O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

download O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

of 44

Transcript of O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    1/44

    O DEVER DO ADVOGADO

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    2/44

    Presidente da RepblicaFernando Henrique Cardoso

    Ministro da CulturaFrancisco Correa Weffort

    Fundao Casa de Rui Barbosa

    PresidenteMario Brockmann Machado

    Diretor ExecutivoLus Eduardo Conde

    Diretor do Centro de PesquisasRachel Teixeira Valena

    Chefe do Setor RuianoRejane M. M. de Almeida Magalhes

    Chefe do Setor de EditoraoMarielza Dalla Costa Fontes

    RevisoAdriano da Gama Kury e Ivette Sanches do Couto

    ISBN: 85-7004-229-9Barbosa, Rui, 1849-1923

    O dever do advogado. Carta a Evaristo de Morais / Rui Barbosa ; prefcio de Evaristo de Morais Filho. 3. ed. rev. Rio de Janeiro : Edies Casa de Rui

    Barbosa, 2002.56 p.1. Barbosa, Rui Deveres dos advogados. I. Fundao

    Casa de Rui Barbosa. II. Morais Filho, Evaristo de, pref.III. Ttulo

    CDU 347.965.3

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    3/44

    Rui Barbosa

    O Dever do Advogado

    Carta a Evaristo de Morais

    Prefcio de Evaristo de Morais Filho

    Rio de Janeiro

    2002

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    4/44

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    5/44

    Sumrio

    Prefcio de Evaristo de Morais Filho ........................................ 9

    O Dever do Advogado

    Consulta ................................................................................. 29

    Carta ...................................................................................... 33

    Respeitosas Observaes ......................................................... 47

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    6/44

    O DEVER DO ADVOGADO

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    7/44

    Prefcio de

    EVARISTO DE MORAIS FILHOda Academia Brasileira de Letras

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    8/44

    11

    1. No se trata aqui de fazer histria criminal nem de cuidar dospormenores do homicdio que ocorreu s 14h30min do dia 14 deoutubro de 1911, sbado, defronte do Clube Naval, na esquina daRua Baro de So Gonalo com a Avenida Central, denominaesantigas das atuais avenidas Almirante Barroso e Rio Branco. Omi-tiramos at as identidades da vtima e do principal acusado, se asmesmas j no constassem da consulta de Evaristo de Morais e daresposta de Rui Barbosa. Deve existir um certo pudor nem sem-pre observado em revolver fatos delituosos do passado, mormen-te quando sobre eles j se pronunciou a Justia em ltima e defini-tiva instncia, com deciso irrecorrvel passada em julgado, apsamplo debate e anlise minuciosa da prova. O processo est encer-rado para sempre, todos os personagens do drama acusado, vti-ma, advogados, juzes, jurados, promotores, delegados, testemu-nhas tambm j encerraram suas vidas para sempre. Deles srestam o p e a lembrana. Todos merecem respeito diante do irre-medivel e das posies que assumiram quando vivos, no nos sen-do lcito fazer reviver na opinio pblica um crime que aconteceuh 73 anos e que poca foi motivo de grande escndalo, estampa-do nas primeiras pginas dos jornais, esgotando-lhes as edies,com reportagens que desciam intimidade das famlias dos seusdois principais protagonistas. Por certo ho de se encontrar vivosmuitos dos seus descendentes, diretos ou colaterais, para os quais oepisdio ainda no foi esquecido, conformados uns, inconformadosoutros, com a deciso judicial. No se deve agora trazer de volta omesmo escndalo nem reabrir as chagas de acusao e defesa. Ambasforam veementes e brilhantes a seu tempo, no poupando argu-mentos nem palavras por vezes rudes e cruis. Pela posio socialdos protagonistas fcil imaginar o farto material que alimentou osensacionalismo que se levantou em torno do crime, ocupando aimprensa por vrios anos, servindo, como autntico folhetim, deleitura diria do pblico do Rio de Janeiro e de todo o pas. Osprincipais jornais da Capital chegaram a dedicar longos rodaps eeditoriais ao trgico episdio, quase sempre contrrios ao acusado,

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    9/44

    12

    no s diante da primeira impresso do crime, como igual e princi-palmente por motivos partidrios. Nenhum juzo foi emitido sempaixo, a todos faltava serenidade, que somente comeou a voltaraos espritos com o desenrolar do processo e a apresentao dasprovas. E, como sempre acontece nesses casos, nem todos se con-venceram, como veremos ao longo destas linhas introdutrias. Acarta de Evaristo de Morais deixa bem claros os motivos, de ticaprofissional, que o levaram a consultar Rui Barbosa, seu chefe po-ltico, se devia ou no aceitar o patrocnio da causa, diante de algu-mas opinies contrrias de correligionrios de ambos.

    2. Para desapontamento de muitos de nossos leitores, no seraqui relatada a parte propriamente criminal, que deu ensejo con-sulta de Evaristo e resposta de Rui. Assim, seguiremos os pr-prios termos das duas peas que se iro ler. Nenhuma delas se fixaou demora nos fatos delituosos, deles referindo o mnimo necess-rio ao tema central, que de deontologia profissional. E o poder-amos fazer amplamente, pois at de documentos ntimos, manti-dos por Evaristo, ainda dispomos em nosso poder. De resto, po-ca, tais cartas foram publicadas tanto pela defesa como pela acusa-o, procurando cada qual dar ao texto a interpretao que maislhe favorecesse.1

    O motivo do crime foi passional, nele envolvidos, como vtima,o capito-de-fragata Lus Lopes da Cruz, comandante do Cruza-dor da Armada nacional, oTiradentes, que regressava de uma mis-so na Repblica do Paraguai, e, como principal acusado, o mdi-co e intendente municipal, Dr. Jos Mendes Tavares, tido comomandante do crime, praticado por Quincas Bombeiro e Joo daEstiva. A esposa do primeiro havia voluntariamente abandonado o

    1 Para quem se interessar pelos aspectos factuais do delito e pelos argumentos da acusao

    e da defesa, alm da imprensa da poca, pode consultar as seguintes fontes de informao,que sero por ns utilizadas neste prefcio: Evaristo de Morais,Reminiscncias de um RbulaCriminalista, Rio de Janeiro: 1922, pp. 241-58; Evaristo de Morais,O Processo MendesTavares, Rio de Janeiro: 1912, 68 pp.; Esmeraldino Bandeira,O Processo Mendes Tavares(Discurso de acusao), Rio de Janeiro: 1912, 70 pp.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    10/44

