O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, A TUTELA DA MINORIA NAS … · sabe-se que sob a perspectiva de sua...

20
O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, A TUTELA DA MINORIA NAS FUSÕES E INCORPORAÇÕES E O DIREITO DE RECESSO NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS THE MAJORITY PRINCIPLE, THE MINORITY AND THE RIGHT OF WITHDRAW Daniella Bernucci Paulino RESUMO O presente artigo trata das relações de poder internas nas sociedades anônimas e visualiza no principio majoritário o mecanismo de harmonização destes interesses conflitantes. A partir do conceito de minoria acionária e da necessidade de sua tutela analisa o direito de recesso ou retirada como um dos mecanismos capazes de proteger os interesses minoritários, não obstante se antagonize com os princípios da supremacia da maioria e com o da intangibilidade do capital social, pilares conceituais das sociedades por ações, ao desvincular o acionista da companhia, mediante o reembolso direto do valor de suas ações. Analisa, ainda, os conceitos de fusão e incorporação por se tratarem das mais comuns operações presentes no rol das situações que ensejam o direito de recesso. PALAVRAS-CHAVES: DIREITO COMERCIAL, SOCIEDADES, SOCIEDADE ANÔNIMA, PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, MINORIA, DIREITO DE RECESSO, FUSÕES E INCORPORAÇÕES. ABSTRACT The present article discusses the internal power relations inside corporations and identifies in the majority principle a mechanism of harmonization for conflict of interests. Departing from the concept of shareholders minority and the need of their tutelage, we analyze the right of recess or withdraw as one of those mechanisms capable to protect the rights of minority interests, even if antagonizes with the principal of majority supremacy and with the intangibility of social capital, conceptual pillar of shareholding companies, when it disassociates the shareholder from companies by the direct reimbursement of their shares’ value. In the article we still analyze the concepts of fusion and incorporation as they are one of the most common operations present in the roll of situations that may demand the right of recess. KEYWORDS: COMMERCIAL LAW, CORPORATIONS, MAJORITY PRINCIPLE, MINORITY, RIGHT OF RECESS OR WITHDRAW, MERGERS. 7065

Transcript of O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, A TUTELA DA MINORIA NAS … · sabe-se que sob a perspectiva de sua...

O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, A TUTELA DA MINORIA NAS FUSÕES E INCORPORAÇÕES E O DIREITO DE RECESSO NAS SOCIEDADES

ANÔNIMAS

THE MAJORITY PRINCIPLE, THE MINORITY AND THE RIGHT OF WITHDRAW

Daniella Bernucci Paulino

RESUMO

O presente artigo trata das relações de poder internas nas sociedades anônimas e visualiza no principio majoritário o mecanismo de harmonização destes interesses conflitantes. A partir do conceito de minoria acionária e da necessidade de sua tutela analisa o direito de recesso ou retirada como um dos mecanismos capazes de proteger os interesses minoritários, não obstante se antagonize com os princípios da supremacia da maioria e com o da intangibilidade do capital social, pilares conceituais das sociedades por ações, ao desvincular o acionista da companhia, mediante o reembolso direto do valor de suas ações. Analisa, ainda, os conceitos de fusão e incorporação por se tratarem das mais comuns operações presentes no rol das situações que ensejam o direito de recesso.

PALAVRAS-CHAVES: DIREITO COMERCIAL, SOCIEDADES, SOCIEDADE ANÔNIMA, PRINCÍPIO MAJORITÁRIO, MINORIA, DIREITO DE RECESSO, FUSÕES E INCORPORAÇÕES.

ABSTRACT

The present article discusses the internal power relations inside corporations and identifies in the majority principle a mechanism of harmonization for conflict of interests. Departing from the concept of shareholders minority and the need of their tutelage, we analyze the right of recess or withdraw as one of those mechanisms capable to protect the rights of minority interests, even if antagonizes with the principal of majority supremacy and with the intangibility of social capital, conceptual pillar of shareholding companies, when it disassociates the shareholder from companies by the direct reimbursement of their shares’ value. In the article we still analyze the concepts of fusion and incorporation as they are one of the most common operations present in the roll of situations that may demand the right of recess.

KEYWORDS: COMMERCIAL LAW, CORPORATIONS, MAJORITY PRINCIPLE, MINORITY, RIGHT OF RECESS OR WITHDRAW, MERGERS.

7065

01. Relações internas de poder

Penetrar e conquistar do Golfo Pérsico à Indonésia, eis o objetivo para o qual se constituiu, em 1602, a Companhia das Índias Orientais. Considerada a mais importante dentre as companhias colonizadoras, compôs-se através da união de oito sociedades marítimas e, em razão de suas ambições gigantescas, não cingiu a constituição de seu capital apenas aos antigos sócios armadores. Ao contrário, admitiu-se o ingresso de quantos desejassem, nacionais ou estrangeiros, cristãos ou judeus, sem limitações de qualquer natureza. O objetivo era a participação de todos os habitantes das províncias unidas, com muito ou pouco, segundo desejassem.

Diante deste relato histórico, que evoca as raízes mercantilistas das sociedades por ações resta claro que, já nas suas origens, as companhias se distinguiam pela pluralidade e pela capacidade de concatenar interesses os mais diversos.

Falar do triunfo deste modelo jurídico é revelar a engenhosidade com a qual este mecanismo possibilitou a captação de grandes aportes financeiros, reunindo pessoas com perfil e propósitos econômicos diversos, sem quaisquer laços em comum, ao contrário do que ocorria nas sociedades de pessoas, assentada no princípio da affectio societatis.

Se de um lado esta característica, aliada ao fracionamento do capital social e à minimização da responsabilidade pessoal do acionista, se mostrou vantajosa, determinou, de outro, a agudização do problema da alocação interna de poder nas sociedades.

Nas sociedades por ação, as tensões entre a maioria e a minoria estão mais evidenciadas do que nos demais tipos societários, nos quais esta última tem verdadeiro poder de veto sobre os negócios sociais extraordinários, sendo impossível modificar as bases do negócio societário (contrato) sem a concordância de todos os sócios (unanimidade). (SZTAJN, 1988, p. 52).

02. Harmonização dos interesses sociais

Para garantir a perpetuação das sociedades fez-se necessário harmonizar as relações que se sobrepõem sobre a estrutura social. Esta composição se concretizou através do princípio majoritário, considerado um dos mais importantes princípios no que se refere ao funcionamento das corporações, o qual encontra seu fundamento na própria essência da sociedade anônima, ou melhor, no fato de ser ela uma sociedade de capitais que visa a participação de um grande número de acionistas" (PRISCO PARAÍSO,1985, p. 10).

Mas, se o direito societário, hoje, parece assimilar perfeitamente a regra da maioria, nem sempre foi assim. Como nas suas origens a teoria jurídica das sociedades por ações se vinculava ao Direito Romano, e, portanto, à noção de sociedade como contrato, sempre prevaleceu a imutabilidade do pacto social, em respeito à sua natureza negocial.

