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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019), 149-171. http://www.teocripsi.com/ojs/ (ISSN: 2116-3480) 149 O engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo El “engodo” como una fantasía del lazo social contemporáneo The “engodo” as a fantasy of the contemporary social bond Brendali Dias e Nadir Lara Junior Fórum do Campo Lacaniano, Unicentro (Brasil) Resumo. O objetivo deste artigo é apresentar o engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo, buscando situar as formas em que o engodo opera na realidade social e política, evidenciando as consequências dessa operação no funcionamento psíquico do sujeito contemporâneo. Para tanto, vamos nos valer de uma interlocução entre a psicanálise e o marxismo tomando os conceitos de fantasia, mais-de-gozar e mais-valia. Trata-se ainda de uma crítica ao sistema capitalista em que o engodo é imposto pelas classes dominantes, que são os donos dos meios de produção capitalista, mas apontando que, em última instância, há um engodo ao qual todo ser falante está fadado, seja ele miserável, trabalhador ou capitalista. Palavras chave: psicanálise, marxismo, fantasia, mais-valia, mais-de-gozar. Resumen. El objetivo de este artículo es presentar el “engodo” como una fantasía del lazo social contemporáneo. Para ello, vamos a situar las formas en que el “engodo” opera en la realidad social y política, evidenciando las consecuencias de esa operación en el funcionamiento psíquico del sujeto contemporáneo. Para ello, vamos a valernos de una interlocución entre el psicoanálisis y el marxismo tomando los conceptos de fantasía, más-de-gozar y plusvalía. Se trata también de una crítica al sistema capitalista en que el “engodo” es impuesto por las clases dominantes, que son los dueños de los medios de producción capitalista, pero apuntando que, en última instancia, hay un engodo al cual todo ser hablante está fadado, sea él miserable, trabajador o capitalista. Palavras clave: psicoanálisis, marxismo, fantasía, plusvalía, más- de gozar. Abstract. The aim of this article is to present the “engodo” as a fantasy of the contemporary social bond. To do so, we will situate

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019), 149-171. http://www.teocripsi.com/ojs/ (ISSN: 2116-3480)

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O engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo

El “engodo” como una fantasía

del lazo social contemporáneo

The “engodo” as a fantasy

of the contemporary social bond

Brendali Dias e Nadir Lara Junior Fórum do Campo Lacaniano, Unicentro (Brasil)

Resumo. O objetivo deste artigo é apresentar o engodo como uma

fantasia do laço social contemporâneo, buscando situar as formas em que o engodo opera na realidade social e política, evidenciando

as consequências dessa operação no funcionamento psíquico do sujeito contemporâneo. Para tanto, vamos nos valer de uma

interlocução entre a psicanálise e o marxismo tomando os

conceitos de fantasia, mais-de-gozar e mais-valia. Trata-se ainda de uma crítica ao sistema capitalista em que o engodo é imposto

pelas classes dominantes, que são os donos dos meios de produção capitalista, mas apontando que, em última instância, há

um engodo ao qual todo ser falante está fadado, seja ele

miserável, trabalhador ou capitalista.

Palavras chave: psicanálise, marxismo, fantasia, mais-valia, mais-de-gozar.

Resumen. El objetivo de este artículo es presentar el “engodo”

como una fantasía del lazo social contemporáneo. Para ello, vamos a situar las formas en que el “engodo” opera en la realidad

social y política, evidenciando las consecuencias de esa operación en el funcionamiento psíquico del sujeto contemporáneo. Para

ello, vamos a valernos de una interlocución entre el psicoanálisis

y el marxismo tomando los conceptos de fantasía, más-de-gozar y plusvalía. Se trata también de una crítica al sistema capitalista en

que el “engodo” es impuesto por las clases dominantes, que son los dueños de los medios de producción capitalista, pero

apuntando que, en última instancia, hay un engodo al cual todo

ser hablante está fadado, sea él miserable, trabajador o capitalista.

Palavras clave: psicoanálisis, marxismo, fantasía, plusvalía, más-

de gozar.

Abstract. The aim of this article is to present the “engodo” as a fantasy of the contemporary social bond. To do so, we will situate

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

the ways in which “engodo” operates in social and political reality, showing the consequences of this operation in the psychic

functioning of the contemporary subject. To do so, we will use an

interlocution between Psychoanalysis and Marxism taking the concepts of fantasy, jouisance and surplus-value. It is also a

critique of the capitalist system in which “engodo” is imposed by the dominant classes, who are the owners of the capitalist means

of production, but by pointing out that in the last instance there

is a decoy to which every talking being is doomed, whether he miserable, hard-working or capitalist.

Keywords: psychoanalysis, Marxism, fantasy, surplus-value,

jouisance.

Introdução

De jeito nenhum lhes digo que o discurso capitalista seja medíocre; é, pelo contrário, algo loucamente astucioso, hein? Loucamente astucioso, mas destinado ao furo. (Lacan, 1972,

inédito).

O objetivo deste artigo é apresentar o engodo como uma fantasia do sujeito

na sociedade contemporânea. Essa fantasia se manifesta, geralmente, em

sujeitos que acreditam e investem suas energias na crença de que o laço

social capitalista é a única forma de construir processos de sociabilidade.

Nessa fantasia, esses sujeitos tomam a própria vida e a vida do outro como

um objeto capaz de produzir mais-valia e mais-de-gozar, como veremos

mais adiante. O que está em jogo nessa operação fantasmática é o repúdio

à realidade em que se vive e a busca por um amparo prometido (ao

interpelado) por uma figura encarnada do pai (o sistema capitalista

representado pelo interpelador). Nessa relação, o interpelador1 assume a

posição opressora legitimada pela sociedade capitalista e goza oprimindo o

interpelado. Mas, o faz na posição de quem crê nas regras dessa sociedade

e que, portanto, como crente não percebe, muitas vezes, que é tomado

como objeto para a manutenção do próprio sistema capitalista que tem por

fundamento a exploração das pessoas, especialmente, por meio do

trabalho (Gorz, 2007).

1 O conceito de “interpelação” foi teorizado por Louis Althusser como artifício pelo qual os

indivíduos reconhecem a si mesmos e aos outros enquanto sujeitos reais e que permite

ações entre eles dentro de uma ideologia, o que inclui o fato de que a interpelação é a maneira pela qual os indivíduos são convocados a fazerem parte de uma ideologia. Nas

palavras do autor “não existe ideologia a não ser para sujeitos concretos, e essa destinação da ideologia só é possível pelo sujeito, ou seja, pela categoria de sujeito e seu

funcionamento. ” (Althusser, 1970/1996). É a partir da perspectiva de Althusser que

fazemos uso dos termos interpelador e interpelado neste trabalho. No entanto, aqui, o conceito está sendo usado no sentido de que o engodo é a forma de interpelação do

sujeito como indivíduo.

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Essa fantasia faz com que os sujeitos não consigam contestar tal

produção material e subjetiva de gozo e riqueza espurca. O engodo,

portanto, se estrutura a partir da relação entre a insanidade do discurso

alienante do interpelador, materializado nas mais diversas formas de

relações sociais desiguais e de governo do sistema capitalista, e a crença

decidida do interpelado ao se submeter à interpelação. Todavia, nessa

composição fantasística, tanto o interpelador quanto o interpelado se

tornam objeto de gozo do Outro como representante formatador desse

sistema. Diante dessa afirmação, podemos supor que o engodo não pode

ser concebido como um “erro” acidental dos envolvidos nessa relação, mas

uma produção fantasmática compartilhada no laço social.

Neste artigo veremos que o engodo funciona na sociedade

contemporânea como uma fantasia do sujeito sob o domínio do capital.