    13

    lar do casal, negando-se a ele voltar a despeito das numerosas car-tas que o marido lhe endereara, at com promessa de perdo eesquecimento. Endereara carta tambm ao acusado, ameaando-o de morte e o desafiando para um duelo entre os dois at morte.Estavam as coisas neste p, num clima de tenso e emocionalmenteexaltado, quando se deu o crime. A opinio pblica, levada pelonoticirio da imprensa, que simplesmente relatava os ltimos fa-tos, ficara do lado da vtima, abandonado Mendes Tavares pr-pria sorte, tido como o piv da tragdia, sem o apoio dos correligi-onrios da vspera, adeptos da candidatura militar de Hermes daFonseca. Evaristo de Morais foi advogado somente de MendesTavares, ficando a defesa dos outros acusados por conta do Dr.Seabra Jnior, condenados a longos anos de cadeia, vindo um delesa falecer na penitenciria onde cumpria a pena. Evaristo lograra aabsolvio de seu constituinte em trs jris sucessivos, conseguin-do desvincul-lo da acusao de mandante ou de participante nocrime.

    Como presidente do jri funcionou o Dr. Jos Jaime de Miranda,sendo o Dr. Edmundo de Oliveira Figueiredo o promotor pblico.Como auxiliares da acusao encontravam-se os Drs. EsmeraldinoBandeira, famoso criminalista e homem pblico, e Lus Franco. Nadefesa alinharam-se os Drs. Evaristo de Morais e Flores da Cunha.

    Como o declara na carta, antigo colega no Mosteiro de S. Bentode Mendes Tavares, j s 16 horas do dia do crime fora Evaristoapanhado em casa, onde se encontrava doente, para assistir ao de-poimento do mdico no 5 Distrito Policial, na Rua Senador Dantas,ao qual se apresentara espontaneamente em companhia do majorZoroastro, seu colega no Conselho Municipal.

    3. Aqui abandonamos a linha descritiva das ocorrncias dos fatosque cercaram o crime propriamente dito, para enveredarmos pelosmotivos e antecedentes da consulta de Evaristo a Rui. Ningum me-lhor do que o primeiro para os expor, num retrato fiel do crescendode perplexidade que o levou a dirigir-se ao seu chefe poltico:

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    11/44

    14

    Foi o caso que aqui vou rememorando aquele em que vi aminha humilde advocacia mais objetada, mais denegrida, quasese me recusando odireito de defender .

    Surgiram as primeiras objees do lado poltico. Fora Tavareso mais esforado dos sustentadores da candidatura Hermes,militando sob as ordens de Pinheiro Machado. Eu, como notrio, me empenhara na campanha civilista, ao lado de RuiBarbosa. Da tiraram dois bons correligionrios meus, e dosmais graduados do Civilismo, a concluso de que me no eralcito defender aquele patife, que tanto mal nos fizera noEngenho Velho e no Andara Grande.

    Retorqui-lhes com a amizade do tempo do colgio e com ainabalvel confiana do acusado; mas, francamente, fiquei umtanto indeciso.

    Por outro lado, o jornal em que eu vinha colaborando, desdehavia uns oito anos, oCorreio da Manh, abrira seu rodap daprimeira pgina a uma crnica forense em que se sustentava adoutrina da indefensibilidade de certas causas criminais,

    epitetando-se deamoral a respectiva advocacia. Entendi deverretirar a minha colaborao doCorreio, no obstante atenciosasobservaes do Dr. Leo Veloso, que dirigia o jornal, na ausnciado Dr. Edmundo Bittencourt.

    E, para descanso da minha conscincia, dirigi um apelo aRui Barbosa, como chefe do Civilismo e como mestre daprofisso. Tardou a resposta, que recebi datada de 26 de outubro,verdadeiro e incomparvel presente de aniversrio. Foi publicadano Dirio de Notcias, de 3 de novembro, sob o ttulo O Deverdo Advogado. Constitui uma lio de tica profissional, toeloqente, como irretorquvel.

    Impressionado com as apreciaes tendenciosas dos jornais,no conhecendo os elementos da defesa, se afigurava a Rui quea causa era difcil, mas no hesitava em me aconselhar queprosseguisse no seu patrocnio, sem embargo de quaisquer

    consideraes de antagonismo poltico.2

    2 Evaristo de Morais,Reminiscncias, pp. 244-6. A data da carta de Rui coincidiu como aniversrio de seu destinatrio, nascido a 26 de outubro de 1871. Completava Evaristo 40anos de idade, quando a recebeu. De fato, no lhe poderia ter sido dado melhor presente.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    12/44

    15

    A campanha contra Mendes Tavares fora terrvel, chegando-sea anunciar que ele havia sido assassinado na Brigada Policial, emcujo estado-maior se encontrava preso. Certo jornal encarava at asua morte como justificada. Apesar de uma ou outra atitude parti-cular de algum oficial, inclusive com ameaa ao advogado do prin-cipal acusado, escreve Evaristo de Morais que tal ameaa norepresentava, a seus (meus) olhos, a gloriosa Marinha Nacional,cuja ao coletiva cumpre reconhecer foi, no caso, a mais dis-creta possvel.

    4. No caso especial da consulta, convm repetir, alm do aspec-to aparentemente repugnante do crime, praticado por dois conhe-cidos elementos de baixa reputao, destacava-se o seu carter po-ltico-partidrio. A campanha civilista de Rui no ano de 1910, comocandidato Presidncia da Repblica, fora um divisor de guas, jque do outro lado se colocava o Marechal Hermes da Fonseca,sobrinho de Deodoro, tendo Pinheiro Machado como seu princi-pal cabo poltico. Alm da luta civil-militar, como passou hist-ria, dava-se tambm o conflito entre a mentalidade liberal e a men-talidade positivista representada pelo Senador do Rio Grande doSul. Hoje, distncia, pouco se pode medir realmente o que signi-ficou a campanha civilista, na tentativa de republicanizar a Rep-blica, de estabelecer uma autntica representao poltica dos esta-dos, do povo e das minorias sufocadas pelo poder central.

