Os rostos do silêncio -mourão

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113 “Se o teu coração fala silêncio, fala com a sua águia. E descodificamos a ausência porque é assim o silêncio descodificado da morte leve que leva à transparência a dor com que eu escrevia. Se os passos de ouvir ler ressuscitarem outros passos___________não esperes por mim” 1 (AA: 136) “There is no such thing as silence. Something is always happening that makes a sound.” (J. Cage) “Tibi silentium laus” (Sl 65) “E de súbito desaba o silêncio É um silêncio sem ti. Sem álamos sem luas Só nas minhas mãos Ouço a música das tuas “É o silêncio é por fim o silêncio vai desabar” (Eugénio de Andrade) 1 Maria Gabriel Llansol, Amigo e Amiga. Curso de silêncio, Relógio D’Água, 2004. didaskalia xxxix (2009)1. 113-125 Os rostos do silêncio (para uma semiótica do silêncio) José Augusto Mourão Universidade Nova de Lisboa / Instituto São Tomás de Aquino

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    Se o teu corao fala silncio,fala com a sua guia. E descodificamos a ausncia porque assim osilncio descodificado da morte leveque leva transparncia a dor com que eu escrevia. Se os passos de ouvirler ressuscitarem outros passos___________no esperes por mim1(AA: 136)

    There is no such thing as silence. Something is always happeningthat makes a sound. (J. Cage)

    Tibi silentium laus (Sl 65)

    E de sbito desaba o silncio um silncio sem ti.Sem lamos sem luas

    S nas minhas mosOuo a msica das tuas

    o silncio por fim o silnciovai desabar (Eugnio de Andrade)

    1 Maria Gabriel Llansol, Amigo e Amiga. Curso de silncio, Relgio Dgua, 2004.

    didaskalia xxxix (2009)1. 113-125

    Os rostos do silncio (para uma semitica do silncio)

    Jos Augusto MouroUniversidade Nova de Lisboa / Instituto So Toms de Aquino

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    2 Denis Vasse, La Vie et les vivants, Paris, Seuil, 2001, p. 165.

    O silncio jaz, como os textos, arqui-orais, espera que o acorde (o res-suscite) algum passante ou legente. Aparentemente, o silncio no umacto comunicativo: espera a sua vez, a sua fala, enquanto memria figura-tiva do corpo e superfcie de inscrio de emoes (luto, suspense, reprova-o, anuncia, desabamento, jbilo). Se me volto para algum, se ointerpelo, e esse algum no se voltar para mim, no me responder, o seu si-lncio tem em mim um efeito passional, intrigante, interpretvel como re-cusa, desprezo, abandono. Se peo silncio, interrompo a fala do outro;obrigar o outro a calar-se: Cala-te! utilizar uma injuno fortementemodalizada: eu quero (que te cales), tu deves calar-te. O silncio, na in-teraco social a ausncia de fala. Enquanto modo de representao, o si-lncio prende o sujeito emissor ou receptor, criando uma relao nova como espao e o tempo em que evolui. O silncio nesta rea pode ser divididoem trs categorias (Bruneau, 1973): mental, social, ou ambas, sendo defi-nidas segundo o tempo, o contexto e a percepo. H quem fale do silnciosurdo, isto o silncio que no sonoro mas gestual, prprio dos surdos paraquem fazer silncio ou calar-se no mundo visual que o seu, se mostraquando deixa de mexer as mos como outros deixariam de abrir a boca(onde encontramos o corpo enunciante). Fisiologicamente, o silncio oresultado de hesitao, auto-correco, ou de deliberada interrupo dafala com o fim de clarificao ou de processamento de ideias. H silncioscurtos e silncios longos, em intenso e em extenso. O silncio interactivomanifesta-se nas funes interactivas, reactivas, ou de dar lugar fala do ou-tro. Mas h o silncio incapacidade de responder, recusa, significante mu-sical (suspiro, pausa), esvaimento da linguagem diante do inefvel. E h omutismo como perverso do desejo quando le silence mme de la vie estcontamin et la source de la parole pollue, escreve D. Vasse2.

