Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

download Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

of 17

Transcript of Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    1/17

    398Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee afabricao dos conceitos acerca do espao na dcada de 19301

    For God, the Country and the King Os Holandeses no Rio Grandeand the fabrication of the concepts of the space in the 1930s

    Renato Amado Peixoto*

    ResumoNeste texto, retomamos o artigo Duas Palavras publicado em 2014 poresta Revista de Histria Regional , para voltar a tratar da inveno daidentidade catlica norte-rio-grandense, iniciada com a publicao do livroOs Holandeses no Rio Grandeem 1937, origem do processo de beaticao dosProtomrtires do Brasil. Buscamos, agora, esclarecer certos problemas,como aqueles relativos Crise de 1935 no Rio Grande do Norte, coluso dointegralismo com o catolicismo, e compreenso contempornea da relaoentre as escalas do local e do internacional, visando avanar mais na direode apontar como a ideia da produo de espacializaes pode auxiliar nainvestigao da Histria Local e Regional.

    Palavras-chave: Catolicismo; Coluso; Lus da Cmara Cascudo; GustavoBarroso; Padre J. Cabral.

    AbstractIn this paper, we return to the article Two Words - published in 2014 bythis Revista de Histria Regional - to deal, again, with the invention of theCatholic identity in the state of Rio Grande do Norte, which began in 1937with the publication of the book Os Holandeses no Rio Grande, the sourcefor the beatication of the Protomartyrs of Brazil. Now, we seek to clarify

    certain issues such as those related to the crisis of 1935 in the Rio Grandedo Norte, the collusion between Integralism and Catholicism, and thecontemporary understanding of the relation between local and international

    *Doutor em Histria pela UFRJ e professor do Programa de Ps-Graduao e do Departamento de Histriada UFRN. E-mail: [email protected] a colaborao de Douglas Andr Gonalves Cavalheiro, meu orientando PIBIC, vinculado aoprojeto O pensamento catlico, a atuao poltica e a interveno social da Igreja em relao formu-lao da identidade e da espacialidade norte-rio-grandense entre 1930 e 1964, desenvolvido na Univer-sidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nosso projeto, est vinculado ao projeto A Inveno da

    Terra Potiguar: instituies, intelectuais e agentes polticos na produo da espacialidade e da identidadenorte-rio-grandense (1889-1960) por meio do qual recebeu apoio nanceiro do CNPq e da FAPERN.

    Doi: 10.5212/Rev.Hist.Reg.v.20i2.0009

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    2/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 399

    scale, aiming to advance the idea that the production of spatializations canhelp the investigation of Local and Regional History.

    Keywords: Catholicism; Collusion; Lus da Cmara Cascudo; Gustavo Barroso;

    Padre Cabral.

    Os holandeses haviam fugido, deixando a terra que tanto martirizaram e que se tornousagrada pelo sangue generoso dos sacricados por Deus, pela Ptria e pelo Rei.

    (Paulo Herncio, Os Holandeses no Rio Grande, 1937, p. 106).

    A epgrafe acima, extrada da 1 edio da obra Os Holandeses no RioGrandedo padre Paulo Herncio, nos serve como mote para aprofundar cer-tas questes j trabalhadas no artigo Duas Palavras, que foi publicado nestaRevista de Histria Regional no ano de 2014. Entendo que o retorno DuasPalavras fundamental no apenas para, a partir de novos resultados depesquisa, aprofundarmos a compreenso da produo da identidade cat-lica norte-rio-grandense na dcada de 1930, mas tambm para se avanar,atravs das ideias j discutidas, na direo de entender como a produoda espacialidade local articulou a regio e a nao revendo um conceito deespao, o do internacional.

    Neste sentido, deve-se lembrar que obra de Paulo Herncio originou oesforo rumo beaticao e canonizao dos mrtires de Cunha e Uruau,reorganizando a compreenso do conhecido episdio da ocupao holande-sa, dos idos coloniais, enquanto reao contra o regionalismo centrado emRecife, o protestantismo, a maonaria, o liberalismo e as posies da esquer-da em sua poca.

    Neste artigo, em primeiro lugar, buscaremos avanar em relao

    Duas Palavras, na direo de mostrar que, baseada na compreenso doseventos de Cunha e Uruau, a inveno da identidade catlica permitiusuperar uma verdadeira crise poltica, institucional, social e moral no RioGrande do Norte que dividiu tambm o clero estadual em 1935.

    Em segundo lugar, buscaremos assinalar que o esforo de organizaodos Congressos Eucarsticos de So Jos do Mipibu e de Currais Novos em1936 e 1937, onde se consolidou a compreenso dos eventos de Cunha eUruau, dialogou com a ideia acerca da justaposio entre a Nao e a Igreja

    Catlica, defendida pela Ao Catlica Brasileira e pelo Centro Dom Vital por

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    3/17

    Renato Amado Peixoto

    400Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    meio de seu lder, Tristo de Athayde, explicitando a posio do clero e dolaicato norte-rio-grandense.

    Em terceiro lugar, apontaremos que a escrita de Os Holandeses no Rio

    Grandese deu em meio radicalizao poltica de seu tempo e teve que de-bater com as posies colusivas2de boa parte do clero e do laicato norte-rio--grandense, reunidos na Congregao Mariana de Natal3e, com as ideias eliderana do padre Jos Cabral. de autoria deste padre, a obra mais expres-siva do perodo A Questo Judaica que inuenciou no apenas a escrita dePaulo Herncio, mas antecedendo a traduo anotada dos Protocolos dosSbios do Sio de Gustavo Barroso, tambm inuenciou a este e a Lus daCmara Cascudo.