    No vamos adotar um maniquesmo primrio e ingnuo, vendoo arcanjo de um lado e o demnio do outro, mas a verdade que ajuventude das escolas deixou-se tomar pelo entusiasmo da mensa-gem de Rui e cerrou fileira a seu lado. Na ausncia de rdio e tele-viso a campanha era feita pela imprensa, pelos comcios na praapblica, deslocando-se Rui para os estados mais prximos da Ca-

    Amigo pessoal de Edmundo Bittencourt, de quem tambm veio a ser advogado, Evaristoescrevia noCorreiopraticamente desde a sua fundao em 1901. Da reunio de seus artigos,de 1903 e 1904, originou-se o livroApontamentos de Direito Operrio, Rio de Janeiro:1905; 2. ed., So Paulo: 1971.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    13/44

    16

    pital Federal, a todos empolgando com a sua palavra e com a suamensagem. Com 16 anos de idade, ao tempo, assim a descreve Al-ceu Amoroso Lima em suasMemrias Improvisadas:

    As campanhas de Rui Barbosa despertaram em ns o poucode nossa vocao poltica. A chamada campanha civilista ficoumarcada em meu esprito. Mas a derrota que a ela se seguiu,com a vitria do militarismo realista daquele tempo, deixou-nos profundamente decepcionados.

    Adiante, contrastando Rui com Pinheiro:De um lado a concepo de uma sociedade burguesa e liberal,

    e, do outro, o caudilhismo, defensor dos senhores da terra, dosgrandes proprietrios rurais, da autocracia, do realismo maisdireto e interesseiro.3

    Pela veemncia da luta entre os partidrios de Rui e os de Hermes,com surpreendente vitria eleitoral do candidato da situao, cujainelegibilidade como diz Evaristo em sua consulta foi ele dosprimeiros a proclamar, bem se compreende os ressaibos que dei-xou. E nem bem havia ainda a faco derrotada assimilado a der-rota, quando um protagonista, que militou com honras e galesna campanha do hermismo contra a ordem civil, precisa dos ser-vios profissionais do adversrio da vspera, a quem to bonsservios devia o civilismo. So palavras do prprio Rui.

    Evaristo havia participado ativamente da campanha, com arti-gos pela imprensa e com a palavra nos comcios pblicos. Viajaracom Rui para Minas, gozando da sua intimidade, vendo aumentarnessa convivncia a profunda admirao que tinha pelo Conselhei-ro. O que mais o surpreendera, no entanto, foi o apetite de Rui,homem de muita energia num corpo aparentemente frgil. Segun-

    3 Alceu Amoroso Lima,Memrias Improvisadas, Petrpolis: 1973, pp. 54 e 80.Em Poltica e Letras, Margem da Histria Repblicana, Rio de Janeiro: 1924, pp.

    255-8, traa Alceu um arguto perfil comparativo das duas figuras que no futuro ho deprovavelmente encarnar melhor que quaisquer outras, esses trinta anos de Repblica: RuiBarbosa e Pinheiro Machado. Na tragdia de 1911, Evaristo e Tavares representariam aovivo, dramaticamente, a interseco dessas duas figuras. Da a perplexidade em que seencontrou o patrono do principal acusado.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    14/44

    17

    do relato seu, sempre que se referia a essa viagem, grande era oespanto que o possua por ver Rui, de fsico minguado, conseguirespao para as duas suculentas pores de tutu mineira, de quecostumava se servir.

    H um trecho de Lus Viana Filho que d bem a imagem viva doque se constituiu a campanha civilista, destacando o entusiasmoque causou, os nomes de alguns seguidores de Rui e sobretudo odivisionismo ideolgico que marcou na sociedade brasileira:

    Seria impossvel descrever o entusiasmo com que o pasacorreu ao toque de rebate. De todas as partes, mesmo das maislongnquas, chegavam expressivas demonstraes desolidariedade ao candidato civil. Era contagioso. Os partidriosdo Marechal, salvo os militares e os polticos, sentiam-seacabrunhados e era furtivamente, como se praticassem algumaao m, que manifestavam as suas opinies: Todo o pas,dividido como numa guerra civil , notou um contemporneo,vibrava de entusiasmos ardentes e dedios ferozes .

    Depressa, Rui viu-se cercado duma pliade brilhante dediscpulos, quase todos jovens polticos, talentosos, e quepreferiram obeau-geste certeza da vitria. Abriram assim sombra do Mestre o caminho para a notoriedade. Pedro Moacir, Joo Mangabeira, Cincinato Braga, Evaristo de Morais, GaleoCarvalhal, Antunes Maciel, seriam alguns dos cireneus dispostosa auxiliarem-no a carregar a cruz.4

    A est, com grifos nossos, a que extremos de sentimentos che-gou a chamada campanha civilista, elevada altura de verdadeiracruzada. No estamos emitindo um juzo de valor, mas somenteatestando uma realidade factual, segundo os dados da histria. Bastadizer que o captulo seguinte dasReminiscnciasleva o seguintettulo: Reflexos da luta entre o hermismo e o civilismo Um jul-gamento tumultuoso em Minas. O crime dera-se em Rio Branco,

    4 Lus Viana Filho,A Vida de Rui Barbosa, 8. ed., Rio de Janeiro: 1977, p. 323. Sobreassunto recente: Amrico Jacobina Lacombe, Sombra de Rui Barbosa, Rio de Janeiro:FCRB, 1984, pp. 48-53;Bibliografia sobre a Campanha Civilista, Rio de Janeiro: FCRB,1981, com introduo de Francisco de Assis Barbosa.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    15/44

    18

    no estado de Minas, morto o Dr. Carlos Soares de Moura pelosolicitador Silvino Viana, defendido a princpio por Carlos Peixo-to, que viajara para a Europa. O prprio Rui solicitara de Evaristoque aceitasse a defesa do correligionrio no foro daquela cidade, enela quase morreu.