    H o intervalo entre o apelo da voz que se faz ouvir no interior docorpo e a sua proferio sob forma de orao, de meditao, de monlogointerior, de mutismo, de ressentimento. Uma mente silenciosa, liberta dorudo do pensamento uma finalidade e um importante passo no desen-volvimento espiritual. Esse inner silence no ausncia de som; pelocontrrio, entendido como o ptio que permite o contacto com o divino,

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    a realidade ltima, ou a verdade de cada um. Muitas tradies religiosas im-plicam a importncia de estar quieto e mesmo no pensamento e no espritoem vista ao crescimento espiritual transformador. No Cristianismo existe osilncio da orao contemplativa, ou de meditao crist; no Islo, h a sa-bedoria dos escritos dos Sufis que insistem na importncia de encontrar osilncio dentro de si. No Budismo, o silncio permite que a mente se tornesilenciosa em funo da iluminao espiritual. No Hinduismo, incluindoos ensinamentos do Advaita Vedanta e os passos do yoga, os mestres insis-tem na importncia do silncio para o crescimento interior. Em algumastradies do Quakerismo (ramo do Cristianismo), o silncio uma partepresente nos servios da orao e um tempo que permite que o divino faleao corao. Que a meditao seno um pensamento acompanhado porreflexo que procura com prudncia a causa e a origem, o modo e a utili-dade de cada coisa?3 A meditao que isola a alma da azfama das activi-dades terrestres precisa do silncio como a sua antecmara, como condioda sua potenciao. O primeiro gesto do silncio a expulso do mundo edo rudo, conforme est escrito: O Senhor no est no rudo (1 R 19,11).A casa o dentro. O invlucro do silncio como movimento imvel. E porque se associa o silncio associa ao esprito que a matria pode aparecercomo obstculo ou trampolim. H o silncio que acompanha a recitao eque opera uma ruptura no fio da praxis enunciativa a orao, v.g., ou apausa numa partitura musical, ou ainda a interrupo da fala numa situa-o interlocutiva. Para o autor de La voix nue a leitura da lectio divina umapreuve de nudit4.

    Silncio e presena

    A verdadeira palavra, a palavra de vida, quando ressoa no corao dohomem, abre a porta ao silncio do reconhecimento mtuo: une na comu-nho original os sujeitos que diferencia. O dilogo exige esse espaobranco, essa espcie de epoch ou parntetizao, em que uma das partes secala para dar lugar outra parte na polifonia das vozes. A regra da isostenia

    3 Hugues de Saint-Victor, LArt de lire, Didascalicon, Paris, Cerf, 1991, p. 142.4 Jean-Louis Chrtien, Se laisser lire avec autorit par les Saintes critures, in RSR, 92, 1 (2004), p. 123.

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    5 Pierre Yousif, Parole et Silence chez Saint phrem de Nisibe, in LMD, 226, 2001/2, 114.

    grega decisiva. A isostenia a igualdade ou equilbrio de foras: o quenos permite bloquear reciprocamente para evitar a desmesura. A interpa-cincia assim a virtude que melhor serve o silncio e a fala. Se os signosmundanos so puro rudo, o silncio impossvel, no h puro silncio.Para Efrm de Nisibe, se o silncio pode tornar-se um repouso, a lnguapode tornar-se um advogado: Obedece, lngua minha: deixa de te fatigar!/ e corre ao seu encontro (no silncio, no repouso)/ (leitura incerta) / que techamou afim de que tu te tornes, gratuitamente,/ o advogado que defendea mulher injuriada (Hvirg 22,9). A palavra tempera o peso do silncio e osilncio protege da vociferao da palavra. O silncio pregnante de f levaao louvor e a palavra da f d sentido ao silncio5. O artista e o mstico soos artesos privilegiados dessa tarefa impossvel, dando forma e lanandono mundo os signos da interioridade, da ordem ntima. Usam palavras e aisso chamam monlogo interior e criam cursos de silncio para dar res-posta ao silncio.

