O FANDOM E SEU POTENCIAL COMO COMUNIDADE … · 2016-05-11 · Associação Nacional dos Programas...
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XXVEncontroAnualdaCompós,UniversidadeFederaldeGoiás,Goiânia,7a10dejunhode2016
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O FANDOM E SEU POTENCIAL1 COMO COMUNIDADE INTERPRETATIVA:
uma discussão teórico-metodológica para os Estudos de Recepção
THE FANDOM AND ITS POTENTIAL AS INTERPRETATIVE COMMUNITY:
a theoretical and methodological discussion for Reception Studies
Regiane Regina Ribeiro2
Resumo: O texto discute o cenário contemporâneo das pesquisas em recepção no que diz respeito à preocupação com o grau, o modo de participação e a classificação das audiências. Nesse contexto, apresenta-se não somente o seu potencial interpretativo, mas também sua capacidade de atuar ativamente, recebendo, circulando e produzindo novos sentidos. O objetivo foi articular os conceitos de comunidades interpretativas ao de fandom, apresentando os pontos convergentes e limitadores dos termos nas práticas de produção de sentido e significação. Tendo como pano de fundo os estudos culturais e a crítica literária, procurou-se apresentar um panorama dos principais autores que discutiram tais conceitos com o intuito de nortear um protocolo metodológico que auxilie a classificação desses grupos e suas mediações nas pesquisas empíricas do campo. Palavras-chave: Comunidades Interpretativas, Estudos de Recepção, Fandom, Metodologia
Abstract: The paper discusses the contemporary setting of research on reception regarding concerns about the degree, the mode of participation and classification of audiences. In this context, it presents not only their interpretive potential, but also its ability to act actively, receiving, circulating and producing new meanings. The objective was to articulate the concepts of interpretive communities of fandom, with the converging and limiting points over the practice of meaning production. Having as background the cultural state and literary critics sought to present an overview of the main authors who discussed these concepts in order to guide a methodological protocol to assist the classification of these groups and their mediations in empirical research field.
Keywords: Interpretatives Communities, Reception Studies, Fandom, Metodology
1Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Recepção: processos de interpretação, uso e consumo midiático do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2Professora permanente da linha de pesquisa em Comunicação, Educação e Formações Socioculturais e coordenadora do Programa de Pós Graduação em Comunicação da UFPR. PARANÁ, Brasil. [email protected]
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Introdução “Assim se revela o ser total da escrita: um texto é feito de escritas múltiplas, saídas de várias culturas e que entram umas com as outras em diálogo, em paródia, em contestação; mas há um lugar em que essa multiplicidade se reúne, e esse lugar não é o autor, como se tem dito até aqui, é o leitor: o leitor é o espaço exato em que se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que uma escrita é feita; a unidade de um texto não está na sua origem, mas no seu destino, mas este destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, [...] Sabemos que, para devolver à escrita o seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do Autor.”
Roland Barthes -1968
Subversivo, “A morte do Autor” é o tipo de texto que ainda hoje precisa ser
discutido pela sua importância para os estudos de recepção. E essa talvez seja a
definição de todo pensamento relevante. Barthes desenvolveu em 1968 uma tese que
nenhum escritor ou leitor deveria ignorar, ou seja: Há uma leitura ideal? Há uma
simetria perfeita entre o leitor e a obra? Segundo a perspectiva barthesiana, o
verdadeiro lugar da escrita é a leitura, o verdadeiro exercício está no leitor enquanto
espaço onde todas as palavras são escritas. Seguindo essa mesma linha analítica,
Stanley Fish é mais radical ao afirmar, em 1980, que o texto não tem mais o privilégio
de orientar interpretações possíveis porque a leitura que um determinado indivíduo
faz de um texto não depende nem do texto nem do leitor, mas exclusivamente da
comunidade na qual ele se insere e através da qual seus pensamentos são moldados.
Traçando-se um paralelo entre os processos de recepção literária e as pesquisas
em recepção midiática, percebe-se um traço comum e permanente entre ambas e por
isso, talvez, o mais importante seja a preocupação com o grau e o modo de
participação das audiências diante dos conteúdos recebidos. Nesse contexto discute-
se não somente o potencial de recepção mas também a capacidade das audiências em
atuar ativamente no processo comunicativo, recebendo, circulando e produzindo
novos sentidos. O marco temporal que potencializa esse cenário dá-se,
principalmente, a partir dos processos de transmidiação e interatividade que
proliferam nas múltiplas telas do nosso cotidiano, proporcionando o que alguns
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autores defendem como uma nova ambiência (Barbero, Sodré, Echeveria, Braga,
Fausto Neto)3. Segundo Lopes: Audiências e usuários viabilizam-se como sendo muito ativos – seletivos, autodirigidos, produtores bem como receptores de textos. São também crescentemente plurais e múltiplos, ainda que diversos, fragmentados e individualizados. Se assim é, defendemos aqui a tese de que as categorias-chave - escolha, seleção, gosto, fãs, intertextualidade, interatividade - que têm movido a pesquisa de recepção de televisão são mais, e não menos significativas no ambiente das novas mídias. O que queremos dizer é que o ambiente dos novos meios exige mais do que nunca o enfoque teórico e complexo das mediações na recepção de televisão, pautado por um protocolo multi-metodológico para sua pesquisa empírica. (2014, p.15)
Esse protocolo metodológico perpassa a importante tarefa de classificar novos
grupos plurais e múltiplos e suas mediações, ainda que diversos e fragmentados para
que a partir dessa seleção conceitual se possa avançar no entendimento dessas novas
práticas sociais. As questões que se apresentam são: Como entender as novas
audiências dentro dos limites estabelecidos pelo novo cenário da recepção? Pode o
conceito de Comunidades Interpretativas dar conta de classificar tais grupos? Como
se formam e se caracterizam tais comunidades? E por fim, que critérios podem
configurar o fandom como comunidade interpretativa? É a partir desses
questionamentos que o presente artigo se estrutura e pretende contribuir para o debate
teórico metodológico dos estudos de recepção.