Não só por isto. Sem aprofundar a discussão sobre a natureza jurídica da sociedade[1] - sabe-se que sob a perspectiva de sua constituição a sociedade por ações é um acordo de vontades preordenadas, fato que aparentemente incompatibilizaria a alteração unilateral deste negócio.

7066

03. Da unanimidade à maioria

Ante as exigências de ordem prática e econômica flexibilizar-se-ia o princípio jurídico da unanimidade. A partir de então, a evolução do arcabouço jurídico destas sociedades se daria paralelamente ao aumento do poder da maioria.

A regra da unanimidade cedeu, pouco a pouco, perante os tribunais, sobretudo os franceses, que incorporaram a teoria das bases essenciais da sociedade, tidas como transformáveis somente pelo consentimento de todos, contrapostas às bases acessórias, que apenas exigiam uma deliberação majoritária para serem alteradas.

Embora o Código Suíço de 1881, o Código de Comércio Alemão, de 1861 e a Lei francesa, de 24 de julho de 1867, tenham inovado ao instituir o poder da Assembléia Geral, foi o Código de Comércio Italiano que, em 1882, rompeu inteiramente com a exigência do consentimento total, permitindo que a sociedade modificasse até mesmo suas bases essenciais.

Não foi diferente na common-law, pois, se a unanimidade fora adequada aos grupos familiares de investidores, se revelava um limite significativo para as grandes empresas, permitindo que muitas mudanças benéficas se frustrassem em razão da vontade de algum acionista recalcitrante(THOMPSON, 1995, p. 3)[2].

Instalava-se, pois, a idéia de que ao subscrever uma ação o então acionista adquiriria o direito de participar da sociedade, desde que aceitasse ser submetido aos desígnios da maioria. Diante do absoluto sucesso e da permanecia da regra da maioria como forma adequada de orientar as decisões sociais, perguntar-se-á: quais são os motivos que determinam esta submissão voluntária dos minoritários?

Um dos motivos é a praticidade da regra. E, como assinala Dominique Schmidt, ninguém sonha em questionar este princípio e é bastante provável que uma sociedade não dirigida por uma maioria se tornasse pouco atraente aos olhos de um investidor( SCHMIDT, 1970, p. 01).

De mais a mais, admitindo-se que para que funcione adequadamente uma das primeiras tarefas de qualquer organização é definir os preceitos que regerão o voto de seus membros, há que se escolher uma dentre duas opções possíveis: maioria ou unanimidade.

Uma possibilidade é insistir que todas decisões sejam tomadas por unanimidade. De fato, poucas sociedades, seja qual fosse o seu porte, poderiam suportar tal regra que conduziria a uma paralisia nos negócios sociais [...]. A necessidade de ação rápida exige a delegação de poderes, que podem ser usados de forma adequada ou não.

Outra possibilidade é a adoção da regra majoritária simples, cada voto correspondendo a uma ação.( EPSTEIN, 1995, p. 251-252).

Ainda há o fato de que, em momento algum, o princípio é uma forma de opressão das minorias sociais. Como já se disse, trata-se, apenas, de uma opção, dentre as muitas formas de se organizar as deliberações coletivas, sendo que as decisões da maioria não

7067

podem, teoricamente, prejudicar os interesses da pessoa jurídica ou dos indivíduos, devendo sempre perseguir os fins da instituição, consagrando a democracia societária.

Assim, embora o mito da democracia da maioria tenha sido desvelado a partir da consolidação da grande empresa e da intensificação do fenômeno da dispersão acionária, que alijaram progressivamente a minoria do processo decisório, permanece o princípio majoritário em vigor, por se revelar fórmula eficiente de gerenciar o processo de formação da vontade social, à qual se podem opor limites necessários à proteção dos minoritários e da própria companhia.

Como quer que seja, difundido e aceito o poder da maioria, como parte do sistema societário moderno, tornou-se inevitável desenvolver mecanismos de proteção e tutelar as minorias e o acionista singularmente considerado.

04. O conceito de minoria

Quanto a esta tutela há que se indagar, em primeiro lugar, quem compõe este conjunto até aqui nomeado minorias.

O conceito é relativo, e não “pode ser determinado senão em relação a uma maioria"(SCHIMDT,1970, p. 03), sugerindo, assim, um grupo que não integra de forma significativa ou permanente a direção dos negócios sociais, e, por conseguinte, não alcançará a posição de controlador, nos termos da letra a, do art. 116, da Lei n° 6.404/1976.

Há que se lembrar que o grupo minoritário, não obstante o elo que une seus componentes, está distante de ser considerado homogêneo, sendo possível, como destaca Mauro Lopes Brandão classificá-los em vários segmentos. Seriam eles, os acionistas minoritários, que compram ações com fins empresariais, seja visando futura tentativa de tomada do controle, seja para a assunção de posição acionária que lhes permita participar, colaborar ou influir nas decisões empresariais; ou os investidores, ditos rendeiros, que adquirem as ações como forma de poupança, mantendo-as em seu portfólio durante longo tempo, inclusive com o fito de assegurar rendas na velhice, embora esta prática seja usual em países com mercado de capitais desenvolvido e estável; há ainda os investidores institucionais, formados por instituições financeiras, seguradoras, entidades de previdência privada, fundos de pensão, etc. e, por fim, os chamados acionistas especuladores, que, a despeito da conotação pejorativa da denominação, têm papel importante no mercado, ao dar-lhe liquidez com as sucessivas operações de compra e venda de ações (PENTEADO, 1998, p. 12-13).

A lei societária brasileira, por sua vez, não define o termo, utilizando-o em diversos sentidos. Assim, embora sejam numerosas as referências aos minoritários, não se pode delas inferir um conceito unívoco[3]:

ora aparece referenciado a uma noção quantitativa, ora a uma concepção qualitativa de poder. Ora referido o capital, ora ao controle. Às vezes, surge confundido com o conjunto das ações - votantes não-controladoras. Outras, ainda, com o conjunto das ações preferenciais"(LIMA, 1994, P. 132).

7068

Por sua vez, a Comissão de Valores Mobiliários, por meio da Instrução n° 03, de 17 de agosto de 1978, considerou minoritários os titulares de ações em circulação no mercado, isto é, de todas as ações do capital da companhia, menos as de propriedade do controlador.

Aduz, então, novo elemento ao conceito: acionista controlador. Para esta espécie, ao contrário do minoritário, há um conceito legal exato e preciso. Diz o art. 116:

Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e

b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgão da companhia.

Assim, se "controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e, via de conseqüência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto"(CARVALHOSA, 1997, P. 420), podemos, através da inversão do conceito, apreender a noção de minoritário como aquele que se submete a estas decisões.

