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CONSELHO PERMANENTE DA OEA/Ser.G ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS CP/CAJP-1786/01 17 abril 2001 COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS Original: português E POLÍTICOS Grupo de Trabalho sobre Democracia Representativa SESSÃO ESPECIAL SOBRE DEBILIDADES INSTITUCIONAIS E GOVERNABILIDADE

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CONSELHO PERMANENTE DA OEA/Ser.GORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS CP/CAJP-1786/01

17 abril 2001COMISSÃO DE ASSUNTOS JURÍDICOS Original: português

E POLÍTICOS

Grupo de Trabalho sobreDemocracia Representativa

SESSÃO ESPECIAL SOBRE DEBILIDADES INSTITUCIONAISE GOVERNABILIDADE

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GRUPO DE TRABALHO SOBRE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA DA OEAComissão de Assuntos Jurídicos e Políticos

Sessão Especial sobreDebilidades Institucionais e Governabilidade

Expositor: Alain TouraineDebatedor: Aloysio Nunes Ferreira

SECRETARIA GERAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICAAssessoria Técnica12 de abril de 2001

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1. O QUE É GOVERNABILIDADE ?

Governabilidade significa estabilidade política e institucional e eficácia decisória e administrativa;

É uma questão que diz respeito à continuidade das regras e das instituições e ao ritmo, à coerência e à intensidade das decisões;

É a linha mais curta entre o INPUT da sociedade e o OUTPUT do governo;

É, em linhas gerais, a capacidade de adaptação permanente entre a regra e o ato, entre a regulação e os seus resultados, entre a demanda e a oferta de políticas e de serviços públicos;

A governabilidade depende da governança, isto é, do nível de amadurecimento da sociedade organizada e de sua capacidade de assumir responsabilidades partilhadas na implementação da decisão- e na arte de bem governar.

Esta constatação induz a três questões centrais:

1. Qual a intensidade da demanda de políticas públicas existente, isto é, qual a pressão coletiva por serviços e mudanças nas regras do jogo; que nível de conflito político estas demandas desencadeiam na busca de seu atendimento; e que tipo de reformas elas exigem, caso os obstáculos encontrados sejam o fruto de problemas crônicos ou de estruturas obsoletas.

2. Qual a capacidade do sistema institucional (especialmente do sistema político e de suas regras) de responder a estas demandas e como elas se distribuem entre os diferentes poderes? Qual o nível de autonomia e de corporativismo dos poderes e que tipo de pressões diretas incide sobre cada um deles?

3. Qual o nível de governança da sociedade civil em seu conjunto, sua capacidade de controle social das instituições, e sua participação ativa na elaboração de regras e no conjunto das ações de interesse público?

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2. OS TEMAS CENTRAIS DO ENCONTROE O CONTRAPONTO BRASILEIRO

1º tema: a solidez da democracia na América Latina e os riscos do desencanto e deslegitimação do regime democrático, tendo em vista as frustrações da população relativas ao desenvolvimento econômico sustentável; ao bem estar social e à segurança cidadã

No caso do Brasil, a legitimidade do processo democrático é muito alta e advém do nível de participação eleitoral e do envolvimento crescente da sociedade civil nas decisões e na implementação das políticas de governo. Advém também do fracasso econômico e administrativo do regime militar que se encerrou muito desacreditado pela população e não foi capaz de promover a transição liberal e o ajuste fiscal. Deixou como herança a dívida interna e externa, um Estado ocupado por interesses privados e a desordem administrativa, financeira e fiscal.

2º tema: o Estado de Direito como condição necessária mas não suficiente para assegurar a continuidade e o êxito do processo democrático. Quais são as condições necessárias para garantir a governabilidade da democracia? O problema da segurança coletiva

No Brasil, o Estado de direito tem sido a porta de entrada para um processo mudanças estruturais que vêm seguindo o seu curso. As desilusões e as cobranças realimentam novas e mais profundas mudanças e as eleições, muito concorridas, funcionam como termômetro positivo das demandas e decepções coletivas. Além disso, a transição brasileira ganhou, na década de 90, em intensidade e coerência, e apresentou visíveis resultados, embora o nível de stress do sistema político seja muito alto.

O problema maior da governabilidade (e do stress) reside no fato de que a pauta de mudanças é de uma mobilidade e de uma imprevisibilidade muito grande, sendo sempre reabastecida com novas demandas e novos temas. Por exemplo, questões como a da segurança pública ganharam enorme importância, diante de um Estado ainda debilitado pelo ajuste fiscal.

Este é um ponto de estrangulamento que gera ingovernabilidade diante da falta de recursos e instrumentos para enfrentar a dimensão de um problema que surgiu de fora para dentro, e que tem origens internacionais (o tráfico de drogas). Como a responsabilidade maior é dos estados, este é um imbróglio federativo dos mais sensíveis diante do qual o Governo Federal é obrigado a se conduzir com extrema prudência.

3º tema: Examinar a governabilidade à luz da institucionalidade clássica (sistema eleitoral confiável; separação e equilíbrio dos poderes versus confrontos estéreis; deterioração da capacidade Executiva, fragmentação política e a instabilidade crônica versus riscos do poder ilimitado; os mecanismos de participação)

O sistema eleitoral brasileiro exige algumas reformas, especialmente no que diz respeito às coligações partidárias, além de reformas partidárias para diminuir a fragmentação do sistema político

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que é presidencialista com sistema eleitoral de voto proporcional- uma exceção no quadro latino-americano do presidencialismo. Como este presidencialismo é híbrido, e fortemente dependente da base parlamentar, mais uma vez, o stress do sistema político é muito grande, pois exige excessivas negociações diante de uma base parlamentar instável e frouxamente controlada pelos partidos.

