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2652 OS BANCOS, A MINERAÇÃO E A ASTROFÍSICA: REPENSAR O TEMPO E A SEGURANÇA NAS RELAÇÕES INTERTEMPORAIS AMBIENTAIS * BANKS, MINING ACTIVITY AND ASTROPHYSIQUE: TO THINK TIME AND SECURITY INTO ENVIRONMENTAL AND INTERGENERATIONAL RELATIONS Dempsey Pereira Ramos Júnior RESUMO O presente artigo fará uma abordagem teórica e filosófica de um instituto jurídico, destinado a resolver especificamente os problemas gerados pela atividade de mineração na Amazônia, e que se denomina: reparação transgeracional de danos socioambientais. A mineração é uma atividade econômica hiperextensiva no tempo, pois, além de sua duração ser prolongada, os danos socioambientais provocados, mesmo após o fechamento da mina, também abrangem larga extensão de tempo, de modo que diversas gerações são afetadas tanto durante o funcionamento como após o fechamento de uma mina. Por sua vez, o setor bancário é decisivo para que a mineração aconteça, motivo pelo qual será analisada sua responsabilidade civil ambiental em um contexto transgeracional. O direito ambiental destaca o elemento temporal das relações jurídicas, pois ao prever a proteção das futuras gerações, acaba criando relações entre os membros da atual geração (intrageracional) e de diferentes gerações (intergeracional). Desta forma, a reparação transgeracional surge como um direito mutante hiperextensivo no tempo. O período atual pelo qual o mundo passa, de transição energética, remete a reflexões sobre a noção de segurança. O largo alcance temporal da reparação transgeracional também remete a reflexões sobre a noção de tempo. Como base filosófica, Niklas Luhmann vê o direito como um sistema autopoiético (que se autoproduz e se autoregula), acoplado estruturalmente aos demais subsistemas imersos na sociedade (outras ciências), dos quais retira os elementos necessários à sua evolução. A astrofísica, acoplada estruturalmente ao pós-positivismo, permite repensar o tempo nas relações jurídicas intergeracionais, como forma de justificar um direito hiperextensivo no tempo que transcende várias gerações. PALAVRAS-CHAVES: MEIO AMBIENTE; REPARAÇÃO TRANSGERACIONAL; MINERAÇÃO; ASTROFÍSICA; DANOS SOCIOAMBIENTAIS; RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL; BANCOS NA AMAZÔNIA. ABSTRACT The present article will make a theoretical and philosophic boarding of a legal institute, destined to resolve specifically the problems generated by mining activity in Amazon, and is designated: transgenerational reparation of the social and environmental damages. The mining activity is a hiperextensive economic activity in time, so, beyond its long length, the social and environmental damages, caused even after the mine is * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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OS BANCOS, A MINERAÇÃO E A ASTROFÍSICA: REPENSAR O TEMPO E A SEGURANÇA NAS RELAÇÕES INTERTEMPORAIS AMBIENTAIS*

BANKS, MINING ACTIVITY AND ASTROPHYSIQUE: TO THINK TIME AND SECURITY INTO ENVIRONMENTAL AND INTERGENERATIONAL

RELATIONS

Dempsey Pereira Ramos Júnior

RESUMO

O presente artigo fará uma abordagem teórica e filosófica de um instituto jurídico, destinado a resolver especificamente os problemas gerados pela atividade de mineração na Amazônia, e que se denomina: reparação transgeracional de danos socioambientais. A mineração é uma atividade econômica hiperextensiva no tempo, pois, além de sua duração ser prolongada, os danos socioambientais provocados, mesmo após o fechamento da mina, também abrangem larga extensão de tempo, de modo que diversas gerações são afetadas tanto durante o funcionamento como após o fechamento de uma mina. Por sua vez, o setor bancário é decisivo para que a mineração aconteça, motivo pelo qual será analisada sua responsabilidade civil ambiental em um contexto transgeracional. O direito ambiental destaca o elemento temporal das relações jurídicas, pois ao prever a proteção das futuras gerações, acaba criando relações entre os membros da atual geração (intrageracional) e de diferentes gerações (intergeracional). Desta forma, a reparação transgeracional surge como um direito mutante hiperextensivo no tempo. O período atual pelo qual o mundo passa, de transição energética, remete a reflexões sobre a noção de segurança. O largo alcance temporal da reparação transgeracional também remete a reflexões sobre a noção de tempo. Como base filosófica, Niklas Luhmann vê o direito como um sistema autopoiético (que se autoproduz e se autoregula), acoplado estruturalmente aos demais subsistemas imersos na sociedade (outras ciências), dos quais retira os elementos necessários à sua evolução. A astrofísica, acoplada estruturalmente ao pós-positivismo, permite repensar o tempo nas relações jurídicas intergeracionais, como forma de justificar um direito hiperextensivo no tempo que transcende várias gerações.

PALAVRAS-CHAVES: MEIO AMBIENTE; REPARAÇÃO TRANSGERACIONAL; MINERAÇÃO; ASTROFÍSICA; DANOS SOCIOAMBIENTAIS; RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL; BANCOS NA AMAZÔNIA.

ABSTRACT

The present article will make a theoretical and philosophic boarding of a legal institute, destined to resolve specifically the problems generated by mining activity in Amazon, and is designated: transgenerational reparation of the social and environmental damages. The mining activity is a hiperextensive economic activity in time, so, beyond its long length, the social and environmental damages, caused even after the mine is

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

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closed, also include wide time extension, in such a way several generations are affected as during the mine operation as after its closing. In its turn, the banking sector is crucial for the mining activity happen, for that reason its civil and environmental responsibility will be analyzed in a transgenerational context. The environmental law distinguishes the temporal element of juridical relations, so when preview the protection of future generations, concludes creating relations between members of the present generation (intragenerational) and members of the different generations (intergenerational). This way, the transgenerational reparation emerges as a mutational law hiperextensive in time. The present era for which world advances, of energy transition, remits to reflections about security notion. The long temporal range of transgenarational reparation also remits to reflections about time notion. As philosophical base, Niklas Luhmann sees the law as an autopoietic system (self-made and self-ruled) structurally coupled to the other subsystems immersed into society (other sciences), from which takes off essential elements for its evolution. The astrophysique, structurally coupled to pos-positivism, allows to thinking time inside intergenerational and juridical relations, as an way to justify a hiperextensive law in time that transcends several generations.

KEYWORDS: ENVIRONMENT; TRANSGENERATIONAL REPARATION; MINING ACTIVITY; ASTROPHYSIQUE, SOCIAL AND ENVIRONMENTAL DAMAGES; ENVIRONMENTAL CIVIL RESPONSIBILITY; BANKS IN AMAZON.

INTRODUÇÃO: O PROBLEMA

A idéia de escrever sobre a reparação transgeracional de danos socioambientais surgiu a partir da percepção das questões socioambientais que a mineração de elementos metálicos suscita e das transformações sociopolíticas pelas quais o mundo passa no atual momento. A crise financeira que abalou os mercados em 2008, levando à falência instituições financeiras como o banco norte americano Lehman Brothers, acendeu um sinal de alerta em todo o sistema financeiro mundial. Diante da instabilidade do setor, os bancos anunciaram que irão focar investimentos em opções menos voláteis; de modo que, a partir de 2009, os investimentos considerados mais estáveis receberão maior aporte de recursos, aí incluída a mineração (Onstad, 2008).

Diante do atual cenário econômico mundial, é perfeitamente possível identificar uma clara tendência de incremento das atividades de mineração na Amazônia, inobstante a necessidade que o mundo vive de adotar urgentemente um modelo de desenvolvimento baseado em práticas sustentáveis de reciclagem e reuso de elementos minerais metálicos; necessidade de desenvolver indústrias para processamento de sucata ao invés de manter os atuais e insustentáveis níveis de exploração direta do minério na natureza.

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A exploração de minério na Amazônia, precisamente a lavra realizada por grandes empresas, é um dos principais motores econômicos da região, mas em contrapartida representa um dos principais fatores de pressão ecológica e socioambiental, significando uma atividade de alto risco para o frágil bioma amazônico (Barcelos, 2002 e Reis, 2001). O Centro de Tecnologia Mineral - CETEM, instituto de pesquisa vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia, ao elaborar um banco de dados socioeconômico e ambiental sobre a mineração na Amazônia, constatou que esta região "tornou-se atualmente a última fronteira mineral. Essa região, contudo, é social e ambientalmente sensível, pelas particularidades do ecossistema que abriga e pela sua história de ocupação territorial" (Lima, 2002, p. 1).

Além do quadro acima exposto, verifica-se que as sociedades ocidentais plasmaram uma acentuada dependência em torno da extração mineral, o que faz com que esta atividade continue sendo um forte fator de pressão ambiental onde quer que se realize. Mesmo em um cenário de reciclagem ou reuso de elementos minerais, os números mostram que a extração de minério diretamente da natureza ainda irá ocorrer por períodos superiores a séculos. Se for considerada a taxa de participação do aço, proveniente de sucata, no mercado mundial de metais, algo em torno de 33% no ano 2000 com estimativa de crescimento projetada para 40% em 2010 (BNDES, 2000, p. 1); urge reconhecer que a humanidade ainda está distante do sonho do reuso e da reciclagem totais de substâncias minerais.