Dessa forma, as relações sociais estabelecidas por esses sujeitos se tornam

um ethos capitalista, ou seja, um estilo de vida com um conjunto de regras

de sociabilidade que garantam o investimento libidinal em relações sociais

baseadas no engodo de que o mais-de-gozar é uma forma de pulsão de

vida. Todavia, o que se omite nessa operação é que esse ethos se torna um

embuste que transforma o interpelado em um objeto de gozo do

interpelador e que, em última instância, ambos são transformados em

objetos de gozo do sistema capitalista, administrador dessa relação

espurca.

Lacan, no Seminário XVII, destaca que no discurso da universidade o

crente é aquele que se dedica “de corpo e alma” a seguir piamente as

nominações do douto. Nesse discurso não há espaço para dúvidas,

questionamentos, críticas (Lara Junior, 2010) nem para o desejo singular

do interpelador, pois a proposta alienante desse discurso é a de que seus

fiéis se sintam plenificados ao reproduzi-lo.

Assim, em última instância, evitar a realidade e o sofrimento e buscar

pelo amor de um suposto pai da horda constroem possibilidades para que

o interpelado se atraia pela isca (que se apresenta como pulsão de vida),

uma vez que ela demonstra contornos e características que possibilitam

esse sujeito gozar na satisfação de que, pelos menos momentaneamente,

suas mais diversas formas de sofrimento foram suspensas. Nesse contexto,

o interpelador arma suas iscas fantasmáticas para que a presa seja

capturada, para que assim ele possa gozar na exploração do interpelado

como resposta obediente de um crente às normativas do douto (discurso

da universidade) no sistema capitalista.

Nesse sentido, quando retomamos a obra de Max Weber (1904) “A

ética protestante e o espírito do capitalismo”, podemos ver que na base

desse sistema econômico, social e político está a crença advinda dos

católicos e protestantes que faz com que as posições de sujeito dentro

desse laço social capitalista sejam dispostas de tal maneira que as

desigualdades e a exploração da mão-de-obra do trabalhador pareçam algo

natural, divino e inerente à cultura. Desta feita, é criado um sistema de

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normas e crenças capaz de fazer com que trabalhadores e industriários

acreditem que essa é a melhor forma de gerir a sociedade. A religião e seus

conjuntos de crenças seriam os elementos essenciais para que esse

posicionamento tivesse seus efeitos identificatórios e considerações

alienantes.

Na mesma direção, André Gorz (2007), relendo Max Weber, nos diz

que essa relação de imposição do capitalismo como um ethos a ser vivido

na sociedade não foi harmoniosa, havendo muita resistência por parte dos

trabalhadores que buscaram se organizar em sindicatos, por exemplo, na

tentativa de romper a lógica alienante em torno do trabalho. Todavia, como

materialmente os industriários (donos do capital) se beneficiavam dessa

exploração, eles criaram os subterfúgios ao longo dos anos para

administrar e contabilizar essa lógica de exploração. As consequências

dessa forma de exploração para os interpelados, que representam a grande

massa do planeta são, de um lado os trabalhadores explorados que cedem

mais-valia e enriquecem os capitalistas e de outro a fome e a miséria,

concentradas nos países subdesenvolvidos e/ou emergentes. É importante

lembrar que sem a fome e a miséria desses povos não seria possível a

manutenção do sistema capitalista, já que é necessário o desemprego para

que haja a competição entre os trabalhadores, que estimula a mão de obra

barata, e, consequentemente, a concentração de poder nas mãos dos

donos do capital.

No entanto, o que destacamos neste estudo é que essa lógica

administrativa e contábil, além de tomar o proletário como objeto material

de exploração do sistema capitalista, também se apropria do dono do

capital como aquele que se “ajoelha” no cumprimento impiedoso das

normativas do sistema capitalista. O dono do capital, portanto, também é

pego como objeto dessa lógica, sofrendo nessa posição, muitas vezes

oferecendo como sacrifício o próprio “corpo” para os rituais de trabalhos

excessivos no sistema capitalista, como afirma Parker (2018).

As consequências dessa lógica para os donos do capital são

empresários doentes por estresse, cansaço e, como qualquer outro sujeito,

consumidos por uma angústia implacável e por eles inexplicável, pois

argumentam que o dinheiro e um suposto bem-estar não são suficientes

para abrandar esse sentimento. Também, muitas vezes, seus filhos sofrem

com crises intensas de síndrome do pânico, depressão etc, sem

compreensão das razões desses sintomas, visto que, em tese, dizem

desfrutar de dinheiro e outras comodidades decorrentes do lucro obtido

por seus pais. Tais consequências podem ser verificadas pelos

psicanalistas clínicos quando recebem sujeitos da classe alta em seus

consultórios.

Marx (1867), ao colocar as relações de trabalho como cenário central

para obtenção de lucro no sistema capitalista, nos faz pensar no engodo

como uma fantasia materializada pelo sujeito na sociedade

contemporânea, justamente porque se desenvolve de maneira aviltante por

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meio das relações de exploração e opressão da mão de obra do

trabalhador. Žižek (1999) afirma que Marx inventou o sintoma porque esse

cenário lança o sujeito para uma posição de objeto a ser devorado pelos

modos de produção capitalista em que ele é compelido a gozar

incessantemente a ponto de perder-se em sua própria capacidade de se

confrontar com seu desejo, caindo assim numa demanda incessante de

angústia e intenso sofrimento.

Para tratar desse sintoma na perspectiva clínico-política, pensamos

que a política da psicanálise pode causar fissuras nesse discurso alienante

do interpelador, pois visa causar uma separação da alienação do sujeito ao

Outro, relação esta, baseada em uma forma de gozo espurco. Sendo que a

política da psicanálise aponta para a separação, torna-se legítima sua

resistência às lógicas segregadoras do discurso do mestre e da política

concentradora2 do discurso capitalista. Esses dois discursos (mestre e

capitalista) são alienantes porque não visam a possibilidade da separação,

de forma que o sujeito não consegue subverter sua posição alienada em

nome do objeto a causa de desejo. Sobre a política da psicanálise, Dias

(2016) nos diz:

A primeira [característica da política da psicanálise] é que não existe objeto adequado ao gozo como quer fazer crer o capitalismo; a segunda é que a psicanálise é um sintoma que nasce como resistência ao capitalismo, atrapalhando a bela ordem do discurso do mestre (capitalista), que permite ao sujeito a separação do Outro. Tal separação, teorizada pela psicanálise, nos dá uma pista de que é possível que o sujeito possa buscar opções para os impasses da sociedade contemporânea, dado que esta pode ser questionada por ele,

mesmo que a completude não exista (p. 21).

Nesse sentido, a política da psicanálise não trata somente de suportar

a posição de objeto causa de desejo no setting analítico, mas também de

ser um discurso no laço social que se contrapõe ao discurso do capitalista.

Nessa lógica, Lacan (1953/1998) nos diz que o psicanalista, ao tratar seus

pacientes no consultório, deve considerar o conhecimento da subjetividade

de seu tempo. Para isso, Lacan (1967/2003) assinala que a noção de

aplicação da psicanálise em intensão (consultório) é tida por ele como guia

para a aplicação da psicanálise em extensão (laço social), respondendo

pela ética do desejo, que é a ética da psicanálise, como forma de

contraponto aos imperativos do discurso do capitalista. Nessa sociedade

marcada pela hegemonia do discurso do capitalista há concentração dos

desejos, ou seja, todos devem desejar as mesmas coisas, aquelas

2 O termo política da concentração parte da ideia de campo de concentração do nazismo, por buscar a eliminação das diferenças. Aniquilar as diferenças é interesse da classe

dominante para que o capitalismo prevaleça. A psicanálise articula o termo concentração do ponto de vista da aniquilação do sujeito dividido, ou seja, criar uma fantasia de que os

sujeitos são iguais perante a sociedade capitalista, dando ao sujeito a sensação de

liberdade. (Bousseyroux, 2012).

