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Fogos quase deixaram Mação sem floresta um naturalista que a quer proteger e mudar

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Fogos quasedeixaram Maçãosem florestaHá um naturalistaque a quer protegere mudar

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Da lenta recuperação da natureza ao espaço que vai sendoocupado por espécies invasoras, o PÚBLICO andou por Maçãoà boleia de Rui Santos, um observador que está preocupadocom o estado de um território que entre 2017 e 2019 viu 95%da mancha florestal ser consumida pelo fogoCamilo Soldado

ercorrer o concelhode Mação, em Santa-

rém, na companhiade Rui Santos signifi-ca suspender a con-versa com frequên-cia . Não que sej a uma

pessoa rude, pelocontrário: constante-mente, há pormeno-

res que poderiam escapar a olhosmenos treinados, mas que faz ques-tão de fazer notar. "Olha uma tou-tinegra-do-mato", exclama, numamenção ao som de uma pequenaave que surge de um arbusto, inter-rompendo a lista de preocupações

que ia enumerando. Algumas já astinha mesmo antes de 2017, quandoum grande incêndio varreu grandeparte da área verde do concelho.Depois, a lista cresceu. O mesmoaconteceu já este ano, há cerca deum mês, com o regresso do fogo a

Mação. Mas reparemos tambémneste abelharuco, que cruza o céuem voo ligeiro, aponta.

O sítio onde esta conversa temlugar é particularmente vantajosopara perceber o impacto que osincêndios tiveram na paisagem doconcelho. Depois de uma subida porestradas de terra batida e com ginca-na entre pinheiros tombados sobre

a via, do alto do miradouro da serrado Bando dos Santos, virados paranordeste, vê-se que a cobertura dosmontes que compõem a vista pano-râmica varia: ora árida, ora comeucaliptal espontâneo ou replanta-do, mas também com uma vastamancha de floresta negra e despida,que assim permanece desde há doisanos. Um tom ainda mais escurosobressai se nos virarmos para norte,onde o incêndio que veio de Vila deRei chegou em Julho. "Dá para per-ceber o que a gente perdeu com o

fogo", lamenta. "O mais importanteé perceber o que a paisagem recupe-rou em dois anos", repara. Neste

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caso, o que ainda não recuperou.É parte desse trabalho de observa-

ção que publica no seu bloque, Res-

pira Natureza, e que alimenta desde2011. Ali regista a fauna e flora em

que vai "tropeçando", com a respec-tiva identificação de espécies. RuiSantos tem 40 anos, vive em Maçãohá 20 e trabalhou na distribuição decorreio cerca de dez anos, tendotambém o curso técnico de gestão e

recuperação de espaços verdes. Este

percurso permite-lhe conhecer tan-to as pessoas como o território quegosta de palmilhar à procura do quenão está lá à primeira vista. O traba-lho que vai publicando serve para"explorar, registar e partilhar" o quese encontra na natureza em Mação,explica, para tentar contribuir parao maior conhecimento das espécies."Como é que vamos proteger se nãoconhecermos?", questiona.

Redução e recuperaçãoDescendo o Bando dos Santos, nacarrinha de caixa aberta que conduz

por estradas mais ou menos transi-táveis, este naturalista está preocu-pado com a recuperação do territó-rio em várias frentes. Das espéciesvegetais à diversidade da fauna queviu reduzida. "Consegui identificar121 espécies de aves no espaço de dez

anos", ainda antes do incêndio, con-ta. Algumas delas não voltou a ver.Mas fala também nos animais herbí-

voros, de médio ou pequeno porte,que vê com menos frequência.

Não falando especificamente docaso de Mação, o investigador doCentro de Investigação em Biodiver-sidade e Recursos Genéticos (Cibio)da Universidade do Porto e do Insti-tuto Superior de Agronomia, Fran-cisco Moreira, que se tem debruçadosobre o impacto dos incêndios nosecossistemas, sustenta que este "nãoé necessariamente catastrófico, con-trariamente ao que as pessoas pos-sam pensar" . Há casos em que podemesmo ser benéfico, refere. "Vive-mos numa região mediterrânica,onde a nossa flora e a nossa faunaevoluíram ao longo de milhões deanos com o fogo" . No entanto, salva-

guarda, "há situações em que esse

impacto é forte" . Sobre a mortalida-de da fauna, diz que é um efeito "quenão deixa de ser temporário" e que,mesmo que demore algum tempo,acaba por ser recuperável.

Mas Rui Santos entende que o fogopoderia ser uma oportunidade paramudar a paisagem. "Depois de 2017,o que é que existe aqui? Não vêsobreiros, não vê freixos nemmedronheiros... já passaram doisanos. Faltam soluções para o terri-tório". E prossegue: "Se é muito caroconcertar isto agora, daqui a dezanos vai ser muito mais caro resolveros problemas".

