O divã do pobre - Guattari

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O Divã do Pobre

Escrito por psicoprTer, 26 de Abril de 2005 18:13 - Última atualização Sáb, 29 de Agosto de 2009 11:57

Felix Guattari

 

GUATTARI, Félix. O Divã do Pobre. In: Psicanálise e Cinema. Coletânea do nº 23 da RevistaCommunications. Comunicação/2. Lisboa : Relógio d' Água, 1984.

 

Os psicanalistas sempre desconfiaram um pouco do cinema e voltaram de preferência aatenção para outras formas de expressão. O inverso não é, no entanto, verdadeiro. Foraminúmeros os apelos do cinema à psicanálise, a começar pela proposta de Mr. Goldwin a Freud:

100 mil dólares para tratar os amores célebres! Esta dissimetria não se deve exclusivamente aquestões de respeitabilidade.

 Está profundamente relacionada com o facto da psicanálise nada poder compreender dosprocessos inconscientes desencadeados pelo cinema. A psicanálise já tentou compreender asanalogias formais entre o sonho e o filme - para René Laforgue tratar-se-ia de uma espécie desonho colectivo, para Lebovici de um sonho para fazer sonhar. A psicanálise tentou mesmoassimilar a sintagmática fílmica ao processo primário, mas nunca se aproximou, e não foi poracaso, daquilo que faz a especificidade do cinema: uma atitude de modelação do imaginário

social irredutível aos modelos familiaristas e edipianos, mesmo quando se pôsdeliberadamente ao seu serviço. Por mais que, actualmente, a psicanálise se encha delinguística e de matemática, continua a repisar as mesmas generalidades sobre o indivíduo e afamília, enquanto o cinema está ligado ao conjunto do campo social e à história. Qualquercoisa de importante se está a passar no cinema. Ele é o local de investimento de cargaslibidinais fantásticas, por exemplo, daquelas que se estabelecem ao redor dessa espécie decomplexos que constituem o western racista, o nazismo e a resistência, ao american way life ,etc. E é preciso concordar que em tudo isto Sófocles já não desempenha nenhum papel. Ocinema transformou-se numa gigantesca máquina de modelar a libido social, enquanto apsicanálise nunca passou de um pequeno artesanato reservado a elites seleccionadas.

Vamos ao cinema para suspender por algum tempo os modos de comunicação habituais. Oconjunto de elementos que constituem essa situação concorre, ao que parece, para que estasuspensão seja possível. Independentemente do carácter alienante do conteúdo de um filme

ou da sua forma de expressão, o que ele visa fundamentalmente é a produção de um certo tipode comportamento que designarei por performance cinematográfica ( 1 ). E é precisamente

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porque o cinema é capaz de mobilizar a libido sobre este tipo deperformance 

que pode colocar-se ao serviço do que Mikel Dufrenn chamou «inconsciente habitação» (2

). Considerados sob o ângulo da repressão inconsciente aperformance 

cinematográfica e aperformance 

psicanalítica (o «acto analítico») talvez mereçam ser comparados. A psicanálise dabelle époque 

fez crer durante muito tempo que se propunha libertar as pulsões dando-lhes a palavra. Naverdade, só aceitou afastar as tenazes do discurso dominante na exacta medida em quepretendia dotar, adaptar, disciplinar estas pulsões à imagem de um certo tipo de sociedademuito melhor do que poderia fazer qualquer tipo de repressão vulgar. Afinal de contas o

discurso divulgado nas sessões de análise não é muito mais «libertado» do que aquele que sevive nas sessões de cinema. A pretensa liberdade de associação de idéias não passa de umaratoeira, de um logro, que mascara uma programação secreta, uma modelação secreta dosenunciados. Na cena analítica assim como noécran 

, pretende-se que nenhuma produção semiótica do desejo tenha uma incidência real. Tanto opequeno cinema da psicanálise como a psicanálise de massas do cinemas, proscrevem aspassagens à acção, osacting-out 

. Os psicanalistas e em certa medida os cineastas gostariam de ser considerados como

criaturas fora do tempo e do espaço, como puros criadores, neutros, apolíticos,irresponsáveis...