Esta conclusão é obtida analisando-se os dados da demanda por aço relativa ao período compreendido entre 1950 e 1999, ou seja, em apenas 50 anos a demanda global por aço cresceu de 190 para 788 milhões de toneladas - aumento total de 315% ou de 6,4% ao ano (Scliar, 2004, p. 8), o que significa uma taxa de incremento do consumo de aço imensamente maior do que a oferta de aço proveniente dos fornos elétricos alimentados por sucata.

Dada a intensa presença das substâncias minerais na vida cotidiana, além do total descompasso entre crescimento da demanda por aço e seu fornecimento através de práticas sustentáveis de reuso e reciclagem de sucata, imaginar um mundo sem extração de minérios diretamente da natureza, pelo menos durante os próximos séculos, significaria o mesmo que imaginar o mundo atual sem petróleo: o colapso global seria certo, instantâneo e inevitável (Rifkin, 2003, p. 165).

Eis o paradoxo de se tentar aplicar o princípio da precaução ao setor mineral. Através desse princípio de direito ambiental, busca-se evitar danos futuros através da proibição da própria atividade que, provavelmente, irá provocá-los e que, em um juízo de objetividade, mostra-se desnecessária para a sociedade (Derani, 2008, p. 172). Sob essa ótica, sendo a mineração umas das atividades econômicas mais básicas e necessárias da atual conjuntura socioeconômica mundial, os danos socioambientais

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advindos são assumidos como necessários. Porém, não se deve olvidar que a reparação destes danos também constitui princípio basilar de direito ambiental e que encontra-se vinculado especificamente à mineração, conforme previsão legal do art. 225, § 2º da Constituição Federal.

Além de ser necessária para a sociedade, a mineração é uma atividade hiperextensiva no tempo, pois provavelmente se estenderá pelos próximos quatrocentos anos, tempo estimado de duração só da jazida de ferro do complexo Carajás (Fiorillo, 2007, p. 330), enquanto que o tempo estimado para exaustão do ferro no mundo alcança algo em torno de trezentos anos (Scliar, 2004, p. 9). Tais dados permitem deduzir que os danos socioambientais da mineração possuem extensão temporal ampla. A experiência historicoantropológica demonstrou que, onde quer que se realize, a mineração é insustentável pois deixa um saldo negativo de graves danos socioambientais.

Transladação de populações, crescimento urbano desordenado, degradação ambiental e, após exaurido o surto minerador, o que sobra é uma enorme disponibilidade de mão de obra desocupada que "mergulha numa cultura de pobreza" (Ribeiro, 1995, p. 345/356). As jazidas minerais da Amazônia "são as maiores de que se tem notícia", e grandes empresas se preparam para explorar estes recursos (ibidem, p. 305). Diante dos desafios do desenvolvimento da Amazônia, Darcy Ribeiro já questionava se isto não abrirá uma nova Minas Gerais, que deixou para trás apenas "uma população pobre e buracos, expondo outra vez os interiores da terra à erosão?" (ibidem, p. 305).

Recentes estudos feitos na Amazônia, comprovaram que a implantação de um pólo minerador provoca urbanização e industrialização induzidas, exigindo novas áreas agrícolas para suportar o aumento da demanda por alimentos, causado pela atração de populações que se fixam desordenadamente ao redor da jazida, gerando com isso desmatamento reflexo, além de sobrecarga na infra-estrutura dos serviços públicos, que com o fechamento da mina, entram em colapso pela ausência de fluxo financeiro e tributário posteriores ao empreendimento (Barcelos, 2002, p. 65; Reis, 2001, p. 278 e Silva, 1999, p. 19). Neste quadro, as populações deixadas para trás pelo pólo minerador mergulham em uma cultura de pobreza e sofrem toda sorte de danos socioambientais, ecológicos e socioeconômicos, conforme previsão legal contida no art. 3º, III e alíneas da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente).

Por outro lado, a atividade de mineração para que possa acontecer depende, de forma fundamental, dos financiamentos bancários. Mais do que um negócio de grande porte, a mineração é um tipo de empreendimento de gigantesco porte, exigente de imensas quantidades de capital financeiro. Esta característica é reveladora de uma íntima relação entre a atividade de lavra mineral e o financiamento bancário, de uma tal forma que é impossível vislumbrar grandes projetos mineradores sem a presença de um

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banco que lhe dê suporte financeiro. Entre 1994/1999, o BNDES sozinho participou da composição financeira de empreendimentos de mineração numa proporção de 61% do total de capital investido, além de contribuir com pesquisas geológicas com objetivo de participações futuras no produto da lavra (BNDES, 1999, p. 32). Isto comprova a íntima relação que existe entre bancos e mineração, uma relação quase societária.

Diante dos danos socioambientais gerados pela mineração e da constatação de que referida atividade é necessária, a idéia de uma reparação transgeracional de danos, hiperextensiva no tempo, a ser suportada pelos bancos financiadores surge como proposta para resolver este intrincado problema que envolve relações jurídicas intergeracionais ou intertemporais. Por ser uma atividade econômica hiperextensiva no tempo, a mineração exige soluções também hiperextensivas no tempo. Considerando que soluções pensadas para esse contexto temporal dilatado envolverá uma abordagem do elemento tempo, é que o presente artigo realizará uma reflexão sobre o tempo, utilizando-se das noções de espaçotempo trazidas pela astrofísica (Hawking, 2005, p. 106 e 154). Tal se faz necessário porque a ecologização do pensamento força uma expansão do horizonte de tempo. Enquanto os economistas estão habituados a raciocinar em termos de anos, no máximo em décadas, "a escala de tempo da ecologia se amplia para séculos e milênios." (Sachs, 2002, p. 49).

Porém, existe outro problema nesta temática, especificamente de cunho filosófico e jurídico. A constatação de que, não só o Poder Judiciário, mas toda a estrutura temporal do Direito brasileiro estão centrados no passado, sinaliza uma limitação do sistema jurídico em pensar direitos voltados para o futuro, fato que restringe a concreção do ideal futurístico do direito ambiental. O aprisionamento do Direito ao tempo passado é demonstrado pela tradição jurídica de aplicação do direito passado aos conflitos presentes (a partir de seus precedentes judiciais, legislações, doutrina, etc.). O diagnóstico dessa centralização da estrutura temporal do Direito ao passado revela a existência de significativas restrições do Direito à observância do futuro, o que acaba prejudicando os direitos das futuras gerações (Carvalho, 2006, p. 16).

A proposta que o presente artigo faz de uma reparação transgeracional, a ser implementada e cumprida pelos bancos ao longo de vários séculos, encontra outro obstáculo, qual seja o postulado da segurança jurídica presente no dogma da imutabilidade da coisa julgada. Este obstáculo remete para reflexões sobre as noções de segurança que foram adotadas ao longo da evolução histórica da humanidade, de modo que ao final será demonstrado que a idéia de segurança existente hoje, às portas da biosferopolítica da economia do hidrogênio, não mais se coaduna com as antigas idéias de segurança advindas da geopolítica do petróleo. Tudo isso permite o desenvolvimento dos conceitos e das soluções que adiante serão explicitados. Parafraseando o autor da obra, é preciso escrever uma nova história do tempo (Hawking, 2005) para que os problemas ambientais sejam melhor equacionados e para que soluções, outrora consideradas uma heresia jurídica ou uma ameaça à segurança do ordenamento, possam ser doravante implementadas e assumidas pelo Poder Judiciário como algo urgente e

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necessário, em nome da dignidade das atuais e das futuras gerações, e também em prol da continuidade da civilização mundial.

1 A EQUIDADE INTERGERACIONAL: OS DANOS E O ELEMENTO TEMPORAL

Conforme acima colocado, percebe-se que o principal problema tratado nesse artigo refere-se às relações jurídicas típicas do direito ambiental, as quais possuem como destacado elemento o tempo. O direito ambiental traz para o ordenamento um tipo de relação jurídica travada entre gerações de pessoas, uma relação intertemporal que pode se dar entre gerações presentes (intrageracional) ou entre diferentes gerações (intergeracional). A idéia de equidade intergeracional consiste em assegurar igualdade de acesso aos recursos ambientais tanto à geração presente como às gerações futuras (Carvalho, 2006, p. 17), de tal forma que o direito possa se abrir para o futuro em seu processo interpretativo e de aplicação ao caso concreto.

A responsabilidade civil ambiental, quando aplicada nas relações jurídicas intergeracionais, coloca o julgador na paradoxal tarefa de aplicar um direito presente, apoiado em experiência passada (jurisprudência, costumes, lei), para resolver questão futura. Nos casos em que eventuais danos ambientais ocorram na atual geração, causados por atividades desenvolvidas e limitadas também à atual geração, o modelo de reparação é o clássico e tradicional intrageracional (entre presentes) onde a reparação assumirá papel restaurador e indenizatório em favor das vítimas do impacto ambiental, tudo dentro de uma relação jurídica que se esgotará na atual era. Porém, quando determinada atividade econômica - como é o caso da mineração, que por ser atividade continuada e hiperextensiva no tempo começa a produzir danos de forma continuada, danos que só serão verificados em momento futuro, o juiz de eras futuras deparar-se-á com "danos históricos originados no passado" e com os "danos acumulados permanentes ou progressivos" (Melo, 2008, p. 118 e 121).