    Vale recordar, margem do tema principal, que a Revoluo de30 se fez ainda sob a bandeira do liberalismo civilista de Rui, como lema Representao e justia da Aliana Liberal. Em manifestode 1929 Color invocava a Campanha Civilista e Getlio Vargas aela tambm se refere em discurso de 3 de outubro de 1931, mas aformao de ambos era castilhista. Vitoriosa a revoluo, logo de-saparece o liberalismo do programa inicial, e vence o esprito auto-ritrio de Pinheiro Machado. Era mais uma interseo tardia decivilismo e hermismo, desta vez no plano poltico.5

    5. Recebida a carta de Evaristo a 20 de outubro, apesar de data-da de 18, no se furta Rui em respond-la, e o faz no espao deuma semana. J a 26 recebida a resposta, tanto mais meritriaquanto lhe seria fcil exculpar-se por motivos de doena ou de faltade tempo. Acudiu, a despeito de se tratar de um adversrio da vs-pera, adversrio de prestgio eleitoral e de inegvel talento poltico,colocados ambos a servio de Hermes da Fonseca. Consulta seuforo ntimo e, indiferente a aplausos ou a censuras, opina com amaior iseno, segundo a melhor doutrina e a sua prpria experi-ncia pessoal, na qual se encontram antecedentes de grande notori-edade, participando ele na defesa de desafetos polticos. Numero-sos so os exemplos ao longo de sua vida. J alguns anos anteshavia dito, a este propsito: Nunca vi oprimidos os meus adver-srios, que me no inclinasse para eles.6

    Trs pargrafos da resposta de Rui lhe resumem com perfeio

    5 Respectivamente:A Revoluo de 30 Textos e documentos, Editora Universidadede Braslia, tomo I, 1982, p. 220, e Getlio Vargas,A Nova Poltica do Brasil , vol. I, Rio de Janeiro, 1938, p. 155.

    6 Lus Viana Filho, Rui, Defensor dos Adversrios,Forum, Revista do Instituto dosAdvogados da Bahia, 1973, pp. 235-40.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    16/44

    19

    a doutrina, desde ento sempre repetida entre ns e tornada verda-deiro dogma da deontologia profissional do advogado. Ei-los:

    Ora, quando quer e como quer que se cometa um atentado,a ordem legal se manifesta necessariamente por duas exigncias,a acusao e a defesa, das quais a segunda por mais execrandoque seja o delito, no menos especial satisfao da moralidadepblica do que a primeira. A defesa no quer o panegrico daculpa, ou do culpado. Sua funo consiste em ser, ao lado doacusado, inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais.

    Se a enormidade da infrao reveste caracteres tais, que o

    sentimento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela emviolenta revolta, nem por isto essa voz deve emudecer. Voz doDireito no meio da paixo pblica, to susceptvel de se demasiar,s vezes pela prpria exaltao da sua nobreza, tem a missosagrada, nesses casos, de no consentir que a indignao degenereem ferocidade e a expiao jurdica em extermnio cruel.

    ..............................................................................................

    Recuar ante a objeo de que o acusado indigno dedefesa, era o que no poderia fazer o meu douto colega, semignorar as leis do seu ofcio, ou tra-las. Tratando-se de umacusado em matria criminal, no h causa em absolutoindignade defesa . Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando,resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial sejadecisiva, falta, no s apur-la no cadinho dos debates judiciais,seno tambm vigiar pela regularidade estrita do processo nassuas mnimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia,maior ou menor, da liquidao da verdade, cujo interesse emtodas se deve acatar rigorosamente.

    Tudo mais que se contm no escrito de Rui exemplos histri-cos, citaes doutrinrias, argumentos de autoridade nada acres-centa de qualitativamente novo s suas palavras aqui transcritas. Atese est exposta com clareza e convico, embora, como sedepreende de diversas passagens, estivesse ele convencido da cul-pabilidade do acusado, da hediondez do seu crime e praticamenteda sua condenao. Havia uma semana que a tragdia ocorrera,

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    17/44

    20

    quando lhe chegou a consulta, e Rui com justificvel antipatiapelo ru somente conhecia os fatos que vinham narrados pelaimprensa. Todas essas circunstncias, sem dvida, ainda mais en-grandecem o desprendimento e a elevao moral de Rui, que maisuma vez saa em socorro de um desafeioado seu.

    As ltimas palavras de Rui, no entanto, apesar da sua tese hu-manitria, como que constituam um prejulgamento do acusado.Valem repetidas, para que se tenha bem presente, na continuidadedo raciocnio, a dureza de sua opinio:

    H de lhe ser rdua a tarefa. No vejo na face do crime, cujoautor vai defender, um trao, que destoe da sua repugnanteexpresso, que lhe desbaste o tipo da refinada maldade.

    Fala-me em elementos, de que est de posse, os quais muitodiminuem, seno excluem, sua responsabilidade. Queira Deusque se no iluda. Essa responsabilidade se acentua, no conjuntodas provas conhecidas, com uma evidncia e uma proeminncia,que se me afiguram insusceptveis de atenuao.

    Nem por isso, todavia, a assistncia do advogado, na espcie, de menos necessidade, ou o seu papel menos nobre.Ora, convenhamos, se, por um lado, socorria-se Evaristo com a

    autoridade do seu chefe poltico para partir em defesa de um ferre-nho adversrio da vspera; por outro, fora da tese abstrata, coloca-va-se a mesma autoridade de todo contra o seu cliente no casoconcreto. O escrito, porm, constitua um todo inteirio,

    inextricvel, e assim mesmo Evaristo o fez publicar quando po-deria guard-lo para si, para tranqilidade de sua conscincia noDirio de Notcias, de 3 de novembro, uma semana aps t-lo rece-bido. Tirada em folheto, foi a carta doutrinadora como a de-nomina Evaristo distribuda aos milhares, mas j agora acrescidade respeitosas observaes, em que mostrava o equvoco em quelaborou o Mestre, supondoprovada a responsabilidade de

    Tavares.7

    7 Evaristo de Morais,Reminiscncias, p. 246.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    18/44

    21

    O inesperado da tese de Rui, nas circunstncias, reboou comoum tiro na opinio pblica, na imprensa e na prpria doutrina ju-rdica nacional. No mesmo ano, o Prof. Cndido de Oliveira Filhoa ela se referiu, transcrevendo-a em parte, em seu compndio deprtica forense, em acrscimo da sua afirmao:

    Probe-se aos advogados: II) Sustentar e defender causasnotoriamente injustas o que se entende somente das causascveis e no a respeito das criminais.8

    Dez anos mais tarde, diante da grande procura do folheto que

    havia sido publicado por Evaristo, foi ele novamente editado peloInstituto Bibliogrfico Brasileiro, com o seguinte prefcio:O Instituto Bibliogrfico Brasileiro, que tem como Diretor-

    Gerente o mais antigo biblifilo brasileiro, enceta a reimpressode monografias braslicas esgotadas, com a carta do abalizadojurisconsulto e mxima mentalidade brasileira (seno universal),Senador Rui Barbosa, sobreO Dever do Advogado , na qual,respondendo ao advogado Dr. Evaristo de Morais, salienta asdoutrinas e pensamentos nos casos de conscincia jurdica.