O Potencial Interpretativo das Audiências
Jensen e Rosengren (1990) identificaram cinco correntes de pesquisa no estudo
das audiências dos meios de comunicação: pesquisa sobre os efeitos, usos e
gratificações, crítica literária, estudos culturais e análise de recepção. Porto (2003)
simplifica esta classificação ao desenvolver uma análise de dois paradigmas
principais: o estudo dos efeitos (que inclui a pesquisa dos efeitos e o paradigma dos
usos e gratificações) e a pesquisa de recepção (que inclui crítica literária, estudos
3 Essa ambiência tem sido designada de diversas formas, como por exemplo, entorno tecnocomunicativo (Martín-Barbero), bios midiático (Muniz Sodré), terceiro entorno (Javier Echeverría) e midiatização (Braga e Fausto Neto).
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culturais e análise de recepção). Partindo-se do segundo paradigma, mas
especificamente na perspectiva dos Estudos Culturais e da Crítica Literária, adota-se
como conceito norteador da discussão neste estudo o caráter ativo da recepção,
segundo o qual o texto produz múltiplas camadas textuais de sentido e a recepção
torna-se um processo multidimensional, pouco transparente e não-linear em que toda
mensagem é passível de inúmeras leituras, não existindo um significado fixo e único.
No desenvolvimento da tradição da pesquisa de recepção, os estudos
desenvolvidos por Stuart Hall e seus associados, no Centre for Contemporary Cultural
Studies (CCCS), da Universidade de Birmingham, têm sido um importante marco de
referência. O modelo Encoding/decoding de Stuart Hall (1980) contribuiu para essa
discussão adotando a natureza polissêmica dos textos. Hall identificou quatro
componentes de ruptura com as abordagens tradicionais do estudo da comunicação
(recepção) – ruptura que significou uma verdadeira “virada interpretativa e
etnográfica”.
O primeiro rompimento dá-se com as abordagens behavioristas, que viam a
influência dos meios de comunicação de massa nos termos de estímulo-resposta. O
segundo, na visão dos textos da mídia como suportes transparentes do significado,
não percebendo, portanto, as entrelinhas. O terceiro rompimento é com a
homogeneidade e passividade da audiência, optando por considerar que o potencial
interpretativo está inserido em um contexto cultural complexo nos quais as mensagens
são decodificadas. E, por último, mas não menos importante, o rompimento com a
ideia monolítica de cultura de massa.
Apropriando-se de Marx (1982), Stuart Hall reafirma que não há uma visão
determinista da recepção e da produção, ou seja, a produção determina o consumo,
assim como o consumo também determina a produção. Segundo Marx: “A produção
é, pois, imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente, produção. Cada qual é
imediatamente seu contrário. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento
mediador entre ambos” (MARX, 1982, p. 08). Isso nos leva a perceber o caráter
heterogêneo da recepção, onde um mesmo grupo, num dado momento, pode fazer
determinada leitura da realidade a partir de códigos hegemônicos e, em outro dado
momento, a partir de códigos contestatórios.
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Outro conceito importante discutido por Hall diz respeito à fragmentação do
indivíduo moderno e a perda da sua referencialidade, antes determinada em padrões
fixos de classe, gênero, etnia, nacionalidade, sexualidade e raça. Por influência de
Foucault, afirma-se que o individuo está descentrado, tanto em relação ao mundo
social, quanto em relação a si mesmo (HALL, 2005), ou seja, não existe mais um
centro de poder, mas sim, uma pluralidade de centros. Assim, os conceitos de
diversidade e diferença tornam-se fundamentais nas sociedades modernas, sobretudo
nas formas de sujeição, uma vez que há jogos de poder, divisões e contradições
internas.
Michel de Certeau, em A invenção do cotidiano, também discute o poder
interpretativo das audiências afirmando que as operações culturais são movimentos de
práticas comuns e experiências particulares. Para o autor, nenhuma interpretação é
isolada e o campo da pesquisa dá-se em uma dada “cultura ordinária” que se organiza
a partir de espaços, correlações, cooperação e lutas. O que se deve levar em
consideração são as práticas dos usuários e sua capacidade de articular os objetos
culturais em seu cotidiano e contexto social.
Termos como “modos de operação” ou “esquemas de ação” são utilizados pelo
autor para explicar que o processo de relação social é que demanda a produção de
sentido e que é na individualidade que atua uma pluralidade incoerente e por vezes
contraditória representada através da produção dos consumidores. (CERTEAU, 1998,
p. 37-38).