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fabricadas pela tecnologia e postas no mercado pelo sistema capitalista,

numa demanda incessante capaz de pôr em movimento a lógica do

consumo, a qual favorece o crescimento deste sistema como um ethos, um

estilo de vida em que o interpelado se torna objeto de gozo do interpelador

e ambos se tornam objetos de gozo do sistema capitalista, colocando em

decadência o desejo singular de cada sujeito.

Dunker (2011), ao propor um profundo estudo sobre a clínica

lacaniana, mostra que a política da psicanálise pode ser utilizada para

entender o funcionamento do sujeito em sua relação com o analista, sendo

a transferência uma forma de fantasia posta no cenário analítico em que

tempo, espaço e lugar são conjugados em uma topologia inaugurada por

Lacan. Tal topologia surge como forma de lidar com os sofrimentos

decorrentes de uma semiologia, etiologia, diagnóstica, terapêutica e cura

decorrente de uma lógica própria capaz de tratar o sujeito em sua

singularidade. Dunker ainda propõe uma clínica autônoma dos discursos

psicologizantes, psiquiatrizantes e biologicistas, pois estes cumprem a

função de alienar o sujeito de sua própria condição de sujeito desejante e

impedi-lo também de se envolver em lutas políticas por direitos no laço

social.

Nessa mesma lógica, esse autor demonstra como a clínica lacaniana

pode se posicionar de maneira histórica, científica, ética e estética, sendo

capaz de mobilizar os sujeitos numa relação única, em que o analista não

opera a partir de uma fórmula homogeneizadora e imutável para praticar

psicanálise, mas opera na posição de objeto a - causa de desejo. Mesmo

que tenha que ocupar o lugar de um sujeito suposto saber para o

analisante, o analista, em sua função, possibilita que o sujeito faça o seu

processo de análise. Para isso, os lugares (topologia) que determinam as

posições de sujeito devem ser considerados nessa relação, como aponta

Dunker (2011):

Nessa replicação do espaço político ao lugar, se expressa simetricamente uma tendência a considerar que o lugar inclui e contém, necessariamente, o conjunto exaustivo das posições, assim como o gênero contém a totalidade das espécies. Por intermédio de uma gramática da inclusão e da exclusão, fomos levados a supor que toda posição se inclui num lugar, ambos reunidos num espaço assim tornado invisível e homogêneo... como o poder que nele se exerce

(p.599).

Dunker (2011) também afirma que a lógica do tratamento

psicanalítico tem sua potência compreendida e debatida na clínica, no

entanto reconhece que a psicanálise não pode ser reduzida ao espaço da

clínica. Nesse viés, cita autores (Alain Badiou, Slavoj Žižek e Ian Parker)

que se baseiam na psicanálise para compreender e propor uma teoria

política que repense as relações no laço social contemporâneo, dilatando

assim as possibilidades da política da psicanálise para compreensão das

análises políticas.

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A política da psicanálise, tão bem fundamentada na clínica, pode

trazer para as análises políticas elementos teóricos recobertos por uma

ética que garanta que a verdade, mesmo que não toda, ecloda e que assim

as relações de opressão possam ser não só denunciadas, mas também

entendidas como opressivas pelo sujeito contemporâneo, além de também

lançar o sujeito para o desafio de cuidar do laço e de si mesmo dentro dele,

nas palavras de Dunker (2011, p. 594):

Para Lacan uma experiência psicanalítica deve ser capaz de inventar uma verdade, deve ser um acontecimento de verdade na vida de alguém. Não se trata da verdade como conteúdo ou conjunto de saberes mais ou menos confiáveis sobre si mesmo. A psicanálise, para Lacan, não é uma experiência de autoconhecimento, pois só se pode conhecer propriamente objetos, conhecer-se a si mesmo é tomar-se como objeto, portanto alienar-se, logo um contrassenso diante da perspectiva lacaniana. A psicanálise tem mais a

ver com cuidar de si do que conhecer a si.

O próprio capitalismo desenvolve uma dialética complexa em que, por

um lado existe o poder opressor da exploração da mão-de-obra e por outro,

aqueles movimentos que lutam pela emancipação social e individual.

Marxistas sempre foram impulsionados a se posicionar contra as

injustiças inerentes ao capitalismo assim como contra o logicismo de sua

política econômica. Já a psicanálise insiste que o “autoconhecimento” não

é capaz de sustentar um processo de mudança, pois é necessário além da

reflexão sobre si, ações coletivas capazes de sustentar um processo de

transformação social.

Dessa feita, pensamos que os efeitos da política da psicanálise

permitem que o sujeito encare o real do laço social, ou seja, que não há

Outro do Outro e, portanto, não há mestre que vá resolver as questões

sociais. Em termos marxistas, o real se trata de diversas estratégias de

exploração do trabalhador postas nos modos de produção capitalista.

Portanto, é preciso questionar esse sujeito e para fazer “ato psicanalítico” é

necessário antagonizar a sua fantasia contemporânea (engodo). Também,

nesse sentido, cabe a interpelação aos trabalhadores feita por Marx &

Engels (1848) no “Manifesto Comunista”: “Proletários de todo mundo, uni-

vos!”. Como aponta Dunker (2005):

É o ato que torna possível dizer a verdade. Lacan enfatiza que a verdade não pode ser toda dita, que ela é sempre semi-dita. Ela corresponde ainda a um lugar abrigado, na estrutura dos discursos. A verdade em Žižek pode ser comparada com a noção de evento em Badiou, ou seja, um dado acontecimento que subverte o campo de prescrição de um determinado discurso. A verdade mostra-se, portanto, no efeito de um giro de discurso, efeito de corrupção de sua ordem de enunciados e de seus lugares de enunciação. Na medida em que ato e verdade são consubstanciais, pode-se dizer que a verdade é sem conteúdo, ou que seu conteúdo é

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marcado pela temporalidade de sua enunciação. O ato que interessa mais diretamente a Žižek é aquele capaz de

realizar a travessia da fantasia (p. 75)

Nesse sentido, a política da psicanálise contribui para que os sujeitos

se tornem mais afetados pela verdade enquanto causa do desejo para que,

assim, o laço social possa ser governado dentro de outra lógica que talvez

passe pelo questionamento da lógica falocêntrico da sociedade capitalista e

assim se estruture em torno da dimensão do feminino, por exemplo, como

defende Parker (2009). O discurso da histérica ajuda a formar uma

subjetividade contestatória capaz de se opor aos discursos do mestre, do

universitário e do capitalista, ou seja, aos discursos instituídos na

sociedade contemporânea. Essa recusa histérica está em relação ao

discurso do analista que proporciona outra cadeia de significante. Parker

comentando Lacan nos diz:

A “histerização” do analisando, por exemplo, é uma feminização da posição do sujeito que lhe permite enfrentar o mestre e construída sobre as primeiras observações cruciais da história da psicanálise de que a histeria não estava limitada às mulheres. Mas essa feminização não é enfeitiçada por fantasias sobre o que uma mulher realmente é, uma vez que a remoção da “feminilidade” e o ponto no qual o analisando, qualquer que seja seu sexo, descobre não só que não há relação sexual harmoniosa, mas também que

“a mulher não existe”. (Parker, 2009, p.96)

No processo analítico, a travessia da fantasia leva o sujeito a se

reposicionar diante do Outro e abrir possibilidades para um investimento

libidinal, não a partir de uma posição de objeto de gozo do Outro, mas

como sujeito que se responsabiliza por seu próprio desejo – sujeito

desejante e responsável por suas escolhas amorosas e políticas no laço

social. A subjetividade do sujeito é histórica, mas sua estrutura é trans-

histórica, assim a subjetividade constitui o sujeito, mas muda com a

história, enquanto a estrutura se mantém. É por isso que Lacan fala em

“subjetividade de seu tempo”.