    Finalmente, cabe recordar que a 2 edio de Os Holandeses no Rio Gran-deomitiu o prefcio da 1 edio, de autoria do padre Jos Cabral, a maiorparte do penltimo captulo, Os teros de Henrique Dias e todo o ltimocaptulo, Redeno do ltimo pargrafo deste captulo se recorta a ep-grafe deste artigo. E, mais do que uma omisso, podemos apontar que a faltadessa parte do texto na 2 edio constitui uma exciso e, como tal, apresen-ta o problema que guiar este artigo.4

    2O termo coluso e suas adjetivao colusivo(a) foi criado por Roger Grifn, que apontou que o con -

    certo dos pesquisadores em torno da aproximao entre o fascismo e o cristianismo dever-se-ia guiarpela ideia da conuncia e sntese de posies antitticas, com a transformao das crenas religiosaspara que estas se adaptassem ao fascismo. Trata-se, assim, no apenas de apontar que membros laicos ereligiosos da instituio religiosa houvessem aderido ou formado taticamente em um dado movimentofascista, mas que houvesse a tentativa de harmonizar, conformar ou transformar a religio na direodo movimento ou de uma faco do fascismo e desta, em direo ao religioso. Por conseguinte, no sebusca examinar uma sntese ou fuso das posies do poltico e do religioso, mas pensar o seu entrelaa-mento, especicidade que torna esse envolvimento o Fascismo Clerical um fenmeno poltico relati-vamente raro, embora se reconhea o largo envolvimento das denominaes crists com o fascismo noEntreguerras. PEIXOTO, Renato Amado. Creio no esprito cristo e nacionalista do Sigma: Integralismo eCatolicismo nos escritos de Gustavo Barroso, Padre J. Cabral e Cmara Cascudo, In: RODRIGUES, CndidoM; ZANOTTO, Gizele; CALDEIRA, Rodrigo Coppe. (Orgs.). Manifestaes do pensamento catlico na Amrica do

    Sul. 1ed. So Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 111.3PEIXOTO, Renato Amado. A Coluso entre o Catolicismo e o Integralismo no Rio Grande do Norte (1932-1935). In: XXVIII SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA, 2015, Florianpolis.Anais eletrnicos do XXVIII Simp-

    sio Nacional de Histria. So Paulo: Anpuh Nacional, 2015.4Por exciso, aponto tanto o termo quanto o conceito trabalhado por Jacques Derrida em Circonsso enas discusses de Augustine and postmodernism. No texto homnimo, o termo circonsso encerraum jogo de palavras entre consso e circunciso, por meio do qual Derrida deixava claro ter extrapoladoa histria da consso em direo histria da circunciso, visando juntar o sentido do termo excisoao de consso. De modo a bem esclarecer esse jogo de palavras e o signicado dele na discusso doproblema da Memria, devo lembrar que Exciso no signica o mesmo que Extrao, pois, excisar temsempre o sentido de amputar, extirpar, mutilar, amputar, ou seja, remover deixando marcas ou faltas,

    exatamente o caso da circunciso, sentido que guiar este artigo. Contudo, no seria em Circonssoque a exciso seria indicada por Derrida como um problema para os historiadores, mas sim em Au-

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    4/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 401

    Nesse sentido, h que se considerar que Paulo Herncio articulou o lo-cal com o regional e o nacional por meio de uma reexo sobre outro concei-to de espao em que o universalismo cristo era justaposto colusivamente ao

    internacionalismo sovitico, numa espacializao5

    que considerava as preo-cupaes mais gerais da Igreja brasileira e do catolicismo mundial, a partirdas consideraes de padre Jos Cabral. Portanto, a partir de suas prpriasimpresses sobre o Levante Comunista de 1935 no Rio Grande do Norte esobre a Guerra Civil Espanhola, e nos mostrando que o historiador do local edo regional precisa tambm pensar o fazer da Histria como experimentao.6

    A Crise de 1935 no Rio Grande do Norte

    Paulo Herncio de Melo exerceu at 1933 as funes de vigrio e pre-feito de Macau cidade do interior do Rio Grande do Norte , e essa atuaopoltica, mais prxima dos polticos destitudos do poder pela Revoluo de

    gustine and Postmodernism livro editado por John D. Caputo, onde insistiu que os historiadores nodeveriam se desinteressar do status daquilo que estavam analisando e interpretando. Isso foi colocadoem meio ao debate que fazia ento com seus entrevistadores, ao ser lembrado por esses de que muitoshistoriadores rejeitavam a histria intelectual argumentando trabalhar com documentose no em textos e,que eles o faziam provavelmente para poder deixar de lado as questes levantadas pela teoria literria elosca. Utilizando o exemplo fornecido por Circonsso, Derrida apontou que o exame das histrias

    da consso e das histrias da circunciso foi o que lhe permitiu explorar a ideia da exciso nos textosque comeara a trabalhar ao incio da investigao, muitos anos antes da escrita de Circonsso. Assim,Derrida relacionaria a questo da Exciso Memria, buscando o debate com a obra Conssesde SantoAgostinho e o dilogo com as aproximaes feitas por Heidegger, Ricur, Lyotard e Hanna Arendt.Grossomodo, Derrida apontaria que confessar signica dizer eu me lembro, um ato em que os sentidos damemria e da lembrana se embaraam nas ideias de permanncia e pertinncia, remetendo o historia-dor a ter de inquirir, tambm, os sentidos da verdade e da temporalidade consso. PEIXOTO, RenatoAmado. O Fantasma de Gustavo Barroso e o Espectro da Nao. In: DANTAS, Elynaldo. Gustavo Barroso, oFhrer brasileiro:Nao e identidade no discurso integralista barrosiano de 1933-1937. Natal: Ideia, 2015,p. 12-14.5A espacializao seria uma operao em que vrios espaos e tempos foram tomados conjuntamente outras espacializaes, locais, regionais e nacionais. O sentido da espacializao no apenas passivoou dirigido, mas ativo e tambm reexivo. Toda espacializao uma des-espacializao e uma des --constituio de outras espacializaes precedentes ou contemporneas e que, enquanto desloca ativae masculinamente, a espacializao tambm recebe e concebe passiva e femininamente , possibilitan-do-se, deste modo, o deslizamento do tempo para a alocao do inventado, fabricado ou reelaborado oMito. Assim, a espacializao a operao em que vrios espaos e tempos locais, regionais e nacionaisso conjuntamente tomados/recebidos. Nessa operao, o espaamento do tempo como no sonho ,permite-nos dizer da investigao do espao e do tempo na cumplicidade, de sua origem comum e dessecomparecer como condio de todo aparecer do ser, esse sentido de com-parecimento que pretendosituar um sentido de investigao da Histria Local e Regional o das operaes que produzem as iden-tidades e as espacialidades. PEIXOTO, Renato Amado. Duas Palavras: Os Holandeses no Rio Grande e ainveno da identidade catlica norte-rio-grandense na dcada de 1930. Revista de Histria Regional, v. 19,