Importante ressaltar neste cenário que, uma vez consolidados os danos socioambientais provenientes da mineração, mesmo após o fechamento da mina tais danos continuarão se prolongando em direção ao futuro, de forma acumulada e progressiva, atingindo não só gerações de pessoas contemporâneas à data do fechamento da mina como também todas as gerações posteriores ao fechamento da mina, numa escala temporal dilatada e indeterminada, mas certamente hiperextensiva. Este é o paradoxo temporal perante o qual o juiz, que tiver que apreciar este tipo de questão, deverá resolver: constatados os danos gerados no passado, na vigência de legislações pretéritas, o juiz contemporâneo deverá projetar para o futuro o arcabouço jurídico presente que tiver à sua disposição no momento do julgamento. Mas como um juiz pode satisfazer necessidades de gerações futuras apoiado em um arcabouço jurídico

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que, relativamente aos destinatários futuros, já terá se tornado obsoleto, já terá se tornado legislação pretérita e ultrapassada?

A dúvida acima faz todo o sentido, já que o direito ambiental visa proteger os interesses de gerações futuras. No caso específico da mineração, após o fechamento da mina, todos os descendentes da geração contemporânea ao fechamento também sofrerão danos. Conforme foi explicitado na parte introdutória deste artigo, as populações que convivem no entorno de um empreendimento minerador são historicamente abandonadas após o fechamento da mina e mergulham em uma cultura de pobreza de modo a sobrecarregar toda a infra-estrutura de serviços públicos que, sem a arrecadação financeira que possuíam durante a atividade mineradora, também entram em colapso gerando toda sorte de distúrbios socioambientais.

As gerações contemporâneas ao fechamento de uma mina sofrerão os danos históricos originados no passado e verificados até aquele momento, enquanto que os seus descendentes sofrerão danos acumulados, continuados e progressivos daquele instante em direção ao futuro. A Constituição Federal prevê no seu artigo 225, § 2º, a obrigação de recuperar o meio ambiente degradado, sendo certo que todo parágrafo contido dentro de um artigo de lei, conforme a melhor técnica legislativa, subordina-se ao comando previsto no caput. Neste sentido, é lícito afirmar que a obrigação de recuperar o meio ambiente degradado por um empreendimento minerador deve estender-se em direção ao futuro, de modo que tal tarefa de recuperação ambiental seja finalisticamente voltada para atender aos interesses, também, das gerações futuras.

2 REPENSANDO O TEMPO

A noção de tempo que foi construída ao longo de milênios, pelas gerações passadas, é fruto das percepções sensoriais alcançadas pelos próprios órgãos do corpo humano. Tais noções nasceram das experiências sensitivas do cotidiano, por exemplo a necessidade de medirem-se os ciclos da agricultura. O conceito inicial de tempo teve assim um sentido subjetivo e utilitarista (relativo) para a humanidade que, até então, não tinha instrumental científico para fazer análises temporais em escala cosmológica. Por isso, o tempo tal qual aquele que é medido nos relógios de pulsos de milhões de pessoas, ao redor do planeta, é um tempo subjetivo conforme melhor será explicitado adiante.

A transição de um conceito subjetivo do tempo para um conceito objetivo acontece através da astrofísica (Fleming, 1989a e 1989b). Passado, presente e futuro eram idéias ilusórias baseadas no conceito de "flecha do tempo": um tempo que flui e

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transcorre sempre em um mesmo sentido e em uma mesma velocidade, dentro de um cenário passivo onde aos seres humanos restava apenas ver o tempo passar.

O conceito objetivo de tempo é obtido através de sua união indissociável ao elemento espaço, formando assim o revolucionário conceito denominado "espaçotempo", uma espécie de superfície com quatro dimensões, onde o tempo funciona como a quarta dimensão do espaço tridimensional até então conhecido (Fleming, 1989b). A novidade trazida por este conceito é que os elementos contidos no espaçotempo (eventos) possuem uma distância bem definida e objetiva uns em relação aos outros. Significa dizer que ao se analisarem eventos (acontecimentos) sob a ótica do espaçotempo, desfazem-se as ilusões contidas na visão subjetiva anterior que a humanidade tinha sobre o tempo.

No modelo anterior, um mesmo evento poderia ser considerado passado, presente ou futuro de acordo com a posição do observador. Para exemplificar, uma determinada luz que se acendesse em um dado lugar e em dado instante, seria um acontecimento "presente" para o observador que estivesse próximo do evento recebendo a emissão da dita luz, enquanto que o mesmo evento seria "futuro" para um outro observador situado em local mais distante e, por isso, que não tivesse recebido as emissões da luz acendida. O mesmo evento já seria "passado" para o primeiro observador que viu a luz acender-se porque estava mais próximo dela, enquanto voltaria a ser "presente" na ótica do segundo observador mais distante e que estivesse recebendo suas emissões.

Tais ilusões deixam de ocorrer quando se analisa o mesmo fenômeno acima sob a ótica e sob as noções da astrofísica, campo de conhecimento segundo o qual tempo e espaço são dimensões indissociáveis e que formam uma dimensão cosmológica denominada "espaçotempo", o qual é curvo, representa a história do Universo inteiro e onde cada ponto espacial é um evento histórico (Hawking, 2005, p. 106 e 154). A teoria da relatividade estende o nosso conceito de tempo para essa nova situação, mas, ao estendê-lo, modifica-o, e a ferida é funda. A descoberta de que o tempo não é mais o que acompanhou o homem por toda a infância, comove-o profundamente (Fleming, 1989a). Numa interpretação de Hawking, e que pode ser aplicada ao direito ambiental, o físico da USP (idem) completa dizendo que:

Em nossa época, pela primeira vez, o estudo do mundo microscópico levou a conclusões importantes sobre o mais macroscópico dos sistemas, o Universo como um todo. Fechou-se um ciclo fundamental: o microcosmo influenciando o macrocosmo e reciprocamente.

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No conceito de espaçotempo as pessoas "estão" situadas, portanto, como se estivessem ocupando "um lugar no tempo" e não uma existência no tempo. Na concepção cosmológica, portanto, os danos ambientais têm uma dimensão espaçotemporal complexa. Com a emergência dos problemas ambientais, a escala de tempo foi expandida para séculos e milênios e, neste ponto, faz-se necessário um novo olhar sobre o tempo. Até por volta do último quartel do século XX, os economistas estavam acostumados a raciocinar o tempo em suas equações econômicas em termos de anos ou, no máximo décadas, porém a questão ecológica ampliou esse horizonte para séculos e milênios (Sachs, 2002, p. 49). Os danos ambientais, em sentido lato, apresentam a peculiaridade de afetarem coletividades difusas e extensas de pessoas, o que exige ampliação e redefinição dos institutos de direito civil e de processo civil (Sampaio, 2003, p. 270).

É justamente esse movimento de expansão dos institutos jurídicos, expansão demandada pela complexidade ambiental, que leva o direito a abrir-se para uma reparação transgeracional de danos, uma reparação que transcenda gerações, que atravesse séculos e alcance populações futuras afetadas por danos históricos originados no passado e acumulados progressivamente em direção ao futuro, como são os decorrentes da atividade mineradora.

As coletividades difusas de pessoas, expostas ao dano ambiental, estão situadas não só no presente mas também no futuro. A expressão pessoas "situadas" e não "existentes" deve-se à astrofísica. Estes danos ultrapassam limites geográficos e temporais. A idéia de danos ambientais transfronteiriços, que afetam vários países, agora amplia-se para a de danos transespaçotemporais, que afetam gerações de pessoas humanas situadas em diferentes eras da história, isto é, gerações de populações situadas em diferentes pontos do espaçotempo (pois o tempo é apenas mais uma coordenada do espaço tridimensional já conhecido).

Assim, uma conduta praticada por gerações passadas e que, no seu aspecto temporal, venha a produzir danos somente em relação a gerações futuras, pode ser tratada na ótica objetiva do espaçotempo como danos praticados entre vizinhos, como ocorre no direito de vizinhança. Pois sendo o tempo e o espaço dimensões indissociáveis, torna-se equivocado o raciocínio humano de perceber o decurso do tempo como a flecha que transcorre de forma unilinear e contínua em uma única direção, em um único sentido, em uma única velocidade. Na verdade, o senso comum é que traduz um tempo que "transcorre". Merece reflexões.

Com freqüência, os humanos percebem o tempo como uma flecha que segue inexorável, sempre do passado em direção ao futuro, de forma linear e numa única direção, em um único sentido. A complexidade ambiental, todavia, requer uma postura reflexiva, de modo que é preciso repensar espacialidade e temporalidade (Leff, 2003, p.

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196). Os humanos percebem o tempo (ilusório e subjetivo) como algo que está sempre "andando" para frente, sendo que nesta ótica subjetiva, o tempo pode "parar" também, conforme a força gravitacional seja intensa e massiva sobre o observador (Hawking, 2005, p. 85 e 90).

Neste ponto da reflexão, pode-se dizer que o ser humano vive uma ilusão de ótica nas questões que envolvem tempo passado, tempo presente e tempo futuro, assim como vivia uma ilusão de ótica relacionada ao suposto formato plano da Terra. Por não ter uma visão ampliada e distanciada do planeta, antes da invenção do telescópio e das grandes navegações do século XV, a humanidade acreditava ser o planeta Terra plano e chato, onde os oceanos terminavam numa grande cachoeira que caía pela beirada do planeta.

