O RISO FEMINISTA NA IMPRENSA ALTERNATIVA (1970-1980) · feministas emergentes do Brasil, no...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X O RISO FEMINISTA NA IMPRENSA ALTERNATIVA (1970-1980) Cíntia Lima Crescêncio 1 Resumo: Há séculos o riso tem sido objeto de estudos, principalmente por parte de filósofos e psicanalistas que o encararam como gesto social (Henri Bergson), como ferramenta destruidora de ideologias (Quentin Skinner), como melancolia travestida (Sigmund Freud). Em meio a inúmeros usos, o riso feminista, que subverte em função de não explorar estereótipos de maneira convencional, categoria muito lembrada na conceituação do riso, não tem sido objeto de análise, seja por décadas de perseguição debochada às feministas, seja pela prevalência do binômio sério/divertido. A partir dessa constatação o presente texto tem como objetivo refletir sobre os usos do riso explorados por feministas, analisando, para isso, charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas que circularam nos países do Cone Sul durante o que se convencionou chamar de Segunda Onda Feminista (segunda metade do século XX). Com a exploração dessas fontes pretendo responder alguns questionamentos: O riso feminista enquadra-se nos sentidos do cômico e do risível até então estabelecidos? O uso de estereótipos é função obrigatória na provocação do riso? Pode o riso feminista, com evidentes intenções transformadoras, servir de instrumento de revolução e reflexão? Palavras-chave: Riso feminista. Periódicos feministas. Instrumento de revolução. O riso, esse signo que designa um comportamento para além de qualquer objetividade, como estado de comunicação não discursivo, como fuga do domínio lógico e como ingresso no domínio afetivo (DELIGNE, 2011, 30), é notoriamente apontado como um instrumento muito eficiente na destruição das pretensões feministas ao longo das décadas de 70 e 80 no Brasil. A imprensa alternativa, um dos principais meios de atacar o regime então vigente, a ditadura civil-militar, ao contrário do que poderíamos prever, atuou como protagonista nessa perseguição às feministas: feias, homossexuais, mal-amadas, burras; eram apenas alguns dos adjetivos dedicados às mulheres que se engajaram na causa feminista. Através de entrevistas debochadas, piadas misóginas, charges e tirinhas com conteúdo nitidamente machista, essa imprensa uniu-se ao conservadorismo da ditadura para ridicularizar e atacar as reivindicações feministas, bem como as próprias feministas. O movimento feminista, portanto, via-se mediante um regime autoritário e uma imprensa alternativa que, ao invés de acolher um movimento que também questionava o status quo, optou por afirmar-se em detrimento de milhares de mulheres organizadas. O pessimismo que essa perspectiva salienta, ao ressaltar que até mesmo os revolucionários – integrantes da imprensa alternativa – eram conservadores no que se refere aos movimentos feministas emergentes do Brasil, no entanto, não deve permitir que a cegueira tome conta e nos impeça de perceber uma série de estratégias, resistências, instrumentos e, por que não, armas que 1 Doutoranda em História Cultural – UFSC (Florianópolis/Brasil). Bolsista CNPq.

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

O RISO FEMINISTA NA IMPRENSA ALTERNATIVA (1970-1980)

Cíntia Lima Crescêncio1

Resumo: Há séculos o riso tem sido objeto de estudos, principalmente por parte de filósofos e psicanalistas que o encararam como gesto social (Henri Bergson), como ferramenta destruidora de ideologias (Quentin Skinner), como melancolia travestida (Sigmund Freud). Em meio a inúmeros usos, o riso feminista, que subverte em função de não explorar estereótipos de maneira convencional, categoria muito lembrada na conceituação do riso, não tem sido objeto de análise, seja por décadas de perseguição debochada às feministas, seja pela prevalência do binômio sério/divertido. A partir dessa constatação o presente texto tem como objetivo refletir sobre os usos do riso explorados por feministas, analisando, para isso, charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas que circularam nos países do Cone Sul durante o que se convencionou chamar de Segunda Onda Feminista (segunda metade do século XX). Com a exploração dessas fontes pretendo responder alguns questionamentos: O riso feminista enquadra-se nos sentidos do cômico e do risível até então estabelecidos? O uso de estereótipos é função obrigatória na provocação do riso? Pode o riso feminista, com evidentes intenções transformadoras, servir de instrumento de revolução e reflexão?