Sobre esta conclusão, afirma Rachel Sztajn:

Uma das questões que afronta a inteligência é supor que minoritários são apenas aqueles acionistas titulares de ações com direito de voto, que sejam vencidos nas deliberações assembleares. E quem não vota é o quê? Vencedor? Não acionista mesmo sendo titular de ações?

É claro que, em qualquer deliberação em que a regra seja a da maioria, minoria é o grupo vencido. Porém, os impedidos de votar, seja por não terem voz, seja por não poderem manifestar-se, podem caber em qualquer dos grupos, o vencedor e o vencido. Alinhá-los sem mais ao primeiro é ignorar o próprio texto da Lei n° 6.404/1976, no §1°, do art. 137, mesmo com a nova redação, que garante aos ausentes e titulares de ações sem direito de voto, o poder de se retirar da companhia mediante o exercício do recesso.

Assim, no caso de definição de maioria/minoria há que se levar em conta o propósito da qualificação. ( 1999, p. 47).

Diante de tantas especulações, pode-se dizer que para o estudo proposto - o direito de recesso - a minoria deve ser considerada como aquele grupo que tem de se submeter a uma deliberação determinada, conformando-se à maioria que deseja a aprovação desta.

05. Da necessidade de tutela.

Visto o conceito passa-se ao segundo ponto: por que se protege a minoria?

Admitindo-se que as sociedades de capital têm uma função, qual seja, organizar a atividade econômica dirigida para o mercado, cogita-se da proteção da minoria sob um

7069

enfoque jurídico-funcional e não como uma questão meramente formal. Por este motivo, a reflexão a respeito das razões pelas quais se protegem as minorias deve se situar antes da interrogação sobre como ocorre esta tutela.

Pois bem. O resguardo aos direitos da minoria pretende preservar o equilíbrio societário, que se assenta na perpetuação das bases essenciais da companhia, justificando a associação de capitais.

Como afirma José Alexandre Tavares Guerreiro:

A proteção jurídica aos direitos das minorias na sociedade anônima resulta da verificação de uma utilidade social, ou, se se preferir, de uma utilidade funcional, muito mais, aliás, no sentido de que a sociedade anônima, como agente da vida econômica, deve ser levada pela lei a cumprir seu objeto de forma harmoniosa e sobretudo eficiente( 1986, p. 106).

Nada tem a ver esta proteção com privilégios, devendo se conformar às exigências da vida social e aos interesses gerais da sociedade[4].

06. O Direito de Retirada e a Composição dos Interesses Sociais

Muitas são as formas de compor os interesses envolvidos nas sociedades, relativizando o poder da maioria[5].

Dentre elas, destaca-se o direito de retirada como das mais criticadas e polêmicas, justamente por antagonizar-se com os princípios da supremacia da maioria e com o da intangibilidade do capital social, pilares conceituais das sociedades por ações, ao desvincular o acionista da companhia, mediante o reembolso direto do valor de suas ações.

Introduzido no sistema continental pelo Código de Comércio Italiano de 1882, representava um contrapeso ao crescente poder da maioria.

No Código de Comércio de 1882, triunfo do Liberalismo, não só foi abolida a autorização governamental para a anônima, mas foram dados à maioria os mais amplos poderes: consentiu-se que uma maioria especial chegasse a modificar o próprio ato constitutivo e os estatutos, tendo como remédio o recesso. Não obstante as muitas críticas dirigidas ao art. 158, o recesso é na realidade um remédio genial, que equilibra o enorme poder concedido à maioria [...] se as necessidades de desenvolver a indústria, desde o início da Grande Guerra na Europa, reduziram seu âmbito, nem por isto o instituto deixa de ser útil e interessante(LORDI, 1937, p. 133).

A ratio legis deste direito é, pois, a conciliação do interesse da maioria que quer alterar os estatutos com o dos associados que não desejam a mudança, concedendo-lhes o direito de se liberar do elo social.

Há, neste sentido, uma reminiscência ao aspecto contratual das sociedades anônimas, na medida em que se lhes aplica o direito de retirada como forma de denúncia unilateral, em razão da não manutenção das bases contratuais originais.

7070

Entre promover as sociedades e desequilibrar a sua distribuição de forças, apresentou-se, antes à jurisprudência e depois ao ordenamento positivo, o direito de recesso, fruto das teorias das bases essenciais da sociedade e da dos direitos individuais do acionista.

O direito de retirada é um direito individual dos acionistas que se destina à proteção das minorias sociais?

Foi em suas origens, mas, se se prestar a devida atenção em sua história evolutiva e em sua configuração hodierna, ver-se-á que esta afirmação, embora correta, não revela a inteira dimensão do instituto.

Uma de suas faces do mecanismo se revela pela análise da case law norte-americana. Através das cash-out merger, operações nas quais os controladores forçam, por meio de uma fusão, a saída dos minoritários mediante o reembolso em dinheiro, o recesso se converte em instrumento a serviço dos controladores, viabilizando operações que atingem e transformam o pacto societário inicial.

Nesta hipótese, só a maioria recorre ao recesso e geralmente quando está expelindo a minoria da empresa.

O direito de retirada, serve hoje a um propósito totalmente diferente do seu caráter original [...] Em grande parte dos casos julgados nesta última década reflete-se o contexto das cash-out: menos de um em cada dez ilustram a preocupação clássica do direito de retirada, ou seja, dar liquidez ao acionista que não desejava um alteração fundamental na companhia(THOMPSON, 1995, p. 09).

E os sistemas que não regulam o recesso? Sendo este remédio legal voltado para a tutela de minorias, segundo a doutrina prevalente, devemos entender que os acionistas minoritários destes ordenamentos não seriam, nesses casos, objeto de tutela?

É claro que não. O direito de retirar-se da sociedade nada mais é do que uma opção legislativa, dentre tantas outras formas de equilibrar os interesses societários, dependente em grande parte da corrente de pensamento que influenciou a construção e a evolução do direito societário de cada país[6].

Tome-se, como exemplo, a Alemanha que acolheu a teoria da sociedade-instituição, segundo a qual o acionista adere ao corpo social (Köperschaft), que prepondera sobre a massa de acionistas, valorizando-se o interesse social. Desta forma, o respeito absoluto aos princípios da preservação da empresa e da intangibilidade do capital, indicariam outras formas de proteção à minoria, e a Aktiengesetz de 1965, ao substituir a Lei de 30 de janeiro de 1937, mantendo suas linhas gerais e apenas suprimindo o preâmbulo nacional-socialista, não adotou o recesso.

De destacar que o §57, da lei societária alemã, veda expressamente que se devolva aos sócios as suas contribuições. Há, contudo, no §375, previsão similar ao recesso que permite a compra, pela companhia, da fração do acionista que discorda da operação de transformação[7].