Em certos sentido talvez tenham razão, já que de facto não tem realmente domínio sobre os

processos de modulação de que são agentes. A grelha de leitura psicanalítica pertence hojetanto ao analista como ao analisado. Ela cola-se à pele de qualquer um - «cometeste umlapso» - e integra-se nas estratégias intersubjectivas o mesmo nos códigos perceptivos(proferem-se interpretações simbólicas como ameaças, vêem-se «falos», retornos ao seiomaterno, etc.). A interpretação funciona agora tão naturalmente que para um psicanalistaprevenido a melhor e mais segura é o silêncio. Um silêncio sistematicamente baptizado deescuta analítica. Sobre o écran do meu silêncio os teus enunciados assumirão o seu própriorelevo. Cada qual com seu cinema... Na verdade o vazio da escuta responde a um desejoesvaziado de qualquer conteúdo, a um desejo de nada, a uma impotência radical e nestascondições não é de espantar que o complexo de castração tenha sido transformado no

objectivo último de cura, mesmo na sua referência constante, na pontuação de cada uma dassuas sequências, no cursor que remete perpetuamente o desejo para o grau zero. O

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psicanalista, assim como o cineasta é conduzido pelo seu sujeito. O que se espera tanto de umcomo de outro é a confecção de um certo tipo de droga que, apesar de ser tecnologicamentemais sofisticado que o «haxe» tradicional, não deixa de ter como função a transformação domodo de subjectivação dos que a consomem. Capta-se a energia do desejo para a voltar

contra si própria, para a anestesiar e separar do mundo exterior de modo que deixe deameaçar a organização e os valores do sistema social dominante. Mas o que pretendíamosdemonstrar é que estas drogas não são da mesma natureza; globalmente visam os mesmosobjectivos, mas a micro-política do desejo que põem em acção, as combinações semióticasnas quais se apoiam, são totalmente diferentes. Imagina-se talvez que estas críticas visamapenas certo tipo de análise e não abrangem a corrente estruturalista na medida em que esta já não considera a interpretação deva depender de paradigmas de conteúdo - como era o casoda teoria clássica dos complexos parentais - mas sim de um jogo de universais significantesindependentes das significações que possam engendrar. Mas poderemos realmente acreditarna psicanálise estruturalista quando ela diz que renunciou a modelar e tornar traduzíveis as

produções do desejo? O inconsciente dos freudiamos ortodoxos organizava-se como umcomplexo cristalizando a libido numa espécie de elementos hecterogéneos: biológicos, sociais,familiares, éticos, etc. O complexo de Édipo, por exemplo, abstraindo dos seus complementostraumáticos real: ou imaginários, baseava-se na divisão de sexos ou dos grupos etários.Considerava-se serem essas as bases objectiva a partir das quais a libido deveria exprimir-se efinalizar-se. Ainda hoje uma interrogação política sobre estas evidências poderá parecer amuitos despropositada. No entanto, toda gente conhece inúmeras situações em que a libidorecusa estas evidências, contorna a divisão de sexos, ignora as interdições ligadas àseparação dos grupos etários, confunde as pessoas como que por prazer, compõe a sebel-prazer as constelações de traços faciais a que se fixa. Existem mesmo situações em que

sistematicamente tende a passar ao largo das oposições exclusivas entre o sujeito e o objecto,o Ego e o outro. Temos de considerar, por definição, que estas são apenas situaçõesperversas, marginais ou patológicas, que precisam de ser adaptadas e interpretadas comoreferência às «boas normas»? É verdade que, na sua origem, o estruturalismo lacaniano seergue contra um certo realismo ingênuo, em particular nas questões centradas no narcisismo ena psicose e que pretendia romper radicalmente com uma prática de cura centrada sobro arevelação do Ego. Mas apesar de desneutralizar o inconsciente, libertando os seus objectos deuma psicogênese muito restrita, e escriturando-os como uma «linguagem» (3), não conseguiu romper as suas amarras personológicas e abrir-se ao campo social aos