Palavras-chave: Riso feminista. Periódicos feministas. Instrumento de revolução.

O riso, esse signo que designa um comportamento para além de qualquer objetividade, como

estado de comunicação não discursivo, como fuga do domínio lógico e como ingresso no domínio

afetivo (DELIGNE, 2011, 30), é notoriamente apontado como um instrumento muito eficiente na

destruição das pretensões feministas ao longo das décadas de 70 e 80 no Brasil. A imprensa

alternativa, um dos principais meios de atacar o regime então vigente, a ditadura civil-militar, ao

contrário do que poderíamos prever, atuou como protagonista nessa perseguição às feministas:

feias, homossexuais, mal-amadas, burras; eram apenas alguns dos adjetivos dedicados às mulheres

que se engajaram na causa feminista. Através de entrevistas debochadas, piadas misóginas, charges

e tirinhas com conteúdo nitidamente machista, essa imprensa uniu-se ao conservadorismo da

ditadura para ridicularizar e atacar as reivindicações feministas, bem como as próprias feministas. O

movimento feminista, portanto, via-se mediante um regime autoritário e uma imprensa alternativa

que, ao invés de acolher um movimento que também questionava o status quo, optou por afirmar-se

em detrimento de milhares de mulheres organizadas.

O pessimismo que essa perspectiva salienta, ao ressaltar que até mesmo os revolucionários –

integrantes da imprensa alternativa – eram conservadores no que se refere aos movimentos

feministas emergentes do Brasil, no entanto, não deve permitir que a cegueira tome conta e nos

impeça de perceber uma série de estratégias, resistências, instrumentos e, por que não, armas que

1 Doutoranda em História Cultural – UFSC (Florianópolis/Brasil). Bolsista CNPq.

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foram apropriadas por essas mulheres sempre consideradas alvos da zombaria e da piada. Refiro-me

especificamente ao extensivo uso de charges e tirinhas por parte de periódicos feministas, também

integrantes do que se convencionou chamar de imprensa alternativa. Se o uso do riso pelos

revolucionários da imprensa alternativa é motivo de rancor entre o movimento feminista, o riso

feminista que emergia periodicamente nos impressos feministas deve ser motivo de orgulho e,

inevitavelmente, de reflexão, visto que ao contrário do riso machista já muito problematizado por

estudiosas, o riso feminista ainda aguarda uma análise atenta e cuidadosa.

Essa modalidade de riso, embora eu tenha focado no caso brasileiro nessas primeiras linhas,

não é uma especificidade da imprensa alternativa feminista do Brasil. Bem como os impressos

brasileiros, impressos argentinos, bolivianos, uruguaios, entre outros, exploraram o riso como um

meio de reflexão genuinamente feminista. Essa aproximação não é acidental. Ana Alice Alcântara

Costa (2005, 13) aponta a América Latina, de maneira geral, como palco de emergência de

movimentos de oposição a governos autoritários, ai inclusos estão os movimentos feministas.

Baseada nessas constatações, de que o riso machista não era a única forma de riso desse

período e de que os feminismos da América Latina e, mais especificamente, do Cone Sul2,

constituíram-se de maneira bastante específica, que elaboro algumas questões iniciais para esse

artigo3: O riso feminista enquadra-se nos sentidos do cômico e do risível até então estabelecidos? O

uso de estereótipos é função obrigatória na provocação do riso? Pode o riso feminista, com

evidentes intenções transformadoras, servir de instrumento de revolução e reflexão?

