Os Principios Da Filosofia de Descartes

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    Pedro Alves e doutorado pela Universidadede Lisboa (1999), onde obteve tambem osgraus de Mestre (1989) e de Licenciado(1983). Autor de varies estudos sobreDescartes , Kant, Dil they, Husser! , Sar tre,interessa-se pela fenomenologia e, actual-mente, desenvolve trabalhos de conexaoentre os estudos fenomenologicos e afilosofia da mente. A historia da filosofia ,particularmente dos autores modernos econtemporaneos, e uma das suas areas deinteresse perrnanente.

    *Com 0presente trabalho , pretende-se preencher urn hiato ass inalavel no

    espaco edi torial por tugues na area dos estudos f ilosoficos ,De facto, a edicao de obras na area da filosofia tem-se repartido pela

    publicacao de estudos eruditos, apenas acessive is a especialistas, ou pe laedicao de simples manuais escolar es. Tern faltado - e continuam a fa lta r-obras que, vencendo a tendencia para a s impl if icacao inerente aos manuais,exponham 0 pensamento dos autores c la ssicos da Filosofia de uma formarigorosa e atenta it complexidade das materias, sem cair com isso, no entanto,na apresentacao erudi ta ou na expos icao exclusiva de teses interpretativas.o presente estudo visa preci samente esse object ivo a proposi to de ReneDescar te s e , mais prec isamente , da pr irneira pa rte dos seus Principios daFilosofia, onde as teses meta fisicas mais irnpor tantes sao expostas peloautor de urn modo didactico ,

    Assume-se neste trabalho a exigencia de sistematicidade e analiticidade,evitando-se, ao mesmo tempo, 0 duplo escolho da obra especializada ou davulgarizacao em apresentacao sinoptica, necessariamente breve esirnplificadora.o caminho aqui escolhido pretende dirigir-se a urn publico berndeterrn inado - todos aqueles que, por in teresse ou curiosidade, carecem deobras que se constituam como uma introducao compreensiva no pensamentode autores classicos da Filosofia, mas tam bern os estudantes universitariose os professores do 12 ana do Ensino Secundar io.

    ISBN 972-772-271-7

    1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 19789727722716

    Pedro M. S. Alves

    Os Principios da Filosojia de DescartesExposicao e Cornentario da Me ta fis ic a Ca rt es ia na

    Edicoes Colibri F or um d e Id eia s

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    Coleccao: FORUM DE IDEIASDireccao: Dr. Adelino Cardoso

    Livros Publicados:- Le ibui: Segundo a Express iio

    Ad el in o C a rd o so- Linguagem da Filosojia e Filo so jia

    da LiuguagemAn to n io Z il ha o

    - His to ri c da Fil osoji a e Tradic iioFilos6jicaJ oa o P a is an a

    - Pratica. Para utua Aclaraciio dosell SentidoCOIIIO Categoria Filos6jicaJ oao Ba ra ta -Mou r a

    - A Raziio Sensivel. EstudosKantianosL eo ne l R ib eir o d os S an to s

    - 0 Peri Ideon e a Critica Aristotelicaa PIataoMa ri a J os e F ig u ei re do

    - Raziio e Progresso na Filosofia deKantVi ri at o So rome nho -Mar ques

    - Hipocrates e a Arte da MedicinaC oo rd en ac ao d e M aria L uisa C ou toSoares

    - 0Espelho DeclinadoNatureza e Legit intaci io do ActoMedicoMan ue l S ilv eri o M ar qu es

    Pedro M. S. Alves

    Imaginaci io e PoderEstudo sobre a Filosof ia Politico deEsp illosaD io go P ir es A u re li o

    - Pensarno FemininoC oo rd en ac ao d e M aria L uisaR i bei ro Fe rr ei ra

    - O s P rin cfp io s d a F ilo so fia deDescartesP ed ro M . S . A lv es

    - A Sintese Fragi lVilla iutroduciio c/ Filosofia (daPatristica aos Conimbricenses)Mar io S an ti ag o d e C arv alh o

    - A Revoluci io FederalFilosojia politica e debateconst itucional uafuudaci io dosE.U.A.Vir ia to Sorornenho-Marques

    - F u lg u ra c ii es do El lIndividuo e singularidade 110pensamento do Renasciniento.Ad el in o C a rd o so

    - Raciona lidade Cotnun icati va eD es en vo lv in ie nto H um an o e mJ i ir g en Habe rma s .Mar ia d e S ou sa P er ei ra C ou tin ho

    OS PR IN CiPIO S D A FILO SO FIADE DESCARTES

    EXPOSI

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    CDU I Descartes, Renej I

    INDICE

    Biblioteca Nacionat= Catalogaciio na Publicactio

    Alves, Pedro M. S., 1958-Os pr incfpi os da filosofia de Descartes: exposicao e comenuirioc ia m et af fs ic a c ar te sia na , - ( Fo ru m de id eia s ; (2)ISBN 972-772-271-7

    Primeiro Capitulo - A Diivida 7

    Segundo Capitulo - A Genese do Saber 23

    Terceiro Capitulo - A Edificacao da Ciencia 53

    Quarto Capitulo - A Fundamentacao da Ciencia Natural 85

    Titulo: Os Principios da Filosofia de DescartesE xposicao e comen tar io da me ta ff s ic a c a rt es ia n aAutor: Pedro M. S. Alves

    Editor: Fernando Mao de FerroCapa: Ri cardo Moira

    sobre trabalho de Mal l Ray, Target (Mire Universelle)Deposito legal n." 167777 / 01

    Exccucao graf ica: Co lib ri Ar te s Graf icasTiragem: 1.000 exernplares

    Conclusao 109

    Lisboa, Junho de 2002

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    lA DUVIDA

    PRIMEIRO CAPITULO

    I

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    A - TEXTOS DE PRINCIPIOS DA FILOSOFIA

    1. Aquele que investiga a verdade deve, uma vez na vida, duvidarde todas as coisas, na medida em que isso for possivel.Dado que nasce!!10s criancas e forrnulamos varies jufzos acerca das

    coisas sensfveis antes que tivessernos 0 completo uso da razao, somosdesviados do conhecimento da verdade por muitos preconceitos; dosquais parece nao podermos l ibertar-nos a nao ser que, uma vez na vida,nos esforcemos por duvidar de todos aqueles em que encontremos aminima suspeita de incerteza.

    II. As coisas duvidosas devem ser tidas por falsas.Sera mesmo iit il considerar tambern como falsas aquelas coisas de

    que duvidamos, para que assim encontremos mais claramente 0 que ecertissimo e facilimo de conhecer. [.. .JIV. Por que podemos duvidar das coisas sensiveis,Mas agora que apenas perseguimos a investigacao da verdade,

    duvidaremos, em primeiro lugar, se algumas coisas sensfveis ou imagina-veis existem: primeiramente, porque algumas vezes descobrimos que ossentidos erram, e e prudente nunca confiar demasiado naqueles que pelomenos uma vez nos enganaram; depois, porque nos sonhos nos pareceque sentimos ou imaginamos irnimeras coisas que em parte nenhumaexistern; e aquele que assim duvida nao aparecem nenhuns sinais gracasaos quais possa distinguir com certeza 0 sono da vigil ia.

    V. POl'que podemos duvidar tarnbern das demonstracoes maternati-cas. Duvidaremos tambern das restantes coisas _q!:!_entes tfnhamos pormaximamente certas; duvidaremos mesmo das dernonstracoes maternati-cas, e ate dagueles principios que ate agora julgavamos serem conhecidospOl'si mesmos. E isso seja pOl"quevimos por vezes alguns errar a respeitodeles, e admi tir como certi ssimos e conhecidos pOl ' s i mesmos algunsprincipios que nos pareciam falsos, seja sobretudo porque ouvimos dizerque existe urn Deus que pode tudo e pelo qual fomos criados. Com efeito,nao sabemos se porventura nao tera querido criar-nos tais que sem~ !!Qenganemos, mesmo naquelas coisas que nos parecem as mais bern conhe-cidas de todas; pois nao parece ter podido menos fazer isto do que fazer

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    com que nos enganemos de vez em quando, 0 que ja antes advertimosque acontece. E se imaginarmos que existimos nao gracas a um Deusomnipotente, mas sim gracas a n6s mesmos ou a qualquer outro, quantamenos poderoso for 0 autor ao qual atribuimos a nossa origem, tanto maise de crer que somos tao imperfeitos que nos enganamos sempre.Principios da Filosofia, Primeira Parte. J

    B - COMENTARIONos artigos I -VI dos Principios? 0 exercicio da duvida e apresen-

    tado como a unica via possivel para a constituicao da ciencia, ao mesmotempo que dele se excluem as questoes relat ivas a vida pratica. 0 seuesclarecimento deve passar pelos seguintes pontos:

    I - Natureza e funcao da diivida cartesiana.II - Relacoes entre a duvida cartesiana e 0 cepticismo, tanto noplano hist6rico como doutrinario.III - Principais argumentos ou razoes para duvidar.

    I - Natureza e funcao da duvida cartesianaUma vez lida na sua totalidade a Primeira Parte dos Principios daFilosofia, somos quase inevitavelmente levados a fazer esta pergunta:

    sendo 0 resultado final da metaffsica de Descartes a afirrnacao da existen-cia do Eu, de Deus e do Mundo, pOI'que razao se cornecou pOI'duvidardessas mesmas coisas, pOI 'que razao se encetou todo aquele longo per-curso reflexivo e se teve necessidade de demonstrar a existencia de coisasque, antes de qualquer reflexao, todos n6s sabfamos ja?3

    Na verdade, se tudo 0 que Descartes acaba pOl'provar ser verdadeiroe precisamente aquilo que tinha cornecado por por em diivida, nao sera,entao, a pr6pria diivida urn exercicio superfluo e vao? Com que final i-dade se pretende cornecar por pOI'em diivida aquelas crencas que, mais afrente, se acaba pOI'provar serem inquestionavelmente verdadeiras?J Todas as t raducoe s dos Principia Philosoph ice sao ret iradas da excelente t raducao deLeonel Ribei ro dos Santos (cujo arnavel consent imento agradecemos), fei ta a parti r doorigina l lat ina e publicada sob 0 tftulo Principios da Filosofia, Lisboa, Editorial Pre-senca, 1995.

    2 Ver tambern Discurso do Metoda (Quarta Parte), Meditaciies sobre a Filosofia Primeira(Primeira Meditacao) e A Procura da Verdnde pela Lu: Natural .

    3 Em r igo r, a p rova da exi stencia de um Mundo de corpos ex tensos s6 e dada no primeiroar tigo da Segunda Pa rt e dos Princlpios. Mas ela liga-se indissoluvelmente it reflexaolevada a cabo na Primeira Parte . Tra taremos dela na parte f inal desta obra.

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    Esta pergunta parece estar legitimada pela aparente circularidade dopercurso reflexivo de Descartes nos Principios da Filosofia e em todas asoutras obras em que se trata de temas identicos. No entanto, ela baseia-senum erro de apreciacao que deve ser corrigido.

    Ha, desde logo, a distincao entre crenca e verdade. Uma crenca eumaconvic

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    os pressupostos de todas as outras ciencias. POl' isso Descartes a desen-volve no quadro de uma Filosofia Primeira, isto e, de uma ciencia -qu 'edeve nao so vir antes de todas as outras, mas definir tarnbern 0 campo e 0rnodo de proceder de todas as outras ciencias. A diivida visa, assim, trans-formal' em verdade e em certeza aquilo que, em todo 0 saber acerca darealidade, permanece, no entanto, sempre nao esclarecido - precisamenteo facto de haver algo como uma realidade, de algo estar af disponivelpara nos, que existimos, e ser objecto de urn possivel saber.