Ao final, percebe-se que os sistemas que não incorporam o direito de retirada acabam por conferir aos seus acionistas garantias muitas vezes mais eficazes que o recesso,

7071

sendo a participação da maioria geralmente mais limitada do que nos ordenamentos que reconhecem a retirada. Cite-se o direito inglês, no qual os acionistas representando 15% do capital total ou de uma classe de ações podem recorrer ao tribunal e impedir uma modificação aprovada pela maioria, servindo o recurso como meio de suspensão da modificação[8].

Um mecanismo neutro, esta é a configuração correta que se deve atribuir ao recesso. Não serve especificamente a nenhum grupo, apenas permitindo que o dissidente se retire da companhia, nos casos previstos em lei. Em outras palavras:

é um instituto equilibrador das relações societárias, nem tutela de minorias, nem direito de maiorias, o recesso teve por função manter a sociedade apta a realizar os diferentes interesses dos membros e da coletividade em que atua, contribuindo para a prosperidade geral(SZTJAN, 1988, p. 54)[9].

07. As Minorias nas Fusões e Incorporações e o direito de retirada

Sabe-se que um dos fatores comuns às fusões e incorporações é a intensidade com que atingem o pacto societário inicial, modificando-o e expondo a contraposição de forças presentes no núcleo societário.

Tendo em vista que a imprecisão terminológica, característica ao tema da concentração societária, muitas vezes obscurece as discussões sobre a matéria, convém definir com cautela os conceitos de fusão e de incorporação.

Entre nós, a definição jurídica se divide e reconhece-se duas formas para se operacionalizar a aglutinação das sociedades. Em um caso, reúnem-se as duas sociedades constituindo uma nova (fusão), enquanto, no outro, há a absorção de uma pela outra, sendo que aquela não se extinguirá (incorporação).

Assinala Valverde:

O decreto-lei separou as duas operações, para considerar uma delas - a incorporação - em relação à sociedade incorporadora, como reforma dos estatutos. Isto porque, na incorporação, se extinguem as sociedades incorporadas, mas subsiste a sociedade incorporadora. Na fusão porém há a extinção das sociedades que se unem, e a criação de uma nova sociedade.

Incorporação e fusão, pois, são duas operações que, como espécie de um mesmo gênero, determinam a extinção e a criação de sociedades (1989, p. 54).

O fator de distinção entre uma e outra operação é comum a outros ordenamentos jurídicos. Assim, tome-se como exemplos o direito italiano, que conceitua a fusione como a compenetração de sociedades em uma única, distinguindo a fusione in senso proprio da fusione per incorporazione, a fusión por creación e a por absorción, enumeradas no art. 233, da Lei n° 1564/89, do direito espanhol, como classes da fusão, ou mesmo a Verschmelzung durch Übernahme (incorporação) e a Verschmelzung durch Neubildung (fusão) do ordenamento alemão[10].

7072

Quanto à terminologia do direito norte-americano, registre-se curioso comentário ao Model Business Corporation Act:

Antigas versões do Model Act incluíam a fusão (consolidation) que se trata de operação similar às incorporações (merger), exceto pelo fato de que todas as sociedades envolvidas desaparecem e uma nova sociedade é criada. Nas práticas modernas societárias se tornou obsoleta a fusão, desde que quase sempre a vantagem da operação reside justamente em ser a sociedade sobrevivente. (Se se deseja criar uma entidade nova, isto deve ser feito antes da incorporação e aquelas que devem desaparecer serão incorporadas nesta). Como resultado todas as referências legais à fusão (consolidation) foram suprimidas pelo Model Act (1997, v. 3, p. 10-11).

De qualquer forma, a doutrina parece preservar a distinção[11].

Equivoca-se, contudo, quem enxerga entre a fusão e a incorporação muitas diferenças. Não se pode esquecer que se tratam de espécies de concentração empresarial, destacando-se, aliás, como a forma mais radical do fenômeno, ou como prefere Yvone Cheminade, "a operação concentracionista mais pura"(1970, p. 39).

Como na lei brasileira há os dois conceitos, aqui se prefere privilegiar esta orientação. Não se utiliza, pois, como fazem muitos autores, a fusão como termo genérico do qual são espécies a incorporação e a fusão em sentido estrito.

Três elementos são erigidos para unir e individualizar as fusões e incorporações dos demais instrumentos de concentração: a extinção de ao menos uma sociedade, a sucessão patrimonial e a compenetração societária.

Quando ocorre a preservação das pessoas jurídicas envolvidas não há que se falar em fusão ou em incorporação. Nestes casos, afigura-se a aquisição de ações ou ativos de uma outra companhia, bem como a formação de outras formas comuns, tais como os grupos de sociedades ou os contratos associativos (joint ventures), as holding, cartéis, trusts e outras, como por exemplo a falsa fusão, operação na qual uma sociedade transfere seu patrimônio para outra ou outras existentes, não ocorrendo a extinção de nenhuma das envolvidas.

Não ocorrendo, por outro lado, a sucessão entre patrimônios, configurar-se-á um compra total ou parcial de ativos. Trata-se da fusão-venda, que se limita ao aspecto econômico por não incluir a transmissão do passivo.

Por último, diante da hipótese de inexistir a transmissão dos sócios, poder-se-ia pensar em uma mera venda do acervo social em bloco ou em uma cessão de patrimônio tendo por contraprestação partes beneficiárias ou debêntures, o que transformaria o comprador em credor e não em sócio.

Quanto ao impacto provocado, basta dizer que embora a decisão de incorporar, ser incorporada ou de efetuar uma fusão é uma decisão do controlador que pode alterar profundamente o status jurídico dos acionistas, não pode o acionista descontente impedi-la, desde que validamente deliberada e aprovada pela maioria.

De fato:

7073

alteram-se as relações internas entre sócios e sociedade, que em geral, passam a ser membros de sociedade com maior patrimônio ativo, mas na qual detêm participação percentual menor, o que provoca o enfraquecimento de suas posições individuais em relação à sociedade e demais sócios(SZTAJN, 1998, p. 143).

Trata-se, pois, de um caso típico dentre as hipóteses que modificam as bases essenciais do negócio jurídico ao qual aderiram os sócios. Como assinala Norman D. Lattin:

"neste caso o choque é grande o suficiente para garantir-se que a nenhum acionista será exigido trocar suas ações por outras, sejam elas as da incorporadora, sejam as da nova sociedade, resultado da fusão. Muito menos pode-se obrigá-lo a aceitar as alterações que decorrem do fato de a companhia à qual aderiu ter incorporado outra sociedade"(1958, P. 310).

Sendo certo que o critério principal para incluir uma hipótese no rol das causas que dão origem ao recesso é a importância da alteração promovida, explica-se, talvez, o fato de que estejam, entre as mais comuns operações presentes neste elenco, as fusões e incorporações societárias.

