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que dar-nos a conhecer o pensamento grego quando, em Críton”, nos mostra Sócra-tes dando a vida porque as leis o exigem.

Entre os antigos, a lei foi sempre santa; nos tempos da realeza, era a rainha dos reis; nos tempos da república, foi a rainha dos povos. Desobedecer-lhe seria co-meter sacrilégio.

(...)

A lei antiga nunca teve considerandos. Não necessitava explicar suas razões. A lei não se discute, impõe-se. Não é obra de autoridade e os homens obedecem-lhe

porque creem nela.”

Encontra-se no Livro de Nehemias, 6:1-3 que o rei Artaxerxes permite-lhe ir a Judah para reedificação dos muros de Jerusalém assolada, as portas queimadas e a

cidade destruída:

“E sucedeu que ouvindo (...) nossos inimigos que eu tinha edificado o muro, e que nele não havia brecha alguma embora ainda não colocadas as portas nos portais

(...).

Enviaram a dizer: Vem, e congreguemo-nos juntamente nas aldeias (...). Po-rém intentavam causar-me mal.

E enviei-lhes mensageiros, a dizer:

Estou fazendo uma grande obra, de modo que não poderei descer.”

A ideia de Constituição, de constituir - como um pacto fundacional de união de determinado grupo humano em torno de normas de convivência política, mediante uma “ideia de direito” (Burdeau) preponderante demonstra um dos grandes momen-tos de prevalência da racionalidade humana.

Sabe-se da precariedade das construções humanas, espirituais ou concretas; contudo, acima disso, prevalece a possibilidade do pacto fundante, uma unidade en-tre diferenças, em torno de certas ideias fundamentais.

Nesse sentido de algo superior e transcendental aos interesses particulariza-dos de pessoas ou grupos, erige-se a lei, no caso, a Constituição - sob o domínio da qual subordinam-se todos os demais editos dos diversos níveis governamentais da

polis.

5.1 A SÚMULA VINCULANTE 8 DO STF24

Julgando os recursos extraordinários da União Federal 556.664-1, 559.882-9, 559.943-4 e 560.626-1 e negando provimento, editou o STF a Súmula vinculante 8, do seguinte teor:

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“São inconstitucionais o parágrafo único do artigo 5.º do Decreto-Lei 1.569/1977 e os artigos 45 e 46 da Lei 8.212/1991 que tratam da prescrição e deca-dência do crédito tributário.”

No caso do RE 560.626-1, em especial, a decisão resolveu o caso pela fixação do descumprimento do art. 146, III, b, da CF/1988, pois os arts. 45 e 46 da Lei 8.212/1991, estabelecendo prazo diverso do Código Tributário Nacional para a pres-crição e decadência dos créditos tributários oriundos das contribuições à previdência

social e o parágrafo único do art. 5.º do Dec.-lei 1.569/1977, afrontavam a Constitui-ção Federal.

A inconformidade da decisão reside, entretanto, na modulação dos efeitos da decisão no citado RE 560.626/RS e dos demais que fundamentaram a edição da Sú-mula vinculante 8, item V:

“São legítimos os recolhimentos efetuados nos prazos previstos nos arts. 45 e 46 da Lei 8.212/1991 e não impugnados antes da data de conclusão deste julgamen-to.”

Ou seja, essa modulação dos efeitos afronta o princípio da igualdade e o art. 5.º, caput, da CF/1988, pois o contribuinte que recolheu as contribuições sociais exi-gidas, após o prazo estabelecido no Código Tribunal Nacional resultou prejudicado em relação àquele que optou por discutir a sua exigibilidade, não tendo de efetuar o

pagamento.

Promove, igualmente, o enriquecimento ilícito do Estado, pois foram carrea-dos aos cofres públicos valores indevidos, eis que decorrentes de parcelas prescritas

porquanto cobradas após cinco anos, inexigível a sua devolução (ação de repetição do indébito ou compensação).

A arguida segurança jurídica do julgamento redunda, portanto, em desfavor da segurança jurídica do contribuinte.

Conforme ressalta Emerson Garcia:25

“O Supremo Tribunal é um órgão jurisdicional e uma instituição política, for-mando com o Legislativo e o Executivo, em igualdade de condições, o que os norte-americanos denominam de governo.

A denominada politização da Justiça, expressão cuja literalidade indicaria a prevalência de fatores ideológicos em detrimento do Direito, não é necessariamente um efeito deletério da constante expansão da atividade jurisdicional. (...) Não é por outra razão que Loewenstein, afastando-se da classificação de Montesquieu, defendia

que o judicial review norte-americano era (...) 'materialmente pertencente à catego-ria de controle político'.”

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Firmado esse ponto - que se apresenta fundamental - deve verificar-se, na atuação do Supremo Tribunal:

1. Que “a democracia constitucional, como defende Rawls, deve ser concebi-da de forma dualista: o poder constituinte se distingue do poder ordinário, do mesmo

modo que a lei suprema do povo, da lei ordinária dos órgãos legislativos, o que im-porta na rejeição da soberania parlamentar.”26

2. “Note-se que o dever de respeito à Constituição faz nascer, como contra-ponto, uma espécie de direito difuso à sua efetiva observância, que se espraia por todos os cidadãos, autorizando e legitimando a atuação do Tribunal Constitucio-nal.”27

Daí que a atuação da Suprema Corte encontre-se também subordinada à legi-timação pela cidadania.