Inspirada por essas perguntas pretendo explorar 4 charges/tiras dos seguintes periódicos:

Mulherio4 e Brasil Mulher5 do Brasil; La Cacerola6 do Uruguai, Persona7 da Argentina8. Todos eles

2 "Do feminismo ao gênero - circulação de teorias e apropriações no Cone Sul (1960-2008)", projeto desenvolvido no Laboratório de Estudos de Gênero e História da UFSC, coordenado pela professora Drª Joana Maria Pedro, vem demonstrando inúmeras ligações e relações que constituíram os feminismos do Cone Sul. 3 Esse artigo compõe algumas reflexões que integram os questionamentos iniciais de meu projeto de doutoramento iniciado no primeiro semestre de 2012 junto ao Programa de Pós-Graduação em História Cultural da Universidade Federal de Santa Catarina, intitulado: “Quem ri por último, ri melhor: O humor na imprensa feminista do Cone Sul durante as ditaduras civil-militares (segunda metade do século XX)”. 4 "Na década de 80, pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas envolvidas com o estudo da condição feminina no Brasil preocuparam-se em sistematizar informações sobre o assunto. No início, a proposta era compor um boletim de notícias que fizesse o intercâmbio entre as diversas instituições e estudiosos do tema. [...] Em sua edição número zero, o grupo constituído de pesquisadoras e jornalistas deixa entrever o fio condutor que permeará o jornal quando anunciam o compromisso em tratar as matérias veiculadas "de uma maneira séria e conseqüente, mas não mal-humorada, sisuda ou dogmática..." Assim, declarada de público a intenção, levam a letra impressa à risca e transformam, claro, que entre altos e baixos, o singular boletim de março/abril de 1981 em um tablóide efervescente e precursor de tendências, até 1988." Disponível em: http://www.fcc.org.br/conteudosespeciais/mulherio/historia.html Acesso em 24/07/2012.

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3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

são periódicos alternativos feministas que circularam durante as ditaduras civil-militares em seus

respectivos países, bem como por outros países do Cone Sul9. A seleção das imagens foi movida

pela força temática de cada uma delas.

Nesse sentido, o presente texto, está dividido em 2 eixos: o primeiro deles tem como

objetivo fazer uma breve reflexão sobre o riso machista e misógino que, historiograficamente, teve

n’O Pasquim o seu principal representante; no segundo eixo pretendo trazer alguns exemplos de

charges e tirinhas feministas que circularam nos diferentes países do Cone Sul, divulgando uma

modalidade de riso bastante peculiar.

O riso destruidor

Inúmeros estudos já se dedicaram a refletir sobre décadas de antifeminismo na imprensa

que, por meio do humor, do riso, da chacota e da piada, ocuparam-se de desqualificar tudo e

todas/todos que estariam vinculas/os a um dos movimentos sociais mais importantes do século XX.

A imprensa alternativa, mais especificamente O Pasquim (1969-1991), foi acusado por Rachel

Soihet (2005, 609) de promover uma espécie de violência simbólica, através de suas charges e

entrevistas, contra mulheres que buscavam a transformação social; a grande imprensa, teoricamente,

pouco teria se esforçado para publicizar a causa feminista. Já a imprensa feminista do Cone Sul,

5 Jornal produzido entre 1975 e 1980, primeiramente em Londrina, e mais tarde em São Paulo, publicado por grupo denominado Sociedade Brasil Mulher, composto por militantes do Partido Comunista do Brasil (PcdoB), da Ação Popular Marxista Leninista (APML) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), entre outras. 6 Sediado em Montevidéu, Uruguai, este periódico foi uma publicação do Grupo de Estudios Sobre la Condición de la Mujer en el Uruguay (GRECMU). Temos notícia de que se manteve ativo entre 1984 e 1988, com tiragem e periodicidade irregulares. 7 A revista feminista Persona circulou na Argentina em momentos distintos e com periodicidades diferentes, com edições mensais a partir de outubro de 1974, as quais mais tarde perderam a periodicidade, sendo publicada até meados da década de 1980. Persona foi editada pelo grupo MLF (Movimiento de Liberación Femenina), cuja líder era María Elena Oddone. Em 1973, o grupo inaugurou um escritório, formaram uma biblioteca, organizaram conferências e debates sobre temas feministas e iniciaram contato com importante grupo do período, a UFA – Unión Feminista Argentina. 8 Esses são alguns dos impressos que integram minha pesquisa. Conto ainda com material dos seguintes periódicos: Nós Mulheres (Brasil), Nosotras (França), Cotidiano Mujer (Uruguai), Ser Mujer (Uruguai), Enfoques de Mujer (Paraguai), Lamarafona (Paraguai), La Escoba (Bolívia), Mujeres (Argentina), ISIS (Roma). Ainda não foram localizados periódicos chilenos.