Mas, em razão de um aspecto que lhes é peculiar - a sua intrínseca relação com o fenômeno concentracionista e sua relevância na condução das políticas econômicas governamentais - o direito de retirada muitas vezes é suprimido ou restringido nestes casos, tal como ocorreu, por exemplo, na Itália e, mais recentemente, no Brasil.

Ora, é inegável que esta faculdade implica em certos ônus que podem desestimular a realização das operações de fusão e incorporação. Se a concentração de empresas estiver entre as metas da política econômica, pode o legislador, avaliando os benefícios e as perdas possíveis, preferir outras formas de proteção do acionista.

Há que se ressalvar que a proteção dos acionistas não depende, contudo, desta escolha e, de qualquer forma, a concessão ampla ou restrita do direito de retirada nada garante ao minoritário.

A desejada proteção exige modificações muito mais profundas que remetem ao fortalecimento da estrutura do mercado e das instituições que o controlam, bem como da construção de uma noção de cidadania e de uma cultura de respeito aos direitos individuais que se estenda às relações patrimoniais.

Para atender à sua função, provendo às minorias o amparo apropriado, sem contudo representar um obstáculo à execução dos negócios sociais, deve-se temperar tais medidas, tendo em vista as novas realidades que definem o direito societário contemporâneo.

Dentre estas, aponta no mercado de capitais a figura do minoritário que participa ativamente da vida social. Tecnicamente mais capacitado este acionista tem perfil bastante diverso do indivíduo desprotegido que entrega seus cabedais a um controlador voraz.

Um dos fatores que explica o surgimento deste novo acionista é a internacionalização de capitais e da globalização dos mercados, em razão das quais fortaleceu-se a classe dos

7074

investidores internacionais, aumentando-se o número de investidores institucionais, tais como os fundos de pensão, instituições financeiras e outras entidades assemelhadas.

Uma soma de fatores poria em evidência o shareholder activism, tendência que se iniciou nos EUA e, de certo modo, transformou a relação clássica entre os administradores e os investidores minoritários[12], proliferando as associações e grupos de consultoria que defendem seus direitos

Como se afirma:

"é claro que os administradores ainda abusam dos seus poderes. Mas, ao menos, eles terão que lidar com mais acionistas militantes, muitas vezes com apoio do governo (na França, o órgão que regula os mercados financeiros estimula os administradores de fundos a usar seus votos). Em um caso recente, o Banque Nationale de Paris foi pressionado a favorecer acionistas de uma subsidiária, pelo SBC Wasburg, um banco de investimento e a Franklin Global Investor Services, uma empresa francesa de consultoria a acionistas minoritários"[13].

Outros casos foram registrados, evidenciando um recrudesdimento do movimento na Europa durante os anos 90. Cite-se, em 1998, o caso de um destes grupos, o Deminor, de Bruxelas, que reuniu 2.000 associados, interferindo favoravelmente a eles no processo de incorporação entre o Kredietbank e o banco Cera[14].

Some-se a tudo isto as possibilidades, ainda indefinidas, que a Internet, não é apenas uma forma mais ágil e interativa de comunicação, mas também um fator propulsor de mudanças que subverte muitas das certezas construídas ao longo da história da humanidade, traz aos mercados de ações, permitindo ao investidor, por exemplo, negociá-las diretamente e em tempo real.

Nas palavras de Maria Clara R. M. do Prado, estas alterações tecnológicas tem o poder de mexer com o mercado, para o bem ou para o mal: tudo depende do posicionamento das autoridades governamentais diante deste novo mundo. E, acrescenta, que um ponto fundamental será a existência de regras claras de proteção aos acionistas(1999, p. 3).

Também no Brasil verifica-se o fortalecimento dos acionistas. Talvez se possa, com os devidos cuidados, vislumbrar iniciativas indicadoras de uma mudança de postura do minoritário, tais como a criação de um fundo, pelo Bradesco Templeton Asset Management (BTAM), visando reunir acionistas com pequenas participações de ações preferenciais em determinadas empresas, passando assim a representar um bloco de maior peso dentro da sociedade(ALVES, 1998, p. 04).

Há, também, algumas associações de acionistas minoritários nos moldes europeus e norte-americano. Registre-se, por exemplo, a existência da ANIMEC - Associação Nacional de Investidores de Mercado de Capitais, fundada em 1999, cujo principal objetivo é defender os minoritários, e também a AMEST - Associação dos Acionistas Brasileiros de Empresas Estatais e de Sociedades Anônimas de Capital Aberto, existente desde 1986[15].

Como quer que seja, o descompasso entre o discurso do legislador, seja na década de 70, seja nos anos 90, seja nos dias atuais, preconizando em suas justificativas e

7075

exposições de motivos a defesa do minoritário como via necessária para a consolidação do mercado de capitais nacional, e a situação concreta das minorias no País, está longe de ser superado.

Afinal, como se configurará a relação entre as minorias e maiorias societárias diante de tantas e tão bruscas mudanças? Embora nada de conclusivo possa ser dito, pode-se perceber que hoje se valoriza menos a ampla tutela estatal, carregada de um espírito paternalista, do que o fortalecimento do princípio da liberdade empresarial e das estruturas do mercado de capitais, através da estruturação de um sistema de informação ampla para o investidor, bem como da afirmação da transparência e da seriedade nas relações que se desenrolam em torno da vida social. Só resta esperar a concretização destes valores, para alcançar uma tutela ideal das minorias.

8. Reflexões Finais

Para Alfredo Lamy Filho, a elaboração ou a atualização da lei mercantil deve considerar sua vida curta, destinada a reger fenômenos econômicos, transações em negócios sob constante mutação(1996, p. 86).

Tal consideração, embora exata, não nos impede de indagar: será que o dinamismo de que se imbui o espírito do direito comercial sempre justifica mudanças na legislação? Têm estas mudanças capacidade de absorver eficazmente a agilidade que marca o compasso das atividades econômicas? E, mais, terá a lei o poder de fomentar comportamentos não reconhecidos ou desejados pela cultura de um povo?

Em primeiro lugar, faz-se necessário refletir sobre a inflação legislativa, que assola o mundo contemporâneo, descrita por Carnelutti como um dos sintomas da crise do direito.

Afirma o autor que modificou-se o valor do tempo e hoje não se crê mais no provérbio "a pressa é inimiga da perfeição", o que determina, entre outros efeitos, a promulgação de leis cada vez mais improvisadas.

"Se há um opus, cuja gestação deveria ser lenta e cautelosa, este é a lei, com a qual os homens tentam por ordem na sociedade ou, pelo menos, limitar-lher a desordem [...] A lógica foi conturbada pela história, a conseqüência é que a lei se antecipa cada vez mais à experiência"(1973-1974, p. 279-280).