A cultura política rejeita a idéia de um Executivo e de um presidente fortes- o que lembraria o autoritarismo- mas exige ações presidenciais fortes para resolver os graves problemas nacionais. Os três poderes são fortemente autônomos e competitivos, exigindo excessivas negociações para fazer caminhar a pauta das reformas e das políticas públicas.

No plano da participação o Brasil avançou muito e é pioneiro nos avanços da democracia participativa, através da descentralização e dos Conselhos Comunitários de Saúde, Educação, da Criança e do Adolescente, da Mulher, do Meio Ambiente, etc.

4º tema: as reformas institucionais como instrumento necessário para impulsionar o desenvolvimento econômico e o bem estar com equidade social

O grande problema na implantação de uma agenda de reformas é que os resultados substantivos levam algum tempo, mas as penalizações aparecem de imediato. No entanto, o Programa de Estabilização do Presidente Fernando Henrique teve o grande mérito de galvanizar apoio popular desde o seu início e foi, inclusive, capaz de eleger o Ministro da Fazenda presidente da República nas eleições de 1995.

Como o Plano Real não contou com o apoio inicial de Washington, e utilizou uma engenharia política que provocou impactos redistributivos, de maneira atípica, gerou governabilidade- coisa que jamais acontece com planos deste gênero que costumam penalizar os assalariados.

No que diz respeito à privatização, o grande obstáculo foi a corrente nacionalista, fortalecida na Era Vargas, enquanto a política de abertura econômica gerou resistências na classe empresarial nacional, fortemente comprometida com subsídios e com taxas de câmbio e de importação mais favoráveis. Mas este foi o meio de abater os preços e de aumentar a competitividade sistêmica da economia. O aumento do desemprego, especialmente nas regiões altamente industrializadas como São Paulo, provocou instabilidade política e resistência tanto dos sindicatos quanto da mídia. No entanto, a âncora da governabilidade foi o tempo todo o Plano Real.

A conclusão que podemos tirar é que as reformas foram monitoradas politicamente de maneira tal que tem sido possível cortar privilégios e vencer resistências sem turbulência excessiva, mesmo nos momentos mais agudos da crise da Ásia e da Rússia.

Outro fator de governabilidade foram os avanços importantes na área social, alternando o perfil das políticas anteriores e procurando priorizar a educação e focalizar melhor as políticas de combate à pobreza. Na medida em que a inflação e o déficit fiscal ficaram sob controle, foi possível ampliar ainda mais a pauta social, introduzindo novas políticas de saúde e atacando com maiores recursos as políticas de combate à pobreza (Programa Alvorada)

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5º tema: A situação caminha para um presidencialismo débil, em franca retirada, para um regime parlamentar embrionário, ou para um Presidencialismo Imperial

Sem dúvida, estamos em um regime híbrido, semi-parlamentar ou semi-presidencial e é difícil apostar em que direção avançaremos.

3. O MODELO TOURAINE E A GOVERNABILIDADEAS DIMENSÕES ORGANIZACIONAL, INSTITUCIONAL E A HISTORICIDADE

As crises sucessivas são o sintoma da ingovernabilidade. Em termos da Macroteoria de Touraine a origem da crise pode residir no nível organizacional, no institucional ou na dimensão mais ampla da historicidade (ou do modelo histórico e civilizatório ou do paradigma de desenvolvimento). A crise pode ocorrer – e em geral ocorre, nos diversos níveis simultaneamente, mas com intensidades variadas.

No caso do Brasil, existe uma crise organizacional- a obsolescência e a precariedade do modelo de gestão e do mal funcionamento das instituições- Daí a importância do programa Brasil Empreendedor, dos programas de capacitação e treinamento.

A crise institucional releva da mudança de patamar da sociedade brasileira, passando de uma sociedade rural e de industrialização restrita para um novo modelo de democracia e capitalismo de massas. A entrada das massas no processo político e no processo produtivo (mesmo que ainda precariamente) redundou em colapso generalizado do modelo institucional, voltado para a participação restrita sob controle oligárquico.

Exemplo desse processo traumático de mudanças é a abertura de programas distribuição de terras para o pequeno produtor rural, e de crédito para o pequeno empresário, seja nas políticas agrárias seja no mundo urbano. Em um Brasil que sempre deu exclusividade aos grandes, a massificação provocou a pressão coletiva pela universalização dos serviços de educação e de saúde, gerando resistências não apenas a nível organizacional (o hospital não está preparado para atender os excluídos e a escola não está interessada em acabar com a cultura da repetência).

As mudanças chegaram também ao modelo institucional. É o próprio conceito de saúde e de seus instrumentos de proteção que está em jogo abrindo caminho para programas coma A saúde da família e os agentes de saúde. Em suma, a governabilidade depende da abertura do sistema institucional a novos atores e a novos estilos de prestação de serviços e de atendimento.

Outra dimensão relevante da crise institucional são as incongruências das instituições que regulam a competição política, especialmente do sistema eleitoral e partidário, que tornam instável e penosa a composição das maiorias.

Finalmente, o modelo Touraine trabalha seriamente com a dimensão mais ampla da historicidade, marcada pela emergência de novos modelos produtivos, de novos atores e suas respectivas demandas, impregnadas por um novo sistema de valores que reflete a nova ordem emergente. Em termos concretos, trata-se da emergência da sociedade pós-industrial sobre a qual foi pioneiro em reflexão e análise.