    O silncio uma estratgia de comunicao, um fazer, como se veradiante no relato da mulher que se ajoelha aos ps de Jesus e lhe unge osps, e que lemos como uma parbola no decurso de um discurso. O corpofala, o silncio um gesto significante, afectivo. H silncios prenhes: Jo-nas, no ventre da baleia, o smbolo de Cristo silencioso no seio da me e,ao mesmo tempo, a figura reduzida ao silncio e que depois renasce, fa-lando. Thomas Merton falava de vida religiosa como vida silenciosa. O quea vida religiosa exige que se deixe instalar o silncio para que Deus fale,que se entre no silncio de si para a ouvir a Palavra. Quando amamos al-gum, procuramos a sua presena: basta ento que aquele que procuramosesteja l, mesmo que nenhuma palavra se troque: essa a verdade do siln-cio interior. Nesse silncio escuta-se o que vive em ns, a palavra. O siln-cio da presena faz apelo a um presente radicalmente outro. S. Agostinhocoloca a questo de fundo: lembramo-nos do passado, antecipamos o fu-turo, mas o presente? E contudo, no podemos definir o passado e o futuroseno relativamente ao presente. O silncio faz parte da observncia regu-lar recolhida da tradio por S. Domingos. Entre os elementos da vida re-gular e que constituem a vida dominicana, por exemplo, destaca-se osilncio. No n 46 do Livro das Constituies e Ordenaes l-se: Os ir-

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    mos devem diligentemente guardar o silncio, sobretudo nos lugares etempos destinados orao e ao estudo; , com efeito a defesa de toda a ob-servncia e contribui sobremaneira para a vida religiosa interior, para a paz,para a orao, para o estudo da verdade e para a sinceridade da pregao.Mas logo o nmero seguinte diz. O silncio deve ser regulado com tal es-prito de caridade que no impea as comunicaes frutuosas. Daqui sedepreende que, em termos de semitica narrativa, o silncio ocupa a funode coadjuvante relativamente a objectos-valor que so a orao e o estudo.Como um rumor longnquo, ou um gemido na noite escura, a orao pa-rece-se com o gemido da pomba (Rm 8). Para Francisco de Saleslamour parle par les yeux, les soupirs, les contenances. Mme le silence etla taciturnit lui tiennent lieu de parole6. Na corrente quietista o silnciono era ausncia total de fala ou de rudo, mas um lugar onde se fala e se escutado. O silncio seria uma saturao da palavra, uma testemunha dasmanifestaes figurativas do corpo. Nem a cincia da fbula, discurso ins-titudo en lieu de lautre, desgnio de escrever a voz, como dizia Cer-teau, e que visava reduzir o outro ao mesmo, no esgota a palavra selvagemque ouve e de que fica sempre um resto. Ce qui passe en nous daltr etdaltrant a forme de silence et de commencement (in-fans)7.

    Para uma semitica do silncio

    Que estatuto semitico para o silncio? De que modo analisar as rela-es palavra/silncio e escrita/silncio? Como podemos represent-lo noplano da enunciao e da interpretao? Porque no h silncio sem inter-pretao. O sentido ser sempre, em ltimo caso, uma construo. A an-tropologia ensina que em filognese no se encontra primeiro umaqualidade semitica pura, e que o primeiro de qualquer funo semi-tica complexo, sincrtico, impuro, e por natureza, relacional se no reti-cular8. O silncio um fenmeno complexo de sentido, a entender-se comoum substracto que d um fundo forma do significante, e que se situa

    6 Monique Brulin, Loralit liturgique comme question de thologie fondamentale in LMD 226, 2001, p. 25.7 Michel de Certeau, La Faiblesse de croire, Paris, Seuil, 1987, p. 294. 8 Jacques Fontanille, Modes du sensible et syntaxe figurative, in NAS, 61-62-63, 1999, Pulim, Limoges,

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    9 Op. cit., p. 7.10 Soma et Sema. Figures du corps, Maisonneuve & Larose, 2007, p. 22.11 Marie Auclair, Ultima verba ou les silences du tropismie, Prote, le silence, vol. 28, n2, automne 2000.