fluxos, cósmicos e semióticos de variada natureza. Já se deixou de remeter as produções dodesejo para um conjunto de complexos em que tudo encaixa, mas continua a interpretar-secada uma das suas conexões a partir de uma e mesma lógica do significante cujas chavesseriam o falo e a castração. Renunciou-se à mecânica sumária das interpretações do conteúdo(«o guarda-chuva quer dizer...») e das fases do desenvolvimento (os famosos «retornos à faseanal...»), etc. Já não se trata mais do pai e da mãe; fala-se agora do nome do pai, do palos edo grande Outro mas continua-se distante, afastado da micro-política do desejo, na qual sebaseia, por exemplo, a diferenciação social dos sexos ou a alienação da criança nos ghetos dofamiliarismo. As lutas do desejo não poderiam ser circunscritas apenas ao campo dosignificante - mesmo no caso da pura neurose significante como a neurose obsessiva - porque

elas extravasam sempre os campos somáticos, sociais e econômicos, etc. E, a menos que seconsidere que o significante se encontra em toda e qualquer coisa, temos que admitir que

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restringimos singularmente o papel do inconsciente ao ponto de o considerarmos apenas sob oângulo dos encadeamentos significantes que o põem em acção. «O inconsciente estrutura-secomo uma linguagem». Claro! Mas por quem? Pela família, pela caserna, pela fábrica, pelaescola, pelo cinema e, em casos especiais, pela psiquiatria e pela psicanálise.

Quando o submetemos, quando chegamos a esmagar a «polivocidade» dos seus modos deexpressão semióticos, quando encadeamos um certo tipo de maquinismo semiológico, entãosim, o inconsciente acaba por se estruturar como linguagem! E torna-se mesmo bem

comportado. E põem-se a falar a língua do sistema dominante. Não a língua quotidiana masuma língua especial, sublimada, psicanalisada. O inconsciente não somente se resigna com asua alienação nos encadeamentos significantes como ainda solicita cada vez mais significante.Já nada quer saber do resto do mundo e dos outros modos de semiotização. Qualquerproblema mais atormentador encontrará, se não a solução, pelo menos uma tranquilizantesuspensão nos jogos do significante. O que resta, por exemplo, neste nível do significante, daalienação milenar das mulheres pelos homens? Para a língua dos linguistas, vestígiosinocentes, como a oposição do masculino e do feminino e para a dos psicanalistas, miragensao redor da presença-ausência do falo. A cada tipo de performance  linguística, a cada cotaçãodo «grau de gramaticalidade», o enunciado corresponde a uma certa situação de poder. A

estrutura do significante nunca é completamente redutível a uma pura lógica matemática.Liga-se sempre às diversas máquinas sociais repressivas. Uma teoria dos universais tanto nalinguística como na economia, na antropologia como na psicanálise só conseguirá impedir umaexploração real do inconsciente, quer dizer, das constelações semióticas dequalquer natureza 

, das conexões de fluxos dequalquer natureza 

, das relações de força e das restrições dequalquer natureza 

que constituem as combinações do desejo.

A psicanálise estruturalista não poderá ensinar-nos muito mais sobre os mecanismosinconscientes, que são postos em acção pelo cinema ao nível da sua organizaçãosintagmática, do que a psicanálise ortodoxa o fez ao nível dos seus conteúdos semânticos.