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Neste patamar, os conflitos ganham uma dimensão estrutural de oposição de interesses entre o dominador e o dominado pelo controle da historicidade. Os empresários e operários do século XIX seriam um exemplo deste tipo de conflito. Este é o espaço privilegiado dos movimentos sociais e dos confrontos estruturais entre a nova classe dirigente, a classe dominante e os seus antagonistas.

O quadro latino-americano precisa ser entendido à luz do surto de globalização recente, do novo empresariado regional e de sua dependência do capital internacional, da heteronomia e dos interesses e conflitos maiores que nela predominam, criando linhas rígidas de demarcação entre o portador da historicidade e os que a ela resistem. Em suma, trata-se de uma luta pela apropriação de um modelo e pela partilha de seus benefícios.

Em que medida a ingovernabilidade advém de uma globalização que estimula a descentralização provoca o esvaziamento dos Estados Nacionais e de sua força redistributiva, tão importante em países continentais como o Brasil, marcados por fortes assimetrias e desigualdades regionais?

Será que a globalização regida pelas empresas multinacionais e pelo capital financeiro de um grupo de sete países, poderá restringir ainda mais o poder autônomo da periferia e ampliando e perpetuando o seu próprio poder? E o que é mais importante, até que ponto os ajustes liberais impostos pelo centro à sua periferia podem garantir o seu equilíbrio e estabilidade, reduzindo desigualdades sociais crônicas e sendo capaz de prover as demandas das amplas massas que ingressam no sistema político, hoje com mais de cem milhões de votantes?

Existe a desconfiança e o temor de que os ajustes e as abdicações liberais exigidas pelos organismos internacionais não correspondam às práticas dos países hegemônicos, com muito mais estruturas de Estado e de Governo, com muito mais investimentos públicos, com mais subsídios governamentais ao setor privado do que recomendam para os países menos favorecidos.

A questão central é saber se, internamente, a gestão política do novo modelo produtivo integrado à nova ordem mundial, será capaz de garantir a estabilidade social e a continuidade do regime democrático. Ou se, ao contrário, os focos de conflito e desordem se multiplicarão, como vem ocorrendo na Argentina, na Venezuela, na Colômbia, no Peru e até mesmo no Chile.

Nesse contexto de temor e de expectativas diante de um continente aparentemente sem rumo, sempre cabe lugar para os movimentos sociais gerados pelas forças de resistência do mundo tradicional, como é o caso do MST e do zapatismo, com o qual dialogou recentemente Alain Touraine. “O homem velho constrói o mundo novo”, diz ele. E esta é uma lição da sociologia e da história que não pode ser esquecida.

(Este argumento valeria também para as velhas coalizões de FHC produzindo traumaticamente transformações profundas; uma certa dose de ingovernabilidade recente, mas sempre em busca de avançar em direção ao novo...)

A GOVERNABILIDADE DO BRASIL, PRESENTE E FUTURA, IRÁ DEPENDER DO ÊXITO DO PRINCIPAL PROJETO DO GOVERNO FHC: INSERIR O PAÍS NA

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ECONOMIA GLOBAL, JUNTO COM OS PAÍSES DO SEGUNDO GRUPO (O G-20), COMO EXTENSÃO DO G7. ESTA INSERÇÃO BEM SUCEDIDA PODERIA GARANTIR O DINAMISMO ECONOMICO, A ECONOMIA DE ESCALA, A REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES E A ESTABILIDADE DEMOCRÁTICA.

4. REDEMOCRATIZAÇÃO E GOVERNABILIDADEFRAGMENTAÇÃO POLÍTICA E LEGITIMIDADE INSTITUCIONAL

Nos países latino-americanos, o presidencialismo delega ao presidente da República enorme dose de legitimidade e de responsabilidade na condução e no fracasso das políticas públicas. Ele está, portanto, no epicentro do sistema político e de todas as crises como, aliás, sempre esteve.

O presidente é, de fato, obrigado a orquestrar um sistema político fragmentado e heterogêneo, de vida associativa precária e de sociedade desorganizada e fraca. Neste contexto, o sistema político que não se pauta pela divisão de atribuições e de responsabilidades, mas por uma superposição de interesses autônomos, e conflituosos cuja prioridade não é processar racionalmente demandas sociais, mas ampliar o seu próprio poder. Em outras palavras, como o poder presidencial é mais forte, existe uma coalizão de veto dos demais, no sentido de restringir mais as suas atribuições que muitos ainda confundem com a ditadura.

No entanto, o recente ciclo democrático brasileiro (1988-2001) tem uma originalidade, que é a sua forte dose de legitimidade institucional em todas as classes e segmentos. Fala-se, como sempre, mal do Governo mas não se duvida da democracia, como ocorreu em passado recente. Os pobres e os excluídos estão incorporados ao processo de escolha eleitoral pelo voto obrigatório, e já estão usufruindo de benefícios sociais significativos. Para eles, já são perceptíveis os benefícios que a democracia pode gerar.

Além disso, os que desconfiam da classe política e menosprezam o Congresso não conseguem convencer que os regimes autoritários são melhores, nem mais eficientes. Provavelmente porque o ciclo militar que se encerrou em 1985 terminou desmoralizado pela impossibilidade de conduzir a transição produtiva.. Esta crença recente no processo democrático é um fato inédito na história brasileira do século XX, e um fator altamente positivo de governabilidade política.

Outro ponto importante é a natureza da transição brasileira com relação a outros povos em situação semelhante. Existe o modelo glasnost e o modelo perestroika. Tomando as duas dimensões da transição- a econômica e a política- podemos constatar as dificuldades redobradas, e a taxa de ingovernabilidade de um processo cuja primeira etapa foi a radicalização da democracia, da competição e da descentralização política- como aconteceu no Brasil e na Rússia- deixando para um segundo momento a liberalização econômica e o aumento da competitividade sistêmica.