Para o autor, os consumidores “produzem” a partir de três determinações,
(1998, p. 38-43): o “uso”, os modos de proceder e a formalidade das práticas. Os
“dispositivos” (ou “aparelhos”) usados em instituições sociais como a escola, o
hospital (mais especificamente, o hospício), a penitenciária, etc., aproximando-se dos
“procedimentos de vigilância” em Michel Foucault. E em terceiro, as regras das
práticas de “operações multiformes e fragmentárias que unem uma maneira de pensar
investida numa maneira de agir”. Segundo Certeau: Essas “maneiras de fazer” constituem as mil práticas pelas quais os usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural [através de uma] criatividade dispersa, tática e bricoladora dos grupos ou dos indivíduos presos agora nas redes (CERTEAU, 1998, p. 41).
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Assim, tanto em Hall como em Certeau, o poder interpretativo das audiências
deve ser pensado em sua polissemia, seus usos e desusos e na capacidade de tensão e
conflito entre os sujeitos, produtores e consumidores. Ambos os autores consideram
que as práticas de interpretação são “práticas significantes” a partir de elementos
heterogêneos. Dessa forma, tão importante quanto observar as mensagens emitidas, o
espaço da produção destaca-se no sentido de perceber o que “o consumidor cultural
fabrica” durante o seu uso, sua recepção, seu consumo, ou seja, entender as
possibilidades de circulação e releituras dos conteúdos recebidos.
Estudos Literários e o Conceito de Comunidades Interpretativas Comunidade interpretativa é um termo originário dos estudos literários. Nos
textos seminais de Stanley Fish (1980) e Janice Radway (1984), esse termo é usado
para explicar a uniformidade de leitura em uma comunidade cujas experiências
compartilhadas tendiam a interpretações igualmente compartilhadas. Para Fish
"comunidades interpretativas" são “constituídas por aqueles que compartilham
estratégias interpretativas não para a leitura mas para escrever textos, para constituir
as suas propriedades atribuindo as suas intenções". Em outras palavras, são grupos de
leitores que apresentam estratégias comuns para interpretar o texto. Assim,
argumenta, que não se pode aprender o conhecimento ou a habilidade de
interpretação, pois é algo inato ao ser um humano. Para o autor, as únicas coisas que
podem ser aprendidas são as "maneiras de interpretar" e como as estratégias
interpretativas podem resultar em contextos de significação diversos.
De um ponto de vista fenomenológico, na interação particular entre texto e
leitor, seu propósito é estudar “os sistemas subjacentes que determinam a produção de
sentido textual no qual o leitor e o texto perdem seus status independentes” (FISH,
1980 apud LINDLOF, 1988). Assim, os membros da mesma comunidade
interpretativa irão estabelecer um acordo para interpretar os conteúdos, não a partir do
próprio texto, mas a partir de estratégias comuns, a estratégia determina o significado
e a existência do texto. Portanto, o conceito “comunidade interpretativa” não se refere
a pessoas individuais, mas as normas que são características de uma determinada
comunidade e que influenciam a forma como seus membros atribuem sentido e
significação.
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Janice Radway, precursora da tradição americana dos estudos culturais, é outra
referência importante na discussão sobre comunidades interpretativas. Tendo como
pano de fundo as reivindicações das mulheres e grupos étnicos minoritários na década
de 60 nos Estados Unidos, a autora escreve Reading the Romance: women, patriarchy
and popular literature (1984) e defende que: “a leitura é um complicado processo
semiótico fundamentalmente social que varia no tempo e no espaço. (...) leitores
diferentes leem diferentemente por pertencerem ao que se conhece como
comunidades interpretativas.” (RADWAY, 1984, p. 53).
Radway estava interessada no processo de significação dos leitores em um
gênero popular, o romance, a partir de um método etnográfico. Ao concentrar-se na
comunidade interpretativa de leitura do romance e nas regras que determinaram a
leitura do gênero, seu estudo demonstrou como o conceito de comunidade
interpretativa torna possível desvendar de que forma as estruturas interpretativas são
compartilhadas.
Referindo-se à obra do antropólogo Clifford Geertz, Radway entende o romance
como uma fantasia utópica que reflete o que as mulheres sentem que lhes falta em
suas vidas cotidianas. O ato de ler é explicado como um ato de resistência, já que as
mulheres pesquisadas relacionaram a leitura do romance como possibilidade de
resistir a sua posição em uma sociedade patriarcal.
Da mesma forma que Radway interpreta o romance como resistência, outros
autores americanos têm estudado o consumo de bens populares como luta contra as
desigualdades sociais de gênero, etnia, idade ou classe. Lawrence Grossberg, com o
Rock (1983/4, 1986, 1992), John Fiske em audiências de televisão (1987, 1990),
Jacqueline Bobo sobre as mulheres negras (1995) ou Lisa Lewis em fãs de Madonna
(1987) são alguns exemplos.
Outros autores que também trabalham em uma perspectiva comum são JENSEN
1987; LINDLOF 1985 e 1988 e SCHRODER 1994, embora nem todos utilizem essa
terminologia (comunidades interpretativas). Para Jensen (1987:30), o papel dos
receptores na comunicação de massa deveria ser explicado referindo-se aos seus
repertórios social e cultural específicos: eles têm sido formados, ou formulados, no
interior de comunidades de interpretação que se definem pela localização, funções
sociais, tradições culturais, convenções e sentidos que as unem. Assim, as diferenças
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na interpretação surgem das diferenças nas suposições que estão na base das
comunidades interpretativas ao invés de nas diferenças entre indivíduos. Portanto, a
audiência pode ser abordada tanto por suas características pessoais quanto pelas suas
formas de pertencimento sociocultural sem perder o que apresenta de comum.