9 Todos os periódicos consultados estão disponíveis em formato digital no Laboratório de Estudos de Gênero e História

– LEGH - da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC - em Florianópolis. O LEGH é coordenado pelas professoras Drª. Joana Maria Pedro e Drª. Cristina Scheibe Wolff.

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incluída a brasileira, de maneira geral, ainda não foi alvo de reflexão no que se refere a sua

exploração do riso, do humor e da piada como instrumentos políticos válidos de transformação.

Embora muitas charges e tirinhas sejam localizadas em variadas publicações, do ponto de

vista teórico o humor é costumeiramente levado em consideração em vista de seu potencial danoso,

capaz de construir estereótipos e fortalecer-se sobre eles, fazendo rir por meio da chacota, da piada,

da ridicularização de algo ou alguém. Quentin Skinner (2002, 9) destaca que por meio do riso

podemos arruinar a causa do adversário e persuadir a audiência por meio do insulto. Nessa

perspectiva o humor é compreendido como ferramenta eficaz no combate a certas posturas políticas,

sociais, culturais e etc. Henri Bergson (1978, 98) destaca que o riso é um gesto com significação e

alcance sociais, mas que ao final serve como castigo que se estabelece por meio da humilhação.

Apesar de estar considerando a segunda metade do século XX como referente, destaco que o humor

que tinha como alvo os feminismos já era produzido desde as primeiras décadas, durante o que se

convencionou chamar de Primeira Onda feminista10.

A imprensa alternativa, compreendida nesse texto como o fenômeno de jornais surgidos

durante as ditaduras em oposição aos regimes políticos vigentes11, segundo Anne Marie-Smith,

tinha alguns interesses de cobertura: “Entre as matérias cobertas pela imprensa alternativa contam-

se a política, cultura, humor, ficção, questões raciais, feminismo, direitos dos homossexuais e

assuntos comunitários” (SMITH, 2000, 58-59). Apesar dos temas inovadores que ocupavam as

páginas das mais diferentes publicações alternativas, boa parte destes impressos abandonava o

humor politicamente desafiador em benefício do humor absurdamente racista e sexista (SMITH,

2000, 64). Contudo, essa assertiva desconsidera uma informação importante.

Elizabeth Cardozo, inserindo a imprensa feminista nesse universo alternativo, averiguou em

sua pesquisa a existência de nada menos que 75 periódicos feministas no Brasil (CARDOZO, 2004,

11), número bastante significativo se levarmos em consideração que a obra de Bernardo Kucinski

(1991) listou o número de 6 periódicos. Essas informações são preciosas para pensarmos a

importância da imprensa feminista nesse momento, não só de oposição ao governo, o que a vincula

à esquerda, mas como evidência da organização dos movimentos feministas e, notadamente, como

10 Ver, a esse respeito, SOARES, Ana Luiza Timm. Inventando Gênero: feminismo, imprensa e performatividades sociais na Rio Grande dos “Anos Loucos” (1919-1932). Dissertação de mestrado em história. Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 2010. 11 Ver, a esse respeito, WOITOWICZ, Karina Janz. Recortes da Mídia Alternativa: histórias & memórias da comunicação no Brasil. Ponta Grossa: Editora da UEPG, 2009.

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exploradora do riso como ferramenta de subversão. O riso, nesses periódicos, é explorado

politicamente, como gesto subversor.

Em tempos de discussão sobre os politicamente corretos, neste trabalho em que pretendo

mapear e compreender a exploração do humor como gesto político, o riso assume uma

performatividade transgressora, caráter que pode apontar para a construção de novos caminhos a

serem trilhados pelos movimentos feministas atuais. Pensar o humor como marcador de

subjetividades, como aponta Joana Maria Pedro (2009, 11), talvez, seja uma das maneiras de

perceber sua eficácia política, na medida em que o riso povoa memórias de forma singular.