A esta tendência atual, soma-se, no Brasil, hábitos culturais próprios, destacados por João Baptista Villela, que assinala a existência de:

"uma atitude bem arraigada nos hábitos nacionais e consistente em se recorrer ao instrumento da lei para toda e qualquer situação. Supõe por isso um abundância de leis e o provimento de todas as necessidades passíveis de atendimento por seu intermédio(1974,p. 287).

Outra distorção, que por vezes se verifica no País, é o casuísmo com que age, algumas vezes, o Poder Legislativo, atendendo a interesses particulares. Cite-se a Lei n° 7.958/1989, questionada em sua elaboração, imperfeita em sua técnica e conturbada em sua aplicação (tanto nos casos concretos julgados pelo Poder Judiciário e nos apreciados

7076

pela CVM, como pela própria postura do Executivo, ignorando seu teor ao editar a Medida Provisória do PROER, que reafirmava a exclusão do direito de recesso naqueles casos).

Tudo isto para assinalar os riscos em que se incorre ao reformar, sucessivamente, a legislação societária que, entre nós, constitui um harmonioso sistema. Qualquer alteração tópica que nele se implemente, há que se fazer com cautela e ponderação, preservando sua lógica e coerência, sob pena de dificultar sua exegese.

A bem dizer, o que causa certa inquietação é a menção recorrente, tanto na exposição de motivos, quanto nas justificativas e pareceres, referentes às Leis n° 6.404/1976, n° 9.457/1997 e nº 10303/2001, da necessidade de se criar um mercado de valores mobiliários forte, meta para a qual seria essencial o respeito e a proteção ao acionista minoritário.

Em 1977, em mensagem enviada ao Congresso Nacional, o então Presidente Ernesto Geisel destacava a política de mercado de capitais como um dos fatores mais importantes do desenvolvimento econômico nacional. Seu discurso, atentava para o fato de que este objetivo básico só seria atingido com:

"o estabelecimento de mecanismos que assegurem ao acionista minoritário o respeito a regras definidas e equitativas, as quais, sem imobilizar o empresário em suas iniciativas, ofereçam atrativos suficientes de segurança e rentabilidade"(LIMA, 1989, p. 40).

Depois, em 1997, já sob outra perspectiva, o Deputado Antônio Kandir justificava o Projeto de Lei n° 1.564:

"Este Projeto de Lei visa adequar alguns aspectos da Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei n° 6.835, de 7 de dezembro do mesmo ano, à nova realidade da economia brasileira.

O objetivo último da iniciativa é incentivar o desenvolvimento do mercado de capitais no Brasil"(EIZIRIK, 1998, p. 401-402).

E, arrematava o Relator, Senador José Serra:

"A proposição traz, ainda, uma série de alterações pertinentes na lei, no sentido de ampliar os direitos dos acionistas minoritários e detentores de ações preferenciais, buscando o equilíbrio de forças entre a maioria e a minoria" (EIZIRIK, 1998, p. 456).

Vê-se no voto do Relator Deputado Emerson Kapaz que, novamente, a tônica que justifica a possível reforma ainda é o desenvolvimento do mercado e a proteção ao minoritário:

"O tema trazido à análise pelos Projetos em tela – de mais do que oportuna iniciativa – é de máxima importância para a retomada do desenvolvimento sustentado da economia nacional, com o conseqüente incremento no emprego e na renda da população, pelo que merece toda atenção por parte desta Comissão de Economia, Indústria e Comércio.

7077

De fato, o custo do financiamento produtivo no Brasil é, infelizmente, como sabemos todos, dos mais elevados do mundo. Se assim é, o incentivo e a expansão do mercado de capitais – mecanismo, como sabemos todos, de autofinanciamento do empreendimento, no sentido de que feito através da captação de sócios, com conjunção dos riscos, e não da formação de credores – torna-se, mais do que nunca, a alternativa sadia por excelência para que as imensas oportunidades de investimento existentes na economia nacional não sejam desperdiçadas, sufocadas pelos juros estratratosféricos de uma forma ou de outra impostos por nossa condução macroeconômica.

Ademais, nesta era de globalização e competição em escala planetária, em grande parte dos setores produtivos resistirão apenas as empresas que tiverem a flexibilidade e porte para enfrentar a contestação dos concorrentes espalhados pelo mundo. Faz-se, portanto, muitas vezes necessário, para que sobrevivam as empresas nacionais, um processo de intensa reestruturação empresarial, acompanhado de forte capitalização, para o qual, uma vez mais, o fortalecimento do mercado de ações é um instrumental e uma alternativa essencial.

Os Projetos de Lei ora em tela intentam alterar diversos pontos da Lei n.º 6.404/1976 – Estatuto das Sociedades por Ações -, tendo em comum a preocupação com a confiabilidade e a transparência, a inserção de novos instrumentos, mormente adaptáveis à realidade imposta pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), e, principalmente, a defesa dos minoritários.

Sem embargo, um mercado acionário forte e verdadeiramente democratizado - alcançando toda sua potencialidade de alavancagem econômica – depende, é óbvio, de que os investidores, principalmente pequenos e médios, sintam-se protegidos e vejam defendidos seus interesses, não se permitindo a manipulação e o desrespeito a seus direitos por manobras e políticas estabelecidas unilateralmente pelos controladores, muitas vezes, inclusive, privilegiando interesses externos à própria sociedade. É curial, nesse sentido, que cada vez menos investidores estejam dispostos a assumir riscos acionários, já que vem se perpetuando os episódios em que, por exemplo, sem poderem esboçar qualquer defesa, presenciam a sociedade declinar, mudar de objeto, aceitar placidamente fusões que implicam prejuízo patrimonial e operacional"[16].

Sem desprezar os evidentes progressos notados no mercado de valores mobiliários brasileiro, desde 1976 até hoje, há que se indagar: será a lei capaz de, por si só, fortalecer as estruturas destas instituições? Ou, como bem diz Rachel Sztajn, ao comentar os projetos de alteração da Lei n° 6.404/1976, que resultaram na Lei n° 9.457/1997:

Volta-se, assim, às questões iniciais, antes de aprovar a reforma da lei de sociedades por ações. O brasileiro tem espírito asssociativo no risco? Quer participar de negócios de que não tem o comando? E quando tem o comando quer abrir mão dele? Enquanto estas questões básicas não forem pensadas, enquanto não houver explicações claras, no que os alemães denominam "modelo informacional" de que o risco existe e que proteção pode haver para o investidor, enquanto o conflito de interesses na administração de carteiras - próprias e de terceiros - não for suprimido, enquanto os administradores das companhias, fechadas ou abertas, não forem responsáveis pelos atos de administração que pratiquem, de forma a evitar descaso, negligência, imperícia ou imprudência sem punição, qualquer que seja o destino da proposta, o resultado haverá de ser pífio.

7078

Alterar a lei a pretexto de fomentar o mercado implica ter certeza, desde o início, de que há mercado para ser estimulado e que os agentes, e não os intermediários, querem aquelas mudanças(1997, p. 189).