No que diz respeito aos conteúdos e fluxos midiáticos, Jensen (1997, p.175-196)
estabelece um parâmetro interessante entre a autonomia do receptor e a capacidade
que os discursos dos meios de comunicação têm de produzir sentido e significação.
Para o autor, o estudo dos discursos dos meios de comunicação é um elemento
constitutivo necessário na análise da recepção que inclui as “formas mediante as quais
as agendas dos meios de comunicação podem anular os aspectos marginais ou
emergentes das agendas da audiência” (1997, p.195). Dessa forma, tanto a recepção
quanto a produção são espaços fundamentais para o entendimento desse fenômeno.
Jensen discute ainda (1987, p.28) como a definição demográfica dos receptores
pode ser usada para categorizar preliminarmente o trabalho prático com as audiências,
mas adverte que as comunidades de sentidos são geradas nos interesses e experiências
acumulados e compartilhados. E ainda, que agrupamentos socioeconômicos
tradicionais apresentam-se como categorias fechadas que não podem registrar os
processos que se dão no lugar – ou nos entre-lugares – da recepção. Ainda que tais comunidades de sentido sejam elusivas e de difícil operacionalização, elas podem ter um número de consequências reais, práticas para a pesquisa sobre audiências de mídia: as identidades sociais e culturais da audiência são estabelecidas nestas comunidades, e, em termos concretos, elas são a fonte daqueles códigos de entendimento que as audiências aplicam na interpretação de códigos midiáticos (JENSEN, 1987, p.28).
Já Kim Schroder no artigo “Audiences Semiotics, Interpretatives Comunities
and Ethnographic Turn” delimita as comunidades interpretativas em dois grandes
grupos: as que se constituem independentemente de qualquer mídia e as que se
constituem pelo uso social da mídia (consumo de filmes, livros, telenovelas) e ainda
complexifica a questão quando diferencia as comunidades interpretativas dos
agrupamentos de classe, gênero, etnicidade, afirmando que os repertórios
interpretativos de um usuário de mídia individual são vistos como um produto “da
comunidade linguística como um todo, dos posicionamentos sociais que se
estabelecem no curso da história de vida do indivíduo, das interações comunicativas
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nas comunidades interpretativas e sociais da vida cotidiana, e finalmente pela reunião
única dessas influências construídas pelo indivíduo de momento a momento.” (1994:
345).
Thomas Lindlof (1985, 1988), por sua vez, define comunidade interpretativa
como “o lugar de práticas socialmente coordenadas que levanta as premissas da
interpretação dos conteúdos da mídia”. Os integrantes de uma comunidade
interpretativa compartilham certos sentidos e ideologias comuns que estruturam as
interações da comunidade e a recepção de textos midiáticos. “O horizonte de
interpretação está nas fronteiras do pertencimento à comunidade”. De acordo com
Lindlof (1988), a tarefa de uma etnografia da mídia é reconhecer as estratégias
interpretativas oriundas do pertencimento dos leitores a comunidades interpretativas.
Tais estratégias são propriedades da comunidade. Ao mesmo tempo, elas capacitam e
restringem as possibilidades de interpretação como, por exemplo, no caso de famílias
em que marido, esposa e filhos podem ter práticas de uso de mídias muito diversas,
mesmo que de vez em quando assistam à televisão juntos. No entanto a maior parte da
experiência televisiva dos seus membros é compartilhada com outras pessoas da
mesma comunidade.
Com base nestas considerações, o autor identifica dois tipos de sentido nos
estudos de comunicação: o sentido apresentado e o sentido construído. Quando se
considera que a produção de sentido é controlada por elementos do conteúdo e de seu
planejamento, temos o sentido apresentado. Por outro lado, quando a produção de
sentido é controlada por pessoas que se engajam em uma comunicação mediada,
temos o sentido construído. Nessa ótica, o sentido construído está ligado à existência
de comunidades interpretativas, em que os membros compartilham sentidos e
ideologias comuns que estruturam a recepção. No sentido apresentado, o conteúdo é
moldado intencionalmente pelos produtores. O sentido apresentado é transparente,
segundo Lindlof, porque se presume que todos saibam o que significa cada categoria.
Existe um sentido único no conteúdo.
Schroder (1994, p.337) problematiza a discussão advertindo para os usos e
abusos sofridos pelo conceito em dez anos de pesquisa, como uma “panaceia para
explicar todos os tipos de condicionamentos sociais da recepção de mensagens
midiáticas”. O autor afirma que a multiplicidade de leituras é atribuída ao fato de as
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pessoas pertencerem a diferentes comunidades interpretativas. “Diferenças na
interpretação surgem das diferenças nas suposições que estão na base de diferentes
comunidades interpretativas, em vez de diferenças entre indivíduos” (Allen, 1987,
p.100 apud Evans, 1990, p. 156). Tem-se a partir dessa afirmação a problematização
central desse paper: podemos considerar os estudos de fãs condicionamentos sociais
(comunidades interpretativas) de recepção?