    Ve-se, por isso, quae radical e a exigencia que esta presente na diivi-da. Ela pretende justificar racionalmente as nossas crencas absolutamenteprimei ras, das quais tudo 0 res t o depende, a saber, que nos propriossomos e que urn mundo e ou existe verdadeiramente. E ve-se, tambern,quao radical e a propria forma de racionalidade aqui envoi vida. A justifi-car;ao dessas crencas nao pode, de facto, assumir a forma: "isto existeporque aquela outra coisa existe", "isto e verdadeiro porque aqueloutro everdadeiro e dele se deduz". Uma tal forma de justificacao pressuporiaainda uma outra crenca mais primitiva, a justificacao desta ultima reen-viaria ainda para uma outra e assim sucessivamente. Numa palavra: comeste procedimento, nada sejustificaria, porque toda a verdade pressuporiaainda uma outra verdade mais fundamental. Deste modo, se uma justif i-cacao racional dessas crencas pode ser produzida, entao ela nao podepartir de nenhum pressuposto. Ela tern de eliminar toda a afirrnacao pre-via, produzir 0 vazio e t irar desse vazio tudo aqui lo cuja verdade se pre-tende mostrar. Ora isso quer dizer: nesta forma superior de racionalidade,nenhuma coisa pode ser dedutivamente justificada. As coisas cuja exis-tencia se quer racionalmente justificar tern de mostrar-se numa evidenciaabsoluta, anterior a qualquer deducao, e so esse ser-evidente podera valercomo criterio ultimo de racionalidade.

    A diivida cartesiana, que vai da aniquilacao de todas as crencas ate aevidencia do eu so u, progride mais alern ate a afirmayao de Deus e cul-mina de seguida na afirrnacao da ~istencia do 11 1un do. : ..Esta di ivida e,assim, 0 lugar onde as crencas mais primitivas se veern justificadas porvia de uma racionalidade superior que as ciencias em sentido comum naosao capazes de produzir.

    Eis a primeira razao pOl'que 0 exercicio cartesiano da duvida nao eurn procedimento superfluo e vao, Mas nao so. E que, na metaffsica car-tesiana, as crencgs de que se duvida no inicio nao sao exactamenje iguaisaguelas que, no final, se vern a estabelecer como verdadeiras.- Ha, desde logo, uma modificacao no m odo de conceber cada umadessas realidades. Parte-se de uma representacao do eu que confusamenteo une a urn corpo; ~hega-se, porern, a uma representacao do eu como uma

    _ Os Principios da Filosofia de Descartes 13substancia pensante realmente distinta do corpo. Parte-se de uma ideiaconfusa de Deus, que torna possfvel a duvida quer a respeito da sua exis-tencia quer a respeito da sua veracidade; chega-se, porern, a uma ideia deDeus em que existencia e veracidade sao racionalmente estabelecidas.Parte-se, f inalmente, de uma representacao dos COl'pOSque poe nelesqualidades sensfveis como a cor ou 0 som; chega-se, porern, a uma repre-sentacao da natureza corporea como uma substancia extensa que apenascontern figura e movimento.

    A par desta alteracao no conteiido das ideias do eu, de Deus e doMundo operada no processo que se inicia com a diivida, verifica-se,ainda, uma correspondente modificacao do valor episternologico dessascrencas. Se a existencia de Deus e do Mundo, se mesmo a existencia doeu, enquanto ele e confusamente concebido como uma realidade corporeaou essencialmente unida a urn corpo, sao crencas que sempre podem serdestrufdas por argumentos contraries, a afi rrnacao do eu, de Deus e doMundo que resulta da diivida e, ao inves, uma crenca tao firme e inabala-vel que equivale a mais absoluta certeza.. .A diivida deve ser, portanto, entendida c~ urn procedimento paraehrmnar todas as creqyas_que podem ser abaladas por uma argumentacao

    con~ que nao sao, por conseguinte, firrnese inabalaveis, As "razoesde duvidar" nao necessitam de ser, pelo seu lado, crencas tao verosimeisquanta aquelas que se pretende abalar. Adiantar uma "razao de diivida"nao e crer nessa razao, nao e passar de uma crenca a crenca exactamenteoposta, mas apenas const ruir uma suposicao na base da qual as crencasanteriormente admitidas se tornam menos seguras e perdem, portanto, 0seu poder de suscitar 0 nosso incondicional assentimento. Mais do queinclinar-nos para as opinioes contrarias, a diivida pretende conduzir auma situacao em que, perante as razoes a favor e contra e na ausencia deurn criterio de decisao, tenhamos nao de afirmar, mas de suspender 0110SS0 juizo e abster-nos de assentir seja num sentido ou no outro. As"razoes de duvidar" podem ser muito fracas, e ate mesmo completamenteinverosfrneis. Mas a inverosimilhanca nao pode ser, aqui, criterio de deci-sao. Se esta em questao a validade de tudo daquilo em que acreditamos,nao podemos, naturalmente, excluir algo pOI'ser contrario as nossas cren-cas mais enraizadas. Quem nos assegura, na verdade, que essas nossascrencas sao validas? Quem nos assegura que nao e precisamente aquiloque nos parece mais inverosfrnil que e, no entanto, verdadeiro?o que acaba de ser dito nao e, contudo, ainda 0 ponto essencial paraa completa cornpreensao da diivida cartesiana. A diivida tern como fun-r;ao eliminar tudo 0 que pode ser abalado por urn argumento oposto. Maseste projecto de uma subversao de todas as crencas tern como finalidade

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    ultima chegar, como Descartes sempre 0 afirma, a algo [irnie e seguro,numa palavra, a uma conviccao tao estavel que nao possa ser ulterior-mente subvertida por nenhuma razao de diivida, por mais pequena eimprovavel que ela seja.

    A duvida nao e, portanto, urn exercicio meramente negativo. Aomesmo tempo que visa a suspensao do juizo sobre tudo 0 que e duvidoso,ela fornece tarnbern urn criterio positivo para a adrnissao de uma crencacomo certa. Para que uma crenca seja tida como certa e necessario queela seja inabalavel, E, para que ela seja tal, necessario e nao apenas aausencia actual de uma quaJquer razao de duvidar, mas tam bern a garan-t ia de que niio lui nenhum argumento concebivel susceptfvel de a podersubverter. Descartes diz isso mesmo num texto das Respostas as Segun-das Objecciies que acompanhavam a edicao das Meditaciies sobre a Filo-sofia Primeira, publicadas em 1641: Assim que pens amos conceber cla-ramente alguma verdade, espontaneamente nos persuadimos de que ela everdadeira. E se esta crenca e t iio f irme que niio possamos tel ' jamaisqualquer rariio de duvidar daquilo em que cremos, nada mais ha a procu-rar: nos temos a esse respeito tudo 0 que se pode com razao desejar. [ ... ]Supomos [entao] uma crenca tao firme que niio possa ser destruida, aqual crenca e, por conseguinte, 0mesmo que uina perfeitissima certeza."Com base nisto, podemos sumariar 0 metodo car tesiano da diividanos seguintes pontos essenciais:

    I - justificaciio racional das crencas mais primitivas (a existencia de\ nos proprios e do mundo);\ - eliminaciio, como se fora falso, de tudo aquilo cujo contrario sejaconcebivel (mesmo que os argumentos apresentados sejam fracos e poucoveros imeis) ;\ - determinaciio da verdade como 0 cor relato de uma crenca inaba-llcivel(ou seja, de uma crenca que exclua a par tida, como inconcebfvel, apossibilidade de um argumento contr ario que a possa vir enfraquece r).Este procedimento da duvida ca rtesiana pode se r, entao, condensadonuma regra de simples compreensao e aplicacao, Seja uma qualquer pro-posicao p (por exemplo, a substancia corporea existe ou a soma dosangulos internos de um triangulo e igual a 180). Segundo 0 cri terio daduvida, podemos entao estabelecer a Regra:

    R p sera uma crenca firme e inabalavel (por conseguinte, certa) se quema afirma possuir nao s6 raz6es a favor de p, mas tarnbern raz6es que

    4 Meditationes de Prima Pliilosopliia, Secunda: Responsiones, AT VII, pp. 144-145 (subl.nossos).

    -- as Principios da Filosofia de Descartes 15Ihe permitam a partida excluir como inconcebfveis todos os possfveisargumentos contra a verdade de p.

    Segundo 0mesmo criter io da diivida , agora na sua face negativa,R Sempre que haja uma qualquer razao, provavel ou nao, para duvidar

    da veracidade de p, dever-se-a suspender 0 jufzo acerca de p.Para 0 dizer mais uma vez com Descartes, para quaJquer proposicao

    p, . ela sera uma proposicao certa e indubitavel quando quem a afirma pos-s uir ur na crenr;a baseada numa razao tao for te que n en hu rn a o utr a aindamais forte a possa vil:ab'alar.5

    II - Relacoes entre a diivida cartesiana e 0 cepticismo, tanto no planohistorico como doutrinarloNa cultura europeia, os seculos XVI e XVII estao indelevelmente

    marcados pe lo ressurgimento do cepticismo. Ha, no seculo XVI, a celebreobra de Henricus Cornelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535),6 a doportugues Francisco Sanches (1552-1623),7 as de Montaigne (1533--1592),8 a de Pierre Charron (1541-1603).9 Ha tambern, como pano def~ndo ~e ~odo e~te movimento, a descoberta dos escritos de Sexto Empf-nco, ceptico antigo, e a sua traducao para latim por Henri Estienne, em1562, e por Gentian Hervet, em 1569.10 A influencia combinada deMonta igne e Charron, de Sexto Empf rico e das tendencia s anti-a ristoteli-cas havia de culminar, na primeira metade do seculo XVII, no movimentodos Libertinos Eruditos, constituido por pensadores de formacao huma-nista dispostos a romper com todas as velhas tradicoes, Francois de LaMothe Le Vayer (1588-1672)11 e Petrus Gassendi (1592-1655),12 as duas

    5 Carta a Regius, 24/5/1640, AT III , p . 65.6 De Incertitudine et vanitate scientiarum declamatio invectiva ... (1526).7 Quod nihil scitur (1581).8 So.bretudo, Apologie de Raimoud Sebond (1576 - data de redaccao das part es pr inci-Pals) e Essais (1580, para os dois primeiros l ivros, e 1588, para a edicao dos t res l ivros) .9 La Sagesse (1601).10 Sexti Pli ilosophi Pyrrhoniarum Hypotyposeon l ibri I ll .. . lat ine I I I1I1C primum editi,interprete Henrico Stephana, Paris, 1562; Adversus Mathematicus ... graece 111II/(/lIalll.Latine I I I I11C primum editum, Gentiano Herveto Avrelio interprete. Paris, 1569.IIDialogues (1630), tarnbem Petit Traite Sceptique e Discours pour inont rer que lesDOllies de la Pliilosophie sont de grand usage dans les sciences.12A inspiracao ceptica de Gassendi e not6ria sobre tudo nas primeiras obras, como nasExercitationes Paradoxicae adversus Aristoteleos (1624).

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    personalidades filosoficas mais importantes deste grupo da Tetrade, comoera conhecido, criticaram acerbamente a ciencia tal como ela se lhesapresentava na sua versao aristotelico-escolastica ou renascentista.

    Qual a posicao de Descartes relativamente a todo este movimento? Ea sua diivida inspirada pelas correntes do cepticismo? Vem ela, de facto,de uma conviccao em tudo analoga a do ceptico Marande, para 0 qual[...J nada temos de mais certo que a propria duvida?13

    De modo nenhum. Certamente que Descartes conheceu directa ouindirectamente as obras de Agrippa, de Montaigne e Charron, de Gassendie La Mothe Le Vayer. Certamente que se refere com frequencia aos"cepticos'' e aos "pirronicos", 0 projecto de duvidar de todas as coisas -expos to na Quarta Parte do Discurso do Metodo, nas Meditacoes, nosPrincipios e em A Procura da Verdade pela Luz Natural - nao seria,alern do mais, compreensivel sem este pano de fundo do ceptici smo.Todavia, 0 objectivo de Descartes nao era ser 0 melhor dos cepticos. 0objectivo de Descartes era ser 0 vencedor do cepticismo.