De igual forma, ainda hoje, por não ter uma visão ampliada e distanciada dos fenômenos ligados ao tempo, especialmente os efeitos da gravidade que tornam o tempo subjetivo algo relativo (o que é passado para um observador, pode ser futuro para outro de acordo com a intensidade do campo gravitacional onde cada um esteja localizado); a humanidade não percebeu os efeitos e os significados revolucionários que decorrem da junção tempo e espaço como elementos indissociáveis da superfície conhecida por espaçotempo. Assim como a invenção do telescópio provocou uma revolução silenciosa que quase ninguém percebeu, a descoberta do espaçotempo e de suas implicações para a humanidade ainda é algo pouco percebido ou quase nada explorado na vida prática e cotidiana das pessoas.

Para ilustrar o raciocínio, cumpre mencionar Hannah Arendt segundo a qual, no limiar da era moderna, três grandes eventos lhe determinaram o caráter: a descoberta da América, a Reforma protestante e a invenção do telescópio. Para seus contemporâneos, o acontecimento mais extraordinário deve ter sido o primeiro, com toda a euforia decorrente da descoberta de um "novo mundo". O mais inquietante deve ter sido o segundo, a cisão do Cristianismo e o abalo de um mundo que foi formatado e ditado pela Igreja. Porém o menos percebido foi o terceiro, o telescópio, embora profunda a transformação que ele provocou sobre as noções de "verdade". Antes do telescópio, o ser humano acreditava piamente nos seus sentidos corporais, a tal ponto de diversas gerações terem "sido levadas a crer que o Sol girava em torno da Terra" pelo simples fato de verem "com os olhos do corpo" o astro solar fazer o mesmo movimento todos os dias: nascer no leste e pôr-se no oeste, percorrendo o mesmo caminho no céu.

Após a invenção do telescópio, porém, descobriu-se que a Terra era que girava em torno do Sol. Com isso aconteceu uma "perda da verdade tradicional", baseada no senso comum e nos olhos do corpo, pois a partir do telescópio o ser humano descobriu que não mais podia confiar nem mesmo nos seus próprios sentidos corporais, os quais lhe traíram (Arendt, 2008, p. 287 e 307).

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Neste sentido, é lícito dizer que a percepção atual que os seres humanos têm sobre o decurso do tempo é algo também ilusório, como afirmado por Fleming ao explicar a diferença entre tempo subjetivo (marcado nos relógios) e tempo objetivo (espaçotempo), mas também porque o senso que as pessoas têm sobre o tempo está baseado apenas no próprio sentido corporal, baseado apenas nas próprias sensações físicas que, conforme acima demonstrado, não constituem uma base muito segura para definir a verdade sobre um fenômeno. É preciso despir a humanidade de todas as sensações e aprendizados que acumulou sobre a noção de tempo, para que se possa pensar e repensar o espaçotempo em termos cosmológicos e, a partir daí, pensar direitos e relações jurídicas transgeracionais na ciência ambiental.

Pensar o espaçotempo, e todas as implicações que esse conceito pode trazer para a vida cotidiana no planeta Terra, é uma experiência radicalmente nova e profundamente chocante que causa uma ferida profunda no íntimo de cada ser humano, pois divorciada dos paradigmas e das estruturas que marcaram a base do raciocínio humano desde a origem da espécie humana há milhões de anos atrás. Por exemplo, a estrutura binária do raciocínio humano. Segundo essa característica, os humanos só têm duas e exclusivas opções para pensar e tomar decisões na vida: falso/verdadeiro, claro/escuro, quente/frio, sim/não, largura/comprimento, tempo/espaço, etc.

Considerando que o espaçotempo é uma superfície quadridimensional, pensá-lo, visualizá-lo, compreendê-lo e aplicá-lo adequadamente à vida cotidiana envolve superar essa limitação binária humana. Fleming sugere visualizar o espaçotempo entendendo-o como uma superfície bidimensional formada por apenas duas coordenadas: espaço e tempo (1989b). Nesta superfície os eventos (acontecimentos) se distribuem e se localizam em pontos bem definidos, de forma objetiva e independente da posição do observador. Desta forma, a lesão aos direitos de populações futuras, no contexto espaçotemporal, possui sistemática semelhante à das lesões no sistema dos direitos de vizinhança.

As gerações futuras podem ser pensadas como populações vizinhas das gerações presentes, assim como estas gerações presentes e atuais são vizinhas das populações passadas. Lesar uma geração futura é o mesmo que lesar um vizinho situado no mesmo plano espaçotemporal. Passado, presente e futuro são meros pontos espaçotemporais, meras coordenadas de uma mesma dimensão cosmológica, também espacial só que quadridimensional, onde o tempo funciona como quarta coordenada do espaço tridimensional já conhecido. Neste cenário astrofísico e cosmológico, as diferentes gerações (passadas, atuais e futuras) estão simplesmente situadas ao longo das coordenadas de um certo espaçotempo.

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Por ser este um tema que se encontra na fronteira do conhecimento, sendo complexo e profundo até mesmo para os cientistas que se debruçam diuturnamente sobre ele, como Stephen Hawking, existe certa especulação sobre universos e existências paralelas. Especula-se nos meios astrofísicos sobre populações que, para nós são chamadas de "passadas", estariam levando suas vidas paralelamente em algum ponto do espaçotempo, ponto esse considerado "evento" ou "acontecimento". O mesmo pode ser dito, especulativamente, em relação às populações "futuras", que por estarem levando suas vidas paralelas em algum ponto das coordenadas de espaçotempo, podem ser atingidas por atos da geração "atual" (assim como povos de outro país são atingidos por atos de nações vizinhas).

Mas deixadas as especulações de lado, e baseando-se no que de concreto já foi provado pela astrofísica, o fato objetivo é que o tempo é uma coordenada da superfície quadridimensional conhecida como espaçotempo, sendo possível apresentar soluções para o paradoxo temporal do direito ambiental: como um juiz contemporâneo poderia, ao constatar danos históricos originados no passado, aplicar o direito presente com vistas a garantir interesses de gerações futuras e, também, preservá-las ou repará-las no que tange aos danos acumulados e progressivos que avançam para o futuro em decorrência do cenário de hiperextensão temporal típica da mineração?

Para solver a equação acima, é útil pensar a reparação transgeracional de danos ambientais como um problema a ser solucionado entre gerações vizinhas espaçotemporais, através do mecanismo de acoplamento estrutural apresentado na teoria do direito como sistema autopoiético, trazida por Niklas Luhmann. A proposta do presente artigo baseia-se em um tipo de acoplamento estrutural do direito com as demais ciências que podem lhe informar o conteúdo e, através de processo comunicativo, suprir-lhe de informações necessárias à própria evolução, em um típico processo de autoprodução e de autoregulação.

3 AUTOPOIÉSIS: BASES FILOSÓFICAS DA REPARAÇÃO TRANSGERACIONAL

O instituto jurídico da reparação transgeracional de danos socioambientais, por ser uma proposta de âmbito intertemporal, isto é, por ser um direito que se pretende aplicar continuamente ao longo da escala temporal hiperextensiva do contexto da mineração, apresenta como principal necessidade uma base filosófica robusta que lhe dê suporte e condições de legitimidade.

Para delinear as bases filosóficas do instituto, será feita uma breve abordagem sobre o jusnaturalismo, especialmente os motivos astrofísicos que levaram à sua

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derrocada, como forma de reforçar correntes filosóficas que lhe são opostas (pós-positivismo, historicismo e sociologismo), mas que podem solucionar a questão das bases de um direito mutante e hiperextensivo no tempo como é a reparação transgeracional de danos socioambientais. Ao final da exposição sobre cada uma destas bases filosóficas, será demonstrada de que forma ambas se interpenetram e se interconectam numa ótica de sistemas autopoiéticos.

3.1 O DESMORONAMENTO DO JUSNATURALISMO

Ao investigar-se o instituto da reparação transgeracional, a primeira dúvida que surge é sobre o seu fundamento jusfilosófico: como compor um direito que, embora previsto objetivamente nos textos do ordenamento jurídico, possui todavia uma natureza mutante? Embora o presente trabalho utilize como marco teórico o pós-positivismo e suas aproximações com o historicismo e com o sociologismo empírico, numa visão autopoiética do direito em Niklas Luhmann; a abordagem prévia do jusnaturalismo será necessária.

Isto porque o jusnaturalismo opõe-se diametralmente àquelas outras correntes jusfilosóficas (Poletti, 1991, p. 133). Assim, a idéia de fazer estas breves considerações destina-se a demonstrar que o jusnaturalismo ruiu e, assim, ressaltar as demais correntes. Aliás, esta é uma das questões de que mais se ocuparam os filósofos do direito: justamente saber qual o fundamento do ordenamento jurídico, em que bases ele se assenta, qual a sua origem e quais concepções informam-lhe o significado.

Neste sentido, surge o jusnaturalismo propugnando a existência de normas que não são criadas pela humanidade. Para esta corrente, a base do ordenamento jurídico transcende o ser humano por apoiar-se em um metadireito natural, pré-existente às sociedades humanas. Segundo o estoicismo helênico, este direito natural teria origem na natureza cósmica, caracterizada pela perfeição, ordem e equilíbrio do Universo (Gaarder, 1996, p. 148). A teologia medieval acreditava ser o direito revelado por Deus (Bastos, 1992, p. 6), idéia que de tão metafísica e abstrata acabou abandonada e afastada das discussões científicas. Finalmente, os racionalistas acreditam que o direito natural é fruto da razão humana; sendo portanto expressão de uma tal natureza humana que pré existe às suas diferentes organizações políticas, sociais e econômicas (Nader, 1992, p. 408).