    p. 35-57, 2014, p. 56-57, nota 45.6PEIXOTO, O fantasma... op. cit., p. 22.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    5/17

    Renato Amado Peixoto

    402Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    1930, separaria padre Herncio das posies defendidas pela Diocese de Na-tal e por seu bispo, D. Marcolino Dantas, at o Levante Comunista de 1935.

    De fato, D. Marcolino vinha desde 1930 desenvolvendo uma vigorosa

    poltica de apoio aos interventores federais, visando com isso expandir aatuao poltica da Igreja e sua presena na administrao, inclusive, bus-cando viabilizar, sob seu comando, a j planejada expanso da estruturadiocesana para outras duas cidades, Caic e Mossor que, respectivamente,eram os centros das atividades algodoeira e salineira no estado. Mobilizandoa intelectualidade e as elites mais anadas com sua liderana, guiada pelasideias do reacionarismo catlico, D. Marcolino inspirou a fundao do jornal

    A Ordem, porta voz das posies da Diocese, e a criao de agremiaes pol-ticas como a Ao Integralista e a Aliana Social, reunindo as foras polticas

    que enfrentaram nas urnas os inimigos dos Interventores.O fato que antes do Levante Comunista, sinalizando a diviso na

    Igreja Catlica norte-rio-grandense, padre Herncio e D. Marcolino j mi-litavam, politicamente, em campos opostos. O primeiro, vigrio de So Josdo Mipibu, apoiando o Partido Popular e as foras decadas; o outro, Bispo deNatal, sustentando a Aliana Social e o interventor Mrio Cmara, membrode tradicional famlia natalense, indicado diretamente por Getlio Vargaspara esse posto.

    Essa profunda ciso no clero e nas elites norte-rio-grandenses haviase tornado ainda mais profunda pelo enfrentamento aberto de duas novasforas, o comunismo e o integralismo, movimentos que adquiriram ampladifuso no estado, sobretudo pela vitalidade de suas foras dinamizadoras.No primeiro caso, os sindicatos, alargados pela antiga liderana de Joo CafFilho, membro da Aliana Social; no segundo, pela atuao da CongregaoMarista, apoiada pelo Bispo Diocesano.

    Em 1935, esta ciso ganhou o contorno de uma extensa crise social,moral, religiosa e poltica , demonstrada pelo grande nmero de greves,atentados, assassinatos e espancamentos de membros dos grupos polticos,empastelamento de jornais, insubordinao de grupos armados contra o go-verno estadual, e pela guerrilha rural, acionada e apoiada pelo Partido Co-munista e pelo Sindicato dos Operrios das Salinas de Mossor.7

    7PEIXOTO, Renato Amado. A Crise de 1935 no Rio Grande do Norte: a tenso entre as identidades estaduale nacional por meio do caso norte-rio-grandense. In: VI Simpsio Internacional Estados Americanos -

    Pesquisas acadmicas contemporneas, 2012, Natal.Anais do VI Simpsio Internacional Estados Contempor-neos. Natal: UFRN, 2012. v. 1. p. 294-301.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    6/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 403

    Contudo, a crise de 1935 no Rio Grande do Norte ganhou um delinea-mento ainda mais agudo pela ampla exposio das posies radicais nas p-ginas dos jornais norte-rio-grandenses, especialmente em O Debate, ligado

    Interventoria; A Razo, editado por Eli de Sousa para apoiar as posiesdo Partido Popular; e A Ordem, da Congregao Mariana, para sustentar aatuao da Diocese e da Ao Integralista. Esse radicalismo frequentementefoi sublimado por ataques pessoais liderana de Eli de Sousa ex-senadorpelo estado e de D. Marcolino.

    Esses ataques ganharam, inclusive, repercusso nacional, ao serempublicados como matria paga no Rio de Janeiro e, especialmente um de-les que, assinado pelo ex-governador Juvenal Lamartine, acusava o Bispo deNatal de cumplicidade e acobertamento dos crimes polticos cometidos por

    Mrio Cmara.Da parte dos catlicos ligados liderana de D. Marcolino, essa radica-

    lizao transbordara para a identicao das elites decadas com a maona-ria e tambm no ataque ao protestantismo, ao espiritismo, s religies afro--brasileiras e ao comunismo. Essa atitude resultou ainda na aproximao dealguns de seus lderes e intelectuais norte-rio-grandenses, caso de Ulissesde Gis, Lus da Cmara Cascudo e Otto de Brito Guerra, com o integralismoe suas faces mais extremadas, como se pode constatar em seus escritos e,

    pelas pginas do jornalA Ordem.Em meio a tudo isso, a maior fora do Exrcito no estado, o 21 Bata -

    lho de Caadores, j transferido de Recife para Natal em razo de ter se re-belado contra o governo local, fazia parte do jogo poltico, com seus ociaissendo assediados pelo Partido Popular e pela Aliana Social e, seus praas esargentos, pela propaganda do Partido Comunista. Essa tenso se acumuloudesde as eleies de 1934 e no se resolveu em 1935, mesmo com a declara-o da vitria do Partido Popular aps a recontagem dos votos no pleito su-plementar, e com a subsequente eleio indireta e posse de Rafael Fernandescomo governador do Rio Grande do Norte.