Fãs, Fandon e Comunidades de Interpretação
O estudo sobre os fãs pode ser dividido, em linhas gerais, entre a visão
tradicional e uma visão contemporânea. A primeira, Frankfurtiana, qualifica o fã
como uma vítima patológica da cultura popular. Já a segunda, relacionada aos
Estudos Culturais, rompe com a visão tradicional e procura caracterizá-lo como um
indivíduo consciente e ativo, que tem controle de sua relação com a cultura de massa
e produz sua própria cultura, ao apropriar-se dos objetos que consome em seu dia-a-
dia.
Organizados em uma espécie de sociedade alternativa, que adquire
características de uma sociedade complexa e organizada, os fãs dividem referências,
interesses e um senso comum de identidade que faz com que eles tenham a sensação
de pertencer a um grande grupo que não se define por termos tradicionais como raça,
credo, gênero, classe social ou localização geográfica, mas por indivíduos que
compartilham textos e conhecimentos. Estar nesse grupo é buscar uma aceitação que
tem mais a ver com “o que” o individuo tem a acrescentar à comunidade do que com
“quem” ele é. O fã produz através do seu consumo, cria sua identidade e seu estilo de
vida, além de usar esses novos sentidos para desenvolver produtos próprios.
John Fiske (1992), pertencente ao que alguns autores chamam de “primeira
onda de estudos dos fãs”4, procurou entender o grupo como uma instituição cultural e
comunidade interpretativa inserida sempre em um contexto de poder e resistência.
Para ele:
4Ler mais a respeito em GRAY, J.A., Sandvoss, C., and Harrington, C.L. (2007) ‘Why study Fans?’ in: J. Gray, C. Sandvoss and C.L. Harrington (eds.) Fandom: Identities and communities in a mediated world, New York University Press: New York.
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Os fãs (…) selecionam determinados artistas e narrativas de gêneros entre o repertório do entretenimento produzido e distribuído em massa, transportando-os para a cultura auto-selecionada de uma fração de pessoas. Em seguida, eles são retrabalhados em uma cultura popular intensamente prazerosa e significativa que é, ao mesmo tempo, semelhante e, contudo, extremamente diferente da cultura do público popular mais “normal” (…). Ela está (…) associada aos gostos culturais de formações subordinadas de pessoas, em particular daquelas desempoderadas por quaisquer combinações de gênero, idade, classe e raça (FISKE, 1992, p. 30).
Atrelada à ideia de práticas de empoderamento e resistência, Fiske (1992)
atribui a capacidade do fandom de construir leituras e interpretações alternativas
principalmente no que diz respeito à polissemia dos textos populares e
consequentemente à cultura popular. Para ele, é por meio dos processos de
apropriação cotidiana que os textos são constituídos, tornam-se objetos de fandom e
constroem as identidades dos fãs.
Para o autor, as práticas de produção de sentido e interpretação no fandom são
sempre subversivas e se dão nos “prazeres de produzir os seus próprios sentidos para
a experiência social e os prazeres de escapar à disciplina social do bloco do poder”.
(1992, p.44)
Sandvoss (2005) considera essa definição normativa, alegando que o problema
incide na confusão das fronteiras de descrição e interpretação propostas pelo autor,
limitada aos desempoderados que utilizarão o fandom como forma de resistência.
Assim, em oposição à definição de Fiske, Sandvoss conceitua o fã:
... como o engajamento regular e emocionalmente comprometido com uma determinada narrativa ou texto. Esses textos, por sua vez, atravessam diferentes mídias como livros, programas de televisão, filmes ou música, assim como textos populares em um sentido mais amplo, como times esportivos, ícones e estrelas populares que variam entre atletas, músicos e atores. (2013, p. 10)
Para Jenkins (1992), o fandom é, portanto, uma das manifestações mais
representativas da cultura participativa. Quando se fala em fandom o que está em
questão não é apenas o comportamento individual de um fã, mas sim uma experiência
coletiva de consumo de mídia em torno de um determinado objeto, razão pela qual o
compartilhamento é fundamental para entendê-lo.
Sem o apoio de autoridades e práticas institucionais, os fãs afirmam seu próprio direito a formar interpretações, a propor avaliações e a construir
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cânones culturais. Sem os limites de concepções tradicionais sobre o literário e a propriedade intelectual, os fãs invadem a cultura de massa, reivindicando seus materiais para uso próprio, trabalhando-os como a base para sua própria criação cultural e suas interações sociais (JENKINS, 1992, p. 18)
Para diferenciar o fandom de outras práticas culturais, Jenkins apresenta quatro
níveis de distinção: o primeiro diz respeito ao modo de recepção, ou seja, os fãs não
apenas interpretam os textos, mas os utilizam em outros tipos de atividades sociais e
culturais; o segundo denota o caráter classificador do termo, o fandom constitui uma
comunidade interpretativa de negociação de sentido através da circulação dos
conteúdos em reuniões, fóruns, redes sociais, fanzines e blogs; a terceira está
associada ao caráter de produção artística que o fã desenvolve e a última diz respeito
ao importante potencial de construção de comunidades, desenvolvendo laços que
constituem suas identidades a partir do grupo. (JENKINS, 1992: 209-213).