O riso feminista

Mikhail Bakhtin afirma que o riso “[...] jamais poderia ser um instrumento de opressão e

embrutecimento do povo. Ninguém jamais conseguiu torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu

sempre uma arma de liberação [...]” (BAKHTIN, 2002: 81). Nessa lógica, penso que os periódicos

feministas, combatentes de uma ordem social e cultural estabelecida, ao contrário de muitas outras

publicações, fizeram uso do riso como instrumento de liberação, de reflexão e não como castigo e

insulto a serem imputados a adversários. Nas charges e tirinhas feministas, o riso assume seu

potencial político e é esse potencial que denuncia seu amplo uso como ferramenta mobilizadora. A

partir dessa premissa que selecionei 4 charges/tiras que demonstram a propensão feminista de

entregar-se ao riso, contrariando a lógica do riso que o supõe sempre como instrumento de

ridicularização.

Do ponto de vista temático, as charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas são

muito diversas. Temas muito comuns a causa feminista são frequentes, exemplos: trabalho

feminino, contracepção, maternidade, casamento, educação feminina, violência, igualdade entre os

sexos. Mas outros motes também são bastante comuns, exemplos: democracia, saúde, carestia,

pobreza. Apesar da riqueza de possibilidades, selecionei imagens de temas específicos, são eles:

igualdade, trabalho doméstico, aborto e democracia. Pretendo dissertar brevemente sobre cada

charge/tira, no intuito de mostrar como o riso reflexivo foi apropriado pelas feministas

produtoras/leitoras dessas publicações como instrumento de revolução.

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Em tirinha do periódico feminista Mulherio, assinada por Ciça12, um/uma pintinho/pintinha

questiona: “Mãe, qual é o feminino de ser humano?” Após uma breve reflexão, ao final, a galinha

responde: “Pra muita gente, o homem é “ser humano” e a mulher “será humana””?”...13. Em

expressivo diálogo com o contexto dos movimentos feministas brasileiros do período, o riso que

busca ser promovido não só pelo texto, mas pela imagem reproduzida a seguir, surge articulado a

uma discussão relevante, da inumanidade das mulheres.

CIÇA. Mulherio. Brasil. Junho/Julho de 1981, edição 2. p. 1214.

A constatação de que “a mulher será humana” sinaliza mais do que um jogo de palavras

bem humorado, e sim o vislumbre de mudanças, mudanças que vinham sendo reivindicadas pelos

feminismos de segunda onda15, não só brasileiros. A tirinha, portanto, faz uso do desenho, da

metáfora com animais e de uma linguagem simples para provocar o riso e a reflexão. Em um

universo dominado pelos homens, Ciça, autora da referida tirinha, é uma das raras mulheres

atuantes e de talento reconhecido no cartunismo brasileiro.

A segunda tira que trago em destaque é também de autoria de Ciça. Nela, um dos principais

temas de discussão feminista entre as década de 70 e 80, é colocado em pauta: o trabalho

12 Ciça publicou em jornais como O Pasquim e Folha de S. Paulo. A personagem Bia Sabiá, muito famosa, foi criada exclusivamente para circular em publicações feministas (GOIDANICH & KLEINERT, 2011, 95). 13 CIÇA. Mulherio. Brasil. Junho/Julho de 1981, edição 2. p. 12. 14 - Mãe, qual é o feminino de ser humano? – Ser humano é uma expressão que parece não ter feminino... Se bem que haja controvérsias... Existem dúvidas... Por exemplo: Pra muita gente, o homem é “ser humano” e a mulher “será humana””?”... 15 Didaticamente o feminismo é dividido em duas ondas: a primeira refere-se às manifestações que reivindicavam a ampliação dos direitos civis de mulheres no final do século XIX e início do século XX; a segunda faz referência as manifestações iniciadas na década de 1960 em que as bandeiras de luta estavam articuladas a questões de sexualidade e de subjetividade. Apesar dessa estrutura de ondas ser funcional, é importante pensarmos o feminismo como um acontecimento e que, portanto, se desenvolve de diferentes maneiras em variados espaços.

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doméstico. Como pode ser observado na imagem da tira bastante conhecida de Bia-Sabiá, o diálogo

é colocado como conflito a partir do momento em que a representante “mulher” informa ao

personagem “masculino” sua intenção de aproveitar o final de semana para o descanso, descanso

cujo custo “masculino” é: “Arrumar minha própria bagunça, preparar meu lanche?”.