A dimensão política do discurso da psicanálise, posta na lógica do

desejo, é vivida a partir do respeito à subjetividade e no embate com os

representantes do poder constituído enquanto hegemônico. Com isso,

apresenta possibilidades para que o sujeito saia da posição de vítima

fatalista para uma posição de sujeito injustiçado que deve lutar para que

haja uma equivalência de direitos ao invés desta relação desmedida. Isso

abre a possibilidade para que esse sujeito construa sua fantasia

contestatória como um suporte para a realização dos projetos políticos que

não o lance em uma lógica de aceleração de gozo, uma vez que a

aceleração do mercado aumenta a angústia para além do necessário

solicitado pelo objeto a causa de desejo, já que as ofertas incessantes do

mercado intensificam a angústia pelo desejo de gozo, ao qual seu desejo

singular, mapeado pelo objeto a causa de desejo, pode amenizar. Nesse

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sentido, pensamos que o engodo como uma fantasia do sujeito

contemporâneo nos mostra como essa lógica fantasmática entre sujeito e

laço social (e vice-versa) se mostra eficaz na manutenção da lógica

capitalista e que o discurso da psicanálise e do marxismo podem nos

ajudar a romper com esse tipo de situação. Vejamos a seguir um pouco

mais sobre o significante engodo e sua forma de operação no laço social.

1 - Engodo e suas significações

No dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001) a palavra engodo

possui algumas definições, a saber:

A primeira definição do dicionário aponta que se trata de uma isca

usada para atrair animais, aves, peixes; ceva. O engodo põe em jogo nessa

metáfora dois elementos: primeiro o sujeito que deseja capturar sua presa

e, portanto, se utiliza de um artifício (isca) que reproduz os hábitos de

alimentação da presa para atraí-la a seu objetivo exercendo certo fascínio

para ela. Segundo, quando a presa, por exemplo o peixe, se deixe atrair

por esse fascínio, ele será capturado pelo anzol camuflado pelo fascínio da

isca. O resultante dessa operação é a satisfação do pescador por capturar

sua presa e a satisfação momentânea do peixe ao morder a isca.

A segunda definição do dicionário diz que engodo significa “qualquer

artifício para atrair alguém, chamariz”, portanto o artifício/chamariz

cumpre a função de atrair alguém para um fim. Nessa relação,

implicitamente, se pressupõe que há um agente que arquiteta e administra

a emboscada usando de subterfúgios para atrair alguém. Por outro lado,

há aquele que será atraído por esse chamariz: o alvo da emboscada.

A terceira definição que nos traz o dicionário nos remete a ideia de

uma “falsa atitude de lisonja, de adulação”. Parece-nos que a definição vai

se complementando, pois, o artifício/chamariz aqui é entendido como uma

atitude de lisonja e adulação é, no entanto, efetuado de maneira falsa ou

ilusória. A ação, portanto, se torna intencional, pensada e arquitetada

como uma cilada (anzol e isca) para se conseguir algo/alguém. Já aquele

que recebe essa ação, caso se deixe levar por essa lógica de ser adulado,

acata a falsa lisonja (ilusão) como elogio. Nesse caso, o interpelador (aquele

que arma o embuste) e o interpelado (aquele que se deixa atrair pelo

fascínio do engodo) fazem uma montagem em que suas necessidades se

complementam, como veremos com detalhes neste texto.

Na quarta definição o dicionário nos remete a “qualquer tipo de

cilada, manobra ou ardil que vise enganar, ludibriar outrem, induzindo-o

ao erro”. Novamente essa definição supõe uma relação de alguém que

arma a cilada na intenção de capturar algum tipo de presa. Para isso,

aquele que busca montar uma cilada visa iludir a presa, e colocar-se em

uma posição de poder sobre ela, pois domina o funcionamento das ciladas.

Portanto, podemos supor ser uma famigerada relação de

complementariedade: pescador com o peixe. O engodo é, portanto, o ato de

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alguém arguto que domina o funcionamento das ilusões (iscas, cevas,

armadilhas etc.) de outro que se deixa capturar pela montagem das

ilusões.

A primeira definição de engodo nos remete ao mundo da caça: armar

uma isca ou ceva para atrair e capturar uma presa. Para isso há uma

engenhosidade para atrair a caça para um fim determinado. Sabemos que

este tipo de artimanha é bastante usado nesse campo, no entanto, as

outras definições de engodo extrapolam, saindo das relações do mundo

animal e se transferindo para as relações humanas. Por que o engodo se

move para a relação entre as pessoas?

Vemos ainda nessa definição do significante engodo que em todas as

situações há uma relação colocada entre o interpelador arguto, que usa

estratégias para seduzir, e o interpelado, que usa de estratégias para se

iludir pela encenação (engodo) arquitetada pelo primeiro. No final dessa

operação insidiosa o interpelador, ao capturar o interpelado com suas

ciladas, se regozija com tal captura (pois suas ciladas funcionaram) e o

interpelado/presa, por sua vez, ao usar essa estratégia de se iludir pelo

artifício, morde a isca com a ilusão de satisfação eterna, obtendo uma

satisfação instantânea que tem como consequência a insatisfação de ser

capturado.

Nesse sentido, o interpelador se mostra arguto na produção do

engodo pois, ao conhecer os modos de vida do interpelado (presa), sabe de

seus gostos e predileções para propor a isca mais atraente. Sendo assim,

há a construção de uma fantasia por parte do interpelador para que suas

estratégias sejam bem-sucedidas. No caso do interpelador, ele adere a essa

fantasia (engodo) porque recria, supostamente, na situação de captura da

presa uma sensação de saber e poder que ilusoriamente o torna superior à

sua presa.

Assim sendo, o engodo se sustenta como uma realidade fantasiosa,

pois ambos gozam com estratégias diferentes: um montando a cilada e o

outro caindo nela. O que se omite para o interpelado é que ele está sendo

engando. Para o interpelador se omite que ele, mais cedo ou mais tarde, se

tornará a própria presa perseguida, pois o trabalho que envolve armar a

cilada para o outro, é também uma cilada, requerida pelo sistema

capitalista, só que desta vez, ele mesmo é a presa. Desta feita, de maneiras

diferentes, ambos são presas do sistema capitalista. Assim, na fantasia do

engodo, há uma entropia de gozo quando a repetição para ser interpelador

e interpelado persiste. No entanto, nos dois casos, é através do engodo

como isca que o gozo é perseguido. Mas, de onde vem o conceito de gozo e

como ele se articula ao engodo de que estamos tratando?

2- Da pulsão de morte ao gozo

No começo de sua obra, Freud buscava na ciência respostas para os

comportamentos que causavam o sofrimento do sujeito, mas, ao estudar e

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O engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo 159

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

analisar as histéricas de sua época, ele descobre o inconsciente e funda a

psicanálise. Ao criar o conceito de pulsão, Freud (1915/1996), inicialmente

o apresenta como pulsão de autoconservação e pulsões agressivas e

sexuais.

Mais adiante, Freud, (1920/1976), em “Além do princípio do prazer”,

passa a pensar em várias formas de manifestação das pulsões nas

repetições e as separava entre pulsão de vida, que buscaria prazer, e

pulsão de morte, que acabaria em desprazer. É nesse momento que

começa a pensar a parcialidade da pulsão.

Neste mesmo texto, em seus estudos e reflexões, Freud (1920/1996)

foi adiante ao apresentar que a compulsão à repetição visava prazer, mas,

em última instância, causava sofrimento. Nesse sentido freudiano, Lacan

reconhece a compulsão à repetição, mas em sua releitura sobre a pulsão

propõe aspectos que aqui nos interessam.

