O TRABALHO ESCRAVO E A REPRESSÃO ESTATAL: A … · complementado com a Lei nº 2.040 de 28 de...
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O TRABALHO ESCRAVO E A REPRESSÃO ESTATAL: A TRIBUTAÇÃO COMO
MECANISMO DE PREVENÇÃO1
THE SLAVE LABOR AND STATE REPRESSION: THE TAXATION AS PREVENTION
MECHANISM
Alex Assis de Mendonça
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Emerson Affonso da Costa Moura
Universidade Federal Fluminense (UFF)
Resumo: O presente estudo busca examinar como a tributação pode contribuir no combate ao
trabalho em condições análogas ao de escravo. Para tal, evidenciou-se que o trabalho escravo ainda é
uma realidade global e brasileira e que, embora exista uma atuação estatal substancial na repressão
dessa chaga – realizada pelo Ministério do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho - ela
ainda não foi suficiente para erradicar essa prática, mesmo combinada com as formas de atuação
preventiva e repressiva já existentes. Com isso, propõe-se a adoção da tributação, como instrumento
extrafiscal, mediante novo redesenho normativo, para coibir essa prática nas relações laborais.
Palavras-chave: Escravidão contemporânea; Conceito; Repressão; Tributação.
Abstract: This study seeks to examine how taxation can help to combat job conditions analogous to
slavery. To this end, it was evident that slave labor is still a global and Brazilian reality and that,
although there is a substantial government role in suppressing this plague - held by the Ministry of
Labour and Public Ministry of Labor, she was still not enough to eradicate this practice, even
combined with the existing forms of preventive and repressive action. Thus, we propose the adoption
of taxation, such extrafiscal instrument by new regulatory redesign, to avoid this practice in labor
relations.
Key words: Contemporary slavery; Concept; Repression; Taxation.
Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional - em
formação, é certo - que vai introduzindo o elemento da dignidade
humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de
hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na
fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e há de
por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas:
o arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de
sofrimento dos herdeiros de escravos. (O abolicionismo, Joaquim
Nabuco2)
1 Artigo aprovado, apresentado e publicado nestes Anais do I Seminário Sociedade, Política e Direito, da Faculdade de
Direito da Universidade Federal de Uberlândia (FADIR-UFU). Publicado em: 06.07.2014. 2 Nesse trecho de Joaquim Nabuco em 1883 ele já se amparava no reconhecimento da dignidade humana, que ainda
haveria de vir, para defender a abolição da escravidão. Nas linhas seguintes deste estudo, será possível verificar que esse
reconhecimento ainda não se tornou pleno. O autor, Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo, foi diplomata no
Império e cresceu no seio de uma família escravocrata, todavia se tornou um abolicionista.
2
Introdução.
A exploração do homem pelo homem sempre se fez presente ao longo da história da
humanidade. Na antiguidade, a escravidão era a regra. Na idade média, cedeu lugar para a servidão;
substituída posteriormente, no mundo moderno, por influência do período conhecido como
Revolução Industrial e das novas ideologias filosóficas iluministas, pelo trabalho “livre”,
subordinado e assalariado. No entanto, essa aparente sucessão da forma de exploração do trabalho
humano, não se operou plenamente de modo substitutivo. As novas formas foram se tornando
predominantes, mas sem afastar completamente a incidência das anteriores.
No mundo pós-moderno, portanto, não se faz necessário conceber uma máquina do tempo
para presenciar e estudar as formas de superexploração do trabalho humano do passado. Na verdade,
com as devidas adaptações, basta olhar ao redor, sobretudo onde a miséria – social, cultural,
educacional e econômica – se fizer mais presente, para identificar nesse lugar uma fonte rica de mão
de obra potencialmente explorável, sob qualquer condição de trabalho (FIGUEIRA, 2004, pp.
113/114). A profunda desigualdade social acaba permitindo a coexistência – na mesma época – do
trabalho em condições de escravidão, de servidão (como espécie do primeiro) e do trabalho “livre”.
É sobre a mais primitiva das formas de exploração do trabalho humano que se pretende
abordar nas linhas seguintes, não da forma como se deu no passado e como algo que possa ser
esquecido, mas como um fato ainda atual, uma chaga ainda aberta, que insistentemente é minimizada
no Parlamento brasileiro. Busca-se, portanto, evidenciar a sua existência e o olhar das autoridades
sobre esse tema, que se encontram diretamente relacionadas com a repressão desse mal - o Ministério
do Trabalho e o Ministério Público do Trabalho - e, ao final, após conhecer as formas de atuação
existentes (preventivas e repressivas), sugerir um novo “instrumento” de enfrentamento desse mal,
ainda não empregado - a tributação, no seu viés extrafiscal.
1. O “trabalho escravo”3 no mundo e no Brasil.
Rememorando a história brasileira, aprende-se que no dia 13 de maio de 1888, por obra da
filha do imperador D. Pedro II – a Princesa Imperial Isabel - a escravidão foi total e formalmente
abolida. Essa lei, conhecida como Lei Áurea, que coroou a vitória dos “abolicionistas”4, foi resultado
3 Essa expressão – “trabalho escravo” – será usada para se referir a toda forma de exploração do trabalho humano que
submeta as pessoas a condições análogas a de escravo. 4 Joaquim Nabuco, na sua obra “O abolicionismo” assim explicou, “O abolicionismo, porém, não é só isso e não se
contenta com ser o advogado ex officio da porção da raça negra ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e
conseguir - no mais breve espaço possível - o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra – de reparação, vergonha ou
arrependimento, como a queiram chamar - da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do
abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é
uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores, e que fez do Brasil
o Paraguai da escravidão”. O futuro citado pelo autor chegou, mas a herança dessa prática ainda não acabou.
3
de um intenso processo de convencimento político, formalmente iniciado em 1850, com a extinção
do tráfico negreiro (no qual cerca de metade dos escravizados morriam) e posteriormente
complementado com a Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre-Livre ou “Rio
Branco”), tornando livres os filhos dos escravos, que nascessem após a data da referida lei e com a
Lei Saraiva-Cotegipe ou dos Sexagenários – Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885, que libertava
os escravos com idade superior a 65 anos.
A exploração do trabalho no Brasil por meio da escravidão, portanto, perdurou por quase
300 anos. Prazo superior ao dobro do tempo de trabalho “livre”, formalmente obtido com a abolição
da escravatura. Fato que ainda aproxima o momento atual dessa herança negativa, que insiste em
existir, todavia, sob roupagem nova, mais sutil, também se aproveitando da vulnerabilidade da mão-
de-obra, no entanto, não em virtude da cor da pele, mas do estado de necessidade5 que assola o
trabalhador.
Diferentemente do período anterior a 1888, nos tempos atuais a superexploração laboral,
ilegal e criminosa, subjuga qualquer pessoa, independentemente de cor, sexo ou idade. Não exclui
apenas a liberdade de ir e vir, mas atenta contra a própria dignidade da pessoa humana6.
Essa prática, outrora aceita como legítima, até mesmo pela Igreja Católica, é um dos
grandes exemplos de descompasso entre o “dever ser” e o “ser”, entre o acontecimento jurídico
proibitivo ou protetivo e o fático, que ocorre não só no Brasil7, mas em todos os países onde há
pessoas em dificuldade econômica, o que é característico dos habitantes da América Latina, mas
também abrange, ainda que em menor escala, os países industrializados.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho - OIT8, o número de vítimas em todo o
globo de trabalho forçado9 em 2005 era de 12,3 milhões. Se relacionar essa estimativa à população
de todo o mundo, calcula-se que em cada mil habitantes haja pelo menos duas vítimas de trabalho
forçado e se essa comparação se der com relação apenas a força de trabalho, estima-se que de cada
mil trabalhadores, quatro estão sujeitos a trabalhos forçados.