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Na Rússia, por exemplo, a queda da União Soviética está ligada ao fato, como bem observou Stepan, de que as eleições diretas para presidente da Rússia precederam as do presidente da URSS, desestabilizando pelo diferencial de legitimidade de um e de outro, a Era Gorbachov.

Na China, no Chile e no México o processo caminhou em sentido oposto, iniciando-se com as reformas econômicas sob controle autoritário, acelerando a inserção competitiva mas congelando ou retardando a democracia. Para estes países, a questão democrática será um desafio maior do que para o Brasil, que adotou o caminho mais difícil mas terá bases mais sólidas de consenso interno, caso complete com êxito a reestruturação da economia.

No Brasil a opção preferencial pela glasnost gerou uma Constituição Cidadã bastante prolixa (328 artigos) e de cunho marcadamente intervencionista,- antagônico à abertura comercial, à entrada de capitais externos e à economia competitiva.

A Constituição ampliou ainda os direitos sociais dependentes de financiamento governamental sendo, portanto, fortemente estatista em seu perfil de gastos, na contramão da corrente liberal que se estendeu por todos os países do mundo com o objetivo principal de aumentar a competitividade e de alcançar patamares mais elevados de desenvolvimento e tecnologia.

Agravando o déficit fiscal, a Constituição de 1988 ampliou a rede de cartórios e privilégios profissionais- especialmente de funcionários públicos- retardando, e muito, o controle inflacionário e o tempo do ajuste. Ampliando a taxa de conflito em torno destes mesmos ajustes.

O selo da governabilidade na Era FHC:Reforma Constitucional e Governo de Coalização

A Constituição desatualizada, mas intransigentemente democrática, obrigou os governos da década de 90 a realizarem uma missão impossível: fazer 30 emendas à Constituição para estabilizar a moeda e reestruturar as relações entre o Estado, a sociedade e a Economia. A façanha foi garantida graças a uma ampla coalizão partidária que garantiu maioria absoluta de 3/5 em duas votações sucessivas nas duas Casas do Congresso Nacional.

O fato singular é que a Reforma Constitucional ocorreu poucos anos depois da entrada em vigor da Constituição de 1988, e sob o fogo cruzado de uma oposição comprometida com o velho corporativismo. Ingovernabilidade constitucional deste tipo, opondo o idealismo da Constituição ao pragmatismo das tendências parece ser a tônica da História Brasileira ao longo do século, sempre às voltas com modelos constitucionais inovadores e perfeitos, aprovados democraticamente mas muito cedo contestados pelo bom senso e pelos fatos.

Foi o que ocorreu com a Constituição de 1891, logo contestada por seus criadores Rui Barbosa e Alberto Torres. Problema idêntico se repetiu com a Constituição de 1934, que provocou a fase famosa de Getúlio Vargas: “eu serei o primeiro revisor desta Constituição”. A Constituição de 1946 foi igualmente contestada por seu criador, Nereu Ramos, que tentou, em vão, uma reforma constitucional que teria – quem sabe- evitado o golpe militar de 1964.

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A descentralização ou fragmentação do poder, no modelo glasnost, dificulta o ajuste econômico, que penaliza inúmeras camadas de rent-seekers (cartórios de concessões e de privilégios) para implantar a ferro e fogo a economia de mercado.A ingovernabilidade à prestação manifesta-se em uma sucessão de processos de supressão de privilégios, cada um deles exorcizado pelo conflito aberto com grupos ou estamentos enquistados no velho sistema de poder.

Dar visibilidade política aos quistos de monopólios e privilégios – tirar os esqueletos do armário – é uma tarefa árdua, uma vez que a democracia permite que estes setores organizem lobbies e se mobilizem em defesa de seus interesses. Nesse caso, construir a governabilidade é liberar os recursos públicos do controle privado e improdutivo.

Outro exemplo de ingovernabilidade constitucional é a solução híbrida da Constituição de 1988, que iniciou os seus trabalhos optando pelo parlamentarismo e os encerrou inclinada para o presidencialismo, mas prevendo um futuro plebiscito. Esta ambigüidade constitutiva, que não permite a dissolução do Congresso, e obriga o presidente a se submeter aos limites impostos pela maioria legislativa, torna-o prisioneiro das mais corriqueiras decisões de caráter institucional e administrativo.

Estas dificuldades vêm sendo contornadas pelo uso das Medidas Provisórias que dão ao presidente a iniciativa legislativa, sujeita a ratificação posterior do Congresso Nacional. Tais medidas foram especialmente úteis e garantiram a governabilidade nas situações de crise econômica que o Congresso hoje considera passíveis de regulamentação, tendo em vista o seu uso abusivo.

A tensão entre o Executivo e o Legislativo não é um fato novo. É, em realidade, a mais antiga e permanente fonte de conflitos toda vez que se instaura no país a plena democracia. Esta tensão, que já derrubou tantos presidentes (Getúlio Vargas, Jânio Quadros, João Goulart, Fernando Collor) foi habilmente contornada pela fase recente, na qual consolidou-se no Brasil um regime híbrido de coalizões partidárias, identificado como Presidencialismo Congressual.

A governabilidade, no caso, foi garantida graças a uma base partidária maior, constituída de cinco partidos – três grandes (PSDB,PFL, PMDB) e dois menores (PPB e PTB) – em um sistema no qual o presidente aumenta sua flexibilidade de negociação porque não precisa permanecer refém de apenas dois partidos (o seu próprio e o partido aliado prioritário).