Freud já dizia que não podemos suprimir ou domesticar a pulsão, no

entanto Lacan toma a pulsão para pensar uma economia de gozo, que ao

mesmo tempo que provoca dor e sofrimento ao sujeito, traz consigo uma

satisfação e um prazer inconsciente, associando-a à compulsão à repetição

e ao que não cessa de não se inscrever no simbólico. A partir daí, Lacan

pensa a pulsão como um discurso sem palavras, fora do simbólico, fora da

cadeia significante, como algo que desorganiza o sujeito e que funciona em

função de uma hiância central relacionada ao inconsciente. Nas palavras

do autor:

Pude articular para vocês o inconsciente como se situando nas

hiâncias que a distribuição dos investimentos significantes instaura no

sujeito, e que se figuram no algoritmo em um losango [◊] que ponho no

coração de qualquer relação do inconsciente entre a realidade e o sujeito.

Muito bem! É no que algo do aparelho do corpo é estruturado da mesma

maneira, é em razão da unidade topológica das hiâncias em jogo, que a

pulsão tem seu papel no funcionamento do sujeito. (Lacan, 1964/1998,

pp. 171-172).

Ao colocar essa hiância no centro da relação do inconsciente entre a

realidade e o sujeito, Lacan, concordando com Freud sobre a parcialidade

da pulsão, vai localizar um engano no mito Aristófanes (que propõe o amor

como a busca da metade de si mesmo que o complementaria) afirmando

que o que o sujeito procura no outro do amor é a parte de si mesmo para

sempre perdida e conclui: “Daí vocês compreendem que (...) a pulsão, a

pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte, e representa em si

mesma a parte da morte no vivo sexuado” (p.195). Diante disso, ele conclui

sua proposta da noção de gozo que resguarda a dimensão “da morte no

vivo sexuado” (pulsão de morte) e impulsiona o sujeito a uma satisfação,

por meio do objeto, sempre frustrada.

Portanto, para Lacan, assim como para Freud, não há pulsão que

satisfaça o sujeito, pois, devido à hiância, o encontro com o objeto está

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160 Brendali Dias e Nadir Lara Junior

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

sempre para além de qualquer objeto da realidade. Ele afirma ainda que a

pulsão somente contorna o objeto sem jamais alcançá-lo, confirmando a

impossibilidade da homeostase para o sujeito. É a partir do próprio Freud

que Lacan (1964) articula a impossibilidade de satisfação com o objeto,

apontando-o como objeto a. Diz ele:

Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação

a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de

reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa

senão esse retorno em circuito (...) este objeto, que de fato é apenas a

presença de um cavo, de um vazio ocupável, nos diz Freud, por não

importa que objeto, e cuja instância só conhecemos na forma de objeto

perdido, a minúsculo. O objeto a minúsculo não é origem da pulsão oral.

Ele não é introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato

de que nenhum alimento satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o

objeto eternamente faltoso. (Lacan, 1964/1998, p. 170).

Esse encontro eternamente faltoso faz com que o sujeito nunca pare

de buscar o objeto, apontando o seguinte paradoxo: é a própria satisfação

buscada e impossível de ser encontrada que coloca o sujeito numa

compulsão à repetição, uma espécie de entropia que faz ele crer que vai

encontrar seu objeto de satisfação, ou seja, a pulsão busca a repetição

porque nunca encontra a satisfação, apontando que qualquer encontro

com o objeto, é sempre faltoso. No entanto, é a infinita repetição da busca

de gozo (busca do objeto perdido) apontado por Lacan que realiza o

contorno do objeto perdido do gozo, objeto a, mais-de-gozar. É a partir

desta construção que Lacan conclui: “Daí vocês compreendem que (...) a

pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte, e

representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado” (p.195). Diante

disso, ele conclui sua proposta da noção de gozo que resguarda a

dimensão “da morte no vivo sexuado” (pulsão de morte) que impulsiona o

sujeito a uma satisfação, por meio do objeto, sempre frustrada. Portanto,

para Lacan, assim como para Freud, não há pulsão que satisfaça o sujeito,

pois, devido à hiância, o encontro com o objeto está sempre para além de

qualquer objeto da realidade.

Essa noção de gozo, proposta por Lacan, nos ajuda a compreender

como o engodo, essa forma de fantasia no laço social contemporâneo,

interpela os sujeitos a gozarem em suas posições prescritivas (Lara Junior

et al, 2017), como se o objeto pudesse ser encontrado, sendo capaz de

produzir uma entropia de gozo, a eterna busca por um objeto perdido,

repetição incessante. Supomos que o produto dessa fantasia é a produção

não só de mais-de gozar, mas também de mais-valia, como veremos a

seguir.

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

3- Engodo produzindo mais-valia e mais-de-gozar

Diante dos aspectos apresentados até aqui, podemos perceber que os

significados possíveis da palavra engodo não se resumem simplesmente às

definições conceituais de um objeto, verbo ou comportamento, mas nos

remetem a um significante que expressa uma fantasia do sujeito colocado

em uma situação política-subjetiva em que há relações não equivalentes.

Dito de outra forma, não há reconhecimento do estado de exploração de

um sujeito sobre o outro e não se estabelece, assim, um antagonismo

(Laclau e Mouffe, 2004).

O engodo como uma fantasia, portanto, não nos remete a uma

casualidade ou a um mero equívoco mental individual. O engodo trata de

uma questão política porque aponta, por meio das ações pensadas pelo

interpelador, para uma racionalidade operante no laço social em que a

relação entre as pessoas é posta na lógica do interpelador e do interpelado

que se deixa “seduzir por falsas lisonjas”. Esta é uma ilusão criada pelo

interpelador para oprimir o interpelado, mas, também, um discurso

ilusório que oprime o interpelador, tornando-o escravo do sistema capital,

confirmando a tese de Lacan de que não há Outro do Outro. Vejamos com

Lacan (1960):

Partamos da concepção do Outro como significante. Qualquer enunciado de autoridade não tem nele outra garantia senão a sua própria, pois lhe é inútil procurar por esta num outro significante, que de modo algum pode aparecer fora deste lugar. É o que formulamos ao dizer que não existe metalinguagem que possa ser falada, ou, mais aforisticamente, que não há Outro do Outro. (p. 827)

Portanto, engodo como fantasia é uma construção simbólica e

imaginária que convoca interpelador e interpelado a ocuparem posições no

laço social de sujeitos permeados por uma lógica de exploração do primeiro

pelo segundo. Nessa construção, em última instância, há uma economia

de gozo posta na tomada de posição para ambos. Nessa lógica, há uma

atuação ilusória complementar que lhes permite gozar, de preferência sem

culpa, criando o que Žižek (1999a) e Safatle (2005), baseados em Freud e

Lacan, chamaram de supereu de gozo. Essa fantasia posiciona o

interpelado gozando na satisfação instantânea com a isca e na suspensão

momentânea de suas necessidades, como vimos anteriormente. Já o

interpelador goza cinicamente tomando o interpelado como seu objeto de

autossatisfação, o que também remonta pelo mais-de-gozar uma forma

sintomal de lidar com os outros no laço social.

Para que essa relação sintomática remontada pelo mais-de-gozar se

sustente na sociedade, tanto interpelador quanto interpelado precisam

trabalhar, ou pelo menos, precisam querer trabalhar, já que sabemos o

quanto o sistema capitalista necessita dos desempregados (exército de

reserva) para se sustentar. Em última instância, o trabalho é o motor da

sociedade capitalista. É nesse tipo de relação que o engodo materializa

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

seus embustes, pois na sociedade capitalista o interpelador participa dessa

montagem sintomática gozando da mais-valia com a exploração do

trabalho e, em nome do status, ele precisa trabalhar muito para manter

sua posição. O interpelado goza assumindo a ilusão de que o trabalho na

sociedade capitalista o dignifica (Lara Junior, 2012).