Como quer que seja, continua-se a se buscar na lei a solução que fortalecerá o mercado, favorecerá o minoritário e as reorganizações empresariais, sem que se atente para o fato de que toda mudança depende antes de modificação de valores sociais e culturais, de posturas públicas e privadas, individuais e coletivas.

Neste ir e vir de leis, padecem todos, pela incerteza, pela ausência de regras bem elaboradas e simples, que permitam, assim como em outros países, desregulamentar e contratualizar a disciplina jurídica societária, preservando a liberdade de agi, sempre em harmonia com a proteção e o respeito ao investidor. Valorizar-se-ia a saudável expressão das partes autônomas, mais eficaz, em certos casos, do que a sujeição à intervenção legislativa exacerbada.

REFERÊNCIAS :

A Survey of Business in Europe: Present Pupil - Investor Power, part 5 of 7, The Economist [on line], [s. d.], [cit. em 18 mar 2000]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>.

ALVES, Fábio. Bradesco e Templeton Vão Brigar Por Minoritários. Gazeta Mercantil, São Paulo, 28 out. 1998, cad. B, p. 04.

AZEVEDO, Erasmo Valladão França Novaes. Conflitos de Interesses nas Assembléias De S. A. São Paulo: Malheiros, 1993.

BISSARA, Philipe. L'intérêt Social. Revue des Sociétés, Paris, n. 1, jan./ mars 1999, p. 5-31.

BLACK, Bernard S. Shareholder Activism and Corporate Governance in the United States. In: Newman, Peter. (ed.) The New Palgrave Dictionary of Economics and the Law. [s. l.]: [s. Ed.], 1998. Disponível em Internet: <http://www.columbia.edu/lawec>.

BOWMAN, Scott R. The Modern Corporation and the American Political Thought: Law, Power and Ideology. Pennsylvania State University Press: Pennsylvania, 1996.

BULGARELLI, Waldírio. (coord.) Reforma da lei das sociedades por ações. São Paulo: Pioneira, 1998.

BULGARELLI, Waldírio. Regime Jurídico da Proteção às Minorias nas S/A. 2. ed. São Paulo: Renovar, 1977.

CARNELUTTI, Francesco. Crise da Arte e do Direito. Trad. João Baptista Villela. Kriterion, Belo Horizonte, v. 20, n. 67, 1973-1974. p. 277-292.

CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. v. 2. ed. de 1997 Rev. e at. São Paulo: Saraiva, 1997.

7079

CHEMINADE, Yvonne. Nature Juridique de la Fusion des Sociétés Anonymes. Revue Trimestriele de Droit Commercialle, Paris, n. 23, 1970, p. 15-44.

DUCOLOUX-FAVARD, C. Sociéte Anonyme, Aktien Gesellschaft [sic], Società per Azioni. Paris: Vuibert, 1992.

EIZIRIK, Nelson. Reforma das S. A. e do Mercado de Capitais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.

EPSTEIN, Richard A. Simple Rules for a Complex World. Cambridge: Havard University Press, 1995.

FERRAND, Frédérique. Droit Privé Allemand. Paris: Dalloz, 1997.

GENARO, Gino e MIGNOLI, Ariberto (a cura di). La Legge Tedesca Sulle Società per Azioni. Milano: Giuffrè, 1971.

GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Direito das Minorias na Sociedade Anônima. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 63, jul./set. 1986. p. 106-111.

GUIRAO, Miguel Motos. Fusión de Sociedades Mercantiles. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1953.

HAMILTON, Robert W. The Law of Corporations in a Nutshell. 4. ed. Minnessota: West Publishing Co., 1996.

LAMY FILHO, Alfredo e PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S. A. (pressupostos, elaboração, aplicação). v. 1. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1995.

LAMY FILHO, Alfredo. Considerações sobre a Elaboração da Lei de S. A. e de sua Necessária Atualização. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 104, out./ dez. 1996, p. 86-94.

LATTIN, Norman D. Minority and Dissenting Shareholders' Rights in Fundamental Changes. Law and Contemporany Problems, Durham, v. 23, n. 2, spring 1958, p.307-324.

Le Defi Americain, Again. The Economist [on line], July 13, 1996, [cit. em 02 set. 1999]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>.

LIMA, Osmar Brina Corrêa. O Acionista Minoritário no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

LIMA, Osmar Brina Corrêa. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989.

LOBO, Jorge. Proteção à Minoria Acionária. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 105, jan./mar. 1997, p. 25-36.

7080

LORDI, Luigi. Il Cosi Detto Ecesso di Potere nelle Società Anonime. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni, Milano, v. 35, parte prima, 1937, p. 131-159.

MANNING, Bayless. The Shareholder's Appraisal Remedy: An Essay for Frank Coker. The Yale Law Journal, [s. l.], n. 2, v. 72, Dec. 1962, p. 223-265.

MILLER, John. Brazil Pension Funds See Huge Potencial [on line], [s. d.], [cit. em 15 abr. 2000]. Disponível em Internet: <http://www.teleport.com/~prf/SJ/mar 98/rt3-4.html>.

Minority Shareholders. Local Heroes. The Economist [on line], Aug. 8, 1998, [cit. em 02 set. 1999]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>.

Model Business Corporation Act Annotated 1997 Suplement. 3. ed. v. 3, [s. l.]: Business Law American Bar Association, 1997.

NIERO FILHO, Nelson. Um Manual para Facilitar a Vida do Sócio Minoritário. Gazeta Mercantil, São Paulo, 6-8 nov. 1998, cad. C, p. 04.

NOVARIO, Eugenio. L'omologazione degli Statuti delle Società per Azioni Profili Comparatistici. Rivista di Dirito Civile, Padova, n. 3, mag./giu. 1997, p. 275-321.

PENTEADO, Mauro. A Lei n° 9.457/1997 e a Tutela dos Direitos dos Acionistas Minoritários. In: BULGARELLI, Waldírio. (coord.) Reforma da lei das sociedades por ações. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 09-82.

PETITPIERRE-SAUVAIN, Anne. Droit des Sociétés et Groupe de Sociétés: Responsabilité de L'actionnaire Dominant. Retrait des Actionnaires Minoritaires. Genève: Georg, 1972.

PRADO, Maria Clara R. M. Ascensão ou Queda do Mercado de Ações? Gazeta Mercantil. São Paulo, 28 dez. 1999, cad. A, p. 3.

PRISCO PARAÍSO, Anna Luiza Gayoso e Almendra. O Direito de Retirada na Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985.

SCARDULLA, Francesco. La Trasformazione e la Fusione delle Società. Milano: Giuffrè, 1989.

SCHMIDT, Dominique. Les Droits de la Minorité Dans la Societé Anonime. Paris: Sirey, 1970.