No entanto, dada a fluidez do sistema partidário, a ausência de qualquer compromisso estável entre o eleitor, o candidato e o partido, através da fidelidade partidária, não resta dúvida que algumas reformas precisam ser promovidas, para diminuir a competição excessiva entre os candidatos dentro dos próprios partidos, e para aumentar o grau de estabilidade do sistema partidário como um todo. Outro fator de instabilidade é o sistema eleitoral, baseado no voto proporcional e em um sistema de coligações que promove, em termos internacionais comparativos, a fragmentação excessiva.

A redemocratização recente provocou duas tendências importantes: em primeiro lugar, a sobrecarga de demandas pela inserção das massas e sua forte pressão por serviços sociais básicos, por maior equidade e melhor renda e qualidade de vida. Em termos constitucionais, acumularam-se as garantias de direitos sociais, inclusive à moradia. No final da década de noventa, constatamos que os indicadores sociais melhoraram, fator altamente positivo.

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Além disso, abriram-se as portas do sistema previdenciário e de saúde para as populações excluídas, que jamais haviam contribuído para receber tais serviços. Esta expansão dos encargos sem o devido lastro orçamentário foi agravada pelas receitas vinculadas e pelas aposentadorias precoces dos funcionários públicos. Negociar tamanhas irracionalidades no ciclo das reformas constitucionais, dentro da ordem democrática, foi a maior façanha do recente ciclo democrático brasileiro.

Além da sobrecarga de demandas sociais sobre o sistema político, restringiram-se as condições de resposta do poder presidencial, às voltas com uma inflação crônica e bem assimilada pelas classes superiores. E, além disso, considerado um poder imperial e exorbitante, em função da arrogância de sua burocracia, e de seu passado centralizador e ditatorial.

A intensificação da demanda e a restrição dos instrumentos de ação alimentam o imbróglio permanente no plano legal, resultante de uma Constituição detalhista mas não-regulamentada, de um processo de mudanças em pleno curso, e de um poder judiciário descentralizado. O stress do processo decisório, de regras questionáveis o frouxas, obriga o Executivo a comandar situações de permanente incerteza, em função da competição política entre os três poderes e de seu excessivo grau de autonomia corporativa.

A Lei de Responsabilidade Fiscal- uma grande obra de negociação e de engenharia política que incluiu um forte processo participativo- tem como principal finalidade estabelecer restrições ao regime fiscal anárquico e descentralizado que, segundo Anwar Shah, lembra uma confederação. Este é mais um exemplo das duras conquistas democráticas que, se provocam o stress acima mencionado, têm o mérito de converter o Brasil em um país pouco vulnerável às turbulências democráticas, do tipo que vem enfrentando o Chile, o México e a China- mais expostos ao vírus do autoritarismo.

5. GOVERNANÇA E PARTICIPAÇÃO

O grau de governança alcançado pela sociedade, isto é, seu nível de controle social e de capacidade de cogovernar, é ainda muito baixo e a população, precariamente alfabetizada, cultiva ainda no imaginário coletivo a idéia de que o Governo tudo pode e de que o presidente é o verdadeiro representante do povo. Ele é a força de quem tudo se espera, enquanto as outras peças da engrenagem política e do processo decisório permanecem em confortável obscuridade.

Cabe, no entanto, a constatação de que o Brasil detém hoje a liderança, entre os países em desenvolvimento- e dentro da América Latina- dos processos participativos de decisão. Esta inovação recente da democracia brasileira é o resgate de uma distorção histórica, que é o excessivo poder do Estado diante de uma sociedade subserviente, passiva e inerte. Este déficit associativo, ligado ao modelo de povoamento, é que parece imprimir dinamismo ao novo processo de valorização do poder civil diante de um aparelho estatal obsoleto e em crise.

6. A NOVA GOVERNABILIDADE E O GOVERNO EM PARCERIAOS TRÊS PODERES E A FEDERAÇÃO

O Governo em parceria é hoje consenso nacional. Mas, curiosamente, a parceria com o poder civil parece avançar mais rapidamente do que a parceria intergovernamental. A consciência de

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que a responsabilidade de governar é partilhada com três poderes e três níveis federativos penetra aos poucos na percepção popular e nos meios de comunicação.

A sacralização, o temor e a discrição do poder Judiciário mantiveram-no à distância do ciclo de reformas, e mais refratário a qualquer transformação. Um dos pontos mais importantes da Agenda da Governabilidade seria, portanto, a Reforma do Poder Judiciário. O Congresso, mais exposto ao controle público, e mais dependente do Poder Executivo, vem desenvolvendo formas de cooperação crescentes com o Poder Executivo- e vice-versa.

O governo partilhado não diz respeito apenas aos três poderes, mas também aos três níveis da federação. Estados e municípios são hoje responsáveis pela maioria dos recursos humanos e financeiros que asseguram a capacidade real de governar.

A descentralização política foi assegurada pela Constituição de 1988 de forma inovadora e radical, através do Artigo 18 que reconhece o município como ente federativo; e através do Artigo 30, que garante ao município a responsabilidade pelos serviços de interesse local. A descentralização vem fortalecendo a governabilidade e inclui hoje, além da educação e saúde e dos serviços básicos locais também, mais recentemente, entregando aos estados a responsabilidade pelo teto do salário mínimo e pela reforma agrária.