    Portanto, entendo que os acontecimentos de novembro de 1935 atomada da capital e de parte do interior do estado pelos revolucionrios co-munistas guiados pelos militares do 21 BC, somada guerrilha rural , fo-ram os responsveis por aplainar as diferenas mais agudas entre as elitese de unicar o clero em torno da liderana diocesana. O Levante Comunistaimpactou, sobremodo, os catlicos norte-rio-grandenses e as elites deca-das e, ao nal, nas palavras do diretor do conselho da Congregao Maria-

    na e Vigrio-Geral da Diocese de Natal monsenhor Jos Alves Landim ,

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    7/17

    Renato Amado Peixoto

    404Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    tornava-se preciso prevenir levantes futuros, criando uma mentalidadeanticomunista.8

    Para este objetivo, o concurso de padre Herncio mostrou-se decisivo,

    pois, como vigrio de So Jos do Mipibu, caria responsvel por organizar na-quela cidade o primeiro Congresso Eucarstico diocesano em 1936, cujo lematambm cunhou: Louvado seja o Santssimo Sacramento, lembrando as lti-mas palavras proferidas por Matias Moreira, martirizado em Uruau durante aInvaso Holandesa ao Rio Grande do Norte, recolhidas, segundo a organizaodo Congresso, da Histria do Brasil escrita por Rafael Maria Galanti.9

    Os Congressos Eucarsticos de So Jos do Mipibu e de Currais Novos

    O Congresso Eucarstico de So Jos do Mipibu adiantava, portanto, otema do livro de Paulo Herncio, Os Holandeses no Rio Grande,e essa primeiraconexo deve ser sublinhada, pois se buscava, aps o Levante Comunista,unir o clero diocesano e as elites estaduais e, simultaneamente, atravs dahistria local, se procurava produzir uma identidade norte-rio-grandensepor meio do catolicismo, da referncia ao martrio pela f e da resistncia aoinvasor estrangeiro.

    Por sua vez, D. Marcolino, em Cunha e Uruau, realava que tambmse perpetrava a memria dos que haviam dado seu sangue pela religio e

    pela ptria, entendendo, por conseguinte, que os seus mrtires eram marcosde f e de patriotismo no apenas do Rio Grande do Norte, mas de todo oBrasil, nascido desses episdios.10

    Tanto Paulo Herncio como D. Marcolino seguiram a linha apontadapor Tristo de Athayde que juntando o contexto da crise estadual quiloque era entrevisto como uma crise nacional e universal , apontava o papelda Igreja Catlica na fundao e sedimentao de uma civilizao brasileira.

    Athayde ainda discernia a disputa ideolgica do catolicismo com o

    comunismo, para defender que o universal se sobrepunha ao internacionalpara buscar o m das fronteiras e barreiras tarifrias rumo ao congraa-mento entre os povos, e que o aporte do universalismo permitiria ao Brasilultrapassar as barreiras colocadas por um regime de ideias em que o Estadose opunha Religio, impondo o imperialismo e a beligerncia.

    8CRIA METROPOLITANA. Livro de Tombo da Catedral, n. 3, Diocese de Natal, 1935.9Exemplicao do Lema do Congresso.A Ordem, Natal, 25 out. 1936, p. 4.

    10DANTAS, Marcolino. Homilia no Seminrio So Pedro, 3 out. 1947. In: MEDEIROS, Jos Mario de. DomMarcolino Dantas:por ele mesmo. Braslia, DF: Senado Federal, 2009, p. 118-119.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    8/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 405

    O Brasil separado da Igreja, ou seria uma colnia miservel e esquecida doImprio Sovitico Universal, se a gura do mal for uma, s em toda a terracomo querem os seus utopistas, -ou ser um bloco jacobino, fechado emsuas fronteiras e em sua lngua, sobranceiro a outros blocos idnticos, mais

    cioso dos seus direitos que dos seus deveres, cercado de barreiras de aoou de tarifas, e pronto para entrar ingloriosamente em lutas de recprocoextermnio.O Brasil ligado Igreja, porm, por toda a sua histria, por toda a sua alma,por todo o signicadoprofundo de sua civilizao, ser uma grande ptria,nacional e universal, el aos pases mais tpicos dessa sua civilizao aomesmo tempo domstica, jurdica, cultural e religiosa.11

    Cabe, neste ponto de reexo do artigo, notar que a fabricao daidentidade estadual por meio do recurso ao nacional seria adensada logo

    em 1937 pelas solenidades de rememorao do Congresso Eucarstico de SoJos do Mipibu, lideradas por Paulo Herncio e por Lus da Cmara Cascudo,e pela organizao, na cidade de Currais Novos, do Segundo Congresso Euca-rstico do Estado, sediado na regio do Serid norte-rio-grandense , baluarteda resistncia contra o Levante Comunista de 1935 e, prximo do stio daBatalha da Serra do Doutor, palco do maior enfrentamento entre as forasrevolucionrias e seus antagonistas no Rio Grande do Norte.

    interessante observar que na solenidade de rememorao doCongresso Eucarstico de So Jos do Mipibu, antes da palestra de Lus da C-mara Cascudo sobre Dom Bosco, ponto culminante da programao, ele lem-brou que, em sinal de f, todos os presentes deveriam rezar o Credo, como sehavia feito naqueles dias de 1936.