Referido direito natural é um direito ideal, um direito supremo e, por isso, eterno, universal e imutável a servir de modelo perfeito, para o legislador, como expressão do direito bom e justo (Fiuza, 2000, p. 42). Universal, eterno e imutável porque conforme a

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natureza do Universo Cósmico e, também, porque conforme a natureza humana que, segundo os jusnaturalistas, possuiriam tais características.

Produto do jusnaturalismo, o Direito Romano universalizou-se na Idade Média porque partiu dos princípios da razão natural para tornar-se a razão escrita, um tipo de direito comum à toda a humanidade e de valor universal (Poletti, 1991, p. 138). O equívoco no qual incorreram os jusnaturalistas foi justamente o de supor que o Universo Cósmico e o ser humano possuem uma natureza eterna, imutável e universal. A astrofísica e a biogeografia evolucionista demonstram que nem o ser humano, nem o Universo Cósmico possuem tais características, conforme adiante será melhor explicitado. Neste sentido, Fiuza questiona: "será mesmo que a natureza humana é uma só, imutável no tempo e no espaço?" (2000, p. 43).

Conquanto a teoria jusnaturalista tenha sido utilizada como fundamento da Revolução Francesa no século XVIII (Bastos, 1992, p. 7 e 9), urge ressaltar que o jusnaturalismo apresenta problemas justamente neste ponto: a dinâmica da mudança dos ordenamentos. Como pode um ordenamento jurídico evoluir se ele estiver baseado numa concepção jusnaturalista que proclama a imutabilidade, a eternidade e a universalidade de um pretenso e suposto direito justo?

No caso específico da Revolução Francesa, o jusnaturalismo surgiu como expressão da razão natural humana, isto é, como expressão de uma ordem justa em contraposição às injustas estruturas feudais teológicas. Neste esforço, abriu-se espaço para que as convenções escritas adquirissem primazia em detrimento dos direitos revelados divinamente, criando-se assim as condições históricas para o surgimento do positivismo legalista napoleônico (ibidem). Porém, antes que se desenvolvessem as teorias positivistas que iriam dar suporte jusfilosófico à nova ordem burguesa, merece ser questionado o jusnaturalismo neste ponto.

Como seria possível proporcionar à nova ordem burguesa condições de evolução jurídica, se referida ordem mantivesse-se apoiada no mesmo jusnaturalismo que a criou? A concepção jusnaturalista, por pretender que o direito seja eterno, imutável e universal, choca-se frontalmente com a realidade dinâmica de alternância que ocorre entre diferentes sistemas sociais, políticos e econômicos, em cada tempo e em cada espaço. Este problema ocorre porque se, na ótica jusnaturalista, o direito é eterno, universal e imutável, então pouco ou nenhum espaço restaria para o dinamismo das transformações sociais e para as particularidades e contingências nacionais ou locais.

Expressão jurídica da alteridade, ainda mais na idade contemporânea, época marcada pela existência de sociedades pós-industriais de massa, pluralistas e diversas,

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em um mundo revolucionado pelas tecnociências cibernéticas; o direito hoje é mutante autopoiético (Casanova, 2006, p. 268).

Além dos pressupostos jusnaturalistas serem equivocados, ainda que não o fossem, releva reconhecer que em um mundo marcado por sistemas complexos autopoiéticos, como o atual, mostra-se incompatível a idéia de imutabilidade, universalidade e eternidade do direito. Uma das provas de que o direito natural não é tão universal, eterno e imutável como apregoado pelos jusnaturalistas, pode ser encontrada na análise do Direito Romano. Considerado de base jusnaturalista racionalista (Poletti, 1991, p. 138), o ordenamento jurídico romano tratava o direito à vida de forma bem diferente do tratamento que a atual Constituição Federal brasileira lhe confere. Àquela época a vida não tinha a proteção de hoje. De acordo com o Princípio XIX da compilação conhecida como Jus Papirianum, era "lícito ao pai e à mãe banir, vender e matar os próprios filhos". Já a Lei das XII Tábuas, previa em seu Princípio II da Tábua Quarta: "que o pai tenha sobre o filho o direito de vida e de morte" (Altavila, 1989, p. 87 e 94).

Interessante notar que o direito à vida é considerado, hoje, um direito comum a todos os seres humanos, possuindo valor absoluto, universal e intemporal; sendo de base jusnatural portanto (Silva, 1997, p. 173). É inviolável conforme o art. 5º da Constituição Federal. O direito romano também era considerado jusnatural, pois baseado na razão humana, daí comum à toda humanidade como um valor universal (Poletti, 1991, p. 138). No entanto não era garantido o direito à vida em seus textos legais. Como explicar esta incongruência de tratamento, do direito à vida, verificada no Direito Romano contraposto ao direito moderno; o Direito Romano supostamente universal, eterno e imutável porém contrastando com o atual direito à vida, de caráter universal também?

Só isso já seria suficiente para mostrar que o propalado direito jusnatural não existe nem nunca existiu, mormente sob as pseudo características de universal, eterno e imutável.

Aqui já se pode afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro, dentro do qual propõe-se a nova espécie reparatória transgeracional, é um sistema autopoiético dinâmico, em permanente transformação, definição e redefinição, adequado à hipercomplexidade da sociedade atual (Luhmann, 1983, p. 45), que se autoconstrói porém em contato com o meio.

Outras provas do desmoronamento do jusnaturalismo estão nas recentes descobertas da astrofísica, em Stephen Hawking, e da biogeografia evolucionista, em

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Jared Diamond. Segundo a cosmologia de Hawking, o século XX viu transformada a visão de mundo do homem, pois descobriu-se que "o tempo e o espaço são curvos e inseparáveis, que o universo estava se expandindo e que teve um começo no tempo" (2005, p. 89). Logo o universo não é estático ou imutável, nem eterno como foi proposto durante vários séculos pelos defensores da corrente do jusnaturalismo.

A crença em um Universo estático e imutável começou a ruir quando, em 1922, o físico e matemático russo Alexander Friedmann se dispôs a explicá-lo. Utilizando-se das descobertas de Friedmann, Stephen Hawking explicitou melhor esta questão, dizendo que existem três possibilidades para o futuro do Universo. No primeiro modelo, expansão em velocidade lenta constante até que a gravidade provoque sua contração de volta ao ponto inicial super denso, repetindo o colapso verificado no Big Bang; no segundo modelo, expansão em velocidade veloz constante de modo que a gravidade nunca conseguirá pará-lo e no terceiro modelo, expansão em velocidade apenas suficiente para evitar seu colapso (Hawking, 2005, p. 66/71).

No entanto, resultados de observações recentes "indicam que, na verdade, a taxa de expansão do Universo não está desacelerando, mas acelerando. Nenhum dos modelos Friedmann faz isto!" (Hawking, 2005, p. 74). De acordo com Hawking, é como se uma explosão estivesse ganhando energia e não dissipando-a. "Que força poderia ser responsável por estar afastando o cosmo ainda mais rápido?" (ibidem). Neste ponto, especula-se sobre a existência de antimatéria e antigravidade. Mas independente do que vai acontecer no futuro com o Universo, releva notar que o Sol terá apenas mais uns cinco bilhões de anos de duração; pois como é uma estrela, queima combustível no seu interior durante um tempo certo e limitado (Hawking, 2005, p. 82).

Assim que chegar ao seu fim, irremediavelmente levará o Planeta Terra junto para o colapso, o que afasta por mais este motivo a idéia jusnaturalista de um direito natural eterno.

As pesquisas de Hawking acerca do Universo levaram-no a investigar também um outro corpo celeste, cujas características singulares anularam a percepção dos jusnaturalistas sobre leis universais que teriam validade em todos os tempos e lugares. A idéia de um direito natural com características universais, que o jusnaturalismo defende, sofreu profundo abalo na medida em que Hawking demonstrou que o Universo não tem características tão universais como se pensava; suas leis colapsam em alguns locais.

A descoberta de corpos celestes conhecidos como buracos negros, invisíveis ao olhar humano mas comprováveis pelos seus efeitos gravitacionais sobre corpos

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vizinhos, contribuiu para derrocar a idéia jusnaturalista de leis físicas supostamente universais. Observações e medições realizadas através do Telescópio Espacial Hubble, que focaliza raios X e raios gama ao invés de luz visível, comprovaram empiricamente a existência dos buracos negros (Hawking, 2005, p. 85). Tal fato permitiu comprovar aquilo que Eisntein já defendia através de suas equações: a de que não existe um tempo absoluto e linear, mas que existem diversos tempos relativos e curvos, os quais são intimamente influenciados pela força da gravidade.

Embora comprovado que o tempo é relativo e que o Universo teve um início, o que desfaz a idéia de eternidade; as descobertas referentes aos buracos negros trouxeram outro problema: os efeitos de sua força gravitacional sobre a luz geraram uma singularidade. A força gravitacional de um buraco negro é tão gigantesca que nem mesmo a luz consegue escapar de sua superfície. Considerando que nada pode ser mais veloz que a luz, isto significa que nada mais pode escapar do buraco negro. Demonstrou-se que quanto maior a força gravitacional de um corpo menor é a percepção do tempo para quem está sob sua influência. Assim, em campos gravitacionais imensos, tais quais dentro de um buraco negro, o tempo simplesmente se dilataria ao infinito.