No entanto, o federalismo brasileiro é também fonte de ingovernabilidade. Em primeiro lugar porque padece do mal crônico da assimetria e dos desequilíbrios regionais, concentrando quase 40% do PIB no estado de São Paulo e mais e 67% do PIB nos estados do Sul e do Sudeste. Este desequilíbrio determina uma drástica divisão entre os estados pobres e ricos, pois os 50% que são muito pobres não conseguem garantir condições de vida mínimas para seus municípios, dependendo excessivamente do Governo Federal.

O segundo fator de ingovernabilidade é a indefinição das competências entre os entes federativos, na medida em que o Capitulo 23 acumula uma enorme gama de competências concorrentes. Esta indefinição tem sido fonte de competição, conflitos e paralisia que retardam o processo de decisão

CONCLUSÃO

O Brasil é um país-continente, com enormes disparidades espaciais e níveis de desenvolvimento regional bastante diversos. A governabilidade depende de uma hábil política de integração entre as regiões dentro de um federalismo trino que exige negociações com três níveis de governo. A dependência dos estados pobres torna mais complexa a função federal de distribuir recursos.

O Brasil é um país democrático semi-anárquico que passa por uma reestruturação econômica profunda. Esta reestruturação tem sido possível graças a ampla coalizão partidária- bastante gelatinosa- e a um semi-parlamentarismo que deu ao Congresso um protagonismo inédito dentro da tradição presidencialista brasileira.

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O maior foco de ingovernabilidade era a política inflacionária e estabilizar a economia foi um esforço coletivo que só foi possível porque incorporou benefícios para as camadas de mais baixa renda.

As políticas sociais foram reformatadas para atender aos mais pobres, destruindo cartórios e

liberando recursos para a universalização da educação e da saúde, prioritariamente. Este colchão foi importante para enfrentar crises econômicas sucessivas.

A maior fonte de ingovernabilidade são as turbulências da globalização financeira e a exclusão social que vem provocando por ser uma globalização assimétrica. Os países da América Latina não garantiram ainda o desenvolvimento auto-sustentado e seus processos de mudança continuam ainda incompletos.

A globalização introduziu na pauta da ingovernabilidade o problema do narcotráfico que não respeita fronteiras. Este é, hoje, o principal responsável pela violência urbana e pela impunidade, graças ao sigilo bancário e à livre circulação de capitais pelos paraísos fiscais. A América Latina tem sido fortemente penalizada neste terreno.

O sistema político, revitalizado pela competição democrática, apresenta graves distorções que exigem um conjunto de Reformas Políticas. O foco principal de ingovernabilidade é a fragmentação eleitoral e partidária e a excessiva competição eleitoral (turnover de 50% dos deputados federais, fator único nas democracias modernas). As coligações alimentam partidos de aluguel e distorcem a “verdade do voto”, da mesma maneira que a rotatividade dos deputados de um partido para outro.

O Presidencialismo Congressual, de tipo híbrido, gera instabilidade que exige esforço excessivo dos atores políticos no processo de negociação com um amplo expectro partidário. A combinação do presidencialismo com o sistema do voto proporcional acentua ainda mais a fragmentação da representação política.

A cooperação entre os Poderes é ainda reduzida e as regras variam de um para outro. A competição predomina sobre a cooperação. A Reforma do Judiciário- poder anacrônico, ineficiente, cartorial e corporativo- é um dos pontos mais importantes e delicados da atual agenda política.

Em linhas gerais, o risco maior reside em passar de sistemas autoritários de Presidencialismo Imperial com numerosos focos de irracionalidade gerencial, para sistemas democráticos permissivos e anárquicos, sob a pressão intensa de demandas sociais reprimidas e legítimas, mas também de uma ampla gama de atores políticos fragmentados, de tipo cartorial.

A existência de uma Constituição Cidadã com 328 artigos foi grave fator de ingovernabilidade, pela dificuldade de regulamentação, pela institucionalização de cartórios e por sua desatualização quanto a um processo de integração competitiva que se precipitou na década de 90.

A Constituição de 1988 promoveu a governabilidade na medida em que incorporou ao pacto constitucional um pacto social que incluiu a promoção de um modelo político participativo. A prioridade para a pauta social e para a governança com o controle social do Estado e a

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participação das organizações civis, contribuiu para gerar aderência à ordem democrática e para neutralizar as turbulências da transição econômica e política.

O papel de organismos multilaterais como a OEA é rever sua pauta de prioridades e fazer recomendações precisas sobre os focos comuns de crise crônica nos diferentes países. Induzir, em suma, a implementação de políticas capazes de promover o aperfeiçoamento da arte de governar (modelo de gestão) mas também de reduzir as causas que geram a instabilidade política.

Finalmente, o Estado Nacional encontra-se fragilizado e carente de reformas. A decomposição do velho modelo patrimonial e corporativo é fonte permanente de ingovernabilidade (com focos de corrupção proliferando descontroladamente) mas abre caminho para um Novo Modelo de Estado, com novas funções gerenciais e novo protagonismo social. Aliviar esta passagem e reformatar o aparelho regulatório é prioridade máxima que merece maior apoio dos organismos multilaterais de financiamento.

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A GOVERNABILIDADE E OS DESAFIOS DA DEMOCRACIA DE MASSAS

1. Governabilidade significa estabilidade do sistema institucional e eficácia do processo decisório em função do equilíbrio relativo entre a demanda e a oferta de serviços e políticas públicas. É, portanto, uma questão de intensidade e de ritmo. A ingovernabilidade, por sua vez, advém seja da intensidade e da natureza das demandas não atendidas, seja da paralisia que acomete as instituições, tornando-as incapazes de responderem às expectativas coletivas. Inflação de demandas e escassez de oferta provocam crises sucessivas.