E os problemas não são de peque-na escala. O fogo consumiu cerca de95% da área florestal em 2017 e 2019.Em final de Agosto, o Governo anun-ciou a criação de um grupo de traba-lho para desenhar um plano de recu-

peração territorial, aplicável aosconcelhos de Mação, Sertã e Vila de

Rei. O objectivo passa por recuperara área ardida e activa a gestão agro-florestal dos concelhos, sendo que odocumento deverá ser apresentadoaté 30 de Abril do próximo ano. O

presidente da autarquia de Mação,Vasco Estrela, em declarações à

agência Lusa, referiu que este é "umbom primeiro passo" para tentarrevitalizar o território.

Oportunidade de invasãoMas até que a flora recupere, demo-rará anos. Entretanto, há espéciesque se vão adiantando, muitas delasinvasoras. Rui Santos fala nas man-chas de acácias que têm surgido,nomeadamente nas margens das

ribeiras, dificultando o crescimentoda floresta ripícola autóctone.Depois, há o caso da háquea-espi-nhosa (Hakea Sericea) que se vaireproduzindo a bom ritmo.

êêDepois de 20Uo queé que existe aqui?Não vê sobreiros,não se vê freixosnem medronheiros...Já passaram doisanos. Faltamsoluções para o

territórioRui Santos

A encosta do monte de São Gens,

que desce em direcção à aldeia de

Santos, freguesia de Mação, estácoberta por um manto verde, pontua-do por esqueletos de arbustos carbo-nizados. Poderia ser um sinal da recu-

peração da encosta, mas é mais preo-cupante que isso, aponta Rui Santos.As pequenas plantas que germinamsão háqueas-espinhosas, espéciesinvasoras cuja propagação é favore-cida pelo fogo. No início deste ano, onaturalista juntou um grupo de pes-soas para arrancar as invasoras do

topo do monte, no centro do qual estáinstalada uma capela caiada. "Foiuma gota no oceano", reconhece,defendendo que as pessoas se deve-riam organizar mais para levar a cabo

acções do género.A investigadora do Centro de Eco-

logia Funcional da Universidade deCoimbra Elizabete Marchante esteve

a registar a presença de espéciesinvasoras em várias áreas afectadas-

pelos incêndios de 2017. A investiga-ção ainda não foi publicada mas, da

observação realizada um ano apósos incêndios de 2017, já era possívelobservar a germinação de háqueas,várias espécies de acácias ou robí-nias. Também o eucalipto estava a

germinar em áreas nas quais nãotinha sido plantado, menciona a

investigadora.Questionado pelo PÚBLICO, o

Ministério da Agricultura respondeque "o controlo de espécies invaso-ras lenhosas é uma das medidas parao território incorporada nos objecti-vos estratégicos dos ProgramasRegionais de Ordenamento Flores-tal". O acompanhamento da "inves-

tigação científica e de experimenta-ção no âmbito das espécies exóticas,e em particular das espécies exóticas

invasoras, é assegurado pelo próprioICNF [Instituto da Conservação daNatureza e das Florestas] ", esclareceo ministério, acrescentando que aentidade tem um "programa de

monitorização e de intervenção con-tínua" nas áreas florestais públicas,"tendo em vista o controlo e erradi-

cação de invasoras". Já "nas áreasflorestais ou agrícolas privadas, as

intervenções competem às entidades

responsáveis pelas mesmas". Nesses

casos, "os respectivos Planos de Ges-

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tão Florestal têm previstas medidasde controlo".lima mancha reduzidaA última paragem da visita com RuiSantos é o Pego da Rainha. Não estátão interessado em mostrar a ribeira

que corre ao fundo de um vale e queresulta numa queda de água natural,como nas escarpas que se erguemacima, na Serra da Moita da Asna. É

ali que está instalada a única manchade zimbro de Mação, garante, umaespécie de folha caduca relativamen-te comum em Portugal. Tanto que a

aldeia mais próxima tem Zimbreiracomo nome.

À medida que se desce a encostaem direcção à ribeira, a temperaturavai baixando. Lá em baixo, a águabrota de uma falha na rocha. O Pegoda Rainha é rodeado por árvores quesobreviveram às chamas e que ser-vem de sombra a alguns (poucos)veraneantes que conseguiram des-cobrir este recanto de difícil aces-so. Tanta sorte não tiveram os zim-bros, instalados mais acima, poronde o fogo passou, refere Rui San-

tos, e a dimensão da sua mancha foireduzida. Espécies que deveriam sercomuns por ali também raramentese encontram, como carvalho cer-

quinho, refere. "Algumas das últimasaveleiras em estado selvagem tam-bém foram", acrescenta. No fundo,receia que a perturbação dos ciclosda natureza contribua para a acele-

ração do ciclo de despovoamento."Por termos tão pouca biodiversida-de, tem de ser protegida", conclui.

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