Essa conclusão, segundo Hawking, cria dentro do universo um ponto conhecido como "singularidade", onde todas as leis físicas da relatividade se despedaçam, pois a matemática não consegue manusear números infinitos (2005, p. 85 e 90). Tanto os buracos negros, como o momento exato da origem do Universo, conhecido como Big Bang, quando toda a massa existente hoje no Universo estava concentrada em um único ponto, de dimensão espacial zero e densidade infinita; são conhecidos na astrofísica como singularidades. Diante destas comprovações trazidas pela astrofísica, conclui-se que os jusnaturalistas equivocaram-se ao defender a pré-existência de um suposto direito natural, anterior à humanidade, e que teria suposta validade universal, duração eterna e imutável porque conforme a natureza do Universo Cósmico e as leis que o regem.

A cosmologia de Hawking mostrou que as leis físicas que regem o Universo não são tão universais, pois diante de algumas singularidades todos seus postulados despedaçam-se. Além disso, ficou provado que o Universo em si está em expansão e que não existe tempo absoluto (eternidade), mas apenas percepções diferentes do tempo conforme a força gravitacional seja maior ou menor em relação ao observador.

A biogeografia evolucionista de Jared Diamond traz outra descoberta científica que também conduz o jusnaturalismo à sua derrocada, em relação àqueles que defendem ser a razão e a natureza humana a base de um direito natural supostamente imutável e universal. Para esta corrente do jusnaturalismo, denominada racionalista, o direito

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natural é eterno, imutável e universal porque conforme a natureza humana, a qual teria estes mesmos atributos.

Diamond, no entanto, faz um interessante percurso pela história biológica da espécie humana, analisando a evolução dos hominídeos sob a ótica da antropologia, da fisiologia linguística e da biogeografia. Enfatiza a herança primata do ser humano atual, ao verificar que na sua arquitetura genética existem semelhanças com o macaco bonobo e com chimpanzé comum, localizando a origem da espécie humana nos antigos hominídeos africanos (Cherfas, 1991, p. 41).

Isto desmonta a idéia de uma natureza humana eterna e imutável, pois se a espécie humana teve sua origem nos hominídeos africanos, e evoluiu até os dias atuais, então o ser humano possui natureza mutável e temporal, com origem bem definida e delimitada. Para Diamond, o ser humano é apenas mais um chimpanzé, apenas mais um animal dentre os outros existentes na fauna do planeta Terra, e que ele denomina "o terceiro chimpanzé", um chimpanzé aculturado (ibidem). Sua posição é claramente biocêntrica, não havendo razão alguma para que o ser humano considere-se um ser especial e único no contexto da ecologia terrena e, quiçá, no contexto da ecocosmologia.

Diamond ressalta que as características tradicionalmente atribuídas como distintivas da espécie humana, tais quais a habilidade de utilizar instrumentos e de cooperar, também são verificadas em primatas conforme suas observações (Cherfas, 1991, p. 42). Referidas observações mostraram que a competição por território, os instintos de combate, os instintos de proteção alheia e solidariedade, comportamento sexual, agressões gratuitas contra indivíduos da mesma espécie, por puro sadismo; são comuns a humanos e primatas (ibidem).

Isto reforça sua idéia de que o ser humano é apenas mais um animal na natureza, com os mesmos instintos, bons ou ruins, que seus ancestrais primatas; mas por ter desenvolvido cultura criou leis para regular e evitar condutas danosas ao corpo social coletivo. Diamond destaca como traço distintivo da espécie humana, e que a diferencia dos demais animais, a habilidade de fazer um fino controle dos sons vocalizados em sua laringe. A linguagem só foi possível ao ser humano em decorrência da especial evolução de sua laringe, o que lhe possibilitou desenvolver e transmitir cultura. Para Diamond, o ser humano é o "terceiro chimpanzé", um chimpanzé sem pêlos e muito aculturado (ibidem).

Sob tal ótica, é lícito afirmar que qualquer outro chimpanzé que vier a passar pela mesma evolução de sua laringe, tenderá a desenvolver fala e linguagem, tornando-se também capaz de racionalizar, criar, preservar e transmitir cultura tais quais os seres

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humanos. Estes resultados da pesquisa de Diamond, permitem afirmar que a natureza humana não é universal nem superior, mas contingencial e integrada ao processo evolutivo das espécies. Por ter desenvolvido a laringe e a fala pôde, assim, o ser humano produzir cultura.

Os resultados alcançados por Diamond contribuem, inclusive, para reforçar a visão biocêntrica do direito ambiental e conduzem à idéia de igualdade biosférica, conceito que aproxima o animal humano dos demais integrantes da fauna no mesmo nível de dignidade. Assim, a dignidade da pessoa humana passa a ser um conceito acompanhado pela noção de dignidade, também, da natureza (fauna e flora). Possibilita considerar a dignidade não só da vida humana, mas a dignidade de qualquer vida "em todas as suas formas", como centro da proteção jurídica do art. 3º, inc. I da Lei nº 6.938/81 e do art. 225 da Constituição Federal, que utilizam os vocábulos "todos" e "todas".

Autoriza ampliar a exegese do art. 5º da Constituição Federal, para incluir a fauna no vocábulo "todos sem distinção de qualquer natureza". O conceito de direitos universais, nesse sentido, melhor se aplicaria caso fosse estendido para toda a biosfera e não ficasse limitado apenas a um único espécime animal: o ser humano.

3.2 APROXIMAÇÕES DO PÓS-POSITIVISMO E O DOGMA DA COISA JULGADA

Contrastando diametralmente com o jusnaturalismo, encontra-se o positivismo jurídico. Expressão do positivismo filosófico, transportado para o campo jurídico, esta corrente sustenta que a base do ordenamento jurídico é unicamente a lei do Estado. O fundamento da lei estatal reside no seu valor formal, independentemente do seu conteúdo justo ou injusto (Poletti, 1991, p. 134). Enquanto o jusnaturalismo é falho na tentativa incongruente de atualizar o ordenamento jurídico, porquanto propugna uma ordem natural justa, imutável e eterna; o positivismo tem como limitação, além do idealismo e da rigidez formalista, a temática relacionada à valoração ética.

O problema ético e axiológico é uma limitação para o positivismo jurídico, na medida em que seus postulados propõem que o objeto da ciência jurídica deve ficar isolado no direito positivo, posto pelo Estado: "não se considera sua valoração ética" (Poletti, 1991, p. 184). Ao fundir, em uma única ordem monista, o direito com o Estado, o positivismo jurídico exalta a dimensão formal do direito, fruto de um idealismo que, ao ver a ordem jurídica como "expressão concreta de um conjunto de princípios ideais e imutáveis", dificulta a dinâmica e a evolução do ordenamento (Bastos, 1992, p. 4). Hamurabi, por exemplo, "certo da inalterabilidade do seu código, dos mais antigos e

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conhecidos da humanidade, proibiu, por lei própria, que no futuro viessem suas leis a serem reformadas" (Bastos, 1992, p. 13).

Na versão clássica e exagerada, o positivismo foi conhecido como napoleonismo e propôs a crença de que o documento escrito superaria os tempos e os padrões da convivência futura, interceptando toda e qualquer atividade interpretativa (Bastos, 1992. p. 11/12). Para esta corrente, também conhecida como escola de exegese, seus juristas não admitiam qualquer interpretação da lei que ultrapassasse o sentido literal e gramatical do texto. Durante a ascensão do positivismo na França, o civilista Brugnet chegou a afirmar: "Eu não conheço o Direito Civil, ensino o Code Napoleón" (Bastos, 1992, p. 13). Tal afirmação significou que, embora Brugnet reconhecesse a possibilidade do Direito Civil ser mais amplo que a lei civil, o direito aplicável era somente aquele contido no Código de Napoleão.

Como atualizar e dinamizar então o direito diante do quadro estático e inflexível que o positivismo apresenta? Considerando que o processo legislativo é lento, o que pode ser feito na hermenêutica e na jurisprudência? E como resolver tais questões em um contexto hiperextensivo no tempo como o da reparação transgeracional de danos socioambientais?

No campo do processo legislativo, as atualizações do ordenamento jurídico ocorrem através da edição de novas leis, conforme o procedimento previsto constitucionalmente; todavia o simples fato do surgimento de novas leis não resolve o problema de sua aplicação. Editar uma nova lei não significa que, no ato de sua aplicação, serão considerados os valores e atendidas as necessidades dos seus destinatários, até mesmo porque a idéia de valor é negada pelos postulados positivistas, rígidos, mecânicos e deterministas.

O problema da atualização do direito no positivismo é ainda maior se forem consideradas as características dinâmicas da atual sociedade de sistemas autopoiéticos. O novo paradigma científico emergente das tecnociências, dos séculos XX e XXI, vincula a elaboração de novas teorias à cibernética dos sistemas autoregulados, crescentemente complexos e que se interdefinem pela informação (Casanova, 2006, p. 271). Neste cenário contemporâneo, a teoria auto regulada da cibernética e dos sistemas complexos tornou-se "extensiva às teorias da natureza, do cosmos e da humanidade" (ibidem).

A superação do positivismo jurídico, na forma de um pós-positivismo que se aproxime das escolas jusfilosóficas do historicismo e do sociologismo pode ser pensada aqui dentro do postulado autopoiético dos sistemas complexos auto regulados.

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Importante relembrar porém, antes de adentrar-se nas considerações do paradigma científico autopoiético, que até o século XIX as construções teóricas do direito e demais ciências eram fortemente influenciadas pelo paradigma científico mecanicista Newtoniano.