    A nota, sem dvida, muito mal-redigida, mas nela h a desta-car a consagrao do mito em torno do nome de Rui, a caminhodos 71 anos de idade e a dois de sua morte. Sempre foi dos hbitosdos brasileiros a exclamao basbaque diante da inteligncia e daerudio, como que andando cada qual com um aparelho medidorde QI, a traar a escala de talentos nacionais. Somente agora, nosltimos anos, numa sociedade mais crtica e menos conformista, que se vai desfazendo essa atitude de permanente admirao poralguns pr-homens. Os prprios termos da carta de Evaristo e dottulo das suas observaes do bem uma idia da reverncia inte-lectual que se devia a Rui, quase incompreensvel para as geraesque no lhe chegaram a sentir a influncia pessoal e direta. Noraro via seu nome acompanhado degenial , e ningum o igualou at

    8 Cndido L. M. de Oliveira Filho,Curso de Prtica do Processo, Rio de Janeiro: 1911/ 12, p. 211.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    19/44

    22

    hoje entre ns nessa admirao e respeito, quer entre amigos, querentre adversrios. Sua fama tornou-se um mito, como que enchen-do o Brasil de orgulho por ser ele brasileiro.9

    6. Convm notar, entretanto, que poca Evaristo ainda no sehavia formado em curso superior, era rbula como ele prprio seautodenomina nas suasReminiscncias. Diplomou-se somente aos45 anos de idade, em 1916, pela Faculdade de Direito de Niteri,apelidada de Teixeirinha (Faculdade Teixeira de Freitas), forman-do-se bacharel como toda gente. O ponto central do seu discur-so de formatura foi exatamente o tema da carta de 1911, terminan-do, como no poderia deixar de ser, por citar a opinio de Rui a eleendereada. Bastam alguns pequenos trechos, significativos:

    A alguns dos novos advogados deve, j, ter ocorrido, em suaperturbadora perplexidade, aquilo que o profundo Picardchamou o paradoxo do advogado; quero dizer: deve-lhes tersucedido refletir no suposto absurdo de poder um homem seconservar honesto e digno,embora defendendo causas ms egrandes criminosos...

    Quanto s causas qualificadas ms, de natureza civil, nome abalano a discutir, aqui, o grave ponto, remetendo os colegaspara a aludida obrinha de Picard, em a qual, se me afigura, oproblema resolvido. Muito me apraz, porm (e, decerto, todagente compreender por qu), comunicar-lhes, perante tohonroso auditrio, o meu sentir e o meu pensar acerca da defesados criminosos, sejam grandes ou pequenos, tenham por si oucontra si a formidvel opinio pblica.

    Em princpio, a defesa de direito para todos os acusados,no havendo crime, por mais hediondo, cujo julgamento nodeva ser assistido da palavra acalmadora, ou retificadora, ouconsoladora, ou atenuadora, do advogado.

    Aps duas pginas e meia sobre a arbitrariedade da ausncia deadvogado, mormente durante a Revoluo Francesa, cuja lei no

    9 Para a medida dessa admirao, mas, tambm, para as calnias de que foi vtima,veja-se, de Amrico Jacobina Lacombe, Rui o Homem e o Mito, in Sombra, cit., pp.157-73.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    20/44

    23

    concedia defensores aos conspiradores, volta aos dias e sua expe-rincia de advogado criminal, aconselhando seus colegas:

    Tomai cuidado com os impulsos do vosso brio profissional,com o impetuoso cumprimento do vosso dever, nesses casos depreveno coletiva: se seguirdes tais impulsos, tereis de suportardesde os insultos mais soezes at manhosa dissimulao dasvossas razes e dos vossos argumentos de defesa. Por pouco vosdiro que tivestes parte na premeditao do crime e que, comdefend-lo, s buscais o lucro pecunirio, o prmio ajustado davossa cumplicidade na urdidura do plano criminoso.

    Mas, se um dia tiverdes de vos defrontar com esta situao de um lado o infeliz que exora, splice, o vosso patrocnio, deoutro lado, a matilha que anseia para o despedaar sem processo recordai-vos das sentenciosas palavras desse que no tem igualno seio da nossa classe, desse que por todos os mestres reputadoMestre e cujo nome fora suprfluo citar, de novo. Recebi-as eu,como lio suprema e definitiva, em um dos mais angustiosostranses da minha carreira forense.10

    A pgina seguinte toda ela transcrio de longos trechos dacarta de Rui, valendo destacar um trecho que no foi por ns refe-rido neste prefcio:

    O furor dos partidos tem posto muitas vezes os seus adversriosfora da lei . Mas, perante a humanidade, perante o cristianismo,perante o direito dos povos civilizados, perante as normasfundamentais do nosso regmen, ningum, por mais brbaros quesejam os seus atos, decai do abrigo da legalidade. Todos se achamsob a proteo das leis, que, para os acusados, assenta na faculdadeabsoluta de combaterem a acusao, articularem a defesa eexigirem a fidelidade ordem processual. Esta incumbncia, atradio jurdica das mais antigas civilizaes a reservou sempreao ministrio do advogado. A este, pois, releva honr-lo, no sarrebatando perseguio os inocentes, mas reivindicando, no

    julgamento dos criminosos, a lealdade s garantias legais, aeqidade, a imparcialidade, a humanidade.