5 Esse estado de necessidade não se resume a insuficiência econômica. Nele também se inclui todo tipo de desamparo
social, como a falta de educação, assistência e previdência sociais, saúde e tudo o que é necessário para o exercício pleno
da própria liberdade, sobretudo a liberdade para consentir. 6 Conceito que será abordado mais adiante, valendo destacar, desde já, que toda afronta a liberdade, é uma ofensa à
dignidade, todavia, a recíproca não é verdadeira, pois é possível ser “livre” e ainda assim, ser tratado indignamente. 7 Esse descompasso característico do Brasil também foi reconhecido por Daniel Sarmento, “Por um Constitucionalismo
Inclusivo: História Constitucional, Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais”. Rio de Janeiro: Editora Lumen
Juris, 2010. p.4. 8 Dados extraídos do Relatório do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direito Fundamentais no
Trabalho de 2005, página 13, disponível em
http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/oit/relatorio/america_latina_caribe.pdf, acessado em 15.04.2013. 9 Esse é o número mínimo global estimado de pessoas em situação de trabalho forçado, cujo conceito é o fixado pela OIT
nas suas Convenções nº 29 e 105. Vale ressaltar, desde já, que o conceito brasileiro de trabalho em condições análogas a
de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, é ainda mais abrangente e analítico, como será examinado
posteriormente.
4
Esse número se distribuído entre as formas identificadas pela OIT de trabalho forçado,
indicará que de todos os trabalhadores submetidos a trabalho forçado, 63,5% estão sujeitos à
exploração econômica, 20,24% a trabalho imposto pelo próprio Estado ou por militares, 11,3% à
exploração sexual comercial e 4,96% a algum tipo de trabalho forçado não claramente identificado.
Com isso, percebe-se que o grande “vilão”, ao menos nessa modalidade de exploração do
ser humano, não é o Estado. Quase 80% desses trabalhadores no mundo são subjugados por agentes
privados, em função da nova ordem imposta pelo capitalismo global, que segue explorando a
vulnerabilidade das pessoas, na proporção inversa da intervenção do Estado na proteção dos seus
trabalhadores nacionais.
A distribuição regional do trabalho forçado, segundo o citado Relatório da OIT10
, após ser
mapeada, identificou que, do número de pessoas em situação de trabalho forçado, 77,15 % encontra-
se na Ásia e Pacífico, 10,73% na América Latina e Caribe, 5,37% na África Subsaariana, 2,93% nos
países industrializados, 2,11% no oriente Médio e Norte da África e 1,71% nos países em transição.
Assim, em tempo de globalização econômica, o trabalho forçado, no conceito dado pela
OIT, que também é aceito pelo Brasil, embora ocorra com mais frequência na Ásia e Pacífico e em
segundo lugar na América Latina e Caribe, é uma realidade mundial e, portanto, um obstáculo a ser
enfrentado e erradicado por todos os Estados, sob pena de fomentar, dada a miséria que resulta dessa
exploração, o surgimento de novas ideologias “totalitárias”11
, que possam levar a grandes conflitos
nacionais e transnacionais.
No Brasil, em 1995, uma importante ação foi implementada pelo Poder Executivo no
âmbito do Ministério do Trabalho direcionada para a repressão ao trabalho escravo, qual seja, a
criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GM), no âmbito da Secretaria de Fiscalização do
Trabalho, pelas Portarias nº 549 e 550, de 14 de junho de 1995 (revogadas posteriormente pela
Portaria nº 265, de 06 de junho de 2002), para atuação específica no meio rural e investigação de
denúncias de trabalho escravo.
A existência de um grupo coordenado nacionalmente, reservado especificamente para o
combate ao “trabalho escravo”, composto por auditores-fiscais de todo o país, mas que nas operações
de fiscalização envolvem apenas membros oriundos de localidades diversas do local inspecionado,
trouxe um grande progresso na atuação do Ministério do Trabalho, uma vez que despersonalizou as
ações fiscais, trazendo mais segurança e autonomia para as próprias autoridades fiscais no
desempenho das suas atribuições.
10
OIT, op. cit. p. 14. 11
Sobre esse tema, recomenda-se, por todos, Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo: anti-simitismo, imperialismo e
totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
5
Segundo o Ministério do Trabalho, de 1995 a 2012, o GM realizou 1.388 operações12
para
apurar denúncias de trabalho em condições análogas a de escravo e resgatou dessa triste condição
43.231 trabalhadores. Ao observar a tabela abaixo, elaborada com os dados disponibilizados pelo
próprio Ministério do Trabalho, percebe-se que o número de trabalhadores resgatados foi crescendo
ano a ano, conforme foi aumentando o número de operações até o ano de 2003, ano no qual o art.
149 do Código Penal, que considerava crime reduzir alguém a condição análoga a de escravo foi
substancialmente alterado, a fim de explicitar analiticamente, como será visto mais adiante13
, as
condutas que devem ser consideradas como espécies desse tipo penal.
Ano nº operações
(A)
trabalhadores
resgatados
(B)
Resgatados/nº
de operações (i
= B/A)
1995 11 84 7,64
1996 26 425 16,35
1997 20 394 19,70
1998 17 159 9,35
1999 19 725 38,16
2000 25 516 20,64
2001 29 1.305 45,00
2002 30 2.285 76,17
2003 67 5.223 77,96
2004 72 2.887 40,10
2005 85 4.348 51,15
2006 109 3.417 31,35
2007 116 5.999 51,72
2008 158 5.016 31,75
2009 156 3.769 24,16
2010 142 1.628 11,46
2011 171 2.491 14,57
2012 135 2.560 18,96
Total 1.388 43.231
12
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, considera-se no conceito de “Operações”, a “ação de uma equipe
formada por auditores fiscais do trabalho, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), agentes da polícia
federal (eventualmente, delegado) e motoristas, com vistas a verificar in loco denúncia de prática de trabalho análogo a
de escravo. A operação também pode ser impulsionada a partir do planejamento interno do MTE. Uma operação pode
abranger a fiscalização de um ou mais estabelecimentos”. Conceito disponível em
http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C816A3C3A6C39013C49E8F2A15BD5/Quadro%20resumo%201995%20a%2020
12.%2017.01.2013.pdf, acessado em 18.04.2013. 13
Além dessa alteração legal, outro importante fato ocorreu nesse mesmo ano de 2003, que muito contribuiu para o
fortalecimento do combate a essa funesta forma de exploração humana - o lançamento do Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo, elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (CDDPH), constituída pela Resolução 05/2002 do CDDPH, que reúne entidades e autoridades nacionais ligadas
ao tema. Para o seu acompanhamento, foi criada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae),
vinculada à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República com a participação de instituições da
sociedade civil pioneiras nas ações de combate ao trabalho escravo no país. Fonte:
http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/brasil/iniciativas/iniciativas.php, acessado em 24.04.2013.
6
Para melhor analisar a tabela acima, fez-se necessário criar um índice (“i” de incidência – na
coluna à direita) representado pela razão entre o número de trabalhadores resgatados e o número de
operações, a fim de comparar os dados ao longo do tempo e permitir avaliar se estaria (ou não)
havendo uma redução na incidência (“i”) desse mal. Analisando tal índice, percebe-se que ele atingiu
seus maiores valores nos anos de 2002 e 2003, período em que houve o maior número de
trabalhadores encontrados em condições análogas a de escravo, mas que a partir de 2004, começou a
ceder, havendo uma redução na incidência, mais substancial no ano de 2010, seguida de um “suave”
aumento em 2011 e em 2012. Portanto, apesar de ter havido uma redução substancial do índice a
partir de 2003, a ocorrência dessa chaga, atualmente, encontra-se em “leve” ascensão.