Mas talvez o próprio cinema pudesse ajudar-nos a compreender a pragmática dosinvestimentos inconscientes no campo social. Com efeito, o inconsciente no cinema não se

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manifesta da mesma forma que no divã: escapa parcialmente à ditadura do significante, não éredutível a um facto de língua, não respeita (como continua a fazê-lo a transferênciapsicanalítica) a dicotomia clássica da comunicação entre o locutor o auditor. Aliás, serianecessário colocarmos a questão de saber se esta é simplesmente posta entre parêntesis ou

se se torna necessário reexaminar o conjunto das relações entre o discurso e a comunicação;talvez, no fim de contas, a comunicação discernível entre um locutor e o auditor não seja maisque um caso particular, um caso limite, do exercício do discurso; talvez o efeito dedesubjectivação e de desinvidualização da enunciação que são produzidos pelo cinema ou porsituações similares (drogas, sonhos, paixões, criações, delírios, etc.) representem apenascasos excepcionais do caso mais geral que se supõe ser o da comunicação intersubjectiva«normal» e da consciência «racional» das relações sujeito-objecto? Aqui é a própria idéia deum sujeito transcendental da enunciação que deveria ser posta em questão e correlativamentea separação entre o discurso e a língua e a dependência dos diversos modos de performancessemióticas em relação a uma pretensa competência semiológica universal. O sujeito

consciente de si mesmo, «dono de si e do universo», deveria ser então considerado como umsimples caso particular - como uma espécie de loucura normal. A ilusão consiste em crer queexiste um sujeito único, autônomo, correspondente ao indivíduo, quando o que está em jogo ésempre uma multidão de modos de subjectivização e de semiotização. É claro que não é porisso que o cinema escapa da contaminação pelas significações do poder, longe disso! Mas ascoisas não se passam com ele do mesmo modo do que com a psicanálise ou com as técnicasartísticas bem policiadas. O inconsciente no cinema manifesta-se a partir de combinaçõessemióticas irredutíveis a uma concatenação sintagmática que o disciplinaria mecanicamente,que o estruturaria segundo planos (de expressão e de conteúdo) rigorosamente formalizados.O cinema é feito de elos semióticos assignificantes, de intensidades, de movimentos, de

multiplicidades, que tendem fundamentalmente a escapar ao enquadramento significante e quese rodeiam apenas num segundo momento pela sintagmática fílmica que lhe fixa gêneros,cristaliza sobre eles personagens estereótipos comportamentais de maneira ahomogeneizá-los com os campos semânticos dominantes ( 4 ). Este excessode expressão sobre o conteúdo marca certamente o limite de uma comparação possível entrea repressão do inconsciente no cinema e na psicanálise. Um e outro seguemfundamentalmente a mesma política mas é diferente, tanto que o que está em jogo, como osmeios utilizados. A clientela do psicanalista presta-se por si própria à acção de reduzir osignificante, enquanto o cinema deverá por seu lado, manter-se em permanente escuta dasmutações do imaginário social e, por outro, mobilizar toda uma série de poderes e de censuras

para vencer a proliferação inconsciente que ele próprio ameaça desencadear. A linguagem emcinema não funciona da mesma maneira que na psicanálise; não faz a lei, é apenas mais umentre outros meios, um instrumento dentro de uma orquestração semiótica complexa. Oscomponentes semióticos no filme resvalam uns pelos outros sem nunca se fixarem e seestabilizarem, por exemplo, numa sintaxe profunda dos conteúdos latentes e dos sistemastransformacionais que chegariam à superfície como conteúdos manifestos. Significaçõesracionais, emotivas, sexuais - eu preferiria dizer intensidades - são constantemente veiculadasno cinema por «traços de matéria de expressão heterogênea» (retomando de Christian Metzuma fórmula de que ele próprio forjou a partir de Hjelmslev). Os códigos emaranham-se semque nenhum deles consiga dominar os outros, sem constituir «substância» significante.