    Na verdade, 0 intento basico de Descartes consiste em ultrapassar 0cept icismo pOI' um movimento de intensi ficacao e de esgotamento dapropria atitude ceptica. As "razoes de duvidar" expostas nas Meditacoes enos Principios representam uma crise ceptica que, na sua radicalidade,vai muito para alern dos conhecidos - e muitas vezes superficiais - argu-mentos pirronicos dos seus contemporaneos, Mas se Descartes parecepor-se ao lado dos cepticos e dar-Ihes novos argumentos contra todas asformas tradicionais do saber, nomeadamente a aristotelica, com que sefamiliarizara no Colegio de La Fleche, 0 seu objectivo ultimo e, porem,levar 0 ceptici smo ate 0 ponto em que ele se supera a si proprio e setransforma em certeza. Na verdade, enquanto os princfpios do saber esti-verem ao alcance das duvidas dos cepticos, eles nao poderao fazer valer asua pretensao a verdade. Mais, acrescenta Descartes num celebre encon-tro com 0 cardeal Berulle: eles nao poderao ser sequel' tidos por verdadesinquestionaveis , mas apenas por conjecturas mais ou menos provaveis ,Se, contudo, os princfpios da ciencia resultarem da propria duvida cepticana ~ua-maxima radicalidade, eles estarao irnunes'Ia qualquer argumentocontrario e so entao se poderao apresentar como verdades absolutamenteinquestionaveis,E precisamente esta a estrategia de Descartes. Ele pretende levar 0cepticismo ate ao ponto em que ele se transmuta em certeza e da lugar aciencia, uma ciencia que, resultando da cri se ceptica e sendo 0 lugar da13 Jugement des actions humaines, 1624, p. 106. Na Segunda Meditacao, Descartes dizalgo muito semelhante: Entao, 0 que sera verdadeiro? Provavelmente uma s6 coisa :que nada e certo. Meditatioues, AT VII , p .27.

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    sua superacao, ja nada tera a temer dos argumentos do cepticismo. Tal e aorientacao de Descartes quando se abeira do tema da diivida no turbu-lento ambiente intelectual do sec. XVII. Ele dirige-se ao mesmo tempocontra os cepticos e contra todas as formas deficientes (tradicionais) dosaber.

    As declaracoes expressas de Descartes sobre 0 sentido da sua duvidasao, alias, bern elucidativas quanta a este ponto. Numa resposta as objec-

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    Sao essas bases absolutamente solidas? Serao as crencas sobre elas edifi-cadas crencas inabalaveis?Ha, diz Descartes, apenas duas fontes principais para todas as nossascrencas: 0 testemunho dos sentidos e a evidencia intelectual, resultan_:equer da intuicao directa e imediata de uma verdade, quer da sua deducaoa partir de outras verdades.Efectivamente, por que motivo cremos existirem urn mundo e corposnele, por que motivo cremos tel' nos proprios urn corpo, e serem verdadei-ras todas essas particularidades de forma, movimento, cor, som, etc. , quea cada momenta neles percebemos? POl'que cremos, ainda, que 0 trian-gulo so pode tel' tres lados, que dois mais t res e sempre igual a cinco, eoutras coisas semelhantes?Nos estamos disso persuadidos. Pois ha ai uma evidencia que, a pri-meira vista, parece absolutamente incontornavel . Nos "vemos'' que eassim porque os sentidos no-lo ensinam ou porque a razao nos impoe quepensemos desse modo e nao de outra maneira.. ., _Mas e este "porque" urn motivo totalmente inquestionavel? Serao ascrencas que por ele justificamos crencas absolutament~ inabalaveis? .Neste primeiro momento, a resposta de Descartes so pode ser ne~a.tlva.

    o primeiro argumento usado e, no fundo, urn argumento tradicionaldo cepticismo mais comum. Consiste ele em invocar aquelas ocasioes emque nos enganamos ao julgar com base nas inforrnacoes sensoriais (porexemplo: uma barra dentro de agua que nos parece quebrada) ou quandonos precipitamos ao raciocinar e cometemos paralogismos.'?

    Este argumento e, contudo, demasiado fraco para fundamental' umadiivida universal e total . Pois todos esses erros sao corrigfveis , e corrigi-veis pelas mesmas faculdades que os engendraram. Sao ainda os ~entidosque nos ensinam que a barra, afinal , nao estava quebrada, que 1SS0 erauma simples ilusao; e ainda a razao que, ao considerarmos mais atenta-mente os nossos raciocinios anteriores, nos ensina que nos haviarnosenganado ao conceber ou deduzir uma qualquer coisa. 0 argumentoexposto nao perrnite, por isso, lancar uma suspeita geral sobre essasfontes de todas as nossas crencas, Pelo contrario , ha a dizer que ele refor-ca a confianca que nelas sempre depositamos, pois e ainda e sempre pelossentidos ou pela evidencia intelectual que detectamos os nossos errosanteriores e os podemos corrigir. Se so existisse esta razao de duvida,poder-se-ia, entao, afirmar com seguranca que tudo 0 que e dado e sem-17 Paralogismo e urn raciocfnio invalido quanta 11forma 16g~ca.Por ex_:mplo; 0 raciocf~~i~"se chove, entao a rua esta molhada, ora nao chove, entao a rua nao esta molhada eurn paralogisrno, porque contern uma forma 16gica invalida, a saber: se p, entiio q; ora

    niio p. entiio niio q.

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    pre confirmado por raciocinios ou percepcoes posteriores permaneceimune as razoes de duvidar e e , por conseguinte, uma certeza inabalavel.

    A segunda serie de argumentos cartesian os tern, contudo, urn alcancemuito mais vasto e permi te per em diivida tudo aqui lo que permaneceindubitavel depois deste primeiro argumento. E nesta segunda serie quese encontra, alem disso, 0 contributo original de Descartes para os argu-mentos do cepticismo.

    Se todos os erros corrigfveis acabavam por confirmar os sentidos e aevidencia intelectual como fontes seguras de verdade, a estrategia con-siste, agora, em supor urn erro incorrigivel pelo normal exercicio das nos-sas faculdades, quer dizer, urn erro em que laborariarnos sempre e que,nunca podendo ser corrigido em percepcoes ou raciocinios subsequentes(pois todos eles 0 cometeriam invariavelmente), tornaria tambern irrele-vante a garantia que vern da confirrnacao.

    Ha argumentos plausfveis deste tipo?Quanto a crenca baseada no testemunho dos sentidos, Descartes

    pretende encontrar urn born argumento com base numa suposta indistin-ciio entre vigflia e sonho. De facto, que garant ia temos de que as coisassensiveis que agora percepcionamos sao reais e nao simples ficcoes danossa imaginacao, tal como as que temos quando sonhamos? Contra ahipotese de agora sonharmos temos apenas uma forte conviccao de queestas coisas em torno de nos (e 0 nosso proprio corpo) existem em reali-dade fora da nossa mente e sao tal como as vemos e tocamos. Mas podefazer-se, a respeito dessa forte conviccao, esta pergunta inquietante: naosera esta conviccao que agora tenho acerca deste meu corpo e da reali-dade das coisas que me cercam exactamente identica a que tenho quandosonho? Nao sou, em sonhos, acometido pela mesma fortissima conviccaode que tudo 0 que imagino 6 real? E nao 6 isso uma completa ilusao?Como decidir agora se todas estas coisas existem verdadeiramente?Como decidir se nao sonhamos actualmente? Ha algum sinal distintivoque nos permita dizer com absoluta seguranca que agora nao sonhamos?E em que poderia consisti r esse sinal a nao ser nessa forte conviccao deque estamos agora acordados, conviccao que 6, no entanto, em tudo iguala que temos quando sonhamos?

    Bern ponderado, 0 argumento de Descartes 6 inatacavel, Para exami-nar toda a sua forca, podemos apresenta-Io da forma que se segue:

    Se ha uma qualquer sinal distintivo entre a vigf lia e 0 sonho que nosassegure indubitavelmente de que agora nao sonharnos, entao

    a) ou esse sinal esta tambern presente nos nossos sonhos,b) ou ele nao esta presente quando sonhamos.

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    Se est ivesse presente, entao saber iamos sempre que estamos a sonharquando realmente 0 estamos , pois bas tar-nos- ia prestar atencao a essesinal distintivo (qualque r que e le se ja) para saber imedia tamente queestamos a sonhar. Ora isso e fal so , ta l s inal nao esta presente nos nossossonhos, pois no sonho temos muitas vezes a ilusao de estarrnos despertos.

    Mas se nao esta presente, en tao nao poderemos reconhecer quesonhamos quando de facto 0 fazemos e, por i sso, tambern nao podemosafirmar com absoluta cer teza que agora nao sonhamos; se bem que acre -ditemos estar acordados.o "senti mento" de realidade e , assim, a lgo que pode acompanhartodos os nossos estados mentai s ( tanto na vigflia como no sonho) e nao hanenhum cri terio independente que nos permi ta , em cada caso, julgar comabsoluta certeza a respeito da sua validade.Qual e 0 exacto alcance deste argumento? A aplicacao das regras de

    diivida ensina-nos que devemos suspender 0 jufzo, ou seja, nao crer nemdeixar de crer na verdade de proposicoes como: "esta mesa e real", "estouagora nesta sala", etc.

    Mas e ele suficiente para que suspendamos a crenca na existencia deuma qualquer realidade acessivel pelos sentidos? De modo algum, porqueo proprio argumento do sonho se constroi com base na oposicao entre urnmundo ficcionado (sonhado) e urn mundo real.

    Ha, portanto, no argumento do sonho ainda qualquer coisa que per-manece certa. As coisas podem nao ser como aqui e agora as percepcio-namos, porque isto a que chamamos uma "percepcao" pode ser, na reali-dade, apenas a simples ficcao de uma mente sonhadora. Mas se ficciona-mos algo, e porque temos disso uma ideia, e essa ideia, porque a temos,tern de provir necessariamente de uma percepcao verdadeira anterior .Que fica, entao, ainda incolume depois do argumento do sonho? Justa-mente aquelas ideias mais simples sobre a natureza corporea em geral,ideias que, pel a sua simplicidade, ja nao podem ser entendidas comoresultado de uma cornposicao arbitraria da nossa imaginacao. Sao tais asideias de extensao, mimero, figura, lugar, movimento e todas as outrasque constituem 0 domfnio da aritmetica e da geometria.

    Dessas ideias temos nos urn conhecimento que nao depende da per-cepcao. De facto, objectos como 0 circulo, 0 quadrado, 0 ruimero, etc.,nao sao sentidos, mas sim concebidos. Eles sao conhecidos pelo entendi-mento, nao pela percepcao. E dar conta da sua existencia ou propriedadesnao e nunca tel ' uma evidencia sensivel, mas antes urna evidencia inte-lectual. Ora, justamente porque este conhecimento apela para uma evi-dencia intelectual, ele esta, assim, protegido de todas as diividas lancadassobre a fidedignidade do testemunho dos sentidos. A ciencia pura da

    Os Principios da Filosofia de Descartes

    natureza corporea que resiste ao argumento do sonho e, portanto, a cien-cia matematica, a qual e independente de quaJquer percepcao."E contra este residuo de certeza que Descartes faz intervi r 0 seusegundo argumento ceptico original: 0 argumento do deus enganador.