    Esse pedido, vindo de algum que era no apenas um lder leigo docatolicismo, mas tambm uma das guras mais destacadas do Integralismoradical no Brasil e no Rio Grande do Norte, no deve deixar de ser relaciona-do com as apropriaes do Credoque ento estavam sendo feitas por GustavoBarroso e por Plnio Salgado, e que implicavam em distintos posicionamen-

    tos frente disputa que ento se fazia pela preeminncia no movimento in-tegralista, nos levando a ter de raciocinar como e, em que circunstncias, areligio e a poltica estavam imbricadas em 1937. 12

    No caso do Congresso Eucarstico de Currais Novos, organizado tambmpor Paulo Herncio, deve-se apontar que, em espelho das representaes

    11A. B. C..A Ordem, Natal, 14 out. 1937, p. 1.12Coloco em questo no apenas a coluso entre o catolicismo e o fascismo, mas tambm a separao

    entre a religio e o laicismo na modernidade, observadas nas diferentes apropriaes do Creiopelos inte-gralistas em meados da dcada de 1930 cf.PEIXOTO, Creio no esprito cristo... op. cit., p. 99-101.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    9/17

    Renato Amado Peixoto

    406Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    disponibilizadas pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, o centro de poder daIgreja Catlica brasileira, as festividades do Congresso Eucarstico de CurraisNovos em 1937, seriam realizadas ao p da esttua do Cristo do Serid,

    mandada construir especialmente para o evento por Manoel Salustino, umadas principais foras polticas da cidade.Observe-se, na direo de nosso argumento alm da bvia seme-

    lhana entre essa esttua com a do Corcovado (Figura 1) , que a nomeaode Cristo Redentor foi utilizada por Thomaz Salustino, juiz de Direito deCurrais Novos e lho de Manoel Salustino, em informe feito a Paulo Hern-cio sobre os preparativos do Congresso Eucarstico.13

    A Coluso do Catolicismo com o Integralismo

    O registro da ligao entre religio e ptria seria encadeado novamen-te por Lus da Cmara Cascudo na sua contribuio fabricao da mentali-

    13Congresso Eucharistico Parochial de Curraes Novos.A Ordem, Natal, 5 ago. 1937, p. 4.

    Figura 1 Monumento e Esttua do Cristo do Serid

    Fonte:JornalA Ordem,28 out. 1937

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    10/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 407

    dade anticomunista norte-rio-grandense, quando este se posicionou simul-taneamente como lder integralista e catlico frente grande manifestaodestinada a comemorar e reintroduzir os crucixos nas salas de aula, patro-

    cinada pela Diocese de Natal e pelo Governo do Estado em 1937:Foi com o sangue do Jesuta que se batizou a terra de Vera Cruz, em continuaoao batismo que a prpria Cruz realizara quando foi ncada em terra rme, nodia de sua inveno, em 1500. Quem, como ns possui tradies to rmes eto nobres tem o dever de defend-las e projet-las no futuro [...]. Satansdeixou o seu covil subterrneo e alojou-se em Moscou, de onde dirige umaguerra sem trguas contra Jesus Cristo e sua Igreja. O comunismo o exrcitode Satans que tenta destruir a religio, a famlia, a ptria, os direitos naturaisdo homem e os direitos divinos.14

    Notando-se que a contribuio de Lus da Cmara Cascudo alinha-secom sua interpretao dos episdios de Cunha e Uruau, conforme aponta-do em Duas Palavras, julgo que outras conexes do livro de Paulo Hernciodevem ser observadas: a recepo e o dilogo das obras coevas.

    Os primeiros registros dos episdios de Cunha e Uruau datam de1648, includos por Manuel Calado no Valeroso Lucideno, mas sua dissemi-nao nos escritos da dcada de 1930 se deve sua republicao, em separata,pelo Arquivo Nacional, nos anos de 1922 e 1929 com o ttulo de Breve, ver-

    dadeira e autntica Relao das ltimas tiranias e crueldades que os prdosdos holandeses usaram com os moradores do Rio-Grande.s duas edies desta separata se deve somar o efeito da republicao,

    em 1930, no livro Aventura e Aventureiros no Brasildo texto Um intrpre-te dos Tapuias, a biograa de Jacob Rabbi escrita em 1909 por Alfredo deCarvalho e tambm publicada, quatro anos depois de Os Brases de Armasdo Brasil Holands, na Revista do Instituto Arqueolgico e Geogrco Per-nambucano.15

    Seria a partir da recepo dessas republicaes, mas condicionada

    pela onda de antissemitismo catlico estimulado no Brasil pela publicaoem 1931 da obra Foras Secretas da Revoluode Lon de Poncins, que Lus daCmara Cascudo comearia a apontar j em 1931 o interesse nos acontecidosem Cunha e Uruau, para nalmente, em 1936, na plaquete O BrasoHolands do Rio Grande do Norte, articular sua interpretao com asposies expostas por Gustavo Barroso na Histria Secreta do Brasil, que

    14A extraordinria concentrao cvico-religiosa de ontem, na praa Andr de Albuquerque. A Ordem,

    Natal, 29 out. 1937, p. 1.15PEIXOTO, 2014, op. cit., p. 35-57.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    11/17

    Renato Amado Peixoto

    408Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    vinha sendo publicada em captulos, nesse ano, pelo jornalA Offensiva.16

    Escritos em colaborao, estes dois textos frisavam as posies deCascudo e Barroso nas disputas internas ao Integralismo, em torno do anti-

    -imperialismo, anticapitalismo e antissemitismo, centrando a interpretaoda trama do episdio de Cunha e Uruau na atuao dojudeuJacob Rabbi.Deve-se considerar que esses textos reetiam tambm as posies co-

    lusivas e antijudaicas expressas ainda em 1936 por outro norte-rio-granden-se, o padre Jos Cabral em A Questo Judaica e, note-se que o padre JosCabral era prximo tanto intelectual quanto pessoalmente dos dois integra-listas, e tambm de Paulo Herncio.17

