O valor do riso - ensaio

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Leia o ensaio "O valor do riso", do novo livro de Virginia Wolf de mesmo nome.

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W00lfviRGiniaORGanizaçãO, tRaduçãO e nOtas leonaRdo fRóes

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270 M u l h e R es e f i c ç ão 284 Q uat R o f i g u R as 284 i. Cowper e lady austen 296 ii . O Belo Brummel 307 i i i . Mary Wollstonecraft 319 iv. dorothy Wordsworth 331 “ e u so u c h R i st i n a R o ss ett i ” 343 ca Rta a u M j ov e M p o eta 368 i sto é a câ M a R a do s c o M u n s 379 p o R Q u ê? 389 a a Rt e da b i og R a f i a 403 R es e n h a n do 427 a to R R e i n c l i n a da 464 p e n sa M e n to s d e pa z d u R a n t e u M ataQ u e a é R eo 472 a M o Rt e da M a R i p o sa

477 sobre a autora 481 sugestões de leitura 488 Índice de nomes e obras

7 apresentação

25 M ú s i c o s d e R ua 34 o va lo R do R i so 40 as M e M ó R i as d e sa R a b e R n h a R dt 52 lo u i s e d e l a va l l i è R e 62 o d i á R i o d e l a dy e l i z a b et h h o l l a n d 79 v e n ez a 89 t h o R e au 103 f i c ç ão M o d e R n a 117 c o M o i M p R ess i o n a R u M c o n t e M p o R â n eo 133 o l e i to R c o M u M 135 ja n e au st e n 154 ja n e ey R e e O M O r r O dOs V e n tOs U i Va n t es 164 c o M o s e d ev e l e R u M l i v R o? 184 so b R e esta R do e n t e 204 p o es i a , f i c ç ão e o f u t u R o 225 batendo peRnas nas Ruas: uMa aventuRa eM londRes 245 g e R a l d i n e e ja n e

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um ingrediente necessário – não seja tão comum como foi na época de Shakespeare, e assim a era atual teve de provi-denciar um substituto decoroso que dispensa o sangue e as adagas, tendo sua melhor aparência quando de sobrecasaca e cartola. A isso nós podemos chamar de espírito de sole-nidade e, se os espíritos têm gênero, não há dúvida de que esse é masculino. Ora, a comédia é do sexo, das graças e das musas e, quando aquele cavalheiro solene se adianta para render-lhe homenagens, ela olha e ri e olha de novo, até que a risadaria irresistível a domina e ela foge para esconder sua alegria no regaço das próprias irmãs. É assim muito raro que o humor venha ao mundo, e dura é a luta da comédia por ele. O riso puro, tal como o ouvimos nos lábios das crianças e de mulheres bobas, anda em descrédito. É tido por ser a voz da tolice e da frivolidade, não se inspirando nem em conheci-mento nem em emoção. É um riso que não passa mensagem, que não transmite informação; é um som inarticulado como o latido de um cão ou o balir de um carneiro, e exprimir-se assim é indigno de uma espécie que se dotou de linguagem.

Mas há coisas que estão além das palavras, e não por baixo das palavras, e uma delas é o riso. Pois o riso é o único som, por inarticulado que seja, que nenhum animal pode produzir. Se no tapete da lareira o cão geme de dor ou late de alegria, entendemos o que ele quer dizer, e não há nada de estranho nisso; mas e se o cão resolvesse rir? E se ele, quando você en-trasse no quarto, não expressasse uma alegria legítima, com o rabo ou a língua, por estar vendo você, mas estourasse em

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a velha ideia era que a comédia representava as fra-quezas da natureza humana e a tragédia retratava os homens como maiores do que eles são. Para pintá-

-los de um modo verdadeiro será preciso chegar a um meio-termo entre as duas; o resultado é algo muito

sério para ser cômico, muito imperfeito para ser trágico, e a isso podemos chamar de humor. O humor, como a nós foi dito, é negado às mulheres. Trágicas ou cômicas elas podem ser, mas a mistura específica que constitui um humorista é para encontrar-se somente em homens. As experiências no entanto são coisas perigosas e, ao tentar atingir o ponto de vista do humorista – equilibrando-se naquele pico tão alto que é negado às suas irmãs –, não é raro que o ginasta macho tombe ignominiosamente para o outro lado e, ou bem mer-gulha de cabeça nas palhaçadas, ou bem desce para o chão duro do lugar-comum muito sério, onde, justiça lhe seja feita, sente-se inteiramente à vontade. Pode ser que a tragédia –