    Como combater, agora, a crenca irresistfvel acerca da verdade deproposicoes como "0 triangulo tern tres lados", "a extensao tern tresdimens5es no espaco", etc.? A estrategia de Descartes consiste em, ana-logamente ao argumento do sonho, lancar a suspei ta de urn erro incor-rigfvel que afectaria 0 normal exercfcio das nossas faculdades intelec-tuais. Essa razao de duvida e artif icial e remota, mas, segundo as regrasda diivida, ela e ainda uma razao suficiente para deterrninar uma suspen-sao da crenca na verdade de todos os conhecimentos maternaticos, Cifra--se ela em supor:

    a) um deus todo-poderoso;b) que me t ivesse criado tal como sou;c) e que me tivesse feito de tal modo que 0 sentimento de evidencia esti-vesse, em mim, associado ao falso e nao ao verdadeiro, de tal modoque todas as crencas nele baseadas ser iarn crencas dir ig idas para a fal -sidade.

    Esta "razao de duvidar", se bern que pouco provavel, e tao forte quepor ela caem definitivamente todas as crencas ainda associadas ao conhe-cimento baseado nas ideias matematicas. Nomeadamente:

    - que existe uma certa natureza corp6rea a que essas ideias se aplicam(poder ia ter sido c riado de tal modo que nao houvesse corpos fora demim, se bem que eu pensasse erradamente que existiam), e

    - que essas ide ias representam de te rminadas essencia s imutaveis ("0triangulo", "0 circulo", "0 ruirnero", etc .) que me e possivel conhecerindependentemente da existencia de uma qualquer natureza corporeafora de mim (poderia ter sido criado de tal modo que me enganassesempre, quando, por exemplo, conto os lados de um quadrado ou sim-plesmente penso que ha qualquer coisa como "urn quadrado"),

    Com esta hipotese do deus enganador, a diivida torna-se verdadei-ramente universal . Ela estende-se a todo 0 universo das nossas crencas,lancando uma diivida decisiva quer sobre a validade do testemunho dos

    18 Por "ciencia pura" da natureza corp6rea entende-se uma ciencia que determine quaisdevem ser os a tr ibutos essenciais dos corpos (a extensao e as propriedades decorrentesde forma, l uga r, movimen to , et c. ), ant es mesmo de se dec idi r se existem realmentecorpos e que corpos particulares existem na realidade.

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    sentidos, quer sobre a validade da evidencia intelectual. Descartes con-densa todas estas razoes de diivida (enos ocasionais dos sentidos e doraciocfnio, indistincao vigflia/sonho, deus enganador) na ficcao de umgenio maligno, sumamente poderoso e astuto, que me enganasse sempreque percepciono ou penso em alguma coisa, por mais simples ou evidenteque ela possa parecer.

    De acordo com esta hip6tese cartesiana de um genic maligno que,por assim dizer, inquinaria todas as faculdades cognitivas, poder-se-aantepor uma nova Regra as duas Regras de Duvida que foram acimaapresentadas. Ela estabelece 0 seguinte:

    Rl. Sempre que penso em p, devo pensar tambern que pode haver urngenic maligno que me engana sempre no meu pensamento de p.

    Vejamos, entao, como 0 exercfcio da duvida pode ser reconstruidopela aplicacao destas tres regras. Seja, por exemplo, a proposicao "0triangulo tem tres lados". De acordo com 0 que ficou di to, teriamos deescrever:

    Rl: Sempre que penso que 0 triangulo tern tres lados, devo tambern pen-sar que pode haver urn genic maligno enganando-me todas as vezesem que penso em tal.

    R2: A proposicao "0 tr iangulo tern tres lados '' sera uma crenca fi rme einabalavel se eu possuir nao s6 raz6es a seu favor (a respect iva evi-dencia intelec tual), mas tarnbem razoes que me permitam excluir apartida a existencia de urn genic maligno que sempre me enganequando penso em tal.

    R3: Ora como nao tenho nenhuma razao para excluir a hip6tese de urngenic maligno, ha entao uma razao para duvidar de que 0 triangulotern tres lados e 0 jufzo que 0 af irma deve ser, por isso, posto em sus-penso.

    Tal e 0 instrumento - poderoso e de aplicacao universal - da diividacartesiana.

    SEGUNDO CAPITULO

    A GENESE DO SABER

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    A - TEXTOS DE P RI NC iP IO S D A F IL O SO F IA

    VII. Nao podemos duvidar de que existimos quando duvidamos; eeste e 0pr ime iro conhecimento que obtemos f ilosofando por ordem.

    Assim, rejeitando todas aquelas coisas de que podemos duvidar dealgum modo, e ate mesmo imaginando que sao falsas, facilmente supomosque nao existe nenhum Deus, nenhum ceu, nenhuns corpos; e que nos mes-mos nao temos maos, nem pes, nem de resto corpo algum; mas nao assimque nada somos, nos que tais coisas pensamos: pois repugna que se admitaque aquele que pensa, no proprio momenta em que pensa, nao exista. E,por conseguinte, este conhecimento, eu penso, logo existo, e 0 primeiro emais certo de todos, que ocorre a quem quer que filosofa por ordem.

    VIII. A partir daqui conhece-se a distincao entre a alma e 0 corpo,ou entre a coisa pensante e a coisa corporea.E esta e a melhor via para reconhecer a natureza da mente e a dis t in-

    9aO entre ela e 0 corpo. Pois, examinando 0 que somos nos, que supomosserem falsas todas aquelas coisas que sao diferentes de nos, vemos clara-mente que a nossa natureza nao pertence nenhuma extensao, nem figura,nem movimento local, nem algo semelhante que seja atribufvel ao corpo,mas somente 0 pens amen to, 0 qual, por conseguinte, e conhecido antes emais certamente do que alguma coisa corporea; pois este pensamento ja 0percepc ionamos, ao passo que a inda duvidamos das outr as coisas.

    IX. 0 que e 0 pensamento.Pelo termo pensamento entendo todas aquelas coisas que OCOITem

    em nos quando estamos conscientes, na medida em que ha em nos cons-ciencia delas. E assim nao so entender, querer, imaginar, mas tambernsentir e aqui 0mesmo que pensar. Pois se disser eu vejo ou eu ando, logoexisto, e en t ender isto da visao ou do andar, que se refere ao corpo, a con-clusao nao e absolutamente certa; porque, como muitas vezes acontecenos sonhos, posso julgar que vejo, ou que ando, embora nao abra os olhose nao me mova localmente, e ate talvez embora nao tenha nenhum corpo.Mas e inteiramente certa se 0 en t ender da propria sensacao ou da cons-ciencia de ver ou andar, dado que nesse caso se refere a mente, a qualsomente sente ou pensa que ve ou caminha.

    Principios da Filosofia, Primeira Parte.

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    B - COMENTAruoOs artigos VII-XII nao sao ainda 0 momenta em que a diivida uni-

    versal e superada e em que se constitui uma ciencia certa da verdade. Adiivida conduziu a eliminacao de todas as crencas. E como ela se fezpondo em causa as pr6prias fontes de onde brotava tudo aquilo que ante-riorrnente se cria ser verdadeiro, dela resultou nao s6 a eliminacao decada uma das nossas crencas, mas tarnbem a desaparicao de qualquercriteria valido para 0 reconhecimento da verdade.

    Se bem que os artigos VII-XII nao permitam superar a duvida, elessao consagrados a tentativa de encontrar, dentro da pr6pria diivida, umaprimeira certeza inabalavel, Uma certeza respeitante nao ainda as coisasde que duvidamos, mas a n6s mesmos, que del a s duvidamos, e que, porisso, sempre sabemos que somos ou exist imos.E esta tentativa de encontrar no seio da pr6pria diivida uma certezaindubitavel que merece atenta consideracao. Nomeadamente, nos seguin-tes pontos:

    I - 0 estabelecimento de uma primeira certeza a partir do exercicioda duvida.

    II - 0 sentido da proposicao cartesiana eu penso, logo existo.III - Que e esse eu que sabe de modo certo da sua pr6pria existencia.

    I - 0 estabelecirnento de urna prirneira certeza a partir do exercicioda diividaDe acordo com 0 que arras ficou dito, sabemos que afirmacoes como1.Esta mesa e rectangular2. Os COl'POS sao extensos

    podem ser falsas, pOl'que, dada a suposicao do genio maligno, nao pode-mos acreditar plenamente nem no testemunho dos sentidos nem na evi-dencia intelectual pelas quais, nos exemplos dados, afirmamos que amesa (est a) e rectangular ou que os COl 'pOS(em gera l) sao extensos.

    Mas sera que afirmacoes como1.1 Eu penso que esta mesa e rectangular2.1 Eu penso que os corpos sao extensos

    poderao ainda ser falsas pelas mesmas raziies que nos levam a duvidar daverdade de 1 e 2?

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    Note-se que a expressao "eu penso que ... " nao significa qualquercoisa como "eu sou da opiniiio que ... " ou "eu julgo que ...". A expressao"eu penso que ... " nao diz respeito a uma atitude tom ada relat ivamente aoconteudo proposicional do membro "que p" (por exemplo: "que a mesa erectangular") e aos objectos que sao referidos na proposicao p ("a mesa"ou "os COl'pOSem geral"). Se a expressao fosse assim interpretada, 1.1 e2.1 diriam apenas que niio estamos certos de que as coisas nelas afirma-das sejam verdadeiras. Sendo entendida deste modo, a expressao "eupenso que ... " exprimiria apenas uma tomada de posiciio relativamente aoque esta dito, ou seja, relativamente ao conteudo das afirrnacoes 1 e 2.Nesse sentido, a anteposicao do "eu penso que ... " nada adiantaria, por-tanto, relativamente a situacao a que nos havia conduzido a duvidadesenvolvida nos pr imeiros art igos dos Principios.

    Mas 0 sentido desta expressao e completamente diverso. Ela nao e aafirmacao de uma opiniao minha sobre determinados conteiidos propos i-cionais ("que a mesa e rectangular", "que os corpos sao extensos") esobre se ha ou nao objectos a que eles se refiram (a mesa, a figura, osCOl'pOS,a extensao). 0 que se passa com a expressao "ell penso que ..." eantes a afirrnacao da existencia de 1 1 7 1 pensamento meu a respeito dessasmesmas proposicoes e dos objectos a que se referem. Ora, por mais duvi-doso que seja que esta mesa exista e seja rectangular, por mais duvidosoque seja a existencia de COl'pOS,da extensao e do mundo no seu todo, e noentanto verdade que eu penso isso (que esta dito nas proposicoes) a res-peito de todas essas coisas e que jamais poderei por em causa a existenciaactual deste meu pensamento.

    Ha boas razoes para supor que desta evidencia poderemos retiraruma afirrnacao que sera indestrutivel por qualquer argumento ceptico. Ejustamente esse 0 designio de Descartes. Na verdade, se duvido que amesa existe, entao e porque penso na mesa e, se nela penso, e porque eupr6prio existo enquanto sujeito dos meus pensamentos. De facto, se naoexistisse, como poderia, entao, pensar na mesa ou em qualquer outracoisa e duvidar da verdade de tudo aquilo em que penso? Pelo argumentodo genic maligno, poderei sempre duvidar que 0pensado seja verdadeiro.Mas nao poderei jamais duvidar da verdade de que penso. A proposicaoque 0 afirma, a proposicao ell penso, logo existo sera, entao, absoluta-mente certa e indubitavel, mesmo que todos os meus pensamentos acercadas coisas diferentes de mim possam ser duvidosos ou mesmo inteira-mente falsos.

    Encontramos, aqui, um tipo inteiramente novo de evidencia, umaevidencia que diz respeito ao modo como eu estou para mim pr6prio pre-sente, ao modo como estou consciente de mim e de cada um dos meus

    . . . .