Passa-se num vaivém contínuo de códigos perceptivos a códigos de denotativos, musicais,conotativos, retóricos, tecnológicos, econômicos, sociológicos, etc. (

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5). Umberto Eco já tinha chamado a atenção para e facto de o cinema não se submeter a umsistema de dupla articulação e isto tinha-o conduzido a tentar encontrar uma outra. Mas semdúvida é preferível seguir Metz quando ele considera que o cinema escapa a todo o sistema de

dupla articulação (pela minha parte acrescentaria, a todo o sistema elementar de codificaçãosignificativa). As significações no cinema não se codificam directamente numa máquina queentrecruza eixos sintagmáticos e eixos paradigmáticos, mas derivam sempre, num segundomomento, de restrições exteriores que as modelam. Se o cinema mudo, por exemplo, pôdeexprimir talvez de uma maneira muito mais autêntica do que o falado as intensidades do desejonas suas relações com o campo social, não é porque fosse menos rico no plano da expressão,mas sim porque o argumento significante ainda não havia tomado posse da imagem e quenestas condições, o capitalismo ainda não havia tirado dele todo o proveito que poderia. Asinvenções sucessivas do cinema falado, da cor, da televisão, etc., na medida em queenriqueciam as possibilidades de expressão do desejo, levaram o poder a reforçar o seu

controle sobre o cinema e mesmo a servir-se dele como instrumento privilegiado. Éinteressante sob este ponto de vista constatar até que ponto a televisão não só absorveu ocinema como ainda foi obrigada a sujeitar-se a fórmula do filme cuja potência, por isso mesmo,nunca foi tão grande.

O cinema não é, portanto, apenas uma droga a baixo preço. A sua acção inconsciente éprofunda, talvez mais do que em qualquer outro meio de expressão. A seu lado a psicanálisepouco representa!

O efeito de desubjectivação na análise, não consegue abolir, como o faz parcialmente ocinema, a individualização personológica da enunciação. Na psicanálise, falamos o discursopróprio da análise; dizemos a alguém o que pensamos que ele gostaria de ouvir, alienamo-nosperante ele. No cinema já não temos palavra. Ele substitui-nos na fala, fornecendo-nos odiscurso que a indústria cinematográfica pensa que gostaríamos de ouvir ( 6 ).

abolição provocada pelo facto de sermos tratados como uma máquina. e o essencial não é o

que ela diz, mas essa espécie de vertigem de abolição causada pelo facto de sermos tratadoscomo uma máquina.

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Como as pessoas se encontram no estado de dissolução e como tudo se passa semtestemunhas, não temos vergonha em nos abandonarmos desse modo. Mais uma vez aqui oimportante não é a semântica ou sintaxe do filme, mas os componentes pragmáticos da perfor 

mance 

cinematográfica. Pagamos o lugar no divã para nos fazermos invadir pela presença silenciosade um outro, se possível alguém distinto, alguém que tenha um estatuto nitidamente superiorao nosso - e pagamos um lugar no cinema para nos fazermos invadir por uma qualquerpessoa, e para nos deixarmos levar numa qualquer aventura, durante encontros que em

princípio, não tem amanhã. Em princípio! Porque de facto a modelação que resulta destavertigem a baixo preço não passa sem deixar traços: o inconsciente fica povoado de índios, decow-boys 

, degangsters 

, de polícias, de Belmondos, de Marylin Monroes...é como o tabaco e a cocaína, cujos efeitossó notamos - se é que alguma vez o conseguimos - quando já estamos completamenteviciados. E esta droga é hoje massivamente administrada às crianças, antes mesmo deaprenderem a linguagem.

Mas não estará precisamente a vantagem de uma cura psicanalítica na possibilidade de evitaruma tal promiscuidade? A interpretação e a transferência não têm precisamente por funçãofiltrar e selecionar o bom inconsciente do mau inconsciente? Não somos dirigidos, nãotrabalhamos em tais circunstâncias com uma rede? Infelizmente essa rede é talvez ainda mais

alienante que qualquer psicanálise selvagem! À saída do filme somos obrigados a acordar e aparar, em maior ou menor medida, o nosso próprio cinema - toda a realidade social se ocupadisso. Mas a sessão de psicanálise torna-se interminável e transborda para toda a nossa vida.Geralmente a performance cinematográfica é apenas vivida como uma simples distracção,enquanto que a cura psicanalítica - e isso vale mesmo para os atingidos por neuroses - setornou uma espécie de promoção social. É geralmente acompanhada pelo sentimento e quenos estamos a tornar qualquer coisa de semelhante a um especialista do inconsciente,especialista muitas vezes tão envenenado pelo que o rodeia como os outros especialistas doque quer que seja (por exemplo os do cinema). A alienação pela psicanálise advém do modoparticular de subjectivação que produz e que se organiza em torno de um sujeito - para um -

outro, um sujeito personológico, sobreadaptado, sobre-ligado às práticas significantes dosistema. A projecção cinematográfica, pelo contrário, desterritorializa as coordenadas