    Neste ponto, cabe registrar que minha pesquisa permitiu constatarque A Questo Judaica anterior publicao da verso brasileira dos

    Protocolos dos Sbios do Sio, provavelmente inuenciando no apenasBarroso, mas uma boa parte da literatura antissemita da sua poca. Seguin-do esse raciocnio, acreditamos que as posies de padre Jos Cabral foramendossadas por Gustavo Barroso no prefcio de A Questo Judaica e queas posies expressas no prefcio foram realinhadas, pouco depois, na suaampliao e anotao dos Protocolos dos Sbios do Sio.18

    No dilogo com essas obras, Paulo Herncio primeiro rma posioem Os Holandeses no Rio Grandecontra a interpretao dos episdios de Urua-

    u e Cunha feita por Gustavo Barroso na Histria Secreta do Brasil. Nestetexto, Barroso apontara que muitos em Uruau haviam se suicidado para

    16BARROSO, Gustavo. Histria Secreta do Brasil. Vol. 1 Do descobrimento abdicao de D. Pedro I. 1 ed.So Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1937. CASCUDO, Luis da Cmara. O Braso Holands do Rio Grande doNorte. Revista do Instituto Histrico e Geogrco do Rio Grande do Norte. Natal. v. XXXV-XXXVII, 1941, p. 91.17O padre Jos Maria Lustosa Cabral, nasceu em Natal no ano de 1897 e foi ordenado nessa cidade, no anode 1920, tendo exercido suas funes no estado do Rio Grande do Norte at se transferir em 1925 paraSo Paulo, onde foi diretor do Instituto D. Sebastio Leme. Em 1929 foi a Europa e visitou a Frana, Sua,Espanha e Itlia, talvez travando nesse momento seu primeiro contato direto com o Fascismo. Desde 1930tornou-se colaborador de diversos jornais carioca, especialmente o Correio da Manhe oJornal do Brasil. Foidiretor do jornal da Diocese do Rio de Janeiro,A Cruz, e representava constantemente o bispo de Natal, D.Marcolino Dantas, junto ao Cardeal D. Sebastio Leme, tendo, inclusive, feito parte do colegiado de S. Pe-dro, onde lhe foi dado o ttulo de Cnego, com o ofcio teologal. Assinando como Padre J. Cabral escreveue traduziu diversas obras de devoo catlicas, como Jesus Cristo Rei dos Reis, sendo que algumas destasainda tm sido reeditadas recentemente, como a Imitao de Cristo. Suas obras no campo da moral e dateologia tiveram vrias edies e boa divulgao, comoLimitao da Natalidade, No terreno dos PrincpioseLutas da Mocidade. Tambm se destacou no campo poltico tendo algumas de suas obras grande repercus-so e vrias edies, comoA Miragem Sovitica(1933),A Questo Judaica(1937) eA Igreja e o Marxismo(1949).18Ao contrrio do senso comum historiogrco, o texto do padre J. Cabral j estava no prelo da Livrariado Globo antes de ser publicada a verso brasileira dos Protocolos. Inclusive, a inuncia de Cabral sobreBarroso pode ser depreendida na leitura do prefcio de A Questo Judaca, que foi escrito pelo prprio

    Barroso e, portanto, antes da publicao dos Protocolos. Ver PEIXOTO, Creio no esprito cristo... p.113-114.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    12/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 409

    escapar dos suplcios infringidos pelos invasores. Paulo Herncio, por suavez, explica esse fato pela tica do catolicismo, ou seja, que o suicdio seriauma atitude incompatvel com a f e, alm disso, com a condio de patriota

    daqueles que estavam em Uruau, no havendo, nos dois sentidos, quaisquerpossibilidades, seja de pusilanimidade, seja de covardia.19Posteriormente, Paulo Herncio se afastaria tambm das posies

    antissemitas e fascistas empregadas por Gustavo Barroso e Lus da CmaraCascudo para explicar a relao de Jacob Rabbi com os holandeses. Herncioprocura tratar de Rabbi mais como um agente dos invasores, desconstituin-do ainda a pecha atribuda aos seus direcionados e generalizada por aquelesdois autores em direo aos indgenas como um todo. Os comandados deRabbi so vistos em Os Holandeses no Rio Grande, sobretudo, como uma das

    faces beligerantes, e Herncio ressalta que Felipe Camaro, um dos ind-genas, foi o grande protagonista da luta contra os invasores e, frisa, a favordo catolicismo, descrevendo Camaro como um guerreiro-catlico, tementea Deus, portanto, destitudo de medo e em paz consigo mesmo.20

    O dilogo com o padre Jos Cabral e o internacionalismo de Cristo

    Finalmente, no que cabe ao dilogo com o padre Jos Cabral, prefa-ciador de Os Holandeses no Rio Grande, cabe-nos coloc-lo numa relao que

    problematiza e tensiona os problemas da memria, da verdade e da tem-poralidade, na medida em que sua fabricao se revela nos termos de umaexperimentao.

    Repensar conceitos j estabelecidos como os de regio ou do inter-nacional e incuti-los na espacialidade e na identidade locais um processocomplexo que revela resgates, acrscimos, escolhas e excises, mas, sobre-tudo, deve ser pensado alm da grade do arcasmo, para ser tambm inquiri-do aos modos de pensar e de se fazer lembrar o passado.21

    Nesse sentido, devemos observar que os Congressos Eucarsticos deSo Jos do Mipibu e de Currais Novos no apenas serviam fabricao deuma identidade local, mas tambm reetiam os problemas colocados pelaRegio: sua interao com a produo historiogrca da Nao e com os po-sicionamentos do catolicismo, interna e externamente ao Brasil.