    tambm do lado de um significado hipottico. O silncio abduz-se, comoqualquer fenmeno de sentido. Como apreend-lo? Como uma linguagemsensvel? Se tal for o caso, a significao deste modo sensorial no podeacontecer seno a partir das sensaes proprioceptivas, e nomeadamente asmoes da carne e do corpo prprio9. O silncio uma operao semisicaque resulta do isomorfismo de uma plano da expresso e de um plano docontedo. Se no h categorias semiticas que relevem a priori da expressoou do contedo, a relao entre exteroceptividade e interoceptividade temde ser redefinida sempre que h uma nova enunciao: os efeitos de interio-ridade e de exterioridade dependem, segundo J. Fontanille, da posio quese d o corpo-carne proprioceptivo no momento em que ele se coloca comoinstncia enunciante10. Mesmo no inscrito, o silncio faz sinal, assinala,sendo por isso uma construo, um facto de sentido: no inscrito, no dito,mas assinalado e significante. Que descoficamos. Podemos dizer que ele seescreve, se l, se ouve. , portanto um significante com textura e contextoprprios. O silncio percebido como valor, dado que valor preside defi-nio da significao. Por isso est sujeito moralizao isto sua aprecia-o ora como displicente ou agradvel. Belicioso vs irnico, mtico vsfalante. Como o contrrio da fala ou da voz, ele eloquente, gritante, intri-gante. O ponto de vista topolgico o mais adequado para uma semiticado silncio dado que, como afirma Marie Auclair, cest dabord comme lieuscripturaire que le silence agit et cre lagir. Como agente e no objecto, dis-cursivo, uma vez que deste silncio ne sen crivent que les retombes, leseffets, cest--dire du semblant qui passe ncessairement par lcriture pourtre signifi comme prsence signifiante11.

    Peirce distingue trs modos de ser: as coisas so primeiro mera qua-lidade ou possibilidade, que se manifestam em segundo lugar como exis-tentes brutos e se integram pela terceira instncia na nossa realidadesimblica do enuncivel. H a possibilidade de que as coisas estejam a,antes de podermos enunci-las. Onde estaria o silncio entre os trs modosser das coisas? O silncio est l, no como um facto bruto, mas comouma possibilidade, uma qualidade sensvel, sinestsica, proprioceptiva, sn-crono com o fluxo do corpo e do esprito. A teoria enactiva que Francisco

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    Varela estuda no campo das cincias cognitivas um outro ponto de vistaque convm para a abordagem do silncio. Segundo esta teoria o nosso conhecimento do mundo no se limita a represent-lo, mas a faz-lo emer-gir na medida que nos acoplamos com ele, facto de que resulta a diluiodas fronteiras entre o objectivo e o subjectivo. O princpio da enaco as-senta na solidariedade entre a sensao, a percepo, a experincia e a aco. assim que Varela define a prtica da ateno, como presena do esprito(do si) experincia e que d acesso a uma emergncia interactiva do si e domundo12. Ora, o silncio pode ser visto como uma forma de ateno e ocorpo como um operador de semiose.

    Como McLuhan ou Ong reiteram, a cristalizao da oralidade com osurgimento da tecnologia de Gutenberg relegou para a inconscincia o some a sinestesia que o acompanha, tornando a palavra num objecto visual es-ttico. A inter-relao entre som (e a propriocepo que lhe concomi-tante) e a palavra escrita tornou-se to automtica e mecanizada quetransformou a impermanncia e subtileza do verbo numa imagem imvel:a leitura medieval em voz alta foi substituda por uma amplificao da visonum universo silencioso; e a prpria inflexo, caracterstica das culturasorais ou auditivas como meio de simultaneidade, foi eliminada a favor deuma gramtica visual posicional (McLuhan, 1962). O silncio uma ex-perincia interior, anloga respirao: quando inspiramos, o ar, matriada exterioridade, que vem penetrar o nosso corpo at s entranhas. O soproest associado vida e morte. Se morrer perder o sopro, o silncio espa-cializa-se entre o duplo movimento do inspirar e do expirar. Quando expi-ramos, a prpria matria da nossa interioridade que parece derramar-seno espao volta. Podemos considerar, como J. Fontanille, que as sensaesmotoras internas da carne em movimento (e no do corpo prprio) sejamreconhecidas como um dos modos do sensvel; este modo liga-se geral-mente ao domnio dito sensrio-motor, e ento tratar-se-ia de moes nti-mas. Como uma sensao da carne e do corpo em repouso? O silncio no apenas de ordem sensrio-motora: o silncio aparece como uma figuraem acto, como um operador, no quadro de uma praxis anunciativa. nosilncio que o corpo da palavra se expe. Samuel Beckett consagrou uma