2. Em linhas gerais, podemos dizer que existe na América Latina- e o Brasil é um caso extremo- um fator explosivo que se configurou de forma emblemática neste final de século: a entrada das massas, inclusive as excluídas, no processo eleitoral. No Brasil, a expansão do eleitorado explodiu de 6 milhões de eleitores em 1960 para 108 milhões em 2000, com eleições diretas em todos os níveis, em listas abertas, com baixo controle partidário.

3. O voto é obrigatório, e os analfabetos e os jovens acima de 16 anos podem votar, e os índices de abstenção e de voto nulo são relativamente baixos (diminuíram nas últimas eleições municipais), podemos dizer que o índice de participação política é o mais elevado da democracia ocidental. Eleições municipais, hoje, no Brasil, são consultas plebiscitarias altamente mobilizadoras que direcionam o processo político e dão os rumos da política nacional e da política partidária.

4. A democracia não se limita ao plano representativo. O Brasil é hoje também um laboratório de democracia participativa, com um número surpreendente de organizações não-governamentais e de conselhos definindo e acompanhando uma ampla gama de políticas públicas (educação e merenda escolar, saúde, mulher, criança e adolescente, direitos humanos, direitos do consumidor, etc.)

5. Da mesma forma, o ritmo da urbanização, sem precedentes no mundo, transformou o Brasil 70% rural dos anos quarenta no país 83% urbano do último senso do ano 2000, que o IBGE revelou recentemente. O crescimento, também explosivo, das grandes cidades, especialmente das regiões metropolitanas, cristalizou demandas por melhores serviços básicos e por mudanças radicais na quantidade e na qualidade do atendimento, através de um novo tipo de políticas sociais.

6. No curso da última década, podemos constatar que os indicadores sociais melhoraram substancialmente, pela redução da mortalidade infantil e do índice de analfabetismo, e o aumento da esperança de vida e da escolaridade média. A melhoria geral das condições de vida deve-se ao aumento do acesso aos serviços básicos e aos bens de consumo.

7. A taxa de participação aumentou também graças ao acesso universal aos meios de comunicação, já que 91% das famílias têm aparelhos de televisão. Tudo isto, apesar das dificuldades da transição econômica que já se prolonga por duas décadas.

No entanto, a pressão exponencial pela melhoria das condições de vida tem sido bem maior do que a capacidade de atendimento do setor público, diante de uma sociedade mais vulnerável aos efeitos da política de estabilização e às dificuldades do ajuste.

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8. A crise da oferta de bens e serviços públicos, tanto em quantidade quanto em qualidade, é um foco de ingovernabilidade a curto prazo, acentuando o nível de insatisfação geral e pressionando por mudanças profundas na natureza das políticas e no processo decisório de alocação dos recursos. É esta mudança no formato das políticas públicas que tem sido a tônica do governo FHC, apesar das dificuldades fiscais que limitam ainda as suas fontes de financiamento.

9. Em resumo, podemos dizer que o Brasil é hoje uma grande democracia de massas, com exigências que a empurram para a inclusão social e a institucionalização e radicalização da própria democracia.

A Transição Brasileira:sua Força e suas Debilidades

1. Em seguida vou procurar desenvolver algumas idéias sobre a transição brasileira recente chamando a atenção para o fato de que momentos de transição são, por definição, geradores de crise e instabilidade, na medida em que expõem suas debilidades institucionais que são tema deste debate. Nessas condições, o modelo velho se recusa a desaparecer enquanto o modelo novo está ainda em formação.

São estas ambigüidades, tão bem analisadas por Alain Touraine (“o homem velho constrói o mundo novo”) que provocam turbulências associadas à resistência da velha ordem, e à indefinição do novo.

2. Na América Latina e no Brasil a transição dos última décadas enfrentou três desafios principais que têm sido os focos de tensão criativa, mas também de riscos e ingovernabilidade:

- a consolidação da democracia e a eliminação do autoritarismo, pela integração das massas ao processo eleitoral, pelo fortalecimento da ordem constitucional, pelo pluralismo partidário e a participação civil, pelos direitos humanos e por uma diversidade de poderes em competição, de instituições políticas, atores regionais, entes federativos com os quais tornou-se necessário dialogar e negociar politicamente;

- a substituição do intervencionismo econômico, de ideologia nacionalista, e de Estado Empresário por uma economia de mercado, internacionalmente mais competitiva e aberta.

- O combate à inflação e à irresponsabilidade fiscal . Este processo de ajuste tornou-se, no Brasil, mais delicado e complexo na medida em que a inflação estava associada a um bloco de poder e fomentava desigualdades se retroalimentavam através de uma original política de indexação dos salários e preços. Corrigir este processo exige uma nova cultura da responsabilidade fiscal que, aos poucos, vem sendo implantada como peça-chave e não como princípio antagônico da equidade social e da democracia.

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- a transição de uma sociedade oligárquica, de tipo patrimonial, cartorial e hierárquico, para uma sociedade mais igualitária, exigindo o universalismo nas regras, tanto no atendimento quanto na qualidade das políticas públicas;

Construir a governabilidade, no caso brasileiro, tem significado não apenas aplicar, mas fabricar e exercitar as regras democráticas que, de maneira negociada, vem alimentando a cada passo a transição econômica, social e política.

Do ponto de vista institucional, o Brasil viveu um processo exaustivo mas criativo de glasnost sem perestroika, (como ocorreu na Russia) fazendo a liberalização econômica caminhar a reboque da liberalização política. Ao contrário do que ocorreu na China, no Chile e no México, a força do empresariado nacional brasileiro, dependente do Estado, funcionou como fator de bloqueio para a abertura econômica e a integração competitiva, institucionalizado pela Constituição de 1988. Do ponto de vista político, ao contrário, a Constituição Cidadã foi altamente inovadora e participativa, impulsionando mudanças profundas no processo de descentralização, na ordem social e na mobilização das forças políticas.