Diante disso, podemos pensar que o engodo apresenta-se como uma

fantasia do sujeito, portanto, uma construção imaginária (fantasia de

completude) e simbólica (discurso de dominação e/ou subserviência) que

encontra condições estruturais no laço social para garantir subjetivamente

a subserviência do sujeito às figuras de liderança (Freud, 1921/1993) e/ou

ao Outro (Lacan, 1966/1998). É ilusório, portanto se estrutura como uma

fantasia, de forma que nessa operação há um sujeito na posição de

interpelador, (parafraseando Freud: Jesus, general, chefe...) cuja função é

(re) montar uma encenação fantasiosa destinada para o outro sujeito da

relação com a finalidade de lhe oferecer algum tipo de “cura” do

desamparo, mesmo que o preço para isso seja a entrega imolada de si

mesmo às instituições de controle (igreja, exército, empresa capitalista

etc.).

Dessa maneira, o interpelador oferece o engodo (isca) do mundo

almejado para o interpelado com a sensação de que este poderá fazer o

retorno ao “útero materno” (Freud, 1927/2001) ou até mesmo a sensação

de que o laço social é imutável e que nele todas as coordenadas foram

traçadas por um mapa ou qualquer outra entidade, perseverando-se assim

num fatalismo sem possibilidades de mudança. Portanto, nessa relação

entre interpelador e interpelado se materializa um discurso de

subsistência de uma ilusão de liberdade, pois o que se oculta é a lógica da

mais-valia para o interpelador (empresário) e do mais-de-gozar para

ambos.

Nesse sentido, percebemos uma articulação com o ritual totêmico de

Freud (1913/2005) no qual os filhos assassinavam o pai e realizavam o

banquete imaginário em que partes do pai eram distribuídas entre os

filhos, e estes, por sua vez, se sentiam “como se fossem” o pai da horda em

potencial. Pensamos que na lógica do engodo, o interpelador usa essa isca

- “como se fossem” filhos do mesmo pai – para atrair sua presa

(interpelado) para uma sensação compartilhada de que estão unidos em

nome do mesmo pai (Freud, 1921/1993) e para garantir a ele

(interpelador) a sensação de ser o próprio pai ou até mais poderoso do que

ele. Neste ponto destacamos que a montagem imaginária (“como se

fossem”) armada nos rituais totêmicos se atualiza do engodo uma vez que

os sujeitos que participam da montagem estão nela alienados

fantasiosamente.

Essa alienação dos sujeitos de si e da realidade cria uma situação

desumana tendo como primazia o gozo: injustiça, opressão, crueldade,

violência, miséria e outros tipos de sofrimento intensificados pelo sistema

capitalista. Nesse sentido, a alienação aparece com uma crueldade sem

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O engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo 163

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

precedentes, pois priva o sujeito de sua razão e do conhecimento acerca da

lógica dos meios de produção que o oprime, como aponta Lara Junior

(2014);

(...) a alienação arranca o sujeito de si mesmo, afasta-o de sua natureza real e de seus verdadeiros problemas. A alienação não está só nas ideias e sentimentos, mas na prática da exploração da classe trabalhadora. O trabalho se tornou alienado, escravizado e esmagador, pois faz o trabalhador se tornar refém de uma forma de trabalho que não o liberta da alienação, mas, ao contrário, o torna ainda mais preso à lógica da exploração de uma minoria (dona do capital) sobre a maioria. O peso da alienação faz com que os sujeitos tratem o dinheiro no sistema capitalista como entidade soberana e opressiva, com isso mantém-se a lógica de exploração capitalista, porque ninguém ousa pensar uma economia que se organize sem a lógica do capital. O sujeito alienado é lançado a destinos desumanos e, com isso, passa a tratar seu sofrimento como algo próprio de sua existência, como uma enfermidade de seu corpo, não visualizando nos modos de produção capitalista as causas de muitos de seus

sintomas (p. 108)

Ainda na perspectiva de Freud (1921/1993), em um segundo

momento, o supereu (consciência moral) e o ideal de eu passam a

representar as insígnias do pai. Nessa lógica, os filhos buscam na lei uma

forma de garantir um suposto retorno do pai da horda, “como se fosse” o

pai vivendo entre eles - identificação imaginária alienante. Dessa forma,

tentam evitar a culpa do assassinato e administrar seus gozos.

Na lógica do engodo, o laço libidinal do desejo é invertido, fazendo

com que o gozo mantenha os membros do grupo ligados entre si por meio

da violência e de extração de gozo espurco. Por isso, nesse raciocínio, o

interpelador é capaz de lançar ardis que atraem o interpelado que ainda

não foi atraído para suas ciladas. Para isso, ele se mune de discursos

ilusórios (falsas lisonjas) para que o interpelado possa se aproximar da

armadilha. Assim sendo, o interpelador se apropria de discursos ilusórios

como o da religião, psicologia e da psiquiatria, por exemplo, para que os

sujeitos se sintam convencidos em nome da religião e/ou da ciência do

dever de se submeter/adaptar à lógica dos modos de produção capitalista

(Parker 2007; Rose, 2008; Lacan, 1970/1992).

Dessa maneira, apropriados dos discursos de verdade da ciência e

religião (Lacan, 1954/2007) os capitalistas criam uma forma de laço social

que é capaz de atrair aqueles sujeitos que tentam escapar do engodo e de

manter os que já estão alienados na “cilada” de que esses interpelados só

poderão sobreviver sobre seus auspícios – não há vida fora dos domínios

do feudo, remontando a dialética do senhor e do escravo de Hegel; só

sobreviverão ao desemprego submetendo-se à lógica do capital, explicitada

por Marx (1867/1968). Nesse sentido, relembramos aqui o papel do

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164 Brendali Dias e Nadir Lara Junior

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

“capitão-do-mato” da história da escravidão do Brasil: o mestiço que não

era negro, tampouco era branco, mas tentava agir como se fosse branco,

mesmo que para isso precisasse ministrar a barbárie sobre seus iguais

(escravos), sem culpa. Articulamos esse mestiço com o atual trabalhador

assalariado que age “como se fosse” o dono do capital e trabalha à

exaustão apostando nesse engodo.

Para que o capitalismo se mantenha como um discurso hegemônico, o

Estado, a partir das leis que regulamentam o mercado, permite que os

donos do capital interpelem os sujeitos por meio do consumo. Para isso,

montam uma encenação em que o pai aparece “como se fosse” não

castrado e, assim, os sujeitos podem gozar “como se fossem” perversos

abdicando da lei e ignorando a culpa, passando a fazer uma montagem

perversa (Calligaris, 1986) e uma racionalidade cínica que se configura

como gozo espurco.

Para Safatle (2005) é Žižek quem traz essa inversão importante sobre

a análise do supereu freudiano que se estrutura como o representante da

autoridade paterna que culpabiliza o prazer sexual. Nesse sentido, o gozo

nunca foi reprimido, sempre foi exigido e o que muda é a forma de gozar,

ou seja, no capitalismo de produção havia o imperativo de gozo pelo

trabalho e acúmulo de bens duráveis; agora na sociedade capitalista de

consumo o imperativo de gozo é pelo trabalho e pelo consumo de objetos

efêmeros, substituíveis, de forma acelerada. Desta maneira, na sociedade

capitalista há o supereu que se estrutura com um imperativo de gozo

espurco que convoca os sujeitos a não reprimirem mais seus impulsos

para o consumo e para o trabalho extenuante, e eles assim se entregam

devotos a essa lógica.