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perceptivas e deicticas ( 7 ). Sem o suporte da presença de umoutro, a subjectivação tende a tornar-se do tipo alucinatório, não se concentra mais sobre umsujeito, estilhaça-se numa multiplicidade de pólos mesmo quando se fixa apenas numpersonagem. Não se trata, para falar com rigor, já do sujeito da enunciação, porque o que é

emitido por estes pólos não é apenas um discurso, mas intensidade de toda a natureza,constelações de traços faciais, cristalização de afectos... Mas ainda as pupilas semióticas doinconsciente não tiveram sequer tempo de ser incitadas, e já o filme se ocupa emcondicioná-las e subordiná-las à massa semiológica do sistema (ex.: «o objecto de amor ésempre o equivalente a uma propriedade privada»). O inconsciente torna-se uma espécie deterritório ocupado, depois de ter sido desnudado. Até os antigos deuses da família sãoabalados, eliminados ou assimilados. É que a sua existência está ligada a um certo tipo deterritorialização da pessoa, a uma certa semiologia da significação. As conjunçõessemiológicas do cinema passam através das pessoas e da linguagem da comunicação normalque utilizamos na escola e no trabalho. Desterritorializam todas as representações. Mesmo

quando parecem dar a palavra a um personagem «normal», a um homem ou a uma mulher oua uma criança, trata-se sempre de uma reconstituição, de umamarionette 

, de um modelo fantasmal, de um «invasor» que está pronto a colocar-se ao inconsciente e acontrolá-lo. Não levamos para o cinema, como o fazemos para a psicanálise, as nossaslembranças de, infância, o nosso pai ou a nossa mãe. Mas depois de sairmos não podemosdeixar de aplicar-lhes as produções do inconsciente cinematográfico. O pequeno teatroedipiano da família não resiste às injecções destas cápsulas de narratividade que constituem ofilme. Toda a gente passou pela experiência de como o trabalho do filme prosseguiudirectamente no do sonho - e pelo meu lado notei que a interacção era tanto mais forte quanto

o filme me tinha parecido menos bom. Isto não quer dizer que o cinema não seja também elefamiliar, edipiano e reaccionário; que não trabalhe na mesma direcção fundamental dapsicanálise. Mas não o faz da mesma maneira. Não se contenta em rebater as produções dodesejo sobre os encadeamentos significantes. Leva a cabo um psicanálise de massa, procuraadaptar as pessoas não aos modelos ultrapassados, arcaicos, do freudismo mas ao que estãoimplicados na produção capitalista (ou socialista burocrática). E isto sucede mesmo, insistimos,quando reconstitui os modelos do velho tempo da família tradicional. Os meios «analíticos» docinema são mais ricos, mais perigosos que os da psicanálise. Mas pode imaginar-se emcontrapartida que poderiam também abrir-se a outras práticas. Um cinema de combate é aindapossível, quando pode conceber, no actual estado das coisas, a possibilidade de uma

psicanálise revolucionária. Paradoxalmente, o inconsciente psicanalítico ou o inconscienteliterário - de resto eles derivam um do outro - é sempre um inconsciente em segunda mão. Odiscurso de análise constitui-se em torno dos mitos analíticos. Os mitos individuais devemenquadrar-se nesses mitos de referência. Os mitos do cinema não dispõem desse sistema demeta-mito e a gama dos meios semióticos de que dispõe entra em conexão directa com osprocessos de semiotização do espectador. Numa palavra, a linguagem do cinema é viva,enquanto que a psicanálise já não fala, desde a muito, senão uma língua morta. Do cinemapodemos esperar o melhor ou o pior, ao passo que da psicanálise já não podemos esperargrande coisa. Ainda se podem produzir bons filmes, mesmo em condições comerciaisadversas, filmes que modificam as combinações de desejo, que quebram os esteriotipos, que

abrem o futuro, enquanto há muito já que não existem boas sessões de psicanálise, nem boasdescobertas, nem bons livros psicanalítico.