Dessa forma, embora ainda seja uma realidade global, inclusive na América Latina e Caribe,
o trabalho escravo tem encontrado no Brasil mecanismos de repressão crescentes, sobretudo após
2003, que conseguiram reduzir a frequência com que o capital vinha se utilizando dessa forma de
exploração da mão-de-obra para maximizar seus lucros. O aumento da “presença fiscal” em todo o
território nacional do Ministério do Trabalho, em atuação conjunta com o Ministério Público do
Trabalho e a Polícia Federal, além de outros instrumentos (repressivos e preventivos), tem
contribuído para a diminuição dessa prática. Todavia, essa chaga, embora menor, ainda segue aberta,
com tendência de alta, manifestando-se, cada vez mais, em locais distintos do meio rural.
Assim, após compreender que o “trabalho escravo”, além de ser uma realidade global, é um
fato real no Brasil, impõe-se conhecer o que o mundo ocidental fez para afastar esse mal.
2. Reação do mundo (ocidental) a esse problema comum.
Em 1926, a Convenção sobre a Escravatura das Nações Unidas, assinada em Genebra, em
25 de setembro e emendada pelo Protocolo de 1953, registrou o conceito de escravidão, no seu art.
1º, considerando-a como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou
parcialmente, os atributos do direito de propriedade”. Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em
196614
.
A Organização Internacional do Trabalho criada em 1919, como uma agência da Liga das
Nações, por determinação da Parte XIII do Tratado de Versalhes, foi fundada com base na convicção
de que a paz mundial somente pode ser obtida pela justiça social15
. Após a Segunda Guerra Mundial,
14
Por meio do Decreto nº 58.563, de 01 de Junho de 1966, que promulgou a Convenção sobre Escravatura de 1926,
emendada pelo Protocolo aberto à assinatura na sede das Nações Unidas de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a
Abolição da Escravatura de 1956. 15
É o que prevê o Preâmbulo da Constituição da OIT, quando prescreve que " [...] a paz para ser universal e duradoura
deve assentar sobre a justiça social; [...] que existem condições de trabalho que implicam, para grande número de
indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais,
[...]”. Assim, com base no citado preâmbulo, percebe-se que a criação da OIT se deu por influência de fatores políticos
7
em 1948, sua Constituição recebeu como anexo a Declaração referente aos fins e objetivos da
Organização (Declaração de Filadélfia), que reafirmou os princípios fundamentais sobre os quais
repousa a Organização.
Dentre tais princípios, vale destacar, pela pertinência com o presente estudo, os que
asseveram que: (i) o trabalho não é uma mercadoria, (ii) a penúria, seja onde for, constitui um
perigo para a prosperidade geral e (iii) a luta contra a carência, em qualquer nação, deve ser
conduzida com infatigável energia, e por um esforço internacional contínuo e conjugado, no qual os
representantes dos empregadores e dos empregados discutam, em igualdade, com os dos Governos, e
tomem com eles decisões de caráter democrático, visando o bem comum.
Todos esses são princípios inteiramente voltados para a eliminação da vulnerabilidade
econômica, que tem sido a causa da instalação e proliferação do “trabalho escravo” contemporâneo.
Todos os países, ao menos os integrantes da OIT, como o Brasil, devem observá-los e concretizá-los,
como, inclusive, determina a Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no
Trabalho16
, quando declara que todos os Membros, ainda que não tenham ratificado as convenções
aludidas, têm um compromisso derivado do fato de pertencer à Organização de respeitar, promover e
tornar realidade, de boa-fé e de conformidade com a Constituição, os princípios relativos aos direitos
fundamentais que são objeto dessas convenções, dentre os quais merece destaque a eliminação de
todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório.
Além disso, em 1948, a Organização das Nações Unidas, inspirada de certa forma na
Declaração de Filadélfia, torna pública a Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH, cuja
prescrição do artigo IV deixa patente que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a
escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.
Pela primeira vez surge um texto escrito, com ambição de se tornar universal17
, delimitando
o conteúdo da expressão “direitos humanos”18
. Trata-se de um ato assinado sob a forma de
resolução, sem força de lei (PIOVESAN, p. 146), mas que confere um grande reforço na proteção
dos direitos sociais, relacionados às relações laborais. Com ela, o direito ao “trabalho livre” e
(objetivando a paz), humanitários (buscando a melhoria das condições de trabalho) e econômicos (evitando distorções no
mercado, como o “dumping social”). 16
Disponível em http://www.oitbrasil.org.br/sites/default/files/topic/oit/doc/declaracao_oit_547.pdf, acessada em
22.04.2013. 17
O que acabou suscitando críticas, como se a Declaração pretendesse impor um ocidentalização ao mundo, ignorando o
multiculturalismo existente. 18
Sobre o tema vale destacar as obras de Flávia Piovesan, Direito Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São
Paulo: Saraiva, 2009 e de Ingo Wolfgang Sarlet, A eficácia dos Direitos Fundamentais. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.
8
digno19
, além de ser um direito social, passa a ser reconhecido expressamente como um direito
humano, protegido internacionalmente e a ser assegurado no âmbito interno de cada país. Trata-se de
um direito titularizável apenas pelo ser humano, em função da sua condição de pessoa humana e que
deve ser respeitado independentemente de classe social, cor, sexo, idade ou qualquer outra forma de
discriminação intersubjetiva.
Especificamente no âmbito do Direito do Trabalho e sobre a temática do “trabalho escravo”,
duas Convenções da OIT foram ratificadas pelo Brasil, a Convenção nº 29 – relativa ao Trabalho
Forçado ou Obrigatório - e a nº 105 – relativa à Abolição do Trabalho Forçado. Ambas ratificadas
pelo Brasil em 1957 e 1965, respectivamente.
Para reforçar normativamente a repressão internacional a esse mal, o conteúdo da DUDH
foi reproduzido com maior detalhamento em dois atos internacionais criados para serem
incorporados aos Ordenamentos Jurídicos internos dos países membros da ONU (PIOVESAN, p.
160). São os Pactos Internacionais de 1966, quais sejam, o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais - PIDSEC, ambos
ratificados pelo Brasil somente em 1992.
Segundo o item 1, do art. 6º do PIDSEC, relacionado à problemática ora em estudo, os
Estados Partes da ONU, inclusive o Brasil, reconhecem a existência do direito ao trabalho e o
consideram como o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante um
trabalho livremente escolhido ou aceito. Para tal, devem ser adotadas todas as medidas apropriadas
para salvaguardar esse direito.
Sendo assim, criar e implementar formas preventivas e repressivas, visando a erradicação do
“trabalho escravo” em todo o território nacional é um dever do Estado brasileiro, que se impõe não
apenas por força de normas internas, mas também pela ratificação das normas internacionais, o que
representa um compromisso firmado perante a comunidade internacional, que se descumprido pode
acarretar a eventual responsabilidade do Estado20
.
3. Reação do Brasil: o conceito de “trabalho escravo”
No Brasil, após o término formal da escravatura, a começar pela primeira Constituição
Republicana de 1891, sempre se assegurou, ao menos formalmente, a liberdade e a igualdade perante
19
Direito que se encontra nos itens 1 e 3 do artigo XXIII da citada Declaração, que assegura que toda pessoa tem: (i)
direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o
desemprego e (ii) direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma
existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social. 20
Sobre a Responsabilidade do Estado e Direito Humanos, recomenda-se a obra de Gustavo Gonçalves Ungaro, Editora
Saraiva, de 2012.
9
a lei. O Código Penal de 1940, desde o seu texto original21
, considera como crime reduzir alguém a
condição de escravo.
Todavia, foi com a Constituição de 1988 que a proteção do trabalhador se ampliou
verdadeiramente. Nela a Constituição elevou pela primeira vez22
à estatura constitucional, como
fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana23
, que
tem sido considerado como verdadeiro “axioma da civilização ocidental” (BARCELOS, p. 104) ou
“consenso ético essencial no mundo ocidental” (BARROSO, 2013, p.72), reproduzido nos textos
constitucionais de diversos países ditos “civilizados”24
(BARROSO, 2009, p. 251).