Ao descobrir a Lei da Gravidade Universal, suscetível de ser confirmada por observações e simulações, Isaac Newton criou em 1.666 um novo paradigma de fazer ciência: o paradigma mecanicista baseado nos cálculos previsíveis e deterministas da mecânica gravitacional (Casanova, 2006, p. 258). Este paradigma mecanicista transformou o critério "exatidão" em axioma informador de todo conhecimento que se pretendesse científico (ibidem, p. 259), irradiando e extrapolando seus postulados para todos os demais ramos do conhecimento, inclusive para as ciências sociais e, dentro destas, para as ciências jurídicas.

Neste contexto, as idéias de previsibilidade, ordem e segurança que marcaram o positivismo jurídico do século XVIII, nada mais foram do que influência recebida pelo paradigma mecanicista e determinista de Newton, que postulava uma "exatidão" científica. Aliás, Jeremy Bentham, filósofo inglês que propôs a redação de códigos em termos claros e precisos, para que não deixassem a menor dúvida de seus comandos, foi considerado o Newton da legislação (Bobbio, 1995, p. 91).

O dogma da imutabilidade da coisa julgada surge naturalmente em decorrência das idéias mecanicistas de exatidão e certeza jurídica aplicadas na salvaguarda do valor "segurança jurídica", muito caro e precioso para a classe burguesa revolucionária sedenta por preservar seus contratos e suas propriedades acumulados ao longo do processo histórico de ruptura do antigo regime monárquico.

Com a cibernética do século XXI emerge o paradigma autopoiético, que faz dos sistemas autoregulados complexos (organizações complexas) o centro do conhecimento científico atual, e desloca o determinismo mecânico da posição hegemônica que ocupava. Casanova sustenta que "dentre as características mais significativas dos sistemas auto-regulados e complexos, destaca-se o fenômeno de auto-organização que aparece na matéria, na vida e na humanidade" (2006, p. 272). A mudança do paradigma científico, abre um vasto campo para os sistemas autoregulados, isto é, para as organizações complexas, sejam elas organizações sociais, econômicas, políticas, filosóficas ou jurídicas.

Dentro de um cenário epistemológico tão revolucionário quanto este, é perfeitamente possível no campo da filosofia jurídica fazer aproximações, e porque não, fusões entre vertentes jusfilosóficas que por muito tempo permaneceram opondo-se

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umas às outras. É o caso, por exemplo, da aproximação do sociologismo e do historicismo com o pós-positivismo. Os países continentais, cujos sistemas jurídicos são o civil law, ainda guardam forte influência juspositivista em seus ordenamentos, e "são acentuadas as reações às propostas de dinamização e ampliação dos espaços interpretativos do direito" (Bastos, 1992, p. 14).

As novas propostas de construção legal têm tímida passagem pelos Tribunais, muito embora a pressão sociologista tenha crescido e se desenvolvido, da mesma forma que cresceu a utilização jurisprudencial "como forma de acompanhar a dinâmica social e evitar o atropelamento do Direito escrito pelos fatos" (ibidem).

Bastos sustenta que o positivismo tem sofrido reações muito maiores do sociologismo e do historicismo do que propriamente do jusnaturalismo (ibidem). Porém hoje, após o desmoronamento do jusnaturalismo, já não tem mais sentido pensar o direito em termos de bipolaridade jusnaturalismo x positivismo. É mais razoável hoje buscar pontos de contato e aproximações entre as correntes filosóficas do direito, do que rupturas, mormente no quadro científico atual revolucionado pelas tecnociências, o que o torna dinâmico sob a influência do paradigma autopoiético.

Niklas Luhmann vê o direito como um sistema autopoiético e, utilizando-se de um conceito tomado da teoria de Humberto Maturana, explica que a ligação entre o direito (sistema fechado) com o meio ocorre através de acoplamento estrutural comunicativo. Neste sentido a sociedade como um todo é considerada um sistema (meio ou entorno), dentro do qual coexistem subsistemas políticos, econômicos, científicos e, inclusive, jurídicos (Luhmann, 1983, p. 84). O direito consegue assim ter dinamismo ao comunicar-se com os demais subsistemas, pois sendo também um subsistema imerso no sistema social, ou sendo um sistema inserido no meio (entorno) recebe o que Luhmann denomina de irritações do meio. Referidas irritações são efeitos gerados no ambiente e que interferem no sistema. Estas interferências aparecem como informações que são captadas pelo sistema a partir do meio, concretizando o que Casanova define como sistemas que se autoproduzem (autopoiéticos).

O pós-positivismo, acoplado estruturalmente ao sociologismo e ao historicismo, enquanto subsistemas filosóficos, pode servir de base para sustentar o instituto da reparação transgeracional de danos socioambientais e para dar, assim, a flexibilidade necessária a esse direito de natureza mutante e hiperextensiva no tempo. O pós-positivismo abre a Constituição para os valores, que são tornados jurídicos através da normatividade dos princípios; teoriza a materialidade do Direito, consagra e admite cinco gerações de direitos fundamentais (Bonavides, 2009, p. 1).

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O constitucionalismo moderno promove uma volta aos valores, uma reaproximação entre ética e Direito. Migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado tempo e lugar, "materializam-se em princípios que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente" (Barroso, 2004, p. 326). A Constituição passa a ser encarada como um "sistema aberto" de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central. O princípio da dignidade da pessoa humana despontou no Brasil nos últimos anos como um valor civilizatório relacionado a condições materiais de subsistência (idem, p. 328 e 333/334).

O pós-positivismo, na sua vertente constitucional, aproxima-se portanto do historicismo jurídico, o qual valoriza a cultura e o costume de cada povo, propugnando que longe do direito ser uma criação exclusiva da razão humana e estática da lei, é criado em função de necessidades concretas, é derivado de experiências e está sujeito a mudanças. Bachoffen, pensador historicista, resume esta corrente ao dizer que "um direito natural que se move fora da existência de um povo, que se encontra fora da história, que não tenha relação alguma com situações históricas é algo impossível" (Bastos, 1992, p. 18).

Léon Duguit, sociologista, inaugura esta corrente filosófica aduzindo que havia uma verdadeira "revolta dos fatos contra os códigos", que o dinamismo da sociedade ultrapassa o rigorismo da lei e a sobrevivência do Direito depende de sua constante e sucessiva adaptação às inclinações éticas, morais e econômicas da sociedade (ibidem, p. 19). Neste processo adaptativo provocado pelas alterações de ordem moral ou econômica, ou pelo aparecimento de novos fatos sociais, é que a jurisprudência assume papel significativo, não apenas como fator de aplicação do direito, mas como fator de modificação. Sem abandonar o mínimo necessário de segurança e previsibilidade, o pós-positivismo pode abrir-se aos valores sociais contemporâneos e futuros, utilizando-se de uma exegese aberta dos princípios normatizados que regem o sistema jurídico e pairam sobre as regras.

Nesta tarefa, o sociologismo empírico e o historicismo jurídico unem-se ao pós-positivismo, formando um organismo filosófico autopoiético complexo, onde referidas correntes jusfilosóficas funcionam como subsistemas que se comunicam e se redefinem em permanente contato com os demais subsistemas sociais. A grande mudança trazida pelos sistemas autoregulados (autopoiéticos), sejam eles jurídicos, filosóficos, econômicos ou científicos; é que limitou o determinismo (leia-se positivismo) e abriu vasto campo para novos sistemas que se inserem em sistemas "evolutivos e históricos" (Casanova, 2006, p. 272). Dentro desta dinâmica o direito, enquanto subsistema inserido no sistema social (meio ou entorno), comunica-se com a economia, a sociologia, a política, a biogeografia, a antropologia, a história, a geofísica, a biologia, a ecologia e, porque não, com a astrofísica.

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O sistema hipercomplexo, jurídico, filosófico e científico, que surge de todas essas combinações, interconexões e transposições, é que vai permitir a concretização da reparação transgeracional de danos ambientais advindos da mineração na Amazônia, como um direito mutante hiperextensivo no tempo, um direito do futuro.

4 BASES LEGAIS DA REPARAÇÃO TRANSGERACIONAL: REPENSANDO A SEGURANÇA NA ERA DO HIDROGÊNIO

A Constituição Federal, em seu art. 225, caput in fine, impõe ao Poder Público (no qual está incluído o Poder Judiciário) o dever de defender o meio ambiente "para as futuras gerações", dever imposto a "todos" como expressão do princípio da solidariedade. Conforme demonstrado na introdução deste artigo, o setor bancário atua como condição sine qua non para a realização da atividade mineradora, numa relação quase societária. A Constituição Federal dispõe em seu art. 192 que o sistema financeiro nacional destina-se a promover o "desenvolvimento equilibrado do País" e que deve "servir aos interesses da coletividade", expressões essas que consagram o basilar princípio de direito ambiental do desenvolvimento sustentável, e o vinculam especialmente aos bancos.

A participação do sistema financeiro em empreendimentos ambientais faz com que o seu dever, de atender aos interesses coletivos, amplie-se de modo a alcançar também as coletividades futuras, conforme o dever imposto a "todos" no art. 225 da Constituição. Ademais, em um juízo de razoabilidade, é conveniente chamar os bancos à responsabilidade prevista na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81). Por possuírem um melhor suporte financeiro e patrimonial, apresentam maior solidez e solvência para as reparações transgeracionais por danos decorrentes da mineração. A Lei nº 6.938/81 prevê responsabilidade objetiva do poluidor, direto ou indireto, pela reparação dos danos causados, não só ao meio ambiente, mas também a terceiros afetados por sua atividade (art. 3º, IV c/c art. 14, IV, § 1º), como é o caso das populações historicamente abandonadas pela mineração.