Nessa relação ordenada pelo gozo, todo conflito deve ser ofuscado

para que, independentemente de qualquer normativo universal, impere o

apelo ao gozo irrestrito (interpelador e interpelado), sem considerar

qualquer outra referência posta pelos processos de socialização. Como nos

diz Marx (1867/2010) o Estado passa a operar de maneira inequívoca na

defesa dos interesses do capital, suspendendo qualquer ordem de conflito,

mantendo o controle sobre os trabalhadores e fazendo-os produzir mais-

valia sem causar atritos (greves, reivindicações, questionamentos). Ainda

sobre a mais-valia, diz ele:

Mais-valia (...) esta parte da jornada de trabalho é a que chamo de trabalho excedente (surplus labour) desprendido para ela. (...) mais-valia, que por sua vez é preciso concebê-la como uma simples materialização de tempo de trabalho excedente, como trabalho excedente materializado pura e simplesmente. A única forma que se distingue os tipos econômicos de sociedade, a sociedade escravocrata da sociedade de trabalho assalariado é a forma em que este trabalho excedente é arrancado do produtor imediato, o operário” (p.164)

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

Marx (1867/2010), em sua obra intitulada “O capital”, apresenta

vários cálculos matemáticos dando demonstrações de como a mais-valia é

arrancada do trabalhador e como este não consegue usufruir dessa

quantia de trabalho desprendida e que fica exclusivamente com o dono do

capital. Neste raciocínio a mais-valia se torna dinheiro efetivo para aquele

que explora a força de trabalho sem remunerar o trabalhador

adequadamente. Na atualidade, uma das formas de arrancar a mais-valia

do trabalhador é medicando-o e não é à toa que as indústrias

farmacêuticas estão trilhardárias. Medica-se o trabalhador para que ele

produza calado, sem reivindicar o excedente que lhe é arrancado.

Lacan estabelece uma homologia entre a mais-valia e o mais-de-gozar,

apontando que com Marx a mais-valia é denunciada como exploração de

força de trabalho no capitalismo, e com a psicanálise o mais-de-gozar é

denunciado como exploração de promessa de completude. Vejamos com

Dias (2016):

No Seminário XVI, Lacan (1968-69/2008) parte do conceito de mais-valia de Marx para tratar do conceito de objeto a enquanto mais-de-gozar, fazendo entre eles uma homologia. Ele aponta que, se a mais-valia é a extorsão da força de trabalho, tempo de trabalho pelo qual o trabalhador não é remunerado e jamais terá acesso – já que essa parte fica para o capitalista – o mais-de-gozar é colocado nos discursos como perda de gozo, uma extorsão de gozo pelo fato de o sujeito estar submetido à linguagem e por isso tornar-se impossível a tudo simbolizar, portanto, o ser falante jamais terá acesso – pois este gozo não fica para ninguém. (...) Assim como o objeto a enquanto mais-de-gozar representa uma renúncia da parcela de gozo que movimenta o desejo do sujeito e sua cadeia de significantes – por colocar o sujeito sempre em busca do objeto perdido –, a mais-valia representa uma renúncia da parcela de remuneração a um tempo de trabalho que movimenta o sistema capitalista – por colocar o sujeito em busca da

subsistência no sistema capitalista. (p.55, grifos nossos).

Tal homologia, no entanto, não coloca os termos em pé de igualdade,

pois, se o mais-de-gozar é inerente ao ser falante pela via da alienação do

sujeito à linguagem, a mais-valia é inerente apenas pela via da alienação

ao sistema capitalista. O que não permite que esses termos estejam em pé

de igualdade é que o sujeito não pode viver fora da linguagem uma vez que

entrou nela, mas pode viver fora o capitalismo, mesmo que o discurso-

engodo do Estado diga que isso não é possível.

O discurso-engodo manejado pelo Estado em sua relação com os

meios de produção capitalista não é mero equívoco, mas supõe certa

intencionalidade (do interpelador), porque arma a cilada (discurso

capitalista do pai não castrado) para interpelar os que estão fora dessa

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166 Brendali Dias e Nadir Lara Junior

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

lógica e para manter o controle sobre os que já foram pegos. Assim, essa

operação é administrada por uma racionalidade cínica.

Dessa maneira, no capitalismo o Outro é apresentado como um engodo, pois os capitalistas dizem ser esse não-castrado, sem falta, onipotente, que tudo permite, com isso “vende-se” a fantasia, por meio dos objetos de consumo, de que não há limite para o gozo. Como toda lógica capitalista, qualquer prestação de serviços tem um preço, dessa maneira, oferecer um “pai” não castrado que não regula mais a horda custa o abrir mão de um comprometimento do sujeito com seu desejo, ficando assim insaciavelmente numa demanda interminável. Essa construção é ideológica, pois existe uma dupla relação cínica. Daquele sujeito que vende o pai não castrado, pois, em última instância, ele sabe que há a castração, em segundo aqueles que compram e gozam na posição ilusória de que possuem a opção de

escolha. (Lara Junior, 2010, p.71)

Lara Junior (2010) aponta que na lógica colocada por Lacan (1972,

inédito) no discurso capitalista, o sujeito abandona seu desejo e passa a

aderir a uma forma de relação social à maneira do capitalismo, o qual

pauta que a relação entre sujeitos será mediada pelos objetos de consumo.

Dessa maneira, temos o engodo como uma fantasia do sujeito mantido e

administrado pelo Estado e pelas organizações capitalistas.

4- Os mecanismos de manutenção do engodo como fantasia do sujeito

Buscando responder algumas indagações aqui propostas, começaremos

com a hipótese de que a lógica da ideologia capitalista, além de contar com

a mais-valia por meio do trabalho e dos modos de produção capitalista,

muito bem explicitados por Marx (1867/2010), conta também com uma

economia libidinal posta em jogo, como Lacan apresenta, especialmente no

seminário XVI e XVII em que o capitalismo se ajusta à economia libidinal

pré-existente a ele. Ou seja, qualquer discurso deve ajustar-se a essa

economia libidinal não sendo o discurso que “moldaria” a economia

libidinal. Esta economia começa a se fazer compreensível quando

buscamos uma explicação para o engodo nas posições de sujeitos postos

no discurso do mestre, discurso fundador do laço social.

Nessa operação discursiva, o mestre (aquele que interpela) omite por

meio da barra o fato de que é castrado ($). O mestre, representante da

classe dominante, portanto dos interesses do capital (interpelador), arma

sua cilada: oferece ao trabalhador um pai “como se fosse” não castrado

para que o trabalhador o tenha em seu horizonte a ser buscado, ou seja,

“gozo puro” (isca) dando a sensação de plenitude, completude da falta

estrutural, fazendo o interpelado pensar que pode chegar a tal plenitude. O

trabalhador (interpelado) que morde a isca, goza obedecendo, trabalhando

“como se fosse” o senhor de si mesmo – um empreendedor; profissional

liberal; prestador de serviço; colaborador – com isso ele mantém a relação

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O engodo como uma fantasia do laço social contemporâneo 167

Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

de exploração como parte de sua realidade para, assim, permanecer junto

do pai e gozar da suposta proteção do interpelador.

Também no discurso universitário há uma relação desmedida entre o

interpelador (douto) e o interpelado (estudante). Nesse discurso é delegado

ao douto a capacidade de saber sobre a verdade. Somente o douto

proclama a verdade que o estudante ou o fiel deve seguir.

Nesse discurso, portanto, o douto veiculará um saber posto como absoluto e inquestionável para o outro (a) que se coloca como objeto a ser tomado alienadamente ao saber veiculado. Como produto dessa relação discursiva temos o sujeito barrado, alienado e desejante de um saber sempre

mais (Lara Junior, 2010, p.106).

O engodo está em jogo nesse discurso da universidade porque o douto

interpela o estudante como um despossuído de qualquer saber e poder. O

produto dessas relações discursivas insidiosas é o esvaziamento da crítica

e do questionamento. Com isso as ideologias mais absurdas podem se

tornar a própria realidade dos sujeitos já que assim conseguem justificar

para os outros e ao Outro sua sina de subserviência. Nessa mesma lógica,

Žižek nos diz:

Uma ideologia só ‘nos pega’ para valer quando não sentimos nenhuma oposição entre ela e a realidade – isto é, quando a ideologia consegue determinar o modo de nossa experiência cotidiana da própria realidade. (...) uma ideologia logra pleno êxito quando até os fatos que à primeira vista a contradizem começam a funcionar como argumentos a seu

favor (1999, p.326).