    10 Evaristo de Morais,Reminiscncias, pp. 290-1, 293

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    21/44

    24

    7. Os ensinamentos de Rui constam hoje, pacficos e tranqilos,do Cdigo de tica Profissional do Estatuto da Ordem dos Advo-gados do Brasil (Lei n 4.215, de 27 de abril de 1963), em seuartigo 87, XII:

    So deveres do advogado:XII recusar o patrocnio de causa que considere imoral ou

    ilcita, salvo a defesa em processo criminal.11

    Com a mesma clareza e convico, voltava Rui ao tema na cle-bre Orao aos Moos, ao final do discurso de paraninfado lido na

    Faculdade de Direito de So Paulo pelo Prof. Reinaldo Porchat, a29 de maro de 1921. Entre os mandamentos do advogado, mere-ceram destaque:

    No colaborar em perseguies ou atentados, nem pleitearpela iniqidade ou imoralidade. No se subtrair defesa dascausas impopulares, nem das perigosas, quando justas. Ondefor apurvel um gro, que seja, de verdadeiro direito, noregatear ao atribulado o consolo do amparo judicial.12

    8. Foi exatamente em assim procedendo apurando o gro quelhe restava do verdadeiro direito, no regateando a Mendes Tavareso consolo do amparo judicial que Evaristo obteve a absolviodo ru em trs julgamentos sucessivos pelo Tribunal do Jri. Foiexatamente fazendo verificar a prova, apurando-a no cadinho dosdebates judiciais, vigiando a regularidade estrita do processo nasmnimas formas, que Evaristo chegou liquidao da verdade, con-seguindo que passasse em julgado a deciso absolutria do seu cli-ente. Fizeram-se procedentes e acatadas rigorosamente as respeito-sas observaes feitas ao Mestre.

    11 Nehemias Gueiros,A Advocacia e o seu Estatuto, Rio de Janeiro/So Paulo: 1964,pp. 31-2; Rui A. Sodr,A tica Profissional e o Estatuto do Advogado, 2. ed., So Paulo:1977, pp. 190-1, 639.

    Cf. tambm: J. des Cressonires,Entretiens sur la Profession dAvocat et les RglesProfessionelles, Bruxelas: 1925, p. 28.

    12 Rui Barbosa,Orao aos Moos, Edio comemorativa do centenrio de nascimentodo grande brasileiro, So Paulo: 1949, p. 35.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    22/44

    25

    Esmeraldino Bandeira fora veemente, rude, no poupando o rude uma acusao cerrada, concluindo por pedir a sua condenao,nestes termos dramticos:

    O pas em que um crime como este ficasse impune ou fosseperdoado seria um pas em via de dissoluo por lhe faltarem asduas qualidades bsicas de toda organizao social amoralidade e a justia.

    A absolvio do ru presente importaria na condenao desua vtima e, certo, Srs. Jurados, no ireis e no ireis adicionar morte do corpo de Lopes da Cruz o homicdio de sua alma.

    Em nome da lei, pois, fazei justia, condenando Jos MendesTavares.13

    To grande era o prestgio popular de Mendes Tavares que,quando preso da primeira vez, antes do primeiro julgamento, con-seguira ganhar uma eleio. Depois de exaustiva prova documen-tal, exames periciais, testemunhos a favor do ru do General BentoRibeiro (prefeito da Capital), do Dr. Osrio de Almeida e da pr-pria Superiora do Colgio Sion, de Petrpolis, obteve Evaristo queficasse proclamada a nenhuma responsabilidade criminal do acu-sado.

    Ao fim da terceira absolvio, parte da imprensa censurou overedicto, chegando algumas pessoas, como acontece sempre nes-tes casos, a sugerir a supresso do jri, como aconteceu com o Dr.Pires e Albuquerque, juiz seccional. A isto respondeu Alcindo

    Guanabara com um longo artigo emO Pas, de 28 de julho de1916, sob o ttulo de A Supresso do Jri. Tendo assistido atodo o julgamento, depois de elogiar muito a figura do patrono doprincipal acusado, conclui Alcindo:

    O jri absolveu o Sr. Mendes Tavares. No era um jricomposto de cafajestes, nem de desclassificados sociais;compunham-no sete cidados conspcuos, que leram o processo,

    que ouviram a esmagadora defesa proferida pelo Sr. Evaristo de

    13 Esmeraldino Bandeira,O Processo Mendes Tavares, p. 70.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    23/44

    26

    Morais, e que julgaram em conscincia. Eu tambm o absolveria.O Sr. Dr. Pires e Albuquerque, juiz ntegro e modelo, seconhecesse o processo, tambm o absolveria. No por essasentena que devemos retrogradar at supresso do jri.

    A instituio do jri diga-se de passagem foi mantida pelaConstituio republicana de 1891, da qual foi Rui um dos princi-pais artfices. Defendeu-a em comentrios ao texto constitucional eem mais de uma oportunidade. Em vez de suprimi-la, dizia Rui,convm aperfeio-la:

    Precisamos de melhorar a composio do jri, como demelhorar a do eleitorado, atuando-lhe sobre a qualificao,filtrando-o, decantando-lhe as impurezas. Alis, ainda com estas,as argies fundadas contra o jri no so maiores, entre ns,do que as queixas merecidas contra a magistratura togada. [...]Quando o tribunal popular cair, a parede mestra da justiaque ruir.14

    9. O que importa fixar, no entanto, colocando o ltimo par-grafo neste prefcio, que j se faz longo, a significao e a impor-tncia da carta de Rui Barbosa na histria do Direito Criminalbrasileiro. Com a sua autoridade, imps a sua doutrina a todosdesde logo como verdadeiro trusmo jurdico repetida, citada, atreferida sem haver sido lida, por ouvir dizer.15 Feliz foi Evaristo deMorais ao consult-lo, embora declarasse que seguiria risca o seuveredicto, que lhe poderia ser contrrio. Associou para sempre oseu nome ao do seu grande dolo, seu heri desde a mocidade, quan-

    14 In Roberto Lyra,A Obra de Rui Barbosa em Criminologia e Direito Criminal , Riode Janeiro: 1949, pp. 161-6.

    15 Roberto Lyra a transcreve na ntegra, na obra citada na nota anterior, pp. 191-201.Para Leib Soilbelman,Enciclopdia do Advogado, 4. ed., Rio de Janeiro: 1983, p. 354,verbete Todo acusado tem o direito de defesa, Rui Barbosa na sua inexcedvel carta conhecidacomo Dever do Advogado, esgotou o assunto.

    Curiosa ironia da histria: adversrios ferrenhos de 1910, Mendes Tavares e Evaristo deMorais acabaram por ser correligionrios sob a bandeira da Aliana Liberal e os dois foramos representantes do Distrito Federal na sesso comemorativa da vitria da Revoluo,realizada em princpios de 1931, no Teatro Lrico, no Rio de Janeiro.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    24/44

    27

    do, ainda rapazinho, se alinhou entre os que combatiam a escravi-do e a monarquia. Mais tarde participou da campanha civilista,

    voltando a associar-se a Rui na campanha presidencial de 1919,sentando-se ao lado do candidato na conferncia, sobre a questosocial e poltica, de 20 de maro daquele ano, para cuja elaboraomuito colaborou, como o comprovam os documentos deixados,muito honestamente, pelo prprio morador da Rua S. Clementeem seus arquivos.