Jenkins, também discorre sobre o caráter empoderador do fã no seu processo de
produção de sentido: Eu não estou afirmando que existe nada particularmente empoderador quanto aos textos que os fãs adotam. Porém, estou afirmando que existe algo de empoderador quanto ao que os fãs fazem com esses textos no processo de assimilá-los aos aspectos particulares das suas próprias vidas. O fandom não celebra textos excepcionais, e sim leituras excepcionais (JENKINS, 1992, p. 284).
Sandvoss (2013, p.23) complementa ao afirmar que as leituras excepcionais e os
níveis de resistência demonstrados no fandom podem variar entre diferentes grupos de
fãs. Uma importante diferenciação surge ao longo das linhas demográficas e das
posições sociais, culturais e econômicas, respectivamente. Todavia, a posição de
classe em si é uma categoria insuficiente para dar conta de diferentes sentidos
construídos pelos fãs.
O autor recorre à sociologia do consumo de Bourdieu (1984) na construção de
um quadro teórico popular para os estudos dos fãs. Primeiro, para explicar os
múltiplos fatores por meio dos quais a identidade e a posição de classe são definidas
nas sociedades modernas delimitando os recursos que definem posições de classe, tais
como capital social, capital de educação e capital cultural. Sandvoss (2013, p.29)
afirma que a maior contribuição de Bourdieu aos estudos de fãs e públicos é mostrar
como as posições de classe são articuladas por meio do consumo, que também
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constitui a própria base do fandom: o princípio do gosto como o privilégio de objetos
de consumo definidos e distintos. Ou seja, o fandom é motivado por combinações
particulares de capital social, cultural e econômico dos fãs. Para além da classe,
outros fatores sociodemográficos também são considerados importantes na distinção
do fandom, entre eles o gênero, já que as pesquisas demostram um protagonismo
feminino na constituição desses grupos.
A produtividade é outra característica do fandom que merece destaque na
medida em que as narrativas criadas ou produzidas deixam o imaginário de um fã ou a
privacidade do seu quarto para se manifestarem publicamente, especialmente através
da internet. Para Jenkins, as criações das comunidades de fãs não se limitam a
constituir uma cultura popular, mas podem ser apropriadas pelas indústrias culturais
que as reutilizam, recriando o seu produto original. Nesta ‘cultura participativa’ os fãs
podem subsistir enquanto produtores. A noção de consumidor passivo torna-se cada
vez mais desatualizada. Produtores e consumidores já não representam conceitos
estanques, uma vez que as funções se misturam tornando a sua relação recíproca.
Fiske (1992 apud Sandvoss 2013) apresenta três formas de produtividade dos
fãs: a semiótica (criação de sentido no processo da leitura que ocorre no plano
intrapessoal), a enunciativa (formas de comunicação não-verbal como a reprodução
da imagem de um artista ou o uso de botons para demonstrar afeto pelo time ou
programa de televisão favorito) e a textual (descreve materiais e textos criados por fãs
que se manifestam fisicamente ao serem escritos, editados ou gravados, tal como os
fanzines, a fanfiction).
Sandvoss (2013, p.25) resgata outros autores como McKinley (1997) Bacon-
Smith (1992), Jenkins (1992) ou Cicioni (1998), para demonstrar que nem a
produtividade semiótica ou enunciativa garantem uma negociação crítica do
enquadramento ideológico dos textos dos fãs. Os fãs textualmente produtivos
reformulam seus textos de maneira que necessariamente deslocam-nos para fora do
enquadramento industrial e, assim, convidam à emancipação e à resistência contra
esses mesmos enquadramentos. Para o autor “o fandom pode ser subversivo, em
especial quando baseado na produtividade textual, porém, não há nenhum
automatismo que posicione as táticas de leitura necessariamente em oposição às
estratégias de produção (em massa). E ainda afirma algo indispensável na discussão
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desse paper: “para sustentar uma definição inclusiva e não normativa do fandom,
precisamos desenvolver uma taxonomia dos fãs que leve em consideração os graus
variáveis de produtividade e organização social”.
Já Abercrombie & Longhurst (1998) reconhecem formas variadas de
produtividade dos fãs ao localizarem o fandom no espaço transicional entre o
consumo e a produção; são elas: fãs, adoradores e entusiastas, distinguindo-os
também a partir de três eixos: o uso da mídia, potencial de participação em redes e
comunidades e a especificidade do objeto de fandom. Essa taxonomia é bem
apropriada para entender as estratégias de participação dos fãs em diferentes
contextos. Segundo Sandvoss: Os três grupos buscam formas textuais que permitam a criação de um sentido particular, experimentado quanto à sua capacidade de corresponder aos desejos, vontades e percepção do eu. Em outras palavras, o fandom e as relações de poder se baseiam na competência dos textos populares, sejam estes produzidos pela indústria midiática dos fãs, para transmitir um sentido que articule a identidade dos fãs e suas posições objetiva e subjetiva na sociedade. (2013, p.27)
Outro autor que procura conceituar os fãs enquanto agentes ativos de uma
cultura popular e das próprias indústrias culturais é Mats Hills (2002). Ele utiliza o
termo “consumo performativo” que permite assimilar não só a ideia de homenagem
prestada aos ídolos mas reforça a função criadora do fã. Em casos mais extremos de
imitação ou personificação de um ídolo, essa atitude dinâmica utiliza o próprio corpo
como instrumento de culto. O corpo performativo de um fã permite-lhe dar
continuidade ao seu interesse e reforçar a sua própria identidade, através da
autoconsciência que lhe permite assumir por momentos uma nova identidade.