SÉROUSSI, Roland. Introducción al Derecho Inglés y Americano. [Introduction aux Droits Anglais et Américain]. Trad. Enrique Alcaráz Varó. Barcelona: Ariel Derecho, 1998.

SZTAJN, Rachel. A Responsabilidade Social das Companhias. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 114, abr./jun. 1999, p. 34-50.

7081

SZTAJN, Rachel. Fusão, Incorporação e Cisão de Sociedades: Formas de Reorganização da Estrutura Societária na Lei n° 9.457/1997. In: BULGARELLI, Waldírio (coord.). Reforma da Lei das Sociedades por Ações. São Paulo: Pioneira, 1998, p. 131-187.

SZTAJN, Rachel. O Direito de Recesso nas Sociedades Comerciais. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n.81, jul./set. 1988, p. 50-54.

SZTAJN, Rachel. Os Projetos de Alteração da Lei n° 6.404/1976. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 107, jul./ set. 1997, p. 183-189.

THOMPSON. Exit, Liquidity and Majority Rule: Appraisal's Role in Corporate Law, Georgetown Law Journal, v. 84, 1995, P. 1-60.

VAGTS, Detlev. Basic Corporation Law. 3. ed. Westbury: The Foundation Press, 1989.

VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por Ações: Comentários ao Decreto-Lei n. 2.627, de 26 de setembro de 1940. v. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

VILLELA, João Baptista. Reflexão sobre a Obrigatoriedade das Leis. Sep. de Revista dos Tribunais, [s. l.], v. 463, maio 1974, p. 287-289.

[1] Para uns contrato, para outros instituição. Sobre esta discussão, Cf. entre outros, DUCOLOUX-FAVARD, C. Sociéte Anonyme, Aktien Gesellschaft [sic], Società per Azioni. Paris: Vuibert, 1992. p. 5-9.

[2]Sobre a evolução das companhias norte-americanas, cf. também, BOWMAN, Scott R. The Modern Corporation and the American Political Thought: Law, Power and Ideology. Pennsylvania State University Press: Pennsylvania, 1996. Afirma este autor que o destino do capitalismo industrial dos EUA esteve intrinsicamente ligado ao crescimento das corporações.

[3] A Lei n° 6.404/1976 refere-se a acionistas minoritários, minorias, controladores e a não controladores. Menciona, ainda, direitos individuais dos acionistas, no art. 109.

[4] Sobre a composição do interesse individual e social cf. AZEVEDO, Erasmo Valladão França Novaes. Conflitos de Interesses nas Assembléias De S. A. São Paulo: Malheiros, 1993 e BISSARA, Philipe. L'intérêt Social. Revue des Sociétés, Paris, n. 1, jan./ mars 1999, p. 5-31.

[5] Por exemplo, pode-se citar a exigência de quorum qualificado, o estabelecimento de um sistema de informações exigente, etc. Cf. BULGARELLI, Waldírio. Regime Jurídico da Proteção às Minorias nas S/A. 2. ed. São Paulo: Renovar, 1977. LOBO, Jorge. Proteção à Minoria Acionária. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, n. 105, jan./mar. 1997, p. 25-36.

7082

[6] Sobre esta evolução em alguns países europeus, EUA e Japão, cf. NOVARIO, Eugenio. L'omologazione degli Statuti delle Società per Azioni Profili Comparatistici. Rivista di Dirito Civile, Padova, n. 3, mag./giu. 1997, p. 275-321.

[7] Cf. sobre a legislação alemã, GENARO, Gino e MIGNOLI, Ariberto (a cura di). La Legge Tedesca Sulle Società per Azioni. Milano: Giuffrè, 1971; PETITPIERRE-SAUVAIN, Anne. Droit des Sociétés et Groupe de Sociétés: Responsabilité de L'actionnaire Dominant. Retrait des Actionnaires Minoritaires. Genève: Georg, 1972, p. 193-194.

[8] Como curiosidade, observe-se que o direito inglês reconhece as companies, similares às nossas sociedades de capital e, dentro destas, as public limited companies, que podem ser equiparadas às sociedades anônimas. O direito societário inglês se rege pelo The Companies Act 1981, modificado em 1985 e em 1989. SÉROUSSI, Roland. Introducción al Derecho Inglés y Americano. [Introduction aux Droits Anglais et Américain]. Trad. Enrique Alcaráz Varó. Barcelona: Ariel Derecho, 1998, p. 43-45.

[9] Cf. também da mesma autora, Fusão, Incorporação e Cisão..., p. 149. Também sobre o tema, afirma Bayless Manning que "o direito de retirada pode ser visto tanto como um baluarte para os direitos da minoria, ou um lubrificante para acelerar a influência da maioria. É claro que as leis podem dar prevalência para um ou outro, dependendo de como se administra e se aplica o instituto". The Yale Law Journal, [s. l.], n. 2, v. 72, Dec. 1962, p. 230.

[10] Sobre o directo italiano cf. SCARDULLA, Francesco. La Trasformazione e la Fusione delle Società. Milano: Giuffrè, 1989, p. 309. sobre o direito espanhol, GUIRAO, Miguel Motos. Fusión de Sociedades Mercantiles. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1953, p. 25-29. Note-se, aqui, que estes comentários são anteriores à Lei de 1989, muito embora a terminologia seja a mesma. Sobre o direito alemão, cf. também, FERRAND, Frédérique. Droit Privé Allemand. Paris: Dalloz, 1997, p. 790.

[11] Dentre vários, cf. VAGTS, Detlev. Basic Corporation Law. 3. ed. Westbury: The Foundation Press, 1989, p. 685 e HAMILTON, Robert W. The Law of Corporations in a Nutshell. 4. ed. Minnessota: West Publishing Co., 1996.

[12] Sobre estas tendências cf. A Survey of Business in Europe: Present Pupil - Investor Power, part 5 of 7, The Economist [on line], [s. d.], [cit. em 18 mar 2000]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>. E Shareholder Activism and Corporate Governance in the United States. Black, Bernard S. In: Newman, Peter. (ed.) The New Palgrave Dictionary of Economics and the Law. [s. l.]: [s. Ed.], 1998. Disponível em Internet: <http://www.columbia.edu/lawec>.

[13] Le Defi Americain, Again. The Economist [on line], July 13, 1996, [cit. em 02 set. 1999]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>.

[14] Minority Shareholders. Local Heroes. The Economist [on line], Aug. 8, 1998, [cit. em 02 set. 1999]. Disponível em Internet: <http://www.economist.com/archive/view.cgi>.

7083

[15] Respectivamente, cf. mais informações, em Internet: <http://www.animec.com.br> e <http://www.alternex.com/br/users/~amest> [cit. em 15 mar. 2000].

[16] Cf. estes projetos e sua tramitação em Internet: <http://www.camara.gov.br > ou <http://www.cvm.gov.br>.

7084