A mesma lei impõe aos bancos o dever de condicionar a aprovação de financiamentos de projetos ao prévio licenciamento ambiental, devendo ainda tais entidades financeiras fazer constar dos projetos medidas de controle da degradação ambiental (art. 12, caput e parágrafo único). Tais deveres são expressões concretas do princípio da prevenção de danos, o que faz destas entidades agentes estratégicos na gestão de riscos ambientais (Tosini, 2005), de modo que podem controlar a liberação de capital e evitar danos socioambientais se, acaso, perceberem que o empreendimento não é seguro.

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Ao ressalvar a expressão "sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal", o art. 14 da Lei nº 6.938/81 amplia o alcance do dever reparatório e permite que outras disposições previstas em lei federal possam ser usadas como base da reparação transgeracional. Neste sentido, o art. 944 do Código Civil brasileiro pode servir como critério quantificador para definir a extensão temporal da reparação transgeracional, pois prevê que "a indenização mede-se pela extensão do dano". Conforme foi demonstrado, as noções de tempo e espaço foram ampliadas após as descobertas científicas da astrofísica e, também, pela ecologização do pensamento. Tempo e espaço foram unidos em um mesmo conceito, onde o espaçotempo é o palco dos acontecimentos da vida humana.

Os danos socioambientais decorrentes da mineração atingem, de forma histórica, acumulada e continuada coletividades difusas e extensas de pessoas ao longo do espaçotempo, o que exige ampliação e redefinição dos institutos reparatórios de direito civil e de processo civil (Sampaio, 2003, p. 270), e permite pensar uma reparação transgeracional que também seja cumprida de forma continuada e acumulada ao longo de várias gerações humanas. Estes danos ultrapassam limites geográficos e temporais. A idéia de danos ambientais transfronteiriços, que afetam vários países, agora amplia-se para a idéia de danos transespaçotemporais, que afetam populações situadas em diferentes eras da história, populações vizinhas no plano espaçotemporal.

Conforme demonstrado na parte introdutória, estima-se que a atividade exploratória, só na jazida de minério de ferro em Carajás, irá durar quatrocentos anos, o que significa dizer que eventuais danos socioambientais irão atravessar a fronteira espaçotemporal contínua de quatro séculos. Considerando que a indenização mede-se pela extensão do dano; e que a extensão espaçotemporal do dano, neste caso, será diretamente proporcional à duração da atividade que o produziu (quatrocentos anos), é lícito dizer que os responsáveis pela mineração, e aqui incluem-se os bancos financiadores, deverão reparar tais danos durante quatro séculos seguidos.

A justificativa para tanto é o princípio da proporcionalidade espaçotemporal aplicado na defesa da dignidade das gerações humanas, presentes e futuras, valor considerado supremo no atual ordenamento constitucional brasileiro, e que acopla-se aos postulados de solidariedade social, erradicação da pobreza, desenvolvimento nacional, todos previstos no art. 1º, III c/c art. 3º, I/III da Constituição Federal, valendo repisar que no tocante ao sistema financeiro nacional, este recebeu especial incumbência de "promover o desenvolvimento" equilibrado do país e servir aos interesses da coletividade (art. 192 do Texto Magno). Em suma, o normal da República brasileira é o desenvolvimento equilibrado e sustentável. Onde e quando não houver desenvolvimento será preciso apurar responsabilidades.

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Dos princípios constitucionais acima, é que se extrai uma exegese do art. 14, IV, § 1º da Lei nº 6.938/81 para que, no momento em que forem constatados danos socioambientais provocados pela mineração, seja incluída na parte dispositiva da sentença condenatória o dever do banco financiador de reparar as populações atingidas sob a forma de projeto de desenvolvimento, pois a isto o sistema financeiro nacional foi destinado constitucionalmente.

Através desta nova espécie reparatória, as futuras gerações que historicamente costumam ser abandonadas em uma "cultura de pobreza", após exaurida a jazida mineral (Ribeiro, 1995, p. 345/356), terão garantidos seus direitos transgeracionais de desenvolvimento, recebendo reparação em forma de projeto coercitivo de desenvolvimento, um projeto que será elaborado por peritos no curso da instrução processual. Os danos a serem reparados abrangem de forma ampla toda a poluição e degradação ambientais causadas, tanto ecológicas quanto socioeconômicas, conforme previsão legal contida no art. 3º, III e alíneas da Lei nº 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente).

Considerando que eventual sentença condenatória, ao estipular a obrigação de um banco financiador de reparar durante quatrocentos anos os danos causados pela mineração, deverá ser cumprida também durante quatro séculos, como definir o conteúdo da prestação? A dúvida faz todo sentido porque na data da prolação desta sentença, eventual projeto de desenvolvimento que se faça constar no seu dispositivo condenatório, será elaborado nos limites das necessidades atuais e do estado histórico da sociedade lesada. Como elaborar uma indenização projeto de desenvolvimento e fazê-la constar de forma líquida e determinada dentro da sentença judicial, se muito provavelmente as necessidades e as condições socioeconômicas destas populações mudarão ao longo de quatro séculos, forçando redefinições do projeto desenvolvimentista?

Há, portanto, risco da sentença prolatada no presente não mais ser adequada no futuro. Neste caso, o historicismo e o sociologismo jurídicos permitem pensar essa reparação como um direito mutante que, de forma autopoiética, terá o seu cumprimento redefinido no tempo com a participação das populações destinatárias, as quais irão informar o juiz contemporâneo sobre suas necessidades em audiências públicas, com participação de peritos que em cada época irão auxiliar na redefinição das bases do projeto desenvolvimentista.

A base legal para essas redefinições está contida no art. 471, I do Código de Processo Civil brasileiro, cuja aplicação aos processos coletivos é autorizada pelo art. 19 da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), no sentido de permitir ao juiz reexaminar uma questão já decidida quando, tratando-se de relação continuativa, houver modificação no estado de fato ou de direito. A reparação será redefinida pelos próprios

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destinatários ao longo do tempo. Eventual empecilho que este reexame possa sofrer pelo dogma da imutabilidade da coisa julgada, é facilmente superado ao considerar-se que a noção de segurança que inspirou a elaboração deste instituto jurídico não mais se faz presente nos dias atuais.

Enquanto segurança na idade média significava pertencer à terra e seguir os preceitos ditados pela ordem religiosa da Igreja; por ocasião da Revolução Francesa, segurança passa a ser sinônimo de propriedade, domínio e acúmulo de bens, previsão e certeza contratual. Com a revolução fóssil no final do século XVIII, a introdução de uma nova fonte energética no mundo (petróleo), acelera a vida e os transportes, fazendo segurança ter conotação de autonomia e mobilidade no automóvel. Após a revolução cibernética, já no século XX, segurança passa a significar acesso à informação contida na rede mundial de computador, estar conectado na internet. Na atual conjuntura que o mundo passa, período pós-petróleo, marcado pelo pico da produção petrolífera e decréscimo contínuo acentuado das últimas reservas disponíveis; com o início da nova economia movida pelo hidrogênio, combustível que vai girar o planeta Terra a partir deste século XXI, segurança agora passa a ser sinônimo de preservação ambiental, pois do equilíbrio dos ecossistemas de todo o planeta Terra é que dependerá a disponibilidade hídrica abundante para geração do hidrogênio. "A questão ambiental passa a ser o centro das discussões sociais, econômicas e políticas"; a tarefa da biosferopolítica é alcançar essa segurança (Rifkin, 2003, cap. 9).

CONCLUSÃO

Logo, a reparação transgeracional de danos socioambientais, a ser implementada no setor da mineração, e suportada pelos bancos financiadores, é um instituto jurídico plenamente factível e necessário para que o paradoxo temporal do direito ambiental seja resolvido e bem equacionado. Possibilita que um juiz contemporâneo, ao deparar-se com danos históricos originados no passado, mas acumulados e progressivos em direção ao futuro, possa dar resposta justa e adequada em favor de gerações futuras situadas em um plano espaçotemporal complexo e hiperextenso, utilizando-se de uma hermenêutica constitucional principiológica, acrescida de elementos democratizantes da função jurisdicional, de modo a permitir que as gerações afetadas participem do processo decisório, via audiências públicas.

Os princípios da extraterritorialidade do direito, que se aplicam às relações entre pessoas situadas em diferentes países, podem ser acoplados estruturalmente aos princípios do direito de vizinhança, numa construção jurídica hipercomplexa sob a ótica dos sistemas autopoiéticos, em Luhmann e Casanova, já que o tempo é apenas uma coordenada existente na superfície conhecida como espaçotempo (Hawking, 2005, p. 106 e 154). A proposta acima resume-se em solucionar os conflitos intergeracionais (entre diferentes gerações) da forma como se solucionam os conflitos intrageracionais

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(entre gerações presentes), tratando o dano intertemporal como um dano cometido entre vizinhos espaçotemporais.

A reparação transgeracional, destinada a atravessar vários séculos, não conflita de forma alguma com ideais de segurança jurídica contidos no dogma da coisa julgada, eis que na atual era do hidrogênio, segurança passou a ser sinônimo de preservação do meio ambiente, elemento nuclear norteador de qualquer exegese que pretenda ser humanitária.

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