Lawrence Grossberg (2003) considera que os interesses de um fã são tão vitais
para a sua existência que a sua identidade torna-se dispersa em função da dispersão
face ao seu ídolo ou objeto de culto. A distinção de fã enquanto membro de uma
audiência que se destaca através do seu interesse e ação confere uma dimensão elitista
ao papel do fã. Tudo o que esteja fora do seu mapa de interesse é considerado
exógeno, daí que a diferença entre o fã e o outro esteja linearmente demarcada.
Segundo Grossberg, um fã está em constante conflito com todos os que não são fãs, a
audiência. Contrariamente à audiência, o fã não se limita a consumir, ele procura
retirar significados e relê-los à sua imagem. O mesmo texto cultural tem tantos
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significados quantos os receptores e as suas diferentes predisposições. Daí que não é
possível prever os efeitos de um produto cultural a partir do momento em que ele é
exibido e apropriado por estes consumidores-atores.
Onde os Conceitos Convergem Relacionar o Fandon como comunidade interpretativa requer considerar
aspectos convergentes no uso dos conceitos. Inicia-se a discussão com a perspectiva
de Jenkins (1992), que considera o Fandom como uma “comunidade interpretativa de
negociação de sentido” através da circulação dos conteúdos no ciberespaço. A
afirmação nos leva a refletir, de início, sobre o lugar onde essas comunidades se
estabelecem e a já demasiadamente discutida dicotomia real e virtual.
Segundo Rheigold (1993) pode-se entender a comunidade virtual como uma
agregação cultural formada pelo encontro sistemático de um grupo de pessoas no
ciberespaço. Este tipo de comunidade é caracterizada pela co-atuação de seus
participantes, os quais compartilham valores, interesses, metas e posturas de apoio
mútuo, através de interações no universo on-line.
Considera-se, nesse caso, que mesmo sendo delimitado o lugar da recepção
(ciberespaço e não interações off-line), esse lugar pré-estabelecido não exclui
necessariamente o potencial de comunidade interpretativa e não é determinante para
classificar o fandom como tal. Assim, mesmo sendo a definição demográfica dos
receptores usada para categorizar preliminarmente o trabalho prático com as
audiências é nos interesses e experiências acumulados e compartilhados que são
geradas as comunidades de sentido e que agrupamentos socioeconômicos tradicionais
apresentam-se como uma categoria fechada e não dão conta de registrar os processos
que se dão nos entre-lugares5. – da recepção.
Pretende-se mostrar que, independentemente da localização em que a recepção
se constitui, é no caráter de organização, produção e circulação de sentidos que o
verdadeiro potencial analítico deve se debruçar. Não obstante, os novos modos de 5Remetemos aqui ao que Bhabha (1998) chamou de entre-lugar: “terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade”. (BHABHA, 1998, p. 19-20).
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consumir os produtos midiáticos estão, em certa medida, migrando para o ciberespaço
As audiências não estão mais nas mediações da casa ou da escola e isso torna
imprescindível a reflexão sobre um processo de mediação sociocultural marcado
principalmente pela interconectividade aliada à convergência dos meios e à
trasmidialidade.
Portanto, para o fandom ser considerado comunidade interpretativa o que está
em jogo são as normas estabelecidas por esses grupos que influenciam a forma como
os membros atribuíram sentido e significação. Ou seja, é pelas combinações
particulares de capital social, cultural e econômico dos fãs através e pelo uso social da
mídia que o processo se constitui. Nesse sentido, assim como as comunidades
interpretativas off-line, o fandom adquire características de uma sociedade complexa e
organizada que divide referências, interesses e um senso comum de identidade que
não se define por termos tradicionais como raça, credo, gênero, classe social ou
localização geográfica, mas por indivíduos que compartilham textos e conhecimentos.
Nesse aspecto vale considerar não só a constituição do fandom, mas também
como ele produz e circula sentidos potencializando à perspectiva das comunidades
interpretativas no que diz respeito ao espaço que torna possível desvendar de que
forma as estruturas interpretativas são compartilhados por grupos de receptores. Isso
corrobora com a definição de Fiske (1992) que afirma ser na produção dos textos e
não na leitura que se dá o verdadeiro potencial da recepção.
O caráter produtivo do fandom e seu potencial de resistência e constituição
identitária é outra relevante característica convergente. Autores como Jensen (1997) e
Radway (1984) afirmam o poder das comunidades interpretativas em se expressar não
só em relação ao conteúdo produzido mas como resistência aos agendamentos dos
meios de comunicação e ao poder hegemônico. Fiske (1992), Jenkins (1992) e
Sandvoss (2013) também discutem essa perspectiva afirmando que o fandom é um
importante espaço polissêmico de recepção aos textos populares no qual as
identidades dos fãs são construídas a partir das próprias experiências sociais e no
desejo de escapar da disciplina social do bloco do poder.
E, ainda que sejam elusivas e de difícil operacionalização, o fandom enquanto
comunidade interpretativa configura-se muito mais no poder interpretativo dos fãs do
que no texto em si, ou seja, na capacidade dos fãs de produzirem sentidos a partir de
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aspectos particulares do seu próprio cotidiano. Essa produção torna-se possível
mediada por dois elementos essenciais: a facilidade técnica que o meio digital
proporciona na produção dos conteúdos e o caráter psicossocial que permite aos
sujeitos se expressarem através da rede de forma particular.