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capazes de escalar o pico de onde a totalidade da vida pode ser contemplada como num panorama; mas a comédia, que anda pelas estradas, reflete o trivial e acidental – os erros desculpáveis e as peculiaridades de todos os que passam por seu reluzente espelhinho. Mais do que qualquer outra coisa, o riso preserva nosso senso de proporção; lembra-nos sem-pre que somos apenas humanos, que não há homem que seja um herói completo ou inteiramente um vilão. Tão logo nos esquecemos de rir, vemos coisas fora de proporção e perde-mos nosso senso de realidade. Felizmente os cães não podem rir, porque eles mesmos se dariam conta, se pudessem, das terríveis limitações de ser um cão. Homens e mulheres estão na devida altura, na escala da civilização, para que, tendo re-cebido o poder de conhecer as próprias falhas, fossem agra-ciados com o dom de rir delas. Mas estamos ameaçados de perder esse precioso privilégio, ou de esmagá-lo quando fora do peito o externamos, por uma massa de conhecimento pe-sado e indigerido.

Para ser capaz de rir de alguém você tem, antes de tudo, de ser capaz de o ver como ele é. Toda a capa de riqueza e posição e saber que uma pessoa possui, na medida em que é uma acumulação superficial, não deve embotar a lâmina afiada do espírito cômico, que opera ao vivo. O fato de as crianças terem um poder mais certeiro que os adultos para conhecer os homens pelo que eles são é um lugar-comum, e acredito que o veredicto que as mulheres exararam sobre o caráter não será revogado no dia do Juízo Final. As mulheres

pérolas de riso – dentes arreganhados –, sacudindo-se nos lados e exibindo todos os sinais costumeiros de diversão ex-trema? Seu sentimento seria então de horror, dando a você vontade de afastar-se, como se ali uma voz humana tivesse falado pela boca do bicho. Também não podemos imaginar que seres num estado superior ao nosso riam; o riso parece pertencer essencial e exclusivamente aos homens e às mu-lheres. O riso é a expressão do espírito cômico que existe dentro de nós, e o espírito cômico se interessa pelas esqui-sitices e excentricidades e desvios do padrão reconhecido. Seu comentário é feito no riso súbito e espontâneo que vem, mal sabemos nós por quê, e não podemos dizer quando. Se tivéssemos tempo para pensar – para analisar a impressão que o espírito cômico registra –, sem dúvida constataríamos que o que é superficialmente cômico é fundamentalmente trágico e, enquanto houvesse nos lábios o sorriso, em nossos olhos haveria água. Isso – as palavras são de Bunyan1 – já foi aceito como definição de humor; porém o riso da comédia não traz o peso das lágrimas. Ao mesmo tempo, muito embora sua função seja relativamente modesta se comparada à do ver-dadeiro humor, o valor do riso na vida e na arte não pode ser superestimado. O humor é das alturas; só as mentes raras são

1 Alusão a The Pilgrim’s Progress (1678), de John Bunyan (1628-88), livro no qual ocorre a frase “So she smiled, but water stood in her eyes” [Ela assim sorriu, mas havia água em seus olhos]. [Todas as notas são do organizador, exceto quando identificadas de outra forma.]

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é uma faca que ao mesmo tempo poda e instrui e dá simetria e sinceridade aos nossos atos e à palavra escrita e falada.

Publicado pela primeira vez em 16 ago. 1905 no Guardian, jornal de

orientação anglocatólica no qual Virginia Woolf colaborou várias

vezes durante a primeira década do século xx.

e as crianças, então, são os principais ministros do espírito cômico, porque nem seus olhos foram toldados pela eru-dição nem seu cérebro obstruído pelas teorias dos livros, e assim homens e coisas preservam ainda os fortes contornos originais. Todas as excrescências horrendas que invadiram nossa vida moderna, as pompas e convenções e solenidades maçantes, nada temem tanto quanto o brilho de um riso que, como o relâmpago, as faz tremer e deixa os ossos ex-postos. É porque o riso das crianças tem essa característica que elas são temidas por pessoas que estão conscientes de afetações e irrealidades; e é provavelmente pela mesma ra-zão que as mulheres são vistas com tal desfavor nas profis-sões liberais. O perigo é que elas possam rir, como a criança em Hans Andersen que disse que o rei estava nu, quando os mais velhos adoravam a esplêndida indumentária que não existia. Na arte, como na vida, todos os piores tropeços sur-gem de uma falta de proporção, e a tendência de ambas é ser exageradamente séria. Nossos grandes escritores desabro-cham em púrpura e progridem por frases majestosas; nossos escritores menores multiplicam seus adjetivos e regalam-se no sentimentalismo que, num nível mais baixo, produz o anúncio sensacionalista e o melodrama. Vamos a enterros e à cabeceira dos doentes com muito mais disposição do que a casamentos e festas, e não conseguimos tirar da cabeça a crença de que há algo virtuoso nas lágrimas e de que a roupa preta é a que assenta melhor. Não há nada tão difícil como o riso, de fato, mas nenhuma característica é mais valiosa. Ele