    12 Francisco Varela, Evan Thompson, Eleanor Rosch, Linscription corporelle de lesprit, sciences cognitives et ex-perience humaine, Paris, Seuil, 1993.

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    13 S. Beckett, Souffle, Film, suivi de: Souffle, Paris, Minuit, 1972, p. 33.14 Em 1913, Kandinsky escreveu uma histria de arte. Escrevia ento: Primeiro perodo. Origem: desejo

    prtica de fixar o elemento corporal efmero. Segundo perodo. Desenvolvimento: a pintura liberta-se progressiva-mente desse fim prtico e o elemento espiritual domina progressivamente. Terceiro perodo. Meta: a pintura alcanao estdio mais elevado da arte pura, os vestgios do desejo prtico foram eliminados por completo. Agora fala de es-prito a esprito numa linguagem artstica. Esse o mbito dos seres pictricos (os sujeitos). Trabalho, pois, de des-possesso.

    pea muito curta sem palavras ao sopro: num espace jonch de vaguesdtritus, eleva-se um cri faible et bref logo seguido por um bruit dins-pirations avec lente monte de lclairage atteignant ensemble leur maxi-mum au bout de dix secondes.13.

    O silncio da escrita

    Eugnio de Andrade fala do silncio a partir do outro (que deixou defalar), um silncio cho, sem altura, e ao mesmo tempo um silncio quedeixou marcas sonoras (msica) nas suas mos. Um silncio que, como umaluvio, desaba. Ruidosamente. No isso que a palavra grega symptma,produo de uma intensidade ao cair, fala? H silncio na pintura (Male-vitch)14, h silncio na msica (temporal uma pausa, um tempo), espacial(um branco, um vazio), assinalado por indicaes cnicas, pontuaes oudes-pontuaes o acto de leitura que vai decidir da sua implantao edo sentido que da emerge. O msico e compositor Antony Pites, observouque o silncio absoluto virtualmente inatingvel, e que o silncio de que aspessoas normalmente falam se identifica com aquilo a que chamamos sim-ples quietude. A msica depende profundamente do silncio, numa formaou outra para distinguir outros perodos de som e permitir dinmicas, me-lodias e ritmos para obter um maior impacto. Por exemplo a presena depausas nas pautas denotam perodos de silncio. Alguns compositoresutilizam o silncio na msica levado ao extremo. 433 uma obra musicalexperimental do compositor John Cage. Consiste apenas em quatro minu-tos e um pouco mais de meio de silncio. Embora fosse executada primeiroem piano, a pea foi composta para nenhum instrumento ou instrumentose est estruturada em trs movimentos. A extenso de cada movimento no fixada pelo compositor, nem a extenso total da pea. O ttulo desta peapoderia reflectir os tempos escolhidos, e poderia por isso ser diferente em

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    cada performance. A tradio da performance moderna de 433 guardara durao total fixada aquando da primeira performance15. Cage sobre-tudo conhecido pela sua composio de 1952 433, uma das composiesmais controversas do sculo XX. A performance de 433 pode ser perce-bida como incluindo os sons do meio ambiente que os ouvintes escutamenquanto a pea executada mais do que os meros quatro minutos e trintae trs segundos de silncio.