Reforma Constitucional e Legitimidade Democrática

A natureza da transição brasileira determinou a ingovernabilidade da Ordem Econômica, na contramão das tendências mundiais, e obrigando à realização de ampla Reforma Constitucional (que incluiu cerca de 30 emendas) mas construiu também a governabilidade democrática, ampliando a adesão e a confiança popular em suas regras e em seus mecanismos de consulta, mais do que em seus resultados imediatos.

Problemas da Institucionalidade Clássica: Fragmentação e Cooperação

3. No que diz respeito à “institucionalidade clássica”, como sugere a agenda desta sessão especial, os sistemas eleitoral e partidário, inicialmente fragmentado e caótico, tende a se recompor gradualmente, através da competição política e das acomodações sucessivas. Nesse sentido, podemos dizer que, como recomendam os clássicos, o liberalismo político está dando certo (ver Wanderley Guilherme dos Santos e sua recusa em retificar os modelos vitoriosos, consagrando-os como referências institucionais perfeitas).

No entanto, podemos dizer que, de imediato, o alto nível de participação e o pluralismo político –partidário coexistem com um baixo grau de previsibilidade do processo decisório, sujeito a indeterminações que resultam:

- da fragmentação do sistema partidário e eleitoral (pelos índices de Liphardt) que exige algumas reformas tópicas, como o fim das coligações eleitorais, a fidelidade partidária e, como princípio geral, a obediência à verdade do voto;

- de uma Constituição prolixa de difícil regulamentação(250 artigos e mais as disposições transitórias);

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- do baixo controle dos partidos sobre seus membros, que se traduzem por alta rotatividade partidária;

- de um federalismo com uma distribuição de competências concorrentes e frouxas e de composição excessivamente assimétrica (metade dos estados vivem de recursos federais);

10. No plano dos poderes, avançamos muito na cooperação entre o Executivo e o Congresso- um feito notável do Governo FHC em favor da governabilidade- mas é forte a competição entre ambos. O Congresso disputa hoje o controle maior do sistema político, buscando estabelecer restrições às medidas provisórias e ampliar sua reduzida capacidade de legislar.

11. O Poder Judiciário é descentralizado, corporativo e arcaico, exigindo profundas reformas, maior controle e melhores formas de cooperação com os demais poderes.

Liberalismo versus Reformismo:Debate acadêmico e praxis institucional

12. Para o bem ou para o mal, a governabilidade do país depende hoje, menos de regras definitivas, impostas mas estáveis, e de funções e atribuições claramente distribuídas, do que de uma dinâmica espontaneista de aperfeiçoamento democrático que inclui uma delicada política de checks and balances, baseada na insistente e incansável capacidade de negociação.

(O presidente FHC como o grande negociador das forças políticas em permanente processo de competição e turbulência)

13. No que diz respeito ao Presidencialismo e ao Parlamentarismo, vivemos um sistema híbrido, consagrado pela Constituição de 1988 que, tendo optado pelo parlamentarismo, em sua fase final reverteu tendências e acabou adotando um modelo semi-presidencialista – o chamado Presidencialismo Congressual – no qual o poder Executivo detém instrumentos de comando importantes para dominar a pauta, como as Medidas Provisórias e a prioridade no encaminhamento dos Projetos de Lei mas, em compensação, precisa também de maiorias congressuais estáveis, inclusive para encaminhar projetos de natureza administrativa.

A impossibilidade de dissolver o Congresso, e a fragilidade dos partidos, é foco permanente de tensões negociadas que, no passado, precipitaram graves crises em função da sucessão presidencial e da dificuldade de convivência entre o Poder Executivo e Legislativo.

Como irá evoluir este presidencialismo híbrido? Esta é uma incógnita visto que a tendência liberal (Wanderley dos Santos) vem predominando sobre os reformistas (Bolívar Lamounier), postulando a tese de que o sistema atual tende ao aperfeiçoamento em função dos mecanismos corretivos que decorrem de seu próprio funcionamento.

O Modelo Touraine: a crise da transiçãopara a sociedade pós-industrial

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14. Tomando como inspiração as propostas teóricas de Alain Touraine, lembramos que as crises podem se instalar no plano organizacional, no plano institucional, como vimos há pouco, quando derivam das regras imperfeitas do sistema político. As crises podem resultar ainda das tensões provocadas por mudanças estruturais no modelo de desenvolvimento, como a passagem de uma sociedade industrial para a pós- industrial, marcada pela emergência de novas tecnologias e de um novo ciclo de acumulação, e pela entrada de novos atores e conflitos que disputam a distribuição do excedente gerado, tanto quanto o controle das identidades e dos símbolos, dos objetivos e metas a serem alcançados.

Neste particular, o teste de governabilidade será oferecido pela possibilidade real dos países latino-americanos realizarem sua integração competitiva, eliminando a distorções da globalização assimétrica e excludente. Garantir o êxito do G20, como extensão do G7, de mercados regionais mais fortes (como o Mercosul) de uma divisão internacional do trabalho mais equânime tem sido a tônica da política internacional do presidente FHC, buscando alargar a esfera de influência de um bloco maior de países em desenvolvimento. É o encurtamento das distâncias entre ricos e pobres não apenas dentro das fronteiras de cada país, mas também entre países que irá garantir a melhoria das condições de vida da população e o seu acesso a um novo patamar de civilização.

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