CIÇA. Brasil Mulher. Brasil. Edição 11, 1978. P.1116.

A tira, nitidamente, procura desconstruir o trabalho doméstico como naturalmente feminino,

libertando-se de estereótipos convencionais que vinculam a mulher ao lar. Em um esforço de

reflexão, a autora coloca em suspensão as diferenças que demarcam a distribuição de tarefas

domésticas. O tema do trabalho doméstico é frequente em charges e tirinhas de todos os periódicos

até agora levantados e oscilam entre a questão do trabalho doméstico gratuito, desempenhado por

mães e esposas, e o trabalho doméstico desempenhado por mulheres pobres que, sem oportunidades

16 Título Bia Sabiá: – Ah, que jóia! Adoro domingos... Hoje vou pescar na represa... – Eu não... Estou cansada. A fábrica essa semana estava uma dureza! Vou aproveitar para ler um pouco... Ver televisão. Não fazer nada... – Depois que você arrumar a casa? – Não... Hoje é domingo... Cada um pode arrumar sua própria bagunça. – E o almoço quem faz? E o lanche? – Cada um prepara o seu, uai... – Arrumar minha bagunça? Preparar meu lanche? Quer dizer que vou ter que trabalhar num domingo?

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de empregos mais valorizados, fazem uma jornada dupla. O tema trabalho, de maneira geral, foi um

grande mote de debate dos feminismos de Segunda Onda.

A tirinha da sequência, extraída de periódico feminista argentino, colabora no reforço da

tese de que as feministas exploraram o humor como ferramenta de intervenção e reflexão mesmo

em temas difíceis. O aborto, representado como um problema moral nos debates de ordem política,

na imagem reproduzida apresentou-se como uma questão de classe. O riso, nesse caso como em

outros, serve a uma causa e em nada contribui para desqualificar uma proposta de transformação

social.

Autoria ilegível. Persona. Argentina: Setembro/Outubro de 1986, edição 16. p. 617.

O debate sobre aborto e a concernente discussão sobre o direito do corpo, foi outra bandeira

levantada pelos movimentos feministas, no entanto com muitas ressalvas. No Brasil nomes como

Marta Suplicy e Branca Moreira Alves defendiam abertamente a legalização do aborto, contudo, o

assunto permanece um tabu na sociedade brasileira. Na Argentina, em que circulou a tirinha em

destaque, o aborto é ainda hoje apontado como um problema de classe18.

A próxima tira em destaque, retirada do periódico uruguaio La Cacerola, articula o tema

eleições e trabalho doméstico. É importante destacar que inicialmente, ou seja, no primeiro quadro,

o que é salientado é a igualdade de direitos sugerida pelos balões de fala em que mulher e homem

cumprimentam-se e acentuam a alegria de poder votar no dia das eleições. Na sequência, contudo, a

17 Preguntas que debe contestar uma mujer pobre para se le hasa um aborto: ¿Fue violada? ¿Sufrió um incesto? ¿É dió cuenta del hecho dentro de los 60 días? ¿Tuvo uma entrevista para ser aconsejada? ¿É hecho los informes? ¿Sufrió danos físicos graves? ¿Sin el consentimiento de sus padres? Etc... Etc... Etc... Preguntas que debe contestar uma mujer rica para que se le hasa um aborto: ¿É contado o cheque? 18 Ver, a esse respeito, CHANETON, July & VACAREZZA, Nayla. La intemperie y lo intempestivo: experiencias del aborto voluntario en el relato de mujeres e varones. 1ª ed. – Buenos Aires: Marea, 2011.

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mulher dedica-se a funções domésticas, com quadrinhos silenciosos em que apenas a imagem

comunica a rotina de cozinhar, limpar, cuidar das crianças. No final do dia, quando o homem já está

acomodado na sua poltrona, sugerindo a hora do descanso, a mulher dirige-se à porta sob a

afirmação: “Las mujeres siempre dejando lo importante para ultimo momento”.

Autoria ilegível. La Cacerola. Uruguai, nº. 3, novembro de 1984. P 519.