    19HERNCIO, Paulo. Gustavo Barroso e os Mrtires de Uruass.A Ordem, Natal, 05 mar. 1937, p. 1.20

    PEIXOTO, Duas Palavras..., p. 35-57.21PEIXOTO, O fantasma de Gustavo Barroso..., p. 21.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    13/17

    Renato Amado Peixoto

    410Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    Em Duas Palavras procurei discernir a produo de espacializaescomo um dos sentidos de investigao da Histria Local e Regional, apontan-do que no caso norte-rio-grandense vrios espaos e tempos outras espa-

    cializaes, locais, regionais e nacionais , foram tomadas conjuntamente,e que esse sentido explicaria uma operao no apenas passiva ou dirigida,mas ao mesmo tempo tambm ativa e reexiva.22

    Agora, procuro aclarar que, em muitos exames, no basta nos inte-ressarmos pela produo histrica ou historiogrca dessas espacializaes,mas que se torna necessrio questionar e inquirir os prprios conceitosacerca do espao (regio, nao, internacional, universal) a partir dos quaisnos aproximamos do objeto a ser trabalhado.23

    Como vimos, no caso da fabricao da identidade catlica norte-rio-

    -grandense, ela tensiona o universal para contrap-lo ao internacional apartir do ponto de vista do catolicismo e, penso que, de outro modo, o nacio-nal tambm foi tensionado, em sua vez, para superpor-se ao regional.

    No caso, a reao catlica orientao da produo da regio em Re-cife, que colocava Pernambuco no centro da sua narrao histrica, se dnuma relao pontual com o debate acerca da gura de Nassau e sua contri-buio para a formao cultural e histrica daquela cidade, questo coladaem debate pelo prprio peridico da Diocese de Natal, repercutindo as dis-

    cusses feitas, no Centro Dom Vidal para serem divulgadas pela revista AOrdeme demais peridicos catlicos.

    Em Os Holandeses no Rio Grande do Norte,se constitui uma linha interpre-tativa que frisa o carter predatrio, exploratrio e colonialista da presenaholandesa no Rio Grande do Norte, deixando entrever o papel desempenha-do pelo protestantismo enquanto partcipe da opresso cultural e capitalistado invasor, violncias impostas pela fora militar e perpetradora do geno-cdio contra os naturais da terra, exemplicada nos episdios de Cunha eUruau.

    Esta leitura, muito provavelmente, derivava das observaes de partedos catlicos acerca da invaso italiana da Etipia, problema contempor-neo escrita de Paulo Herncio e desencadeadora de outra leitura, cruzada,mais uma vez, com as posies do fascismo brasileiro do perodo, algumas

    22Ver nota 45, p. 56-57, em: PEIXOTO, Duas Palavras... p. 35-57.23Nessa aproximao trabalho a partir da ideia de Reinhart Koselleck de que duas condies de investi-gao do espao se apresentam aos historiadores: a histria dos conceitos do espao e a histria dos

    espaos. PEIXOTO, Renato Amado. Zona de conuxo: a investigao da historicidade do espao por meiodo exame do afastamento da Histria em relao Geograa. Revista Porto, v. 1, n.1, 2011, p. 111-126.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    14/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 411

    delas favorveis ao feito de Mussolini, mas, tambm, denunciadoras do im-perialismo, tenso esta que cobre boa parte das obras do perodo integralistade Gustavo Barroso.

    Contudo, Os Holandeses no Rio Granderepercute outra violncia e ou-tro genocdio, entrevistos por Paulo Herncio na atuao dos comunistase dos anarquistas contra o clero e os is catlicos durante a Guerra CivilEspanhola. Este conito no era entendido por Herncio apenas como umadisputa poltica, mas como uma guerra contra a religio como um todo e,contra os catlicos em particular, adicionando mais um sentido para o anti-comunismo.

    No se tratava apenas de rejeitar a modernidade, ou de combater osmaons, protestantes ou se opor ao comunismo. Este o ltimo sentido

    tomado a granel por aqueles que interpretam a histria poltica sem notarque, no caso do catolicismo, se faz necessrio tom-lo junto Histria daReligio.

    O anticomunismo era apenas uma das faces de um contradiscursocatlico muito amplo, voltado primeiramente contra o protestantismo e, apartir do sculo XIX, tambm contra as diversas foras e posies sintoniza-das com o laicismo e o antirreligiosismo, reunidas pelos catlicos no rtulobastante abrangente de combate modernidade. Nesse sentido, as diver-

    sas correntes da direita catlica, desde o conservadorismo at o fascismo,lanavam mo de uma linguagem que explicitava no apenas para umaaudincia externa, mas tambm para os prprios catlicos , suas represen-taes do campo poltico a partir do religioso, uma rica dicotomia, difcil deperceber por aqueles que no esto afeitos a este debate.24

    No caso do dilogo entre Paulo Herncio e o padre Jos Cabral, estese d a partir da digresso de Cabral a respeito do conceito de internaciona-lismo e com os sentidos que se emprestavam constituio de um conceitomesmo do internacionalismo catlico o internacionalismo de Cristo. Esse

    internacionalismo seria irredutivelmente oposto ao internacionalismo so-vitico e adstringente do conceito de regio, pois tratava-se de distinguirque o internacionalismo sovitico procurava derrubar as fronteiras, paracom elas elidir a todas as diversidades.

    Paradoxalmente, para padre Jos Cabral, ensinar as grandes liesde herosmo e amor ptrio e reviver as tradies era emprestar um novosentido ideia do universalismo e do internacionalismo, para forjar, comisso, a ideia de uma comunidade transcendente baseada na civilizao crist.