3. Cabe-lhe atuar em consonância com a Constituição, estendendo suas deci-sões no âmbito constitucional, sempre que as dimensões jurídicas do pleito se expan-dam por esse âmbito, mantendo a coerência sistêmica e a estrutura principiológica do ordenamento jurídico.

EM CONCLUSÃO:

À Constituição, somente, cabe determinar competências e atribuições aos ór-gãos estatais descabendo à lei ordinária, pelo órgão legislativo, adentrar essa área

restrita ao poder constituinte originário.

Daí a afrontosa inconstitucionalidade do art. 27 da Lei 9.868/1999.

Nisso advém o definitivo ensino de Bobbio:28

“Quando lemos o Código Civil, o lemos tendo em mente que tudo o que não é por ele proscrito, é permitido; quando lemos o texto de uma Constituição, temos em mente o outro pressuposto, que tudo o que não é por ela expressamente autorizado,

é proibido.

Diríamos, em outras palavras, que na esfera da regulamentação da autonomia privada, vale o postulado que tudo é permitido, exceto o que é proibido, enquanto

na esfera da regulamentação dos órgãos públicos, vale o postulado oposto, tudo é proibido exceto o que é expressamente permitido.”

Quanto à modulação de efeitos, portanto, porque não autorizada pela Consti-tuição, a sua possibilidade encontra-se proibida. Tertius non datur.

NOTAS:

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1. “A lei era para Heráclito - refere Jaeger (Alabanza de la ley. Madrid: Cen-tro de Estudios Constitucionales, 1982. p. 31) a expressão mais alta do império da razão na vida humana, como se deduz de seu aforismo: 'O povo lute por suas leis co-mo por suas muralhas'” (Trad. livre da autora).

2. DOBEL, John Patrick. O Estado de São Paulo, 24.02.1980, p. 117-118 e de 02.03.1980, p. 119 e 141.

3. HESSE, Konrad. Escritos de derecho Constitucional. Madrid: Centro de Estú-dios Constitucionales, 1983. n. 11, p. 12-13, trad. livre da autora.

4. BOLDRINI, Rodrigo Pires da Cunha. Política e direito como garantias da Cons-tituição. Itatiba: Berto, 2010. p. 83-84.

5. Morte da memória nacional. São Paulo: Civilização Brasileira, 1967. p. 19-25.

6. Consciência de nacionalidade. O Estado de São Paulo, 21.01.1985.

7. Rio de Janeiro: Forense, sem data. p. 115-118.

8. LIMBACH, Jutta. Ex-Presidente da Suprema Corte Alemã. Deutschland (Ale-manha) n. 6, dez. 1995. p. 2.

9. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 22 e ss.

10. Alabanza de la ley, op. cit., p. 62 e ss., trad. livre da autora.

11. La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional. Madrid: Civitas, 1991. p. 56-59, trad. livre da autora.

12. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 51 e ss.

13. Jueces y Constitución. Madrid: Civitas, 1985. p. 48 e ss., trad. livre da au-tora.

14. Dicionário de política. Brasília: UnB, sem data.

15. Dicionário de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1994.

16. Pequeno dicionário de teoria do direito e filosofia política. Porto Alegre: Fabris, 1987.

17. Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

18. Dicionário jurídico. Rio de Janeiro: Elfos, 1998.

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19. Dicionário jurídico da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Rio de Ja-neiro: Forense, 1991.

20. Dicionário básico da Língua Portuguesa Folha/Aurélio. Rio de Janeiro: No-va Fronteira, sem data.

21. O espírito das leis. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 165. Trad. e notas de Pe-dro Vieira Mota.

22. Ministério da Justiça, Decisões constitucionais de Marshall. Brasília, 1997. p. 21-25.

23. A cidade antiga. São Paulo: Hemus, 1975. p. 106, 109, 112, 152 e 153.

24. Decisão trazida para discussão, em grupo de estudos, pela Dra. Fátima Pa-checo Aidar, 2009.

25. Jurisdição constitucional e legitimidade democrática: tensão dialética no controle de constitucionalidade. De Jure - Revista Jurídica do Ministério Público do

Estado de Minas Gerais 14/104. Minas Gerais, 2010, jan.-jun.

26. Idem, p. 108.

27. Idem, p. 113.

28. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2001. p.

132.

Currículo Resumido:

MARIA GARCIA

Livre-docente pela PUC-SP. Professora de Direito Constitucional, Direito

Educacional e Biodireito Constitucional na PUC-SP. Coordenadora de Direito Constitu-

cional do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-SP. Ex-Assistente Jurídica da

Reitoria da USP. Membro-fundador e atual Diretora Geral do IBDC. Membro da Cobi

do HCFMUSP, do Iasp e da Academia Paulista de Letras Jurídicas (Cadeira Enrico T.

Liebman). Membro Titular do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem

da USP. Procuradora aposentada do Estado de São Paulo.

Como citar este texto:

GARCIA. Maria. INCONSTITUCIONALIDADES: O VOTO DE MARSHALL (1803) E A MODU-

LAÇÃO DE EFEITOS DA LEI 9.868/1999. Fonte: Publicado na Revista de Direito Consti-

tucional (São Paulo:RT) n.º 73, pág. 206 – out/dez-2010. Material da 3ª aula da Dis-

ciplina: Direito Constitucional Aplicado, ministrada no Curso de Pós-Graduação Tele-

virtual de Direito Público– Anhanguera-Uniderp | Rede LFG.