    O Dever do Advogado, apesar de pequeno em suas dimenses,

    constitui um clssico na matria de tica profissional entre ns,merecendo por isso, e sempre, novas reedies para conhecimentodos que ainda no tiveram a grata oportunidade de l-lo.

    Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 1985.

    Evaristo de Morais Filho

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    25/44

    Consulta

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    26/44

    31

    Venerando mestre e preclaro chefe.Para soluo dum verdadeiro caso de conscincia solicito vossa

    palavra de ordem , que risca cumprirei. Deveis ter, como toda agente, notcia, mais ou menos completa, do lamentvel crime deque acusado o Dr. Mendes Tavares. Sabeis que esse moo filiadoa um agrupamento partidrio que apoiou a desastrada candidatu-ra do Marechal Hermes. Sabeis outrossim que, ardente admiradorda vossa extraordinria mentalidade e entusiasmado pela lio decivismo que destes em face da imposio militarista, pus-me deci-didamente ao servio da vossa candidatura.

    Dada a suposta eleio do vosso antagonista, tenho at hojemantido e pretendo manter seguramente as mesmas idias. Ocor-reu todavia o triste caso a que aludi.

    O acusado Dr. Jos Mendes Tavares foi meu companheiro du-rante quatro anos, nos bancos escolares. No obstante o afasta-mento poltico, sempre tivemos relao de amistosa camaradagem.Preso, angustiado, sem socorro imediato de amigos do seu grupo,apelou para mim, solicitando meus servios profissionais.

    Relutei, no princpio; aconselhei desde logo, fosse chamado ou-tro patrono, parecendo-me estar naturalmente indicado um profis-sional bem conhecido, hoje deputado federal, que supus muito amigodo preso. Essa pessoa por mim apontada escusou-se causa.

    A opinio pblica, diante de certas circunstncias do fato, alar-mou-se estranhamente, chegando-se a considerar o acusadoindig-no de defesa ! No me parece se deva dar foros de justia a essaferocssima manifestao dos sentimentos excitados da ocasio. Oacusado insiste pela prestao dos meus humildes servios. Eu es-tou de posse de elementos que em muito diminuem, seno exclu-em, sua responsabilidade no caso. Recorro respeitosamente vos-sa alta autoridade e vos instituo, com grandssima e justificada con-fiana, juiz do meu proceder: devo, por ser o acusado nosso adver-srio, desistir da defesa iniciada?

    Prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laos que me pren-dem bandeira do civilismo, cometo uma incorreo partidria?

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    27/44

    32

    Espero de vossa generosidade resposta pronta e que sirva comosentena inapelvel, para acalmao de minha conscincia.

    Venerador e respeitador

    Evaristo de Morais

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    28/44

    Carta

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    29/44

    35

    Rio, Vila Maria Augusta, 26 de outubro de 1911.

    Dr. Evaristo de Morais:

    S agora posso acudir sua carta de 18 do corrente, que mechegou s mos dois dias depois.

    Recusando-me ao apelo, que a sua conscincia dirige minha,cometeria eu um ato de fraqueza, que no se concilia com a minhamaneira de sentir. Quando se me impe a soluo de um caso jur-dico ou moral, no me detenho em sondar a direo das correntesque me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livre-mente a minha opinio, agrade ou desagrade a minorias, ou maio-rias.

    Na hiptese, tanto mais sem liberdade me acharia, para me fur-tar consulta, que me enderea, quanto ela est resolvida por ante-cedncias de grande notoriedade na minha vida.

    Tendo assumido o patrocnio da causa do principal acusado docrime da Avenida, cujo protagonista militou com honras e galesna campanha do hermismo contra a ordem civil, v-se o meu pre-zado colega, a quem to bons servios deve o civilismo, diante dascensuras que por isso lhe irrogam, em presena destas questes queformula e me dirige:

    Devo,por ser o acusado nosso adversrio , desistir da defesainiciada?

    Prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laos que meprendem bandeira do civilismo, cometo uma incorreopartidria?

    O meu senso ntimo no hesita na resposta.Os partidos transpem a rbita da sua legtima ao, toda a vez

    que invadam a esfera da conscincia profissional, e pretendam con-trariar a expresso do Direito. Ante essa tragdia, por tantos ladosabominvel, de que foi vtima o Comandante Lopes da Cruz, onico interesse do civilismo, a nica exigncia do seu programa, que se observem rigorosamente as condies da justia. Civilismo

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    30/44

    36

    quer dizer ordem civil, ordem jurdica, a saber: governo da lei, con-traposto ao governo do arbtrio, ao governo da fora, ao governoda espada. A espada enche hoje a poltica do Brasil. De instrumen-to de obedincia e ordem, que as nossas instituies constitucio-nais a fizeram, coroou-se em rainha e soberana. Soberana das leis.Rainha da anarquia. Pugnando, pois, contra ela, o civilismo pugnapelo restabelecimento da nossa Constituio, pela restaurao danossa legalidade.

    Ora, quando quer e como quer que se cometa um atentado, aordem legal se manifesta necessariamente por duas exigncias, aacusao e a defesa, das quais a segunda, por mais execrando queseja o delito, no menos especial satisfao da moralidade p-blica do que a primeira. A defesa no quer o panegrico da culpa,ou do culpado. Sua funo consiste em ser, ao lado do acusado,inocente, ou criminoso, a voz dos seus direitos legais.

    Se a enormidade da infrao reveste caracteres tais, que o senti-mento geral recue horrorizado, ou se levante contra ela em violen-ta revolta, nem por isto essa voz deve emudecer. Voz do Direito nomeio da paixo pblica, to susceptvel de se demasiar, s vezespela prpria exaltao da sua nobreza, tem a misso sagrada, nes-ses casos, de no consentir que a indignao degenere em ferocida-de e a expiao jurdica em extermnio cruel.