Como manifestações desse princípio, a Constituição da República de 1988, fixou em
diversos momentos distintos do seu texto, direitos que o asseguram, vedando a subjugação do
trabalho pelo capital, como o previsto no art. 5º, inciso III, o qual dispõe que ninguém será
submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante e o do inciso XV, que determina ser
livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da
lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.
Na legislação infraconstitucional, merece destaque o art. 149 do Decreto-lei 2.848, de 07 de
dezembro de 1940 (Código Penal), que na redação dada pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de
2003, passou a estabelecer um conceito analítico penal para o “trabalho escravo”, qual seja, “reduzir
alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Toda prática que desrespeita a condição de ser humano merece uma atenção especial da
sociedade e dos poderes públicos. No caso da exploração máxima do trabalho humano, que coisifica
21
Segundo a exposição de motivos da Parte Especial do Código Penal de 1940, o tipo penal previsto no art. 149 não
existia no Código Penal anterior. A inserção do art. 149, deu-se por se tratar de situação existente, consistente no fato de
reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo, suprimindo-lhe, de fato, o status libertatis,
sujeitando o agente ao completo e discricionário poder de outrem. Diz a citada exposição que “[...] É o crime que os
antigos chamavam plagium, cuja prática não é desconhecida entre nós, notadamente em certos pontos remotos do nosso
hinterland” (parte do território menos desenvolvida). 22
Embora tenham os textos da Constituição de 1967 e o da Emenda Constitucional nº 01 de 1969 mencionarem a
expressão “dignidade”, eles os fizeram atribuindo à palavra um sentido mais restritivo, vinculado às relações de trabalho,
já que reconheciam como princípio da Ordem Econômica, a “valorização do trabalho como condição da dignidade
humana”. 23
É o que prevê o art. 1º, inciso III da CRFB/88. 24
Consta no art. 1º da Declaração Universal dos Direito Humanos de 1948 - “Todas as pessoas nascem livres e iguais
em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de
fraternidade” – e nas Constituições italiana (1947), alemã (1949), portuguesa (art. 1º, de 1976, disponível em
http://dre.pt/util/pdfs/files/crp.pdf, acessado em 23.04.2013), espanhola (art. 10, de 1978, disponível em
http://www.boe.es/buscar/doc.php?id=BOE-A-1978-31229, acessado em 23.04.2013), na proposta de Constituição da
Europa (art. II-61º, conforme http://eur-
lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2004:310:0041:0054:PT:PDF, acessado em 23.04.2013). Essa
menção também ocorre em países da América Latina, como na Constituição Mexicana (de 1917).
10
o trabalhador, a participação da sociedade - Igreja, Comissão Pastoral da Terra, ONGs, Sindicatos,
Imprensa, Entidades diversas e as próprias pessoas, dentre outras –, denunciando tais situações aos
Poderes Públicos é de fundamental importância.
Todavia, além do envolvimento da sociedade, a participação ativa e conjunta dos Poderes
Públicos é imperiosa. Há que haver (i) lei assegurando direitos trabalhistas e criminalizando essa
prática, pela atuação do Poder Legislativo; (ii) a fiscalização das relações de trabalho e a fiscalização
nas estradas (para impedir o aliciamento e o transporte desautorizado de trabalhadores25
), no âmbito
do Poder Executivo; (iii) a eventual propositura de ação judicial – para assegurar a efetividade dos
direitos sociais do trabalho e buscar a condenação penal correspondente – pela atuação do Ministério
Público (do Trabalho e Federal, respectivamente); e (iv) a decisão judicial pelo Poder Judiciário.
Somente com essa atuação conjunta – sociedade e Estado – é possível eliminar o perigoso
sentimento de IMPUNIDADE, que alimenta ainda mais a sujeição do humilde trabalhador, já muito
consolidada pelo estado de pobreza no qual sempre viveu.
Nesse ponto, cabe ao Poder Executivo, em regra, atuar em primeiro lugar, pois a ele foi
reservado dar cumprimento às determinações expostas pelo Parlamento, independentemente de
provocação, podendo atuar, por sensibilização própria (de ofício), pelo recebimento de denúncias ou
por requisição ministerial ou judicial. É ele que, por meio da fiscalização do trabalho, implementará
a repressão ativa a esse mal e, a depender da presença fiscal que impuser no território nacional,
poderá acarretar um efeito pedagógico positivo nas relações de trabalho existentes nos empregadores
vizinhos.
Para tal, o Ministério do Trabalho precisava delimitar os contornos do conceito que iria
adotar de trabalho escravo contemporâneo. E assim o fez, partindo da definição dada no âmbito
penal, por meio da Instrução Normativa (IN) nº 91, de 05 de outubro 201126
. Nela consta o conceito
de trabalho realizado em condições análogas à de escravo27
como aquele que resulte das seguintes
situações, quer em conjunto, quer isoladamente: (i) a submissão de trabalhador a trabalhos
forçados28
; (ii) a submissão de trabalhador a jornada exaustiva29
; (iii) a sujeição de trabalhador a
25
Nos termos do que determina o Ministério do Trabalho, na sua Instrução Normativa nº 76, de 15 de maio de 2009, arts.
23 e seguintes, o transporte de trabalhadores recrutados para trabalhar em localidade diversa da sua origem deve ser
precedido de comunicação do fato às Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego, por intermédio da Certidão
Declaratória de Transporte de Trabalhadores (CDTT), sob pena de incorrer no crime previsto no art. 207 do Código
Penal - “Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional”. 26
Disponível em http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/2011.htm, acessado em 24.04.2013. 27
Vale dizer, desde já, que a expressão “trabalho escravo”, apesar de ser equivocada nos tempos atuais, pois a
indignidade não está no trabalho objetivamente, mas nas condições pelas quais ele é prestado, poderá ser eventualmente
utilizada, mas sempre no sentido de “trabalho prestado em condições análogas a de escravo”. 28
No termos da citada IN nº 91, deve-se considerar como “trabalhos forçados”, todas as formas de trabalho ou de serviço
exigidas de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente, assim como
aquele exigido como medida de coerção, de educação política, de punição por ter ou expressar opiniões políticas ou
11
condições degradantes de trabalho30
; (iv) a restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão
de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte
do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho; (v) a
vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de
retê-lo no local de trabalho; e (vi) a posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por
parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Tais situações podem ser consolidadas em três espécies do mesmo gênero – trabalho em
condições análogas a de escravo – que podem estar presentes, uma ou mais, no caso concreto, a
saber, o trabalho sem liberdade (obrigatório ou forçado) – situações (i), (iv), (v) e (vi) –, o
trabalho em condições degradantes – situação (iii) -, e o trabalho com jornada exaustiva -
situação (ii).
No trabalho “sem liberdade”, predomina a ofensa ao direito de liberdade de ir e vir,
praticado por meio de coação moral (existente na servidão por dívida31
), psicológica ou física
(CAMARGO, p. 11). Nas demais espécies, predomina a ofensa à própria dignidade da pessoa
humana.