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    estados mentais ou pensamentos. Na evidencia que e propria dos sentidosou da intuicao intelectual, a lguma coisa se torna para nos presente e e pOI'n6s afirmada como existente. E assim que a inforrnacao dos sentidos nosapresenta COl-pOS,e COl'pOSdeterminados desta ou daquela maneira. Eassim que, na concepcao pura, se nos torna presente algo como 0 trian-gulo, 0 cfrculo, 0 quadrado, 0mimero, etc., e, em cada acto de concepcao,nao apenas nos e dado qualquer coisa como sendo, mas ela surge-nos afdeterminada de uma certa maneira: como sendo uma figura de tres lados,uma quantidade definida e assim sucessivamente. No entanto, de todasessas coisas que assim se tornam para nos presentes, podemos pura esimplesmente considerar essa mesma evidencia como uma pura ilusiio.Foi isso que as regras de duvida nos ensinaram. No proprio acto em quevemos isto e aquilo, podemos ao mesmo tempo pensar que essas coisasque vemos sao todas falsas, pois podemos supor que elas nao existemverdadeiramente ou que nos enganamos ao determinar as suas proprieda-des. Tal e, de facto, 0 sentido e a forca do argumento do genic maligno.

    Mas, a respei to da auto-evidencia da nossa propria existencia, estaduvida ja nao e possivel. Podemos certamente pensar na possibilidade deque nao existfssemos. A nossa nao existencia e inteiramente concebivel,pois nao somos um ser que deva necessar iamente existir ou que so possaser pensado como existente. Mas se, porem, existimos, entao temos paran6s proprios uma percepciio evidente dessa nossa existencia, e essa evi-dencia pela qual estamos para nos mesmos presentes nao pode ja ser pen-sada como falsa, como podendo nao ser mais que uma pura e simples ilu-sao. Se vemos um COl-pO,0 argumento da diivida ensina-nos que aquiloque vemos pode nao existir , ensina-nos, portanto, que a evidencia da pre-senca das coisas corp6reas pode ser uma evidencia enganadora (portanto,nao uma verdadeira evidencia, mas uma simples aparencia ou ilusao),Mas se a nossa propria existencia esta para n6s mesmos dada na auto--evidencia , temos entao, ai , uma existencia cuja doacao nao pode ser pen-sada como falsa, pois e inconcebivel que nao sejamos no proprio momen-to em que temos consciencia de ser. 0 acto de nos pensarmos como naoexistentes e ja a contraprova da nossa existencia , pois se isso pensamos,sabemos que 0 pensamos e, portanto, sabemos que somos. POI' i sso,embora nao existamos necessariamente, se existimos, porern, a auto-evi-dencia dessa nossa existencia nao pode ser concebida como falsa ouenganadora no pr6prio momenta em que se produz. Essa auto-evidenciasera sempre veritativa. Ela e uma efectiva apariciio (de mim a mim mes-mo) e nunca uma simples aparencia.

    Em qualquer pensamento ha , portanto, uma dupla consciencia e umduplo saber. Por um lado, ha consciencia de um objecto - da mesa, da

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    casa, do triangulo ou do circulo. POI'outro lado, ha consciencia de quepensamos em cada uma dessas coisas. E se 0 nosso saber a respei to detais coisas pode ser sempre falso, como nos ensina a hipotese do genicmaligno, 0 saber reflexivo a respeito de nos mesmos, porque nao estasituado no mesmo plano do dos outros objectos, tem pOI'isso mesmo umtipo de evidencia que lhes e sempre superior.

    Ha, pois, fortes razoes para supor que esta certeza que temos dosnossos proprios pensamentos sera inabaldvel por qualquer argumentoceptico. E ao contrario do saber acerca das coisas di ferentes de nos, quepode ser sempre falso e incorrigfvel, 0 saber que temos a respeito de nosmesmos e da nossa existencia sera um saber sempre verdadeiro e infalf -vel.

    Tal e 0 argumento pelo qual Descartes pretende mostrar que, mesmona diivida mais universal , ha sempre um saber acerca de n6s mesmos deque podemos estar absolutamente certos. E esse saber que se exprime emproposicoes como "eu penso que a mesa e rectangular", e semelhantes. Eesse saber que conduz a afirrnacao de que, embora nada saibamos acercada existencia fora de nos de algo como uma mesa e, em geral, de ummundo, sabemos, no entanto, que necessariamente existimos se e quandopensamos em alguma coisa. E precisamente esse saber que conduz Des-cartes a afirrnacao do principio geral eu penso, logo existo como primeirae mais fundamental verdade da ciencia que se procura.II - 0 sentido da proposicao cartesiana ell penso, logo existo

    Uma maneira de tornar compreensfvel 0 caracter excepcional daauto-evidencia do eu sou consiste em afastar a tendencia para interpretaresta proposicao como uma inferencia resultante de um raciocinio dedu-tivo. Poderia, de facto, parecer a primeira vista que a ligacao entre 0 pen-samento e a existencia , sendo feitas pela expressao "logo" (ergo), resultade uma qualquer deducao a partir de evidencias ainda mais primitivas.

    Esta interpretacao foi proposta no tempo de Descartes. De acordocom ela, a proposicao eu penso, logo existo seria apenas a conclusao doseguinte raciocinio mais vasto, que nela estaria implicitamente contido:

    Se 0 nada nao pode tel' propriedades,entao, para ter uma qualquer propriedade e preciso ser.Ora eu penso (ou eu tenho a propriedade de pensar) ,logo eu sou (como ser pensante ou que tern a propriedade de pensar) .

    Descartes sempre negou, porern, que tal raciocinio dedutivo pudesseser uma interpretacao aceitavel do sentido da sua proposicao. E fe-lo com

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    inteira razao. E que, no caso de esta interpre tacao silogistica ser correcta(na verdade, nao ha aqui um silogismo no sentido estrito do termo), asconsequencias daf resultantes seriam ruinosas para 0 que Descartes pre-tende estabelecer.E facil ver porque. Se 0 cogito'? fosse deduzido de outras propos i-coes mais gerais e evidentes, entao seriam essas proposicoes as primeirasverdades de onde a verdade do cog ito dependeria. Ora como essas propo-sicoes gera is ou nociies comunsP porque tern um tipo de evidencia seme-lhante ao das definicoes maternaticas, estao ainda ao alcance do argu-mento do genic maligno, seguir-se-ia entao que 0 proprio cogito, depen-den do de nocoes comuns em si mesmas duvidosas, seria ele proprio umaproposicao duvidosa e nao ja primeiro principio para a edificacao de umaciencia certa.Contra esta interpretacao silogfstica, Descartes utilizou dois argu-mentos.o primeiro foi que as nocoes comuns nao se conhecem directamente,mas sempre a partir do conhecimento particular de certos objectos. Naverdade, se nenhuma coisa determinada houvesse em que pudessernospensar, tambern nao conheceriamos nenhuma nocao comum ou proposi-

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    poderiamos alguma vez supor que nao somos nada quando pensamos ser?Pois nao e 0 pensamento de que nao somos um pensamento contradito-rio? Ao nos pensarmos como nao existentes nao estamos a pensar isso e,portanto, a mostrar de um modo evidente para nos proprios que somosalgo e nao nada?

    A evidencia aqui presente parece ser, portanto, absolutamente ina-balavel, Mas se-lo-a verdadeiramente? Da-nos 0 argumento do genicmaligno ainda a lguma razao de duvida suplementa r que possa obscureceresta evidencia e abalar a nossa crenca? Poderiamos, de facto, indo paraalem de Descarte s, prolongar 0 argumento do genic maligno e extrairdele uma ultima razao de duvida que fosse mais poderosa ainda que acer teza da nossa propria existencia?

    Como e facil de compreender, tratar-se-ia, nesse casa, de uma razaointeiramente nova, pois ja nao se trata de saber se as coisas pensadasexistem ou nao na realidade (isto e , "fora" do pensamento), uma vez que,neste case, a unica realidade em questao e 0 proprio pensamento . Vendocom cuidado esta possfvel extensao do argumento do genic maligno demodo a torna-Io ainda mais poderoso que a auto-evidencia do eu sou,parece ser possfvel encontrar ainda uma forma de 0 genic maligno intro-duzir alguma falsidade neste saber evidente acerca de nos proprios.Suponha- se, para tanto, a situacao desc rita pe l a s proposicoes seguintes:

    - Porque todos os nossos pensamentos se desenrolam segundo a forma deuma sucessao temporal,

    - para sabe r que pensamos e preciso que prirneiro tenhamos pensado emqualquer coisa.

    - Ora se , quando dizemos eu penso, isso significa que estamos conscien-tes de termos pensado, ja que estamos a ref lect ir sobre um pensamentoanterior acabado de passar,

    - podemos, entao, admitir a hipote se que um deus enganador nos tenhacriado nes te preci so ins tante, pondo em nos uma falsa memoria acercade pensamentos passados que, porern, nunca existiram realmente.

    - Ass im, sempre que dissessernos ell penso, enganar-nos-Iarnos certa-mente, porque 0 pensamento a cuja existencia nos estarfamos a refer irnunca teria s ido real, mas ser ia apenas uma ilusao proveniente de umafalsa memoria a respeito de um nosso passado inexistente.

    E este derradeiro argumento suficientemente poderoso para obscure-cer a evidencia do cogito?

    Em certa medida, ele permanece impotente perante a forca do eusou, visto que, mesmo que me engane acerca do meu passado, nao hadiivida de que, se me engano, entao sou qualquer coisa e nao nada. Noentanto, a situacao nao e tao clara quanta se possa pensar a primeira vista.

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    Pois que poderia entao dizer de mim? Se todo 0 meu passado po d e serfalso, mesmo o,passado mais proximo, terei ainda algum meio para meautoconhecer? E diffcil afirma-lo, porque mesmo esse residue ultimo deevidencia que me permite ainda e sempre afirmar que sou f ica, aqui,seriamente afectado. Na verdade, se as premiss as do argumento sao vali-das, quando digo eu sou estou a referir-me a consc iencia de tel' pensadoalgo. Mas se esse pensamento passado e falso, a afirmacao eu sou refere--se a urn momenta em que eu nao existia, pois essa memoria e i lusoria, esera, portanto, uma proposicao falsa. Diremos que ela permanece aindaverdadeira porque neste momenta em que a afirmo eu existo com toda acerteza? Mas, se 0 eu sou esta sempre re fe rido a urn pensamento acabadode passar, este momenta so sera afirmado num pensamento posterior e,por isso mesmo, nascera a proposito dele 0 problema inic ial: pode aeon-tecer que tenha sido agora mesmo criado com a falsa memoria de tel' pen-sado que tinha um falso passado e tel' pensado, pOI' causa disso, que eu,que assim me enganava acerca de mim proprio, era naquele momentoqualquer coisa e nao nada. Se, chegados a este ponto, fizermos de novo 0mesmo raciocinio inicial ("mas neste mom en t o eu existo com certeza ... "),o mesmo argumento se produzira, e assim ao infinito.