    24PEIXOTO, Creio no esprito cristo..., p. 99-101.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    15/17

    Renato Amado Peixoto

    412Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em:

    Essa comunidade ideal, a se materializar no tempo presente, atra-vessaria os sentidos de fronteira, raa e cultura, sublimando-os como fatoraglutinador, acolhedor e pacicador dos povos. Isso possibilitaria a Paulo

    Herncio, por conseguinte, conduzir a ideia da regio ao reconhecimentodo esforo pregresso do catolicismo e resistncia ao elemento imperialis-ta, sublimado no esforo dos indgenas em geral e, em Felipe Camaro, noparticular.25

    Verdadeira Barbaria

    Por outro lado, a identidade catlica norte-rio-grandense forjada noCongresso de So Jos do Mipibu e no livro de Paulo Herncio,juntaria num

    s raciocnio o Levante Comunista e a invaso holandesa do Rio Grande, apartir da recepo da perseguio e do genocdio catlico na Espanha.Dois rastros desse raciocnio foram deixados em Os Holandeses no

    Rio Grande, um por seu prefaciador, o padre Jos Cabral e outro pelo pr-prio autor, na ltima linha de sua obra. No seu prefcio para Os Holandesesno Rio Grande, o padre Jos Cabral apontava que atravessamos uma pocatumultuosa, que alguns comparam aos ltimos dias do Imprio Romano; vi-vemos dias agitados, que nos trazem mais receios que esperanas.26

    Foi esse o sentido da luta pela sobrevivncia da religio uma guerra

    sem quartel e sem limites, que no poupava vivos e mortos , que se decidiatanto nos campos de batalha quanto nas ruas, praas, salas de aula de Natal,que impressionou Paulo Herncio, a ponto de se ter gravado em seu coraouma pequena notcia, distribuda pela agncia Havas, publicada no dia 6 deagosto de 1936 em jornais das cidades do Rio de Janeiro e So Paulo e repu-blicada dois dias depois porA Ordemem Natal.

    Esta notcia foi intitulada pelo jornal da Diocese como A guerra con-tinua na Espanha e de suas retrancas(termo do jargo jornalstico que de-

    signa um subtpico da notcia, norteado pelo seu primeiro pargrafo, o leadda matria). Uma destas retrancas, nomeada como Verdadeira Barbaria,dizia da impresso de Miguel de Unamuno, escritor catlico, lamentando asituao de seu pas e dizendo que a luta havia assumido, de ambos os lados,a propores de barbaria, com fuzilamentos, incndios, etc. E mais: noutraretranca, se apontava que em Navarra todos os homens vlidos estavam sen-

    25CABRAL, Jos. Duas Palavras. In: HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 ed. Rio de Janeiro:Empresa Editora ABC Limitada, 1937, p. 5.

    26HERNCIO, Paulo. Os Holandeses no Rio Grande. 1 ed. Rio de Janeiro: Empresa Editora ABC Limitada, 1937,p. 5.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    16/17

    Por Deus, pela Ptria e pelo Rei Os Holandeses no Rio Grandee a fabricao dos conceitos ...

    Revista de Histria Regional 20(2):398-414, 2015Disponvel em: 413

    do recrutados, fossem carlistas, falangistas ou fascistas, no importava a ori-gem poltica, para lutar contra os republicanos.

    Contudo, no tocante aos carlistas,descrevia que estes traziam a boi-

    na vermelha e amarela as cores da Espanha , e que esses tradicionalistastinham como palavra de ordem Por Deus, pela Ptria e pelo Rei e [...] os-tentavam medalhas da Virgem ou de santos regionais que indicam o carterreligioso, que ainda no foi sucientemente salientado da guerra civil es-panhola.27

    A impresso de Unamuno se encaixava admiravelmente, mesmo coma diferena de tom, que o prprio Herncio havia explicitado apenas al-guns dias antes, em dois de agosto, num artigo para o jornal da Diocese, sobo ttulo Barbaria e Civilizao:

    Paulo Herncio entendia j no ser mais possvel equiparar os comunistasaos brbaros de outrora. Se o sentido da oposio dos brbaros civilizaoromana podia ser compreendido e se a ideia de Humanidade era entrevista naconvivncia dos Brbaros com a natureza e no culto que eles prestavam aosseus deuses, tais coisas j no eramobservveis na atuao dos Comunistas.Segundo Herncio, agora estava, de um lado, o patrimnio sagrado dacivilizao crist; do outro a volta do homem ao estado selvagem orebaixamento da personalidade humana com o predomnio da matria e oabsolutismo das paixes; com a negao de Deus e a negao da vida futura. Ahorda moderna, embora compartilhasseo mesmo legado que o cristianismoe habitasse o mesmo espao, fazia da destruio material e simblica dopatrimnio da civilizao crist sua principal propaganda e mobilizao.28

    No caso de Os Holandeses no Rio Grande, Paulo Herncio deixou claro quea identidade catlica norte-rio-grandense se forjava na resistncia e na nega-o absoluta barbaria; ele explicitou o carter religioso da guerra civil espa-nhola por meio de um rastro que a encadeia notcia A guerra continua naEspanha e aos carlistas, nas linhas nais de seu livro Os holandeses haviamfugido, deixando a terra que tanto martirizaram e que se tornou sagrada pelosangue generoso dos sacricados por Deus, pela Ptria e pelo Rei.29

    A horda moderna fora enxergada por Paulo Herncio na experi-mentao do seu tempo, para depois ser metaforizada em Os Holandeses noRio Grande, por meio da narrativa de destruio da terra e do genocdio deseus habitantes pelos holandeses, exemplicada pelos eventos de Cunha eUruau em 1645.

    27A GUERRA CONTINUA NA ESPANHA.A Ordem, Natal, 8 ago. 1936, p. 4.28

    PEIXOTO, Duas Palavras..., p. 46.29Ibidem.

  • 7/26/2019 Por Deus Pela Patria e Pelo Rei Os Holan

    17/17