A mácula no direito à liberdade ocorre não apenas pela ofensa à liberdade de ir e vir
(presente apenas em algumas espécies), mas à liberdade como poder de autodeterminação, de
consentir livremente, que só existe quando, ao menos, os direitos sociais equivalentes ao “mínimo
existencial”32
, estão satisfeitos. Sem a garantia de um mínimo de alimentação, educação e saúde,
dentre outros direitos, a pessoa não se torna verdadeiramente livre. O que a conduz para o grupo dos
pontos de vista ideologicamente opostos ao sistema político, social e econômico vigente, como método de mobilização e
de utilização da mão-de-obra para fins de desenvolvimento econômico, como meio para disciplinar a mão-de-obra, como
punição por participação em greves ou como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa. 29
Para a mesma IN, considera-se “jornada exaustiva”, toda jornada de trabalho de natureza física ou mental que, por sua
extensão ou intensidade, cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas da pessoa do trabalhador,
ainda que transitória e temporalmente, acarretando, em consequência, riscos a sua segurança e/ou a sua saúde. 30
“Condições degradantes de trabalho”, para o Ministério do Trabalho, são todas as formas de desrespeito à dignidade
humana pelo descumprimento aos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, notadamente em matéria de
segurança e saúde e que, em virtude do trabalho, venha a ser tratada pelo empregador, por preposto ou mesmo por
terceiros, como coisa e não como pessoa. 31
Segundo a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfego de Escravos e das Instituições e
Práticas Análogas à Escravatura, a servidão por dívida é o estado ou a condição resultante do fato de que um devedor se
haja comprometido a fornecer, em garantia de uma dívida, seus serviços pessoais ou os de alguém sobre o qual tenha
autoridade, se o valor desses serviços não for equitativamente avaliado no ato da liquidação da dívida ou se a duração
desses serviços não for limitada nem sua natureza definida. Fonte: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-
apoio/legislacao/trabalho-escravo/convencao_escravatura_genebra_1926.pdf, acessado em 24.04.2013. 32
Sobre o direito ao mínimo existencial, sugere-se a obra de Ricardo Lobo Torres - Direito ao Mínimo Existencial. Rio
de Janeiro: Renovar, 2009 - para quem só os direitos da pessoa humana, relacionados a sua existência em condições
dignas, compõem o mínimo existencial (p. 36). Ana Paula de Barcelos, após tratar da fundamentalidade da dignidade da
pessoa humana nas concepções de vida social de John Rawls e Michel Walzer, conclui que “[...] para Rawls, sem o
mínimo social (a situação equitativa de oportunidades), não há a fruição efetiva dos direitos da liberdade, bem como se
inviabiliza ab initio qualquer justiça distributiva. O mínimo existencial ou social, portanto, constitui uma verdadeira
condição da liberdade [...]” (BARCELOS, p. 139).
12
vulneráveis, constituído por pessoas potencialmente sujeitas ao aliciamento e à sujeição a condições
análogas a de escravidão.
Com isso, o trabalho escravo contemporâneo é um atentado direto à dignidade da pessoa
humana, cujo reconhecimento tem origens remotas, com raízes na ética e na filosofia moral, que
permitiram a construção de ideais, por renomados pensadores (Cícero, Pico Della Mirandola e
Immanuel Kant), como o antropocentrismo (BARROSO, 2013, p. 61).
O reconhecimento do ser humano como “um fim em si mesmo” foi resultado de um longo
caminho histórico, do qual vale destacar quatro momentos fundamentais, o Cristianismo33
, o
Iluminismo-humanista (substituindo a religiosidade pelo uso da razão), a obra de Immanuel Kant e
os reflexos das atrocidades praticadas na Segunda Guerra Mundial (BARCELOS, pp. 104/107).
Está em Kant34
a reflexão mais conhecida sobre a dignidade da pessoa humana. Para ele o
homem, e em geral todo ser racional, existe como fim em si, não apenas como meio, do qual esta ou
aquela vontade possa dispor a seu talento (KANT, p. 28). Como tal, o homem possui valor
intrínseco, é insubstituível e, portanto, possui dignidade. Os demais seres que dependem da natureza
e que são desprovidos da razão possuem valor relativo (de meios), tornando-se “coisas”, portanto,
possuem preço e são substituíveis. Assim, os seres racionais, chamados “pessoas”, fundam e se
sujeitam à lei, em virtude da qual cada um deles nunca deve tratar-se a si e aos outros como puros
meios, mas sempre e simultaneamente como fins em si (KANT, p. 31).
É exatamente essa máxima moral kantiana, que veda a instrumentalização da pessoa
humana, e que foi adotada pela Constituição de 1988, que vem sendo aviltada com a submissão de
trabalhadores a condições degradantes, jornadas exaustivas e ao trabalho forçado, ainda que
moralmente. Quando o que importa é apenas o resultado e não a forma como ele é obtido; quando os
“fins justificam os meios”, toda a moralidade resta abandonada e, por necessidade de sobrevivência
da própria sociedade, precisa ser restabelecida.
33
A mensagem revolucionário de Cristo desconstruiu paradigmas há muito enraizados, pois o homem passou a ter
valor individual e poderia se salvar, dependendo da sua decisão pessoal, sobretudo de ajudar o outro, dando início ao
sentimento de igualdade e fraternidade. Seus mais importantes mandamentos, segundo o Evangelho de Mateus,
respondendo Jesus é “ame o Senhor seu Deus com todo o coração, com toda a alma e com toda a mente. Este é o maior
mandamento e o mais importante. E o segundo mais importante é parecido com o primeiro: Ame os outros como você
ama a você mesmo. Toda a Lei de Moisés e os ensinamentos dos profetas estão resumidos nesses dois mandamentos”
(Capítulo 22, versículos 37 a 40, A Bíblia Sagrada na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1998,
p. 32, do Novo Testamento). 34
Na sua obra - Fundamentação da Metafísica dos Costumes – conclui que: “A razão refere assim toda máxima da
vontade, concebida como legisladora universal, a toda outra vontade, e também a toda ação que o homem ponha para
consigo: procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela ideia da
dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele
próprio. No reino dos fins tudo tem um PREÇO ou uma DIGNIDADE. Uma coisa que tem um preço pode ser substituída
por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço e, por conseguinte, o que não admite
equivalente, é o que tem uma dignidade. [...]”.
13
Com isso, também o Grupo Móvel (GM) da fiscalização do trabalho35
, na sua atuação de
repressão contra o “trabalho escravo”, deve buscar dar concretude a esse princípio, quando for
realizar a seleção e a descrição dos fatos observados durante o desenvolvimento das ações fiscais.
Nestas, são praticados diversos atos administrativos vinculados, todos com base na adoção do
conceito de “trabalho escravo” previsto na citada Instrução Normativa nº 91/2011, pois diante de
uma infração trabalhista, não há espaço para uma atuação discricionária dos auditores-fiscais do
trabalho. Logo, será com base nos contornos fixados nessa Instrução Normativa que o empregador
será inspecionado, autuado - se for o caso – e, após decisão administrativa final36
, referente ao auto-
de-infração correspondente, eventualmente incluído no cadastro dos empregadores37
(pessoas físicas
ou jurídicas) que submetem seus trabalhadores a condições análogas à de escravo. Tudo com o
objetivo de tornar público à sociedade a empresa que se encontra descumprindo a sua função
social38
.
Todavia, a atuação do Estado não se esgota com o Poder Executivo (Ministério do
Trabalho). Existe uma importante Instituição “extra-poderes”, com atuação marcante nessa causa - o
Ministério Público do Trabalho. Ramos especializado do Ministério Público da União destinado
precipuamente para atuar nas causas de competência da Justiça do Trabalho39
e que criou em 2001,
uma Coordenadoria Especial somente para tratar especificamente sobre o “trabalho escravo”,
chamada de Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo - CONAETE.