    Vemos, portanto, que, se 0 argumento acima exposto fosse aceite, apropria certeza do eu sou ficaria , pOI' assim dize r, paralisada . Dela nadamais se poderia seguir porque 0 movimento que a estabelece estariaenvolvido numa regressao ao infinito de afirrnacao, negacao, nova afir-macae, nova negacao, e assim sucessivamente. Deste modo, nenhumaafirrnacao se estabilizaria de maneira a termos um ponto de partida fixo einabalavel,

    Como e visfvel, terfamos aqui um argumento bastante serio, naofosse 0 caso de Descartes, em bora nao 0 considerando expressamente nosPrincipios, contestar a verdade das duas premissas em que se apoia. Defacto, os nossos pensamentos desenrolam-se no tempo. Verificamos queeles se sucedem uns aos outros. 0 eu penso tem algo que ver com 0 exer-cicio da memoria. Mas seria, no en tanto, um erro supor que 0 cogito, aconsciencia de pensar, se refere a um pens amen to anterior, ja passado, enao ao proprio pensamento ainda actualmente presente. 0 cogito e sem-pre consciencia de pensar, nao consciencia de tel' pens ado. Oucarnos 0que sobre isto tem a dizer 0 proprio Descarte s. Nas Respostas as QuartasObjeccoes pode ler-se: Nao pode haver em nos nenhum pensamento doqual nao estejamos conscientes no mesmo momento em que ele esta emnos.22 E, ainda mais claramente, 0 problema e abordado num encontrocom Burman: Estar consciente e, decerto, pensar e reflectir sobre 0 seu

    22 Quarto: Respousiones, AT VII, p. 246 .

    r

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    pensamento; mas e falso que isso nao se possa fazer enquanto permaneceo pensamento anterior, pois, como ja vimos, a alma pode pensar variascoisas ao mesmo tempo e perseverar no seu pensamento, reflectir sobreos seus pensamentos todas as vezes que the apraz e tel' assim conscienciade cada um delesx.Po cogito resiste, assim, a este derradeiro argumento do genic malig-no porque a sua verdade nao depende em absoluto da memoria e da nossaexistencia passada (ainda duvidosa) . Quando dizemos cog i to - eu penso -,r ef erimo-nos apenas ao nosso pensamento actua l, 0 qual e uma realidadeque nao poderiamos por em diivida sem tambem por em duvida a nossapropria existencia no preciso momenta em que dizemos eu penso, umacoisa tao absurda que ninguem ousaria afirma-la. A proposicao eu pensonao pode ser, assim, interpretada como consciencia de tel' pensado. Ela esempre consc iencia de estar a pensar.

    Para vermos bem como esta evidencia do cogito e indestru tive l ecomo a crenca que the esta associada e inabalavel, nada melhor do quesubmete -la as regras de diivida arras estabelecidas.

    De acordo com elas, teriamos agora de esc rever:R I. Sem pre que considero que ell penso, logo existo, d ev o ta mb er n c on si -

    derar que po d e haver urn genic maligno que me engana sempre quepenso em tal.R 2. A p ro po si ca o ell penso, logo existo se ra u ma c re n~ a firrn e e in ab ala -

    vel (certa) se eu possuir nao so razoes a seu favor, mas tambernraz 6es que m e perm itam excluir a partida a existencia de LII11 genicm aligno que sernpre m e engane quando penso em tal.Ora, se bem que nao possa ainda excluir a hipotese de existencia deum genic maligno e, portanto, a possibilidade de ele sernpre meenganar (portanto, a hipotese de um erro incorrigfvel nas m inhasf ac ul da de s c og ni tiv as ), a v er da de e que, se m e engana, entao e porqueeu penso e, se penso, entao tam bern existo, pelo menos pelo tem poem que duvide ou pense em qualquer coisa. Acerca desta m inhacrenca tenho, por conseguinte, nao so um argum ento a seu favor, m astam bern raz6es que m e perm item excluir a p ar tid a c om o i nf un da do sto do s o s p os siv eis a rg um en to s co ntra a su a v erd ad e.

    R 3. S en do a p ro po sica o el l penso, logo existo um a p ro po si ca o sempreverdadeira, quer haja ou nao urn genic m aligno, quer ele me enganeou nao, nao tenho, pO I' i sso, nenhum a raz ao para del a duvidar e devo,p or ta nto , a dr nit i-l a c om o u rn a c re nc a certa e inabaldvel.

    23 Respons iones Rena ti Des Car les ad Quasdam Di ffi cul ta tes ex Medit ati ou ibus Eju s,e tc ., a b I ps o Ha us ta e, AT Y, p. 149.

    Os Prlncipios da Filosofia de Descartes

    Repare-se bem na situacao muito particular que encontramos aqui.A proposicao eu penso, logo existo nao resistiu a R2 porque se tenha

    ja mostrado que nao existe urn genic maligno. Essa hipotese permanecea inda de pe. Por enquanto, e a inda impossfvel a fasta -la. So que a proposi-9ao em causa e dotada de uma evidencia tal que, mesmo perante essahipotese, ela continua a ser sempre verdadeira. A evidencia do ell sou e,por tanto, a inda mais pode rosa que 0 proprio criterio de diivida. Mesmo namaxima intensidade da diivida, a evidencia em questao continua a verifi-car-se, POI' conseguinte, 0 criterio de diivida nao a pode destruir, pois elaesta acima dele.

    Esta excepcao aber ta pe la proposicao eu pen so, logo existo mostra,assim, 0 caracter excepcional da certeza que the esta associ ada, caracteresse que nao se verifica no caso de todas as outras proposicoes, as quaiscontinuarao, por isso mesmo, a ser tidas como duvidosas. A respeito des-sas outras proposicoes, ha , porem, a partir de agora, urn meio para asconverter em proposicoes certas e indubitaveis, Basta que se desloque acrenca, de tal modo que ela incida nao no que e afi rmado (por exemplo ,que "os corpos sao extensos"), mas no nosso proprio estado mentalenvolvido no pensamento dessa proposicao ("eu penso que os corpos saoextensos"). Assim, se uma qua lquer proposicao p e duvidosa, dela pode-ra, no entanto, ser sempre extrafda a proposicao certa e indubitavel Eupenso que p.

    Podemos chamar a este procedimento Regra da Reducao ao Indubi-tavel, A primeira vista, ele parece ser urn procedimento esteril, que naoaumenta em nada 0 nosso conhec imento. Veremos, no entanto, a f ecundaaplicacao que dele Descartes nos ensina a fazer.

    III - Que e esse eu que sabe de modo certo da sua propria existencia?Os artigos VIII-XII ocupam-se desta questao. E e aqui que en con-

    tramos algumas das teses mais caracterfsticas - e tambern mais proble-maticas - de Descartes. 0 artigo VIII estabelece a distincao entre a almae 0 corpo. 0 artigo IX define 0 que se entende pOI' pensamento. 0 artigoX justifica 0 primado da intuicao relativamente as definicoes logicas deconceitos no conhecimento. 0 artigo XI estabelece a maior clareza doconhecimento da alma relativamente ao conhecimento de todas as outrascoisas. Finalmente, e no artigo XII que se levanta a questao crucial: a quenos estamos verdadeiramente a referir sempre que dizemos "eu"?

    Pela sua importancia extrema, ha que ponderar cuidadosa e separa-damente cada urn destes artigos (com excepcao do artigo X).

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    Urn problema muito delicado encontra-se logo no artigo VIII,Descartes pretende concentrar-se na evidencia da sua propria exis-

    tencia tal como ela resulta da diivida e, com base nela, determinar cominteira certeza 0 que pertence a sua propria natureza.o seu argumento e basicamente 0 seguinte:

    1. dad o qu e eu posso duv id ar da ex istencia d o m eu corp o2. e dado que n ao posso d uvidar da existencia do m eu pensam ento,3. segue-se que a minha ex is te n ci a ndo perle/Ice n ad a q ue s ej a a tr ib ui ve l

    a o c orp o, m as a pe na s 0 qu e e a tr ib uf ve l a o p en sam en to .Varias coisas sao problernaticas neste raciocinio.Para bern 0 vermos, sera util servir-nos de uma analogia. Imagine-

    mos urn detective investigando 0 autor de urn crime. POl' exemplo, urnassassfnio. Suponhamos que tal detective, examinando os possiveis sus-peitos, ao chegar a Francisco, conhecido de todos pelo seu comportamen-to social exemplar , faz ia a seu respei to 0 seguinte raciocinio:

    1,1 d ado que eu posso du vidar d a existencia de com portam entos h om ici-d as e m F ra nc is co

    2.1 e dado que eu nao posso duvidar da existencia de com portam entoss oc ia ve is em F ra nc is co ,3 .1 segue-se que a Francisco nao pertence nada que seja atribuivel a

    co mportam entos ho micidas (por exem plo, este crim e), m as apenas 0qu e e a tr ib uf ve l a c om po rta me nt os s oc ia ve is ,

    Todos diriam que este detective tinha errado a profissaol E que eleda como certo aquilo que tern de ser provado. Para que 0 seu raciociniofosse legftimo, ele teria previamente de estar certo de que:

    a) quando concebe Francisco com o tendo com portam entos sociaveis,isso e uma con cep cao cotnpleta a re sp eito d aq uilo q ue F ra nc isc o e ;

    b) ter com portam entos sociaveis e ter cornportam entos hom icidas saoduas coisas que se exclueni mutuamente n um m esm o sujeito, nuncapodend o coexistir ou ser um a delas a face oculta da ou tra.

    Ora estas duas suposicoes nao podem ser admitidas nem tidas porcertas com base no argumento de que, para ele, detective, e segundo osconhecimentos actuais de que dispoe, conceber Francisco como socia vele distinto de concebe-lo como homicida, e que pode concebe-Io comosociavel sem que isso tenha de implicar concebe-Io tarnbem como homi-cida. Na verdade, 0 que 0 nosso detective teria de perguntar a si proprioera se estes seus conhecimentos actuais sao verdadeiros e se lhe e pos-

    Os Princfpios da Filosofia de Descartes 37

    sfvel, por conseguinte, dizer com base neles coisas absolutamente certas arespeito do que Francisco na realidade e.

    Mudando 0 que deve ser mudado, e precisamente este 0 passo em fal-so de Descartes. As premissas 1 e 2 do argumento sao inatacaveis, poisapenas resumem todo 0 percurso anterior , da di ivida ate ao c og i to , Mas queeu percepcione indubitavelmente em mim apenas 0 pensamento nao sesegue que eu seja apenas pensamento e, portanto, que a minha naturezaniio pertence nenhuma extensao, nem movimento local, nem algo seme-lhante que seja atribufvel ao COl-PO,como Descartes pretende concluir.w

    E se Descartes tenta justificar esta passagem dizendo que se concebeagora como pensamento e que, para isso, nao precis a de se concebercomo urn corpo, pelo que as ideias de pensamento e de extensao sao dis-tintas, falta-lhe ainda, como ao nosso detective, provar que essas ideias,sendo distintas, correspondem tarnbem a coisas separadas, nao podendonunca coexistir ou estar de tal modo nele mesmo ligadas que 0 pensa-mento seja simples mente a face visivel ou 0 fenomeno de certos movi-mentos corporais que lhe sao ainda desconhecidos.

    Apesar de tudo, este ilogismo nao compromete a coerencia global daargumentacao cartesiana, E que, neste ponto preciso da ordem das razoes,Descartes nao esta ainda interessado em provar que a alma e uma subs-tancia realmente separada do corpo. Basta-lhe, por agora, mostrar que 0eu que afirma a sua existencia certa a partir do exercicio da diivida a simesmo se apreende como pensamento, e que a ideia de pens amen to naoimplica por si mesma nada que seja relativo a ideia de corpo, sendo porisso del a distinta, embora de que as ideias de corpo e pens amen to sejamdistintas nao se possa deduzir ainda que a subs tan c ia que pens a tenha deser separada da substancia que tern extensao.??

    Rescrevamos entao a conclusao 3 de acordo com 0 que e legft imoconcluir das premissas 1 e 2:

    1. dado que eu posso duvidar da existencia do m eu corpo.2. e dado que nao posso d uvidar d a existencia do m eu pensam en to,3 ' .segue-se que s6 e absolutamente certo acerca de m im mesmo tudoaquilo q ue e atribuivel ao pensam ento, pelo que a) 0 pensamento e

    conhecido primeiro qu e 0 corpo e b) a ideia pel a qual concebo a m in han at ur ez a p en sa nt e e u m a i de ia distinta d a i de ia d e e xt en sa o.