    Maria Gabriela Llansol escreve o seu Curso de silncio entre a voz (quese calou), o mudo e a escrita (que se traa em silncio) e que erige o N-mada em interlocutor. Como se fosse necessrio encontrar uma lngua doluto prpria para dizer o luto da lngua que neste passo se afunda. umaescrita que responde dor (do silncio) e que testemunha de um in-conhe-cido que neste livro tem nomes: jbilo de ser, meteoro da infncia: es-garavatarei, em toda a dimenso do meu caminho, o jbilo de sercompletamente alegre; viverei o passeio que descrevo, nem antes nem de-pois; simultaneamente, e atingirei um objectivo unico qual no sei; maso in/conhecido, a esta hora, v por mim; e o meteoro da infncia no desa-parece. (AA, 24). O que importa agora, escreve J. Barrento, a subs-tncia humana deste per-curso, a transmutao da dor e da perda emsilncio e escrita, em silncio de escrita, e depois em formas diversas de si-lncio16. Llansol recusa a fico: a fico simula, demasiado loquaz. Fic-cionar repulsivo para o silncio: AA, 26). O silncio obedece a modos deintensidade, variaes incomunicveis, neste livro de perda e de ressusci-tao. Seguiu-se um ps-silncio, uma certeza com muitas variaes inco-municveis (AA, p. 84). Sabe-se que o silncio vem marcado por umatenso impulsiva:

    Uma nica melodia respondia ao silncioquela espcie.que possua uma imensa tenso impulsiva (AA, p. 15)

    O silncio sobrevm como interrogao sem resposta: Quem diriaque so olhos dormentes? (AA 11) e que A rvore do silncio no era (eu

    15 John Cage, Silence: lectures and Writings, 1961, Wesleyan paperback, 197316 Joo Barrento, Na Dobra Do Mundo, Mariposa Azual, 2008, p. 198.

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    17 Joo Barrento, op. cit. p. 304.18 Eduno de Jesus, Os Silos do Silncio, Lisboa: IN- Casa da Moeda 2005.

    sentia) o reverso da rvore da vida (AA: 15). H neste Curso um processode criao (generativo) do silncio que podemos seguir por etapas: Agora,era a produo da flor do silncio; depois seria a maturao do seu fruto;depois a sua msica; depois a sua cacofonia; depois, o seu conhecimentopor via rpida; depois o seu desejo sexual, realado em luar libidinal (AA,12). Entre o agora e os vrios depois, o silncio uma flor produzidaque amadurecer fruto, msica, cacofonia, conhecimento, desejo sexual. Aresposta do texto ao silncio claramente anunciada como musical, umafala sem voz. A resposta do texto ao silncio musical e imagtica17. defacto clara a relao da msica ao silncio neste livro. A pedra e o ar (o so-pro) tm encontro marcado na imagem. A se encontram a graa do maisalto valor e um luto imenso, um gesto e uma suspenso do gesto, um desejoe uma renncia, uma quase consolao e uma perda inconsolvel. O siln-cio aqui no a presentificao pulsional da voz. Mas do silncio que falasem voz que nasce o pedido: d-me de beber e que graficamente se dese-nha como um longo travesso a travessia da dor, a separao, o salto, apausa musical.

    Um outro autor, Eduno de Jesus, fala dos Silos do Silncio18. Queveicula esta metfora: um contentor, um depsito, uma srie de camadassobrepostas, intercalares, feito de dobras, um espao transitivo, inclinado,em que se guardam os seus diversos modos de ser, a memria feita silncio?Alexis Nous convida a captar a diversidade dos silncios que compem aobra de Paul Celan (em particular Entretien dans la montagne). Este autordistingue duas espcies de silncio. Um primeiro, que pertence natureza,salva da humanidade ou desertada, e um segundo, que apenas umapausa, um intervalo entre as palavras, um vazio. Sabe-se que na lnguaalem h trs palavras para dizer silncio: Schweigen, Stummheit, Stille. Oprimeiro, silncio natural, corresponderia ausncia de fala ou do seu ces-sar no exerccio concreto. A segunda, que releva mais do mutismo e que re-meteria para uma no-fala, a sua recusa ou o seu contrrio. A terceiratomaria valor de silncio no campo semntico da calma, do repouso, daimobilidade.