Assim, a tira que teve um início promissor, quando homem e mulher festejavam a

possibilidade do voto, um direito igual, é finalizada com a assimetria de direitos que permanecia no

espaço privado, representada pela desvalorização do trabalho doméstico feminino, visto como "não

importante".

19 Título: Dia de Elecciones. – Me voy a votar temprano ¡Estoy tan emocionado! – ¡ Yo tambien! Me apurare todo lo que pueda. – Las mujeres siempre dejando lo importante para el ultimo momento.

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10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. ISSN 2179-510X

As charges e tiras trazidas em destaque nesse texto são apenas uma pequena amostra de um

conjunto composto por centenas de charges, tirinhas e quadrinhos que circularam em periódicos

feministas do Brasil, Paraguai, Argentina, Bolívia e Uruguai. Por meio delas, feministas de todo o

Cone Sul procuraram refletir sobre angústias de mulheres, feministas ou não. A opção pelo uso

desse tipo de linguagem é a demonstração do esforço de divulgação da causa feminista que

procurou promover sua visão de mundo para além dos textos teóricos.

Considerações finais

A historiografia que tem focado no papel fundamental do humor no ataque aos movimentos

feministas tem desempenhado uma função essencial para que possamos compreender a

complexidade que constituiu os feminismos no Brasil e nos demais países do Cone Sul. Na medida

em que identifica o conservadorismo dos alternativos de esquerda, expressados pelo riso machista e

misógino, esses escritos apontam a luta dupla que era enfrentada por essas mulheres, além de

acentuar o conflito existente dentro da própria esquerda, lugar em que, notadamente, a maioria das

feministas militava. As centenas de charges e tirinhas publicadas em periódicos feministas,

problematizando causas e bandeiras dos feminismos, bem como outras preocupações, vem

enriquecer esse debate.

A constatação da existência de um riso feminista que escapa dos modos convencionais do

riso, com nítidas preocupações sociais, abre novos caminhos de pesquisa e inaugura outras formas

de compreensão dos feminismos daquele período. Além de questionar a fama de feministas,

historicamente chamadas de mal-humoradas, o riso feminista anuncia não só o esforço de

divulgação pleno do feminismo, visto que não se prende a textos teóricos e de leitura limitada, mas

também a apropriação do riso como um instrumento de reflexão e, consequentemente, de revolução.

Ao mostrarem que o riso não necessariamente precisa estar baseado em estereótipos e que este pode

ter uma função política eficaz, as feministas (re)criam uma forma própria de fazer rir.

Os caminhos assumidos pelo riso feminista hoje, de certo modo, ressaltam a funcionalidade

dessa modalidade de riso. Um exemplo disso pode ser visto nos inúmeros cartazes e palavras de

ordem escritas e gritadas ao redor do país no mês de maio, momento em que acontecem a maioria

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das Marchas das Vadias no Brasil. A irreverência e o bom humor de dizeres e palavras de ordem é

inegável, denunciando que, talvez, mesmo sem querer, esse riso tenha feito escola.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora HUCITEC, 2002.

BERGSON, Henri. O riso – Ensaio sobre o significado do cômico. Rio de Janeiro: Guanabara, 1978.

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Sites consultados

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The feminist laughter in the alternative press (1970-1980)

Abstract: For centuries the laughter has been studied mainly by phylosophers and psychoanalysts, who faced it as a social gesture (Henri Bergson), as a tool for destruction of ideologies (Quentin Skinner), as a masked melancholy (Sigmund Freud). Amid countless uses, the feminist laughter, that subverts over the function of not to exploit stereotypes in a conventional way, which is a huge focused gender for laughter conceptuation, has not been object of analysis, either by decades of persecution of feminists, either for the low character of the binomy serious/fun. From this perspective, this paper aims to reflect on the uses of laughter explored by feminists, analysing, for that, cartoons and comic strips published in feminist journals that circulated in the Southern Cone during the so-Called second feminist wave (second half of 20th Century). Exploring this sources, I seek to answer some questions: Does the feminist laughter picture the sense of comic and laughable stablished until then? Is the use of stereotypes a mandatory function to provoke laughter? Is the feminist laughter, full of clear transformative intentions, able to work as an instrument for revolution and reflection?

Keywords: Feminist laughing. Feminist periodicals. Instruments for revolution.