Nesse sentido, a ideologia apresentada por Žižek nos permite pensar

que o engodo (ardil para conseguir a presa) pode funcionar como regra na

relação do Estado com seus cidadãos e desses com seus pares. Na

micropolítica, cada qual faz sua falsa lisonja para induzir o outro para sua

armadilha, fazendo assim operar a racionalidade do engodo em seu pleno

êxito. Dessa forma, todos podem gozar “como se fossem” o mestre ou o

douto nas diversas instituições que já regulam essa forma de obtenção de

gozo espurco.

Seguindo esse raciocínio, relembramos o panóptico de Bentham

citado por Foucault (2009) que nos mostra como as formas de controle

chegam a um determinado ponto que não mais precisam do guarda no alto

da torre para controlar os sujeitos. O controle internalizado faz deslizar as

cadeias significantes em que uns vigiam os outros. No engodo, a posição

de interpelador não fica restrita ao dono do capital (burguês descrito por

Marx e Engels), mas, se dá por meio de uma política de redistribuição de

poder, na qual os sujeitos assalariados, tomados pelo engodo, passam

ardilosamente a interpelar os seus pares dentro dessa mesma lógica

insidiosa, para se sentirem parte do laço social capitalista.

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Com isso, a lógica do capital cumpre sua função de capitalizar poder,

para que uns dominem os outros sem que, necessariamente, haja a figura

encarnada do senhor capitalista no “alto da torre”. Tal figura talvez seja

representada pelo mercado, por ser mais importante que as pessoas nesse

sistema. Assim, os trabalhadores tomados por essa racionalidade passam

a se tratar como nada, despossuídos, objetos de gozo imediato uns dos

outros (Lara Junior, 2012), ou seja, tornam-se rivais

O gozo necessita de repetição para que se inscreva enquanto tal, e

Lacan (1969-1970/1992) lembra que Freud articula a repetição com a

pulsão de morte, entendida como defeito, fracasso. Nessa lógica, em

qualquer repetição, algo se perde (velocidade, força etc.). Para a

psicanálise, na repetição há uma perda de gozo, e é no lugar dessa perda

recolhida da repetição que aparece a função do objeto a (objeto para

sempre perdido).

De acordo com a teoria psicanalítica, o saber é visto como meio de

gozo, pois trabalhando se produz entropia. É nesse despedaçamento que o

significante se introduz e, por meio dos discursos, a forma de

aparelhamento de gozo. A entropia busca recuperar um mais-de-gozar que

aponta para uma perda, um número negativo que insiste em repetir e fazer

gozar.

Tal saber é meio de gozo. E quando ele trabalha, repito, o que produz é entropia. Essa entropia, esse ponto de perda, é o único ponto, o único ponto regular por onde temos acesso ao que está em jogo no gozo. Nisto se traduz, se arremata e se motiva o que pertence à incidência do significante no

destino do ser falante (Lacan 1969-1970/1992:48).

Portanto, o discurso do engodo se torna o referente identificatório na

sociedade capitalista e, para isso, cada vez mais os mestres e doutos estão

investidos de saber e poder para determinar o engodo como regra de

sociabilidade no imperativo: “Goze no engodo!”

Considerações finais

Na política da psicanálise e no marxismo a relação é suposta entre sujeitos

($ - $). Na política da psicanálise e no marxismo a relação é suposta entre

sujeitos ($ - $). Já na sociedade capitalista, essa operação não é possível

porque se trata de uma relação de exploração, de poder e, portanto,

desmedida, a saber: entre Patrão e Empregado (P-E).

Para que o engodo funcione é preciso que o sujeito (da psicanálise e

do marxismo) seja interpelado como sujeito concreto (patrão e/ou

empregado). Para que pareça que o interpelado, enquanto sujeito, tem

alguma dignidade, é posta uma cilada ideológica em que o sujeito passa a

acreditar piamente que nesse laço social, ser patrão e/ou empregado é a

única forma de viver dignamente. Assim, trabalhar exaustivamente se

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

torna a maneira de dignificar essa lógica fantasmática de entrega ablativa

ao acúmulo de dinheiro às custas da vida humana.

Como produto dessa relação P-E temos o “cliente”, aquele que pensa

que tudo pode ser comprado. Pensamos que a psicologia e a psiquiatria, ao

invés de questionarem esse tipo de relação, acabam respondendo à

demanda incessante da lógica capitalista, criando categorias no engodo:

Psicólogo (prestador de serviços) e paciente (cliente). Algumas psicologias e

psiquiatrias se prestam a consolidar essas posições de sujeitos, quando

oferecem sessões rápidas e com número determinado; medicamentos

“milagrosos” que curam a tristeza e o desamparo; criação de códigos

internacionais de doenças, que determinam e enquadram a dor e o

sofrimento da alma em prescrições, que aprisionam o sujeito em estigmas

e preconceitos (como o DSM V). O engodo provê um discurso de que tudo

isso é feito em nome da ciência, portanto da verdade.

Pensamos que o engodo, a cada dia em nossa sociedade, vai se

tornando regra de sociabilidade em que o gozo se torna o referente

identificatório entre sujeitos. Na lógica do engodo, as pessoas são atraídas

de maneira alienada pelo princípio do prazer, no entanto, encontram o

gozo como forma de sofrimento.

Diante dessa afirmação, supomos que o engodo não é um erro dos

envolvidos nessa alienação. O que está em jogo nessa operação

fantasmática é o repúdio da realidade em que se vive e a busca de um

amparo prometido (do interpelado) por uma figura encarnada do pai (o

interpelador).

Portanto, em última instância evitar a realidade e o sofrimento e

buscar pelo amor de um suposto pai da horda constroem possibilidades

para que o interpelado se atraia ainda pelo engodo, buscando encobrir a

perda de gozo e revestir-se das ilusões desse engodo nas malhas finas da

mídia do capitalismo.

Quem ganha com isso? Os capitalistas, pois embolsam a mais-valia.

No entanto, todos perdem, pois ao mais-de-gozar, ninguém tem acesso.

Explicamos: se a psicanálise em intensão visa, com o trabalho de análise

clínica, esvaziar a consistência imaginária dos discursos de dominação

presentes na vida do sujeito, a psicanálise em extensão visa esvaziar a

consistência imaginária dos discursos de dominação presentes no laço

social, na atualidade, no laço do sistema capitalista.

Não visamos neste texto desresponsabilizar os capitalistas

representantes das classes dominantes e donos dos meios de produção

pela fomentação do capitalismo com toda sua nocividade, mas apontamos

que eles não querem se dar conta de sua perda enquanto ser falante, pois

também estão submetidos à falta estrutural representada pelo objeto a. O

capitalista, em alguma medida, percebe essa perda, e talvez o engodo seja

repetir, inconscientemente, a si mesmo: se não posso ficar com o mais-de-

gozar, pelo menos fico com a mais-valia. Já os trabalhadores, que aderem

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Teoría y Crítica de la Psicología 13 (2019)

à lógica capitalista, almejam a mais-valia e criam o engodo de que um dia

a terão.

Como vimos, a teoria psicanalítica propõe a desconstrução do

engodo na clínica e na política, a partir da psicanálise sustentada pelo

discurso do analista, o que já é possível verificar na clínica. Resta-nos a

questão sobre como os psicanalistas podem se mobilizar e contribuir para

a desconstrução do engodo como uma fantasia do sujeito no laço social,

diante de uma tendência tão totalitária como é a do sistema capitalista.

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Fecha de recepción: 2 de julio 2018

Fecha de aceptación: 10 de mayo 2019