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    O perfume do no-dito

    A linguagem gestual permite acompanhar a comunicao daquilo quea fala no alcana a no ser intermitentemente, isto o silncio. Ora, o si-lncio, do ponto de vista retrico, pode ser um contexto de intensificaoda mensagem sobretudo se ela intencionar um cariz mais afectivo. Diz-sede alguns silncios serem eles eloquentes. Mais ainda quando um gesto oscomplementa ou mais completamente os exprime. Uma linguagem exclu-sivamente gestual, como a dos surdos-mudos, opera em silncio nisso se di-ferenciando da fala que o rompe. No totalmente, no entanto, uma vez quea fala toda ela feita tambm de silncios intercalares que alis o que lhepermite ser ouvida19. A questo mais relevante aqui : como que aqueleque ouve pode beneficiar do conhecimento do silncio e do corpo que prprio ao surdo, de modo a nele aprender a parte pulsional do silncio eda voz?

    O tempo da recepo vive-se antes de mais no silncio. Acolher o domdo amor do Outro passa pelo silncio da escuta. Ou no fosse o silncio opai da palavra, como dizia Domingos de Gusmo. O mstico Jean Tauler,evocando o Dum mdium silentium da liturgia, escreve: no meio do si-lncio, no momento em que todas as coisas mergulham no maior silncio,em que o verdadeiro silncio reina, que se ouve o Verbo, porque se queresque Deus fale, preciso calares-te: para que ele entre, todas as coisas devemsair20. Receber a palavra no receber uma mensagem a transmitir, reco-nhecer esta palavra num corpo, como palavra da vida. pelo corpo quepassa a recepo: no h palavra sem interaco. No h praxis enunciativasem um corpo que responde a outro corpo. Mesmo que seja virtual: afinal,pensar, recordar, so operaes virtuais, no h traos visveis que as co-lham, ao contrrio da escrita.

    O texto de Joo diz-nos que o gesto de dom tecido na verdade do si-lncio um mais pregnante do que qualquer outro, calculista, dominador,masculino. Como anunciar aquele que nos tocou sem pronunciar uma pa-lavra s? Estando Jesus em Betnia, mesa, chegou uma certa mulher quetrazia um frasco de alabastro, com perfume de nardo puro de alto preo;

    19 in Tito Cunha, entradas Foz Ca. Ver Paolo fabbri, El Giro Semitico, Barcelona, Gedisa, 1999, p. 74-75.20 Jean Tauler, Sermons, Paris, 1991, p. 17.