    26 Principia Philosoph ice, ar t. VI II , AT VIII- I, p . 7,27 A prova da distincao real da a lma e do co rpo imp li ca 0 axioma "tudo 0 que pode ser

    pensado separadamente pode existir separadamente", Esta passagem do pensamento 11exi stencia (a s co isas sao tai s como as pensamos: se penso a a lma como separada docorpo, entao ela Ii na realidade uma coisa separada do corpo) depende da prova daexistencia de Deus, Veremos mais 11rente esta questao.

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    Mas que e pensar? Que e que eu afirmo com certeza acerca de mimmesmo ao afirrnar que sou algo que pensa?E a esta pergunta que responde 0 artigo IX.

    A questao de Descartes consiste , no fundo, em determinar a extensiiodo conceito de "pensamento" (cogitatio), de modo a que a proposicao eupenso, logo existo possa ser sucessivamente rescrita de uma maneira talque permaneca ainda uma certeza inabalavel perante todas as razoes deduvidar.PDe facto, tudo 0 que puder ser inclufdo na extensao do concei to depensamento, ao mesmo tempo que aurnentara 0 nosso conhecimento con-creto acerca dos varies modos do pensar, continuara a engendrar expres-s6es tao certas quanta a proposicao inicial , porque se tratara, entao, ape-nas de ir substituindo a expressao generic a "eu pen so" por cada umdesses modos especfficos ou maneiras divers as de pensar.

    De que criterios nos devemos socorrer para efectuar correctamenteesta substituicao? Que e precisamente "pensar"?

    Para la da clausula ja conhecida de que "pensamento" e "corpo" saoideias distintas, pelo que nada e atribuivel ao pensamento que suponha aideia de corpo, e inversamente, Descartes propoe dois criterios adicionaispara garantir a verdade dessa substituicao, Eles consistem em definir demodo positivo aquilo que genericamente se entende por "pensar" na pro-posicao eu penso, de modo a que, em cada caso, se possa verificar quecoisas podem ser com verdade entendidas como especificacoes da ideiade pensamento, gerando proposicoes tao certas quanta a inicial.

    Segundo esses criterios complementares do artigo IX, "pensar" sig-nifica:

    a ) Todas aquela s coisas que OCOITemem n6s quando estamos cons-cientes;

    b) Na medida em que h a em n6s consciencia dessas coisas-.t?A estes criterios enunciados em a) e b), juntamente com a tese da

    distincao (alma/corpo), chamaremos doravante Regras para a Extensao doAutoconhecimento. Vejamos agora 0 modo como estas regras funcionamem concreto.28 Por "extensao" de um conceito ou ideia entenda-se aqui, segundo a doutrina deArnauld e Nicole, contemporiineos de Descartes, os sujei tos a que essa ide ia convem,a que se chama tambern os "inferiores" de um termo geral que, a seu respeito, echamado "superior", como a ideia do tri iingulo em geral se estende a todas as especiesdiversas de t ri iingulos (Arnauld et Nicole, La logique 01 1 "art de penser, PremierePartie. Chap. VI).

    29 Principios da Filosofia, AT VIII-I, p. 7.

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    Tomemos para isso 0 caso mais complicado de certos estados cujaat ribuicao ao corpo ou ao pensamento e amblgua e geradora de confu-s6es. De acordo com 0 criterio a) tomado isoladamente, a expressao "eupenso" poderia ser substitufda por express6es como "eu vejo" ou "euando", porque tais coisas, manifestamente, ocorrern em n6s quando esta-mos conscientes. Assim, numa primeira aproxirnacao, ser-nos-ia Ifcitoescrever:

    1.Eu vejo, logo existo2 . Eu ando, logo existo

    No entanto, de acordo com a tese da distincao, estas proposicoesdevem ser rejeitadas na forma em que aqui se apresentam. Porque nelasse afirmam os jactos de ver ou de andar, factos que sao em si mesmosduvidosos dado que supoern a crenca na existencia do corpo e dos seusmovimentos, elas devem ser liminarmente exclufdas da ideia de pensa-mento.

    Alern do mais, elas ofendem igualmente 0 criterio estabelecido emb), dado que a ocorrencia desses movimentos e tambern concebfvel semque haja deles uma qualquer consciencia. Um sonarnbulo anda sern quetenha de possuir uma consciencia expressa de andar, porque a sua cons-ciencia pode estar nesse momenta voltada para urn mundo completa-mente imaginario. Do mesmo modo, estando n6s, por exemplo, absorvi-dos por certos pensamentos que ocupam completamente 0 campo danossa atencao, pode acontecer que os nossos olhos, sempre abertos, con-tinuem fisicamente aver, embora n6s nao tenhamos nesse momentaconsciencia nem de vermos nem daquilo que vemos. "Andar", "ver", etarnbem todas as coisas semelhantes que OCOlTemem n6s quando estamosconscientes, podem, no entanto, ocorrer maquinalmente sem que esteja-mos delas conscientes, ou mesmo, no caso extremo, quando a nossaconsciencia pura e simplesmente se dissipou.t"30 Que retir ando a consciencia ou 0 pensarnento, todas as funcoe s vit ais con ti nuem arealizar-se , sendo por isso os corpos vivos maquinas extremarnente perfeitas, e a intui-9ao de Descar tes nas suas pesqu isas fi siol 6g icas . Veja -se apenas 0 seu arnbiciosoprogram a no Tratado do Homem: [... J todas as funcoes que eu atr ibuo a esta rnaquina,como a digestao dos alimentos, 0 batimento do COJ"a9aoe das arterias, a alimentacao ecrescimen to dos mernb ros, a respir acao , a v igi lia e 0 sonho; a recepcao da luz, dossons, dos odores, dos gostos, do calor e outras tais qualidades nos orgaos dos sentidosexter iores; a impressao das suas ide ias no 6rgao do sentido comum e da irnaginacao, aretencao da irnpressao destas ideias na memoria; os movimentos interiores dos apetitese das paixoes ; e, por f im, os mov imen tos ex ternos de todos os rnembros, que seguemtao a p rop6sito tan to as accoes dos obje cto s que se ap resen tam aos sent idos , como aspaixoes e as impressoes que se encontram na mem6ria , que eles imi tam 0 rnais perfei-

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    Mas 0 que e importante para Descartes e que, se fizermos intervirconjugadamente os criterios a) e b), poderemos sempre recuperar dessasproposicoes algo indubitavel, na medida em que se refere apenas ao pen-samento. Na verdade, que sao "ver", "andar", nao apenas enquanto ocor-rem em nos quando estamos (ou nao) conscientes, mas quando ocorremem nos n a p r ec is a medida em que estamos deles conscientes? Como sedisse, podemos "ver" fisicamente a cor vermelha sem que estejamosexpressamente conscientes de a vel '. A nossa atencao pode estar voltadapara outra coisa. Mas a este sentido estri tamente ffsico e fi siologico davisao opoe-se a sensaciio de vermelho, enquanto ela e uma conscienciaactual de vel 'uma determinada cor. Ora se, mesmo que nao 0 notemos, osnossos orgaos dos sentidos podem continual' a desempenhar a sua funcao,a sensaciio em si mesma considerada e, ao contrario, algo que so podeexistir na medida em que haja dela uma consciencia expressa. Mais claraainda e a si tuacao no caso da dor. A lesao corporal que a engendra podesempre existir. Contudo, se nao tivermos consciencia da dol', se nao asentinnos, ela pura e simplesmente nao existira para nos. So M dol'enquanto ha consciencia ou sensacao de dor. Uma dol ' tuio consciente euma dor inexistente.Que dizer, entao, destas situacoes em que ha efectivamente em nosconsciencia de vel', mas tambern de andar e, em geral, de todas essas coi -sas que sup6em a ideia de corpo e de urn certo movimento corporal? Aresposta e agora obvia: havendo em nos consciencia de que vemos ouandamos, ha en tao nas proposicoes 1 e 2 algo que se refere apenas aopensamento, a saber, precisamente aquela consciencia que a cadamomenta temos desses movimentos corporais, sejam eles reais ou nao,tenhamos ou nao um corpo, haja ou nao out ros corpos fora de nos. Essesmovimentos, enquanto sao sentidos, sao, portanto, algo absolutamenteindubitavel, pois eles so ocorrern em nos na exacta medida em que esta-mos deles conscientes. Ao contrario do vel' ou do andar como processosffsicos, a simples sensaciio de ver ou andar esta ligada a consciencia danossa propria existencia enquanto seres pensantes e e, por isso, exacta-mente 0mesmo que pensamento.

    Sendo assim, de modo a recuperar apenas este elemento indubitavel,havera que rescrever 1 e 2 da seguinte maneira:

    1.1 Eu tenho consciencia (verdadeira ou falsa) de vel ', logo existo.2 .l Eu tenho consciencia (verdadei ra ou fal sa) de andar , logo existo.

    tamente possivel urn ve rdadeiro homern: de sejo , di go eu, que considereis que es tasfuncoes se seguem todas natural mente , nesta maquina , unicamente da disposicao doso rgaos, n jio mais nern menos que os mov imen tos de um rel6g io ou de Ulll aut6mato seseguem dos contrapesos e das rodas. AT XI, 201-202.

    Os Principlos da Filosofia de Descartes 41

    ou mais simplesmente:3. Eu sinto, logo existo. '!Na medida em que nesta proposicao nao se afirma que sentimos cor-

    poralmente isto ou aqui lo, af irrnacao que sempre supoe a existencia deurn corpo, de process os ffsicos e de orgaos dos sentidos, mas simples-mente que ha em nos consciencia de sentir, coisa que e verdadeira quertenhamos corpo ou nao, quer sintamos fisicamente ou nao, ela e tao certaquanta a proposicao eu penso, logo existo pela simples razao de que,assim entendido, 0 "sentir" e

    - algo dis tin to da ideia de corpo,- que ocorre em n6s,- e que s6 ocorre em n6s na medida em que dele estamos consc ientes,

    sendo por isso, evidentemente, urn modo especffico de pensar.Para 0 caso dos estados mentais que, ao contrario do sentir, nao dao

    a aparencia errada de se confundirem com 0 corpo, a definicao do con-ceito completo de "pensamento" a part ir das regras para a extensao doautoconhecimento torna-se uma simples questao de enumeracao.De facto, 0 conhecimento de cada um dos modos de pensar e abso-lutamente transparente para nos proprios. Podemos enganar-nos acercadaquilo que pensamos a respeito de uma coisa, mas jamais nos podere-mos enganar acerca do teor especifico do nosso pensamento acerca dessacoisa. POI'exemplo, se percepcionamos sensivelmente, entao e certo queisso e uma percepcao e nao urn acto de imaginacao. Se concebemos algo,e tambern para nos mesmos absolutamente transparente que estamos pre-cisamente a conceber e nao a imaginal' ou a sentir. Se queremos algo,entao e para nos certo que estamos a exercer urn acto de vontade e nao asentir ou a imaginal' , etc. Descartes nunca pretendeu fornecer uma listaexaustiva dos modos do pensamento. Para la do sentir, ele fala ainda doentender ou conceber, do imaginal', mas tambern das operacoes da von-tade como querer, afirmar, negar, duvidar, etc ., pois todas elas sao "coi-sas que ocorrern em nos quando estamos conscientes" e apenas "namedida em que estamos delas conscientes".

    31 Foi dito que ver e uma modalidade de sentir, e que senti r e urn modo de consciencia,portanto, de pensamento. Do mesma ruaneira, andar e urn movimento corpora l de queestamos conscientes pOl' urn tipo especifico de sensacao relativa ao nosso pr6prio corpo(cornummente designada por "cinestese"), t ra tando-se , portanto, a inda de uma outramodalidade de sentir.