Assim, considerando que o momento da circulação e produção de novos
conteúdos se constitui uma estratégia interpretativa que resulta na produção de blogs,
fanfiction, fanzines, eventos, etc, estes se tornam importantes lugares para se entender
o consumo midiático e necessitam de um protocolo metodológico para dar conta da
sua complexidade.
A classificação do fandom como comunidade interpretativa requer, tal como
acontece nas comunidades off-line, a difícil tarefa de categorizar esses grupos. Nesse
sentido, autores como Fiske (1992) categorizam três tipos de produtividade dos fãs
que podem ser relevantes para a construção de um protocolo: a semiótica, a
enunciativa e a textual. Embora a prática de consumo esteja imbuída nas três, é na
terceira, a que descreve materiais e textos criados por fãs que o processo se
concretiza.
De acordo com a classificação de Abercrombie & Longhurst (1998), já existem
fãs, adoradores e entusiastas e o que predetermina seu potencial e sua configuração
como comunidade de interpretação são: o uso da mídia, o potencial de participação
em redes e comunidades e a especificidade do objeto de fandom. No que diz respeito
ao potencial de participação, aspectos como reputação e prestígio são importantes na
constituição do fandom e na forma como se observa esses espaços porque eles
determinam a influência que um ator possui dentro da comunidade na qual se situa. É
importante destacar que esses valores ligados à atribuição de status e ao
reconhecimento do valor do outro estão articulados às ações comunicativas e à
produção de laços sociais que se desdobram a partir das afinidades e das atividades
desenvolvidas pelos fãs e no seu processo de construção identitária, já citados
anteriormente.
Por fim, vale apresentar uma importante reflexão, no que tange à dificuldade do
fandom dar acesso às biografias, história de vida e condição político-social dos
sujeitos que o compõem, aspectos bastante valorizados em comunidades
interpretativas off-line. Esse nível de reconhecimento dos sujeitos dependerá da
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plataforma utilizada, do contexto, do espaço, e das normas que estão discursivamente
em ação e, nem sempre podem acontecer devido à complexidade e multiplicidade de
sujeitos envolvidos. Assim, seria necessário regressar a perspectivas tradicionais,
como a antropologia e a etnografia em um potencial de triangulação metodológica
onde o online e off-line se inter-relacionam, ou seja, podemos concluir que a
recepção, como já discutido em diversas pesquisas do campo , sempre será mais bem
percebida em um potencial multi-metodológico. Breves Considerações
Nem sempre é fácil compreender e analisar o nosso próprio tempo. Como diz
Agamben (2009), é difícil ver entre as sombras do contemporâneo. Temos dificuldade
em reconhecer as mudanças, a rapidez e a instantaneidade do novo momento histórico
e o exercício de adaptação coloca-nos à frente de novos desafios. Imbuído desse
sentimento, o artigo buscou discutir o cenário contemporâneo das pesquisas em
recepção no que diz respeito ao grau, ao modo de participação, à classificação das
audiências e à necessidade de se propor um novo protocolo metodológico.
O objetivo foi articular os conceitos de comunidades interpretativas ao de
fandom, apresentando os pontos convergentes e limitadores dos termos nas práticas de
produção de sentido e significação. Tendo como pano de fundo os estudos culturais e
a crítica literária, no que diz respeito ao caráter ativo da recepção, sua
multidimensionalidade e seu potencial ilimitado de interpretações, procurou
apresentar um panorama dos principais autores que discutiram tais perspectivas.
Pode-se concluir que o Fandon como comunidade interpretativa está
preferencialmente relacionado ao ciberespaço e que, mesmo essa característica sendo
fundamental, ela não exclui o potencial de comunidade interpretativa e não é
determinante para classificação do fandom como tal. O que se demonstrou é que
independentemente da localização em que a recepção se constitui, é no caráter de
organização, produção e de circulação de sentidos que o verdadeiro potencial
analítico deve se debruçar.
O caráter produtivo do Fandom e seu potencial de resistência e constituição
identitária foi outra relevante relação demonstrada no artigo. O fandom é um
importante espaço polissêmico de recepção aos textos populares no qual as
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identidades dos fãs são construídas a partir das próprias experiências sociais e ao
desejo de escapar à disciplina social do bloco do poder e na capacidade dos fãs de
produzir sentidos a partir de aspectos particulares do seu próprio cotidiano. Essa
produção torna-se possível mediada por dois elementos essenciais: a facilidade
técnica que o meio digital proporciona na produção dos conteúdos e o caráter
psicossocial que permite aos sujeitos se expressarem através da rede de forma
particular.
A categorização do fandom também foi destacada no texto como relevante para
a construção de um protocolo metodológico para análise do consumo e produção.
Aspectos como uso da mídia, potencial de participação em redes e comunidades e a
especificidade do objeto de fandom e ainda reputação e prestígio aparecem como
importantes na constituição do fandom e na forma como se deve observar esses
espaços.
Por fim, o artigo apresenta algumas limitações na convergência dos conceitos,
dentre elas o caráter limitador do fandom em reconhecer a subjetividade dos sujeitos e
a necessidade de regressar a outras perspectivas na antropologia e na etnografia em
um potencial de triangulação onde o online e off-line se inter-relacionam em um
processo multi-metodológico.
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