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    partindo o frasco, derramou o perfume sobre a cabea de Jesus (Mc 14,3).Uma mulher coloca um gesto em silncio: quebra um frasco de perfume e der-rama-o na cabea de Jesus. Gesto que os discpulos no entendem. Jesus assi-nala a distncia entre o gesto e o efeito que criou quando lido e interpretado.As palavras dos discpulos no entendem a perda seno em termos de desco-dificao. Jesus dir que ela fez uma boa obra. Ela no perfuma o corpomorto, mas um corpo mesa. Em qualquer parte do mundo onde for pro-clamado o Evangelho, h-de contar-se tambm, em sua memria, o que elafez (Mc 14, 9). O seu gesto transformado em palavra de anncio. O per-fume derramado transforma as aparncias e aquilo que se diz delas, abrindoum outro espao. O vaso quebrado assinala a dissociao entre as palavras e ascoisas (as aparncias) em que diz algo diferente da relao ao outro: este corpovivo como coisa visvel no deve ser tido por aquilo que parece ser, transportaum outro tempo e um outro espao nele: O filho do Homem ser entregue,sofrer, morrer e ressuscitar ao terceiro dia. O frasco partido rasga as apa-rncias e faz intervir uma palavra que vem de algures, do fundo das Escrituras.A uno pode ser vista como um gesto colocado sobre o corpo: um corpomorto pede que sobre ele se coloquem gestos de embalsamento. Este gesto uma porta que abre para um corpo a vir, inscrevendo nas margens do visvel oinvisvel da vida e da morte. O gesto da mulher adverte para a iluso de poderabsoluto sobre o mundo, sobre si e o outro. A palavra nasce do silncio. 0 si-lncio da mulher um silencio prenhe: o da palavra silenciosa, da palavra docorpo que fala. Esta mulher fala por gestos, no por palavras: prefigura otriunfo da morte. Pode este perfume til para a conservao do corpo mortoservir para a conservao da palavra? De que fala esta fractura do vaso seno doacto de proclamao e da economia, dom do amor que s na brisa ligeira sepercebe que discreto, silencioso e nos leva a desconfiar da impostura dalngua e dos grandes gestos. O dom da mulher passa por um perfume evanes-cente que passa numa brisa ligeira e o seu gesto de derramar este perfume queJesus associa ao anncio do evangelho. Jesus no fala, quando se ajoelha diantedos discpulos para Ihes lavar os ps. O seu acto vale pela palavra: O seu actofaz corpo com a sua palavra ou a sua palavra faz corpo com o seu acto. O seuacto palavra. Deus perceptvel como um perfume quando o confessamos ecelebramos: Respire in te paululum (Conf. XIII). Eis onde ests! Respiro umpouco em ti quando derramo sobre a minha alma num grito de alegria em queressoam ares de festa celebrada (Agostinho).

    jos augusto mouro didaskalia xxxix (2009)1

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    Coda

    De acordo com as normas culturais, o silncio pode ser interpretadocomo positivo ou negativo, por defeito ou por excesso. Enigmtico orosto do silncio que denuncia o exlio da palavra e do encontro. Os mon-ges inventaram tcnicas de suspenso, prticas de interrupo da fala. Nomeio Metodista Cristo, a organizao da f e do silncio, bem como a re-flexo durante os sermes deve ser apreciada pela congregao, enquantonuma igreja Baptista do Sul, o silncio pode significar desagrado relativa-mente quilo que est a ser dito, ou talvez desconexo da comunidade con-gregada. Diz-se que s temos uma experincia completa do silncio namorte. O silncio completo quando no se sente o mnimo rudo. Nos la-boratrios, os animais submetidos a uma total falta de rudo mostram si-nais de mudanas de comportamento e de agresso. Na religio ortodoxa oculto do silncio tem um lugar de destaque. A excelncia espiritual do he-sicasta silenciosa e contemplativa. A evidncia do divino vivo, tal umoceano de luz, doura e d-se no ao raciocnio, mas ao corao e sen-sao: o tudo sentir em Deus de Isaac o Srio torna-se o culto da sensa-o de Deus que recusa as palavras e se afasta da lgica da teologia. A apofase o cmulo desta teologia negativa que nega a limitao conceptual deDeus: nem valor, nem conceito, nem representao, Deus o inacessvel, omistrio sem fundo21.

    A autobiografia obriga a terminar o silncio afim de enunciar a verdadedo sujeito. E o silncio que condena a falar ou a escrever incansavel-mente. Como dado lingustico tem, na tradio oral, por exemplo, valor deescanso. Encontramo-lo nas escritas dramticas contemporneas, e o si-lncio aqui no temtico nem psicolgico (Racine, Tchkov) mas estru-tural. Concluamos: o silncio impossvel mas necessrio: Notre grandart dtres parlantes serait alors daccentuer les blancs, les silences, les syn-copes, les souffles qui nous interrompent comme autant de reserves pourlimage oublie22. Atravs do trabalho da ausncia, do luto, do vazio, sem-pre pulsional, no o silncio a manifestao de um indizvel?

    21 Jlia Kristeva, La haine et le pardon, Paris, Fayard, 2005, p.75.22 G. Didi-Huberman, Gestes dAir et de pierre, Minuit, 2005, p. 43.

    os rostos do silnciodidaskalia xxxix (2009)1

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