Essa Coordenadoria reúne os membros do MPT, distribuídos pelas Procuradorias Regionais
localizadas nas unidades da federação, encarregados pela Instituição para atuar no combate ao
35
As ações fiscais no setor rural direcionadas para o combate ao trabalho em condições análogas a de escravo estão
sujeitas a Instrução Normativa nº 76, de 15 de maio de 2009, cujo art. 19, determina que as ações fiscais para erradicação
do trabalho análogo ao de escravo serão coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, que poderá realizá-las
diretamente, por intermédio das equipes do grupo especial de fiscalização móvel ou por intermédio de grupos/equipes
especiais de fiscalização rural, organizados no âmbito das SRTE. Além disso, fixa que as ações fiscais deverão contar
com a participação de representante da Polícia Federal, ou da Policia Rodoviária Federal, ou da Policia Militar ou da
Policia Civil e que o Ministério Público do Trabalho – MPT e a Advocacia Geral da União - AGU devem ser
comunicados sobre a operação, para que estas instituições avaliem a conveniência de integrar a equipe. 36
Segundo o art. 2º da Portaria Interministerial n.º 2, de 12 de maio de 2011, a inclusão do nome do infrator no Cadastro
ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que
tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo. 37
Trata-se do cadastro instituído em 2003, pela Portaria nº 1.234 do Ministério do Trabalho e Emprego (substituída em
2004, pela Portaria nº 540 e, recentemente, novamente substituída pela Portaria Interministerial nº 02, em 12/5/2011),
que se tornou conhecido pejorativamente como “Lista Suja” dos empregadores.
38 Não se pode olvidar que a ordem econômica – notadamente o exercício de uma atividade econômica – tem por fim
assegurar a todos uma existência digna e deve se orientar pelo princípio da função social da propriedade (art. 170, inciso
III da CRFB/88). Além disso, no âmbito rural, diz expressamente o texto constitucional, no seu art. 186, inciso III, que a
função social da propriedade rural é cumprida quando atende simultaneamente a quatro requisitos, dentre eles, a
observância das disposições que regulam as relações de trabalho e o fato de que a exploração deve favorecer o bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores. 39
Disciplinadas no art. 114 da CRFB/88, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004.
14
“trabalho escravo”. Ela possui duas “Orientações”40
específicas, dentre outras, voltados para o tema
em debate, que complementam a construção do conceito em exame para essa Instituição. São as
“Orientações” nº 03 (sobre jornada de trabalho exaustiva)41
e 04 (sobre condições degradantes de
trabalho)42
, ambas tratando de duas espécies de “trabalho escravo”, também consideradas pelo MPT
como ofensivas à dignidade da pessoa do trabalhador e que se fazem presentes quando há uma
situação de sujeição do trabalhador ao empregador que, por qualquer razão, torne irrelevante a
vontade do primeiro.
Não há orientação quanto ao trabalho forçado, pois o conceito, além de já estar previsto na
Convenção nº 29 da OIT, é mais facilmente verificado, vez que está vinculado à subtração da
liberdade do trabalhador.
4. Formas de atuação contra o “trabalho escravo” e a tributação.
Após a Constituição da República de 1988, muitas implementações legais e normativas
foram realizadas para fortalecer a luta pela erradicação do “trabalho escravo”. Todavia, uma forma
bastante eficaz ainda não foi empregada, qual seja, a utilização da tributação com a finalidade de
tornar o risco da ilegalidade menos compensatório. No entanto, antes de adentrar nesse ponto, vale
conhecer previamente as formas existentes de combate ao “trabalho escravo”.
As formas de atuação são muitas, mas podem ser classificadas em duas espécies, a primeira,
objetivando predominantemente a prevenção da exploração, antes da ocorrência do dano à dignidade
da pessoa humana. A segunda é a repressão, quando a situação danosa já se instalou, face à
exploração desumana do trabalhador propriamente dita. No entanto, mediatamente, toda forma de
repressão também é uma forma indireta de prevenção, contra danos futuros direcionados a outros
trabalhadores. Como é o caso da tributação.
Essa classificação é adotada para evidenciar que é possível prevenir esse mal e não apenas
atuar repressivamente, quando o dano já estiver instalado. E dentre as formas preventivas de atuação,
merecem destaque aquela que minimiza ou elimina a vulnerabilidade das pessoas, por meio da
40
Usa-se a expressão “Orientação” porque ela não é vinculante, dada a independência funcional dos membros da
Instituição. Orientações 03 e 04 disponíveis em
http://mpt.gov.br/portaltransparencia/download.php?tabela=PDF&IDDOCUMENTO=643, página 31, acessado em
20.12.2013. 41
Orientação nº 03: “Jornada de trabalho exaustiva é a que, por circunstâncias de intensidade, frequência, desgaste ou
outras, cause prejuízos à saúde física ou mental do trabalhador, agredindo sua dignidade, e decorra de situação de
sujeição que, por qualquer razão, torne irrelevante a sua vontade”. 42
Orientação nº 04: “Condições degradantes de trabalho são as que configuram desprezo à dignidade da pessoa humana,
pelo descumprimento dos direitos fundamentais do trabalhador, em especial os referentes a higiene, saúde, segurança,
moradia, repouso, alimentação ou outros relacionados a direitos da personalidade, decorrentes de situação de sujeição
que, por qualquer razão, torne irrelevante a vontade do trabalhador”.
15
educação43
e por programas de assistência social44
, bem como a que objetiva implementar políticas
públicas inclusivas, que assegurem condições de vida digna a todos, notadamente a alimentação, a
moradia, a educação e a saúde. Tais formas de proteção estão intimamente ligadas à concretização,
ao menos, do mencionado “mínimo existencial”, que deve, em verdade, ultrapassar essa ideia de
“mínimo” para se assegurar a liberdade e começar a buscar a concretização “máxima possível” dos
direitos sociais necessários para igualar as oportunidades. Só assim, as pessoas serão
verdadeiramente livres e insuscetíveis de serem aliciadas para o trabalho escravo.
Ocorre que pouco se fala da importância das formas preventivas e isso muito é devido pela
constante inação ou pela atuação deficiente do Estado na realização dos direitos fundamentais
previstos na Constituição, sobretudo dos direitos ditos prestacionais (direitos sociais que exigem um
“fazer” do Estado), vez que estariam sujeitos à concretização progressiva.
Tais formas de atuação, deveriam ser as mais adotadas, nos tempos atuais de capitalismo
global e voraz, especialmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, tendo em vista que
nestes o Estado deveria assumir a necessária posição de garantidor dos direitos fundamentais
(ARNAUD, 1999, pp. 25/26)45
.
Todavia, em função da implementação insatisfatória dessas formas preventivas, as formas
repressivas de atuação se tornam as mais empregadas. Dentre elas, vale destacar, as seguintes: a
criação de leis estaduais que determinam o fechamento de empresas que utilizam trabalho em
condições análogas ao de escravo46
, as condenações judicias em dano moral (coletivo e individual), a
inclusão dos empregadores no cadastro nacional já citado47
, a suspensão do crédito e da obtenção de
financiamentos em bancos públicos, a não contratação com compradores dos seus produtos ou
43
Essa é a forma pela qual a sociedade pode mais contribuir, seja por meio de campanhas, panfletos, oferecimento de
cursos técnicos por empresas, imprensa, enfim, divulgando o máximo a existência desse mal e a importância de se
reverter essa situação. A ONG Repórter Brasil (http://reporterbrasil.org.br/) e o Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo
Contemporâneo – GPTEC do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ (http://www.gptec.cfch.ufrj.br/), dentre
outros. Seguem essa linha, oferecendo sua contribuição. 44
Dentre tais programas, há o conhecido “bolsa família”, criado pela Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de
2003, convertida posteriormente na Lei nº 10.836, de 09 de janeiro de 2004, que, embora sozinho não tenha o condão de
impedir a ocorrência do trabalho escravo no Brasil, tem sido, segundo o relatório da OIT de fevereiro de 2013,
considerado como relevante medida preventiva sócio-econômica, disponível em
http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/gender/doc/trabalhoescravofev2013_983.pdf, acessado em 24.04.2013. 45
Nesse ponto, impõe-se dizer que é preciso que o Estado assuma responsabilidades que as organizações globais não
desejam assumir e que as instâncias locais não são capazes de realizar. Trata-se aqui de questões afetas a toda forma de
proteção social, que embora não seja rentável, são de extrema relevância para segurança social das pessoas. São casos,
em que o risco precisa ser socialmente repartido, e somente com a solidariedade “forçada” (imposta pelo Estado) e de
âmbito nacional é que se torna viável atender aos anseios da sociedade. 46
Essa foi uma iniciativa do Estado de São Paulo, no atual Governo de Geraldo Alckmin, que sancionou em 28.01.2013,
o projeto de lei 1.034/2011, cassando a inscrição no cadastro de contribuintes do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) dos estabelecimentos comerciais envolvidos na prática desse crime e os impedindo por
dez anos de exercer o mesmo ramo de atividade econômica ou abrir nova firma no setor. 47
Instado a se manifestar, o STJ considerou legítimo e amparado constitucionalmente o ato normativo que criou o
cadastro dos “escravocratas” contemporâneos. MS 14.017-DF, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 27/5/2009.