    - -

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    De acordo com esta doutrina, ha duas conclusoes importantes quepoderemos retirar. A primeira e que serao crencas tao certas e inabalaveisquanta a proposicao cog ito, ergo sum todas as proposicoes que concreta-mente especificam os diversos modos de pensar, nomeadamente "euentendo", "eu sinto", "eu imagino", "eu afi rmo", "nego" e assim suces-sivamente. A segunda e que esse conhecimento mais alargado do quesignifica pensar e obtido quando 0 sujeito que pensa se considera naopuramente em si mesmo (como uma "substancia nua", por assim dizer ),por abstraccao do seu pensamento sobre todas as coisas diferentes de si,mas antes nos seus varios modos de pensar todas essas outras coisas que. sao dele diferentes e de cuja existencia fora do pensamento nao se possuiainda nenhuma certeza.

    Este segundo ponto e muito importante. Ele significa que do eu quepensa s6 ha conhecimento atraves dos seus diferentes modos de pensar, eque esses modos se tornam patentes sempre que 0 eu pens a em algumobjecto diferente dele, de tal maneira que, em qualquer conhecimento deurn objecto, seja ele verdadeiro ou nao, seja ele duvidoso ou indubitavel,ha sempre urn autoconhecimento certo que daf se podera extrair.E justamente desta situacao que Descartes pretende tirar , no artigoXI, a conclusao de que 0 autoconhecimento do eu e mais claro do que 0conhecimento de qualquer outra coisa.

    Segundo a doutrina cartesiana, "clare" op6e-se a "obscure" e signi-fica a nit idez com que as propriedades ou atributos de uma coisa sao per-cepcionados, quer dizer, conhecidos. POl'exemplo, se alguern nos ensinaque a soma dos quadrados dos catetos e igual ao quadrado da hipotenusaem qualquer triangulo rectangulo, a nossa percepcao intelectual dessefacto e no infcio confusa, pois nao somos capazes de vel ' com absolutanitidez a relacao necessaria entre a ideia de urn t riangulo rectangulo eessa mesma propriedade. Se, porem, ouvimos e compreendemos perfei-tamente a dernonstracao, a nossa percepcao tornar-se-a, entao, clara, poispercepcionamos com nit idez tal relacao e nao podemos deixar de a afir-mar.P32 Como notas caracterizadoras da "evidencia", Descartes poe a par a "clareza" e a"distincao", Enquanto a primeira se opoe ao obscuro, esta ultima opoe-se ao "confuse",e significa a capacidade para perceber claramente 0 que pertence a urna coisa e adistingue de outras. Uma percepcao pode ser clara mas confusa. POI' e xemplo, a dol' esentida clararnente, mas quem a sente pode julgar que isso e p rova que r d a exi st en ci ado seu pr6prio corpo, quer da localizacao da dol' nurna parte precisa desse corpo, 0 quee falso, pois a sensacao de dol' e apeuas urn modo do pensamento, nao da extensao( pode -s e mesmo " sent ir " nurn membra que foi arnputado). POI' outro lade e inversa-mente, tudo 0 que e distinto sera tambem sempre claro, pois seria contradit6rio admitiruma percepcao ao mesmo tempo distinta e obscura, Para esta questao, veja-se os arti-gos XL V e XLVI dos Principios da FilosoJia.

    Os Prindpios da Filosofia de Descartes 43

    A esta luz, a tese de Descartes no artigo XI e , entao, que 0 autoco-nhecimento do eu pensante e mais claro que 0 conhecimento de todas asout ras coisas. E isso signi fica nao s6 que, nesse autoconhecimento, osatr ibutos do eu sao percepcionados com maior nitidez, como tambern queconhecemos mais coisas acerca da substancia pensante do que a respeitode qualquer outra realidade em que possamos pensar.Como 0 seu argumento, que sup6e tudo 0 que ficou dito para tras, eapresentado de uma forma demasiado concisa, melhor sera reforrnula-lode uma maneira tao completa quanta possivel, fazendo intervir todos ospassos previamente dados." Ei-lo:

    1. 0 duplo objectivo consiste em: (a) mostrar que a conhecimento quetemos de nos mesmos precede a conhecimento de todas as outras coi-sas; (b) que , no conhecimento de todas as coisas, a que conhecemosmais claramente e a proprio sujeito pensante e as seus modos.

    2. Sejam duas proposicces p e q quaisquer, que exprimam uma qualquercrenca acerca de coisas diferentes do eu, par exemplo, "0 movimento ealteracao de lugar" e "esta superffcie e vermelha".- A pergunta cartesiana tfpica e: que e que nessas proposicces cones-ponde a uma crenca inabalavel, sendo, portanto, conhecido de urnmodo absolutamente certo?

    3. A busca cartesiana da certeza faz-se aplicando aquila a que charnarnosas regras da di ivida , da reducao ao indubi tavel e da ex tensao do au to-conhecimento; a partir delas, podemos afirmar sucessivamente:a) p e q.(au a simples c re nc a i ng en ua , anterior a diivida, na verdade de cadauma dessas proposicoes),

    b) Eu penso (que p e q), logo eu existo como uma coisa pensante.(pela reductio ao indubitavel, depois de a argumento do genicmaligno ter destrufdo a crenca inicial acerca de pede q),

    c) Eu concebo (que p) e eu sinto (que q), logo eu, que existo comocoisa pensante, sou concretamente uma coisa que concebe e quesente.(pela extensao do autoconhecimento certo, resultante da especifica-c;:aodos diversos modas do pensar envolvidos no pensamento de p ede q).4. Ora desta transforrnacao de uma qualquer crenca inicial (duvidosa) na

    certeza indubitavel do eu penso e no autoconhecimento, tambern indu-bitavel, dos diversos modas de pensar resulta como consequencia:

    33 0 argumento de Descartes no artigo XI faz intervir a nocao cornurn "0 nada n ii o ternpropriedades", Esta 1109ao comurn nao e, no entanto, necessaria para 0 seu argurnento,tal como nao 0 havia sido na justificacao da primeira proposicao da ciencia cerra:cogito, ergo sum,

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    a) 0 que primariamente conheco, quando penso nas coisas diferentesde mim, nao sao essas coisas em que pen so, mas a minha propriamaneira de ser enquanto penso em cada uma dessas coisas, de talmodo que, segundo a ordem das raz6es, 0 autoconhecimento do eupensante e sempre anterior ao conhecimento de todas as outras rea-lidades.

    b) Sendo 0 conhecimento de uma coisa tanto mais claro quanta rnaisat ributos nela pudermos discriminar com nit idez, segue-se que 0autoconhecimento do ell e a mais claro de todos, porque ele estaimplicitamente contido no conhecimento de todas as outras coisas eperrnanecera sempre valido, quer 0 conhecimento dessas coisas sevenha a revelar verdadeiro ou nao,

    Chegados a este ponto da ordem das razoes, podemos fazer comDescartes a pergunta crucial: a que nos referimos verdadeiramente sern-pre que dizemos "eu" e, mais concretamente, "eu sou"?

    Sabemos 0 que Descartes tern para responder: se nos limitarmos aoque e certo na auto-evidencia da existencia, "eu" significa apenas umacoisa que pensa e, por conseguinte, sempre que proferimos essa expres-sao, s6 nos podemos estar a referir aquilo que em n6s e pensamento, detal maneira que a "evidencia" da nossa existencia corporal nao poderaentrar no seu conteiido.Mas duas perguntas embaracosas poderiam ser feitas a Descartes. Aprimeira e a seguinte: que, neste ponto preciso da ordem das razoes, ape-nas nos possamos considerar como seres pensantes irnplicara que n6ssejamos apenas seres pensantes? E eis a segunda: como se obtern, a partirdo cogito ou da consciencia de pensar, a evidencia do "eu", sabendo n6sque 0 que percepcionamos nao e propriamente 0 "eu", mas apenas este ouaquele pensamento particular, portanto, nao 0 eu que pensa, mas sim-plesmente os multiples pensamentos do eu?

    A primeira pergunta deve, em rigor, ser negativamente respondida. Sebern que seja para tal que toda a argumentacao de Descartes tende, nesteponto da ordem das razoes nao e , porern, ainda possivel passar da afir-macae (correcta) de que, em n6s, s60 pensamento e conhecido com certezapara a afirrnacao de que n6s somos apeuas uma coisa que pensa. Nada queseja pensamento supoe a ideia de extensao; nada que seja extensao supoe aideia de pensamento. Mas de que as ideias de pensamento e de extensaosejam distintas nao se segue ainda que a coisa ou substancia pensante naoseja tarnbern uma coisa ou uma substancia extensa.

    Na verdade, por agora, apenas e lfcito afirmar 0 seguinte: quandonos restringimos ao autoconhecimento certo, apenas nos poderemos con-siderar como pensamento, e considerarrno-nos assim, como pensamento,

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    nao implica considerarmo-nos ao mesmo tempo como uma coisa corp6-rea. No entanto, a limitacao a esfera do pensamento apenas e valida noambito da reducao ao que e certo na auto-evidencia da nossa pr6priaexistencia no interior da duvida. E possfvel que a deterrninacao daquiloque eu mesmo sou permita estender 0 autoconhecimento para la do que eda ordem do pensamento e conectar este pensamento com uma existenciacorporal . Essa conexao far -se-a pela afirrnacao de que n6s somos a uni-dade de duas substancias, uma unidade que e precisamente 0 homem. Noentanto, neste ponto preciso do argumento de Descartes, esse prolong a-mento s6 poderia ser efectuado ultrapassando a esfera do que e certo econfundindo pensamento com extensao. A unidade do homem deve pas-sar primeiro pela distincao e pela separacao das substancias extensa epensante. Ela deve, pol' isso, aguardar outros desenvolvimentos para quepossa fazer-se em consonancia com 0 imperativo da certeza e indubitabi-lidade no autoconhecimento.>'

    Trata-se, em suma, neste art igo dos Principios, de interpretar cor-rectamente 0 teor dessa evidencia pela qual para mim mesmo me descu-bro como existente a partir do acto de pensar. Essa evidencia constituiuma certeza incornovivel. Ela nao pode ser pensada como falsa ou ilus6-ria no pr6prio momenta em que se produz, pois tal seria contradit6rio.POl'via dela, dizemos: ego sum (eu sou). Mas que sou eu, que certamentesei que sou? Como e essa minha existencia determinavel nos limites daabsoluta certeza?

    Visto sob este angulo, 0 curto artigo XII mostra toda a sua reievan-cia. 0 que nele esta implicitamente contido (e que agora desenvolvere-mos) permite-nos responder a nossa segunda pergunta.

    A expressao "eu mesmo" contern urn acto de auto-referencia. Nesseacto, visa-se nao urn pensamento singular (cogitatio), nao tarnbern 0conjunto de todos os pensamentos (cogitationes), mas antes 0 seu unicosujeito, aquele que a todos contem, mas que por isso mesmo necessaria-mente de todos se dist ingue. Esse sujei to dos pensamentos nao e urn Xpara n6s mesmos desconhecido (uma "qualquer coisa" que pense). Somosjustamente n6s pr6prios que assim a n6s mesmos nos referimos enosencontramos com 0 dado indubitavel da nossa pr6pria existencia , Essesujeito dos pensamentos nao e , portanto, urn objecto distante que apenasse possa avistar indirectamente e conhecer pOI' inferencia , Muito ao con-trario, ele e 0 que esta mais pr6ximo, 0que e mais intimo, visto que "ele",urn tal sujeito, somos nos proprios no acto pelo qual como que embate-mos com a nossa existencia.34 Isso faz-se com a teoria das distincoes, particularmente da distincao rea l, e pela refe-rencia a uniao vivida entre corpo e alma. Vel ' Princi p ia P l i il o soph i ce , artigos LX-LXV.

  • 5/10/2018 Os Principios Da Filosofia de Descartes

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