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GUATTARI, Félix. O Divã do Pobre. In: Psicanálise e Cinema. Coletânea do nº 23 daRevista Communications. Comunicação/2. Lisboa : Relógio d' Água, 1984.

1 Poder-se-ia falar aqui do filme «Viewing-acts» por simetria com os «Speech-acts»estudados por J. Searle.

2 «Oferecem-vos belas imagens, mas para vos cevar»

«Ao mesmo tempo que pensamos regalar-nos absorvemos a ideologia necessária à

reprodução das relações de produção. Simulam-nos a realidade histórica, mas escondem-nasob uma verosimilhança convencional, que não é apenas tolerável mas fascinante. De talmodo, que já não tenhamos necessidade de sonhar nem o direito de o fazer. Porque os nossossonhos poderiam ser inconformistas. Oferecem-nos um sonho, pronto a servir, que nãoperturbará nada. Fantasmas à medida, uma amável fantasmagoria que nos põe de acordo como vosso inconsciente porque é suposto que é preciso dar-lhes o que lhe é devido, desde quesejamos suficientemente sábios para reclamar dele e reclamar coisas para ele. O cinema hojetem à vossa disposição um inconsciente caseiro perfeitamente ideologizado.» (Mikl Duffrennein: «Cinema: Teorias, Leituras» - 1963).

 

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  3 Com a sua teoria do objecto pequeno, Lacan tratou os objectos parciais como entidadeslógico-matemáticas.(«Há uma mátema da psicanálise»).

4 Seria necessário retomar aqui a análise de Betetini e de Casetti que distingue a noção deiconicidade e a de analogismos. A sintagmática fílmica procede de certo modo à analogizaçãodos ícones que são veiculados pelo inconsciente. Ver «A semiologia dos meios de

comunicação audio-vísuais e o problema da analogia», Cinema: Teorias, Leituras. inKlincksieck, 1963.

4 Seria necessário retomar aqui a análise de Betetini e de Casetti que distingue a noção

de iconicidade e a de analogismos. A sintagmática fílmica procede de certo modo àanalogização dos ícones que são veiculados pelo inconsciente. Ver «A semiologia dos meiosde comunicação audio-vísuais e o problema da analogia», Cinema: Teorias, Leituras. inKlincksieck, 1963.

5 Metz propõe o recenseamento das matérias de expressão apresentadas pelo filme:

- o tecido fônico da expressão, que remete para a linguagem falada (e que se poderiaclassificar nas semiologias significantes);

- o tecido sonoro mas não fônico que reenvia para a música instrumental (semiologiaassignificante);

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- o tecido visual mas não colorido que remete para a fotografia a negro e branco (semióticamista simbólica e assignificante);

- os gestos e os movimentos do corpo humano, etc... (semiologia simbólica), in Linguagem eCinema, Paris. Laluce, 19.

6 O psicanalista está um pouco na posição do espectador num cinema. Assiste aodesenvolvimento de uma montagem que é fabricada em sua intenção.

7 Com a televisão, o efeito de desterritorialização parece atenuado, mas é na verdadetalvez ainda mais insidioso: mergulhamos num mínimo de luz, a máquina está à nossa frentecomo se fosse um interlocutor amigável, estamos em família. visitamos os abismos doinconsciente, depois passamos à publicidade e às notícias do dia. A agressão é, de facto,ainda mais violenta que noutros lados, oferecemo-nos de pés e mãos atados às coordenadassocio-políticas, a um tipo de modelização sem o qual as sociedades industriais capitalistas nãopoderiam funcionar.

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