(Informativo nº 0396 do período de 25 a 29 de maio de 2009 do STJ).
16
serviços, por ter sido incluído no cadastro citado48
, a fiscalização nas estradas pela polícia rodoviária
federal, a fim de impedir o transporte desautorizado de trabalhadores, a conhecida Proposta de
Emenda a Constituição - PEC 438 na Câmara dos Deputados, que foi renumerada para PEC 57A no
Senado Federal, cujo objetivo é alterar o texto do art. 243 da CRFB/88, a fim de determinar a
expropriação de terras em que for constatada a exploração de trabalhadores em condições análogas à
de escravidão, e, sem pretender esgotar a lista, a repressão penal em função do disposto no art. 149
do Código Penal49
, cujo intuito é proteger, como já foi dito, não apenas a liberdade individual do
trabalhador, mas, sobretudo, nos tempos atuais, a dignidade da pessoa do trabalhador50
.
Contudo, além desse Rol de formas repressivas, existem outras, que caso sejam
implementadas, atingiriam o que há de mais relevante para o empregador – a sua competitividade no
mercado, ou mais especificamente, a sua aptidão para obtenção de lucro. Não se pode olvidar que se
ainda há “trabalho escravo” nas relações laborais, a despeito do risco dos dirigentes da atividade
empresarial serem responsabilizados nas esferas penal, administrativa e civil é porque o benefício
(obtido com a exploração humana) ainda consegue ser maior do que o custo do risco.
É exatamente essa relação matemática perversa que precisa ser revertida e a melhor forma
de aumentar o custo desse risco é comprometer a própria atividade empresarial, caso se constate que
o bem comercializado foi obtido com a utilização de mão de obra em condições indignas
(indecentes), diretamente (por meio de empregados próprios) ou indiretamente (por meio de
trabalhadores terceirizados).
Trata-se da utilização da tributação como instrumento de implementação de justiça social.
Na verdade, a adoção desse relevante instrumento com finalidade distinta da puramente fiscal (ou
arrecadatória) não é rara no ordenamento jurídico brasileiro. A tributação é constantemente utilizada
como forma de (des)estimular comportamentos empresariais. Isso ocorre, sobretudo com os impostos
48
Conforme matéria divulgada em http://reporterbrasil.org.br/2007/05/empresas-mostram-suas-acoes-contra-o-trabalho-
escravo-em-evento-em-sp/, acessado em 18.03.2013. 49
Apesar do descrito no art. 149 do CP evidenciar que o trabalho escravo contemporâneo é um atentado contra a
dignidade do trabalhador e não apenas contra a sua liberdade, ainda existem decisões no âmbito da justiça federal
criminal o entendimento que a ocorrência do crime somente ocorre quando há privação da liberdade, conforme se
depreende da sentença proferida nos autos do processo 31479-81.2012.4.01.3700, pelo MM Juízo da 1ª Vara Criminal no
Estado do Maranhão. Todavia, o STJ tem entendido tratar-se de violação aos direitos humanos e à organização do
trabalho (AgRg no REsp 1067302 / PA, julgado em 12.06.2012, pela 5ª Turma; RHC 25583 / MT, julgado em
09.08.2012, pela 6ª Turma; HC 134788 / RJ, julgado em 28.04.2011, pela 6ª Turma). 50
Apesar do tipo penal previsto no art. 149 do CP evidenciar que o trabalho escravo contemporâneo é um atentado
contra a dignidade do trabalhador e não apenas contra a sua liberdade, ainda existem decisões no âmbito da justiça
federal criminal, sustentando que a ocorrência do crime somente ocorre quando há privação da liberdade, conforme
se depreende da sentença proferida nos autos do processo 31479-81.2012.4.01.3700, pelo MM Juízo da 1ª Vara Criminal
no Estado do Maranhão. Todavia, o STJ tem entendido tratar-se de violação aos direitos humanos e à Organização do
Trabalho (AgRg no REsp 1067302 / PA, julgado em 12.06.2012, pela 5ª Turma; RHC 25583 / MT, julgado em
09.08.2012, pela 6ª Turma; HC 134788 / RJ, julgado em 28.04.2011, pela 6ª Turma)
17
que o Poder Executivo tem autorização constitucional51
para alterar suas alíquotas sem a necessidade
de lei prévia, como é o caso dos impostos incidentes no comércio internacional (para estimular as
exportações e desestimular as importações), na industrialização (para estimular o consumo de
produtos industrializados) e no câmbio (para desestimular a saída de moeda do país), entre outros.
Atualmente, um exemplo dessa política extrafiscal é a que ficou conhecida como “desoneração da
folha de pagamento”, implementada inicialmente pela Medida Provisória nº 540, de 02 de agosto de
2011 e, posteriormente, convertida na Lei nº 12.546, de 14 de dezembro de 2011.
Ela consiste na alteração do regime de tributação de algumas empresas a fim de que deixem
de recolher contribuições sobre a folha de pagamento e passem a recolher, em seu lugar,
contribuições sobre a receita bruta. O que não significa que haverá uma desoneração da carga
tributária da empresa “beneficiada” com essa alteração, mas sim, apenas uma redução dos tributos
sobre a folha de pagamento. Isso, com o objetivo de estimular novas contratações (visando ao “pleno
emprego”) ou, ao menos, manter as contratações existentes.
Dessa forma, o emprego da tributação nesse viés extrafiscal pode ser bastante eficiente.
Pagar tributo é um “dever fundamental”52
, necessário para que o Estado possa assegurar a
efetividade dos direitos fundamentais previstos no texto constitucional, pois todo direito para ser
implementado, sobretudo quanto mais fundamental ele for, tem seu custo. Esse dever é fundamental,
pois assim determinou o legislador constituinte.
Nesse ponto, o contribuinte (seja ele pessoa física ou jurídica) quando, ao explorar uma
atividade econômica, submete sua mão de obra a condições de vida indigna, ele ofende o próprio
fundamento da ordem econômica, que é a “valorização do trabalho humano” e um dos seus
princípios - a função social da propriedade, que equivale à função social da empresa. O ente público,
portanto, que concede benefícios fiscais com o objetivo de fazer com que o contribuinte beneficiado
traga algum retorno positivo para a sociedade (pleno emprego, redução de preços, entre outros), no
caso de trabalho escravo, não pode incorrer nessa prática.
Um empregador (pessoa física ou jurídica) que causa tamanha injustiça social no
desempenho da sua atividade empresarial, impondo prejuízos à sociedade laboral, inclusive de ordem
moral, pelo descaso com o ordenamento jurídico, não pode (i) receber do Estado, que deve zelar pelo
respeito à dignidade dos membros da sociedade, qualquer tipo de benefício fiscal, bem como não
pode (ii) atuar no comércio internacional, exportando produtos obtidos às custas de “trabalho
51
É o que autoriza o art. 153, §1º da CRFB/88. 52
Ver “A face oculta dos direitos fundamentais: os deveres e os custos dos direitos” de José Casalta Nabais. Disponível
em http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15184-15185-1-PB.pdf, acessado em 20.12.2013.
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escravo”, ou seja, “exportando indignidade”, quando a dignidade é o direito humano mais basilar dos
textos constitucionais atuais, ao menos, no ocidente.
Com isso, a primeira proposta de redesenho da legislação tributária consiste na vedação (ou
suspensão) à concessão de benefício fiscal53
a todo empregador que for incluído no cadastro do
MTE, reservado para aqueles que submetem seus trabalhadores a condições análogas a de escravo.
Atualmente, existe um projeto de lei (PLS 540/2011)54
do senador Eduardo Amorim (PSC-
SE), aprovado em 2012 pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS), determinando que seja vedada a
concessão de subvenções econômicas a produtor, cooperativa e indústria rural e cooperativas e
industrias urbanas, condenados em decisão administrativa final relativa a auto de infração lavrado em
operações de fiscalização em que se encontre trabalhador sujeito a condições análogas a de
escravo55
. Todavia, trata-se de vedação a subvenções econômicas e não de concessão de benefício
fiscal, que até o presente momento, não encontra qualquer óbice em ser concedido a uma empresa
integrante do cadastro de empregadores que submetem seus trabalhadores a condições de trabalho
indignas.
Para suprir essa falta, adequando a legislação tributária ao texto constitucional, que impõe a
dignidade da pessoa humana como fundamento do próprio Estado Brasileiro (art. 1º, III da
CRFB/88), o legislador deve alterar o art. 6º, caput, da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002,
considerando obrigatória a consulta prévia, não somente ao Cadin56
(como exige o texto atualmente
em vigor), mas também ao cadastro dos empregadores que submetem seus trabalhadores a condições
análogas a de escravo, pelos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, direta e indireta,
para poder conceder incentivos fiscais e financeiros.
Além disso, sugere-se como segunda proposta de redesenho da legislação tributária, que se
faça uma alteração no art. 2º do Decreto-lei nº 1.248, de 29 de novembro de 1972 e na Portaria
MEFP nº 438, de 26 de maio de 1992, que tratam da concessão, manutenção e cancelamento do
registro especial de Empresa Comercial Exportadora, a fim de considerar como requisito para a
concessão do citado registro, que a empresa não conste no cadastro de empregadores
“escravocratas”, pois com esse registro, a empresa passa a poder adquirir e exportar qualquer
53
Entendido como toda concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia
de receita, como a que ocorre na concessão de anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em
caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo, que implique redução discriminada de tributos
ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado (art. 14, caput e §1º da Lei
Complementar nº 101, de 04 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal). 54
Cuja ementa comporta o seguinte: “Altera à Lei nº 8.427, de 27 de maio de 1992, que dispõe sobre a concessão de
subvenção econômica nas operações de crédito rural, para estabelecer a vedação de concessão de subvenções
econômicas aos produtores rurais autuados por promover o trabalho escravo em sua propriedade rural” (disponível em
http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=95695&tp=1, acessado em 24.04.2013). 55
Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=109218&tp=1, acessado em 24.04.2013. 56
Cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal – Cadin.
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mercadoria de produção nacional, importar para comercializar no mercado interno, ou reexportar
mercadorias estrangeiras, atendidas as normas estabelecidas no Regulamento Aduaneiro, aprovado
pelo Decreto nº 6.759, de 05 de fevereiro de 2009.
Com isso, o empregador não poderá comercializar diretamente seus produtos com o
exterior. O que onerará ainda mais os preços finais dos seus produtos, que para serem exportados
terão que ser remetidos por empresa interposta Comercial Exportadora. Fato que atingirá diretamente
o custo do “agronegócio” do contribuinte-empregador, incluído como “escravocrata”, o que reduzirá
a competitividade deste no mercado.
Essas duas propostas tem o propósito de fazer com que a utilização do “trabalho escravo” se
torne muito mais dispendiosa para o empregador do que o trabalho realizado com observância das
normas trabalhistas, sobretudo às que se referem à higidez do meio ambiente do trabalho.
A extrafiscalidade na tributação, como se percebe, representa um importante instrumento de
intervenção estatal no meio social e na economia privada, que pode restabelecer a dignidade à pessoa
humana. A finalidade principal da tributação não é apenas arrecadar (caráter fiscal do tributo) e
prover o Estado de recursos para custear despesas públicas. Em cada tributo, coexistem ambas as
finalidades – fiscal e extrafiscal – que a depender da situação concreta, uma poderá prevalecer sobre
a outra (BECKER, pp. 587/589).
Conclusão.
A submissão do trabalhador a condições de vida análogas a de escravo não deveria existir
no mundo contemporâneo. Não no mundo que já vivenciou tantos conflitos causados exatamente
pela profunda desigualdade social, que ainda assola boa parte da humanidade. Não no mundo “pós-
universalização” dos direitos humanos, mesmo que somente no lado ocidental, onde a dignidade da
pessoa humana, como valor intrínseco da pessoa, tem passado a povoar a maior parte dos textos
constitucionais.
A superexploração do trabalho humano mostra o quanto a palavra escrita ainda é uma
realidade distante. O capitalismo é impessoal e vive no mundo dos fatos. Agiganta-se com as
relações transnacionais, que são “desterritorializadas”, comprometendo a própria soberania do
Estado, que pode acabar servindo mais a quem está fora do que dentro do seu próprio território.
Dentre as inúmeras repercussões desse fenômeno global, o mundo do trabalho é um dos
mais atingidos. Os grandes empregadores buscam sempre se instalar em países onde a lucratividade
pode ser maximizada. A mão-de-obra é tida como um fator de produção, um custo que, a depender
da intervenção do Estado, pode ser mais ou menos reduzido. E a máxima forma de redução desse
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custo é conseguir a normalização da desconsideração do trabalho humano, retirando o status de
“pessoa” do trabalhador.
Assim, diante dessa realidade econômica global e a miserabilidade que ainda assola as
pessoas, mesmo nos países industrializados, procurou-se mostrar que o trabalho escravo ainda é uma
opção adotada em todos os lugares do globo, sobretudo na América Latina, que somente perde para a
Ásia. É verdade que esse mal não está deixando de ser monitorado, notadamente pela OIT e, no
território nacional, pelo Estado brasileiro, todavia, ainda está longe de ser erradicado.
No mundo contemporâneo o Estado emerge como o necessário garantidor de proteção
social, sem o qual a exploração se tornaria a regra e o mundo caminharia na direção contrária a todo
o progresso obtido.
O combate ao “trabalho escravo” só começa a obter resultados positivos quando há a
cumplicidade ativa do Estado. Sua participação efetiva é essencial. Por isso, o presente estudo
buscou abordar as formas de atuação do Estado (preventiva e repressiva) no combate a essa máxima
exploração, ainda existente nas relações de trabalho, destacando ao final, a utilização da tributação
como instrumento de prevenção e repressão ao “trabalho escravo”. Tais propostas consistem na
vedação (ou suspensão) à concessão de benefícios fiscais e no cancelamento ou denegação de pedido
de concessão de certificado de empresa comercial exportadora, a todo empregador que for incluído
no cadastro do MTE, reservado para aqueles que submetem seus trabalhadores a condições análogas
a de escravo.
Toda a análise empreendida teve como objetivo não apenas contemplar uma realidade
inafastável, mas demonstrar que o enfretamento dessa prática é possível e deve ser, antes de tudo,
preventivo (a fim de eliminar a vulnerabilidade), coletivo (envolvendo sociedade, Estado e
comprometimento internacional), repressivo (para restabelecer a dignidade ultrajada) e permanente
(pois a erradicação é uma meta que não se sabe se será atingida ou mantida).
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