    O furor dos partidos tem posto muitas vezes os seus adversriosfora da lei . Mas, perante a humanidade, perante o cristianismo,perante os direitos dos povos civilizados, perantes as normas fun-damentais do nosso regmen, ningum, por mais brbaros que se-jam os seus atos, decai do abrigo da legalidade. Todos se achamsob a proteo das leis, que, para os acusados, assenta na faculda-de absoluta de combaterem a acusao, articularem a defesa, e exi-girem a fidelidade ordem processual. Esta incumbncia, a tradi-o jurdica das mais antigas civilizaes a reservou sempre ao mi-nistrio do advogado. A este, pois, releva honr-lo, no s arreba-tando perseguio os inocentes, mas reivindicando, no julgamen-to dos criminosos, a lealdade s garantias legais, a eqidade, a im-

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    31/44

    37

    parcialidade, a humanidade.Esta segunda exigncia da nossa vocao a mais ingrata. Nem

    todos para ela tm a precisa coragem. Nem todos se acham habili-tados, para ela, com essa intuio superior da caridade, quehumaniza a represso, sem a desarmar. Mas os que se sentem coma fora de proceder com esse desassombro de nimo, no podeminspirar seno simpatia s almas bem-formadas.

    Voltaire chamou um dia, brutalmente, paixo pblica a de-mncia da canalha. No faltam, na histria dos instintos malig-nos da multido, no estudo instrutivo da contribuio deles paraos erros judicirios, casos de lamentvel memria, que expliquema severidade dessa aspereza numa pena irritada contra as iniqida-des da justia no seu tempo. No de hoje, com a opinio educada edepurada que reina sobre os pases livres, essas impresses popula-res tm, por via de regra, a orientao dos grandes sentimentos.Para elas se recorre, muitas vezes com vantagens, das sentenas dosmaiores tribunais.

    Circunstncias h, porm, ainda entre as naes mais adianta-das e cultas, em que esses movimentos obedecem a verdadeiras alu-cinaes coletivas. Outras vezes a sua inspirao justa, a sua ori-gem magnnima. Trata-se de um crime detestvel que acordou aclera popular. Mas, abrasada assim, a irritao pblica entra emrisco de se descomedir. J no enxerga a verdade com a mesmalucidez. O acusado reveste aos seus olhos a condio de monstrosem trao de procedncia humana. A seu favor no se admite umapalavra. Contra ele tudo o que se alega, ecoar em aplausos.

    Desde ento comea a justia a correr perigo, e com ele surgepara o sacerdcio do advogado a fase melindrosa, cujas dificulda-des poucos ousam arrostar. Faz-se mister resistir impacincia dosnimos exacerbados, que no tolera a serenidade das formas judi-ciais. Em cada uma delas a sofreguido pblica descobre um fato impunidade. Mas , ao contrrio, o interesse da verdade o que exi-ge que elas se esgotem; e o advogado o ministro desse interesse.Trabalhando por que no falea ao seu constituinte uma s dessas

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    32/44

    38

    garantias da legalidade, trabalha ele, para que no falte justianenhuma de suas garantias.

    Eis por que, seja quem for o acusado, e por mais horrenda queseja a acusao, o patrocnio do advogado, assim entendido e exer-cido assim, ter foros de meritrio, e se recomendar como til sociedade.

    Na mais justa averso dela incorreu a causa do infeliz, cuja de-fesa aceitou o meu ilustrado colega. Aceitando-a, pois, o eloqenteadvogado corre ao encontro da impopularidade. um rasgo desacrifcio, a que um homem inteligente como ele se no abalana-ria, sem lhe medir o alcance, e lhe sentir o amargor. As considera-es, expendidas na sua carta, que levaram a faz-lo, so das maisrespeitveis. Nenhum corao de boa tmpera lhas rejeitar.

    A cabea esmagada pela tremenda acusao estava indefesa. Ohorror da sua misria moral lhe fechara todas as portas. Todos osseus amigos, os seus co-associados em interesses polticos, os com-panheiros de sua fortuna at o momento do crime, no tiveram acoragem de lhe ser fiis na desgraa. Foi ento que o abandonadose voltou para o seu adversrio militante, e lhe exorou o socorroque Deus com a sua inesgotvel misericrdia nos ensina a no ne-gar aos maiores culpados.

    O meu prezado colega no soube repelir as mos, que se lheestendiam implorativamente. A sua submisso a esse sacrifcio honraaos seus sentimentos e a nossa classe, cujos mais eminentes vultosnunca recusaram o amparo da lei a quem quer que lho exorasse.Lachaud no indeferiu a splica de Troppmann, o infame ecrudelssimo autor de uma hecatombe de oito vtimas humanas,traioeiramente assassinadas sob a inspirao do roubo.

    A circunstncia, cuja alegao se sublinha na sua carta, de sero acusado nosso adversrio, no entra em linha de conta, senopara lhe realar o merecimento a esse ato de abnegao. Em maisde uma ocasio, na minha vida pblica, no hesitei em correr aoencontro dos meus inimigos, acusados e perseguidos, sem nem se-quer aguardar que eles mo solicitassem, provocando contra mim

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    33/44

    39

    desabridos rancores polticos e implacveis campanhas demalsinao, unicamente por se me afigurar necessrio mostrar aosmeus conterrneos, com exemplos de sensao, que acima de tudoest o servio da justia. Diante dela no pode haver diferena en-tre amigos e adversrios, seno para lhe valermos ainda com maispresteza, quando ofendida nos adversrios do que nos amigos.

    Recuar ante a objeo de que o acusado indigno de defesa,era o que no poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leisdo seu ofcio, ou tra-las. Tratando-se de um acusado em matriacriminal, no h causa em absolutoindigna de defesa . Ainda quan-do o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova: eainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, no s apur-la nocadinho dos debates judiciais, seno tambm vigiar pela regulari-dade estrita do processo nas suas mnimas formas. Cada uma delasconstitui uma garantia, maior ou menor, da liquidao da verdade,cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente.

    A este respeito no sei que haja divergncias, dignas de tal nome,na tica da nossa profisso. Zanardelli, nos seus clebres discursosaos advogados de Brescia, acerca da advocacia, depois de estabele-cer como, em matria civil, se faz cmplice da iniqidade o patronociente e consciente de uma causa injusta, para logo ali se d pressaem advertir:

    Em princpio, todavia, no pode ter lugar nas causas penais,onde ainda aqueles que o advogado saiba serem culpados,nos podem masdevem ser por ele defendidos. Mittermaier observaque os devemos defender, at no caso que deles tenhamos,diretamente, recebido a confisso de criminalidade. Algumasleis germnicas estatuem que nenhum advogado se podersubtrair obrigao da defesa com o pretexto de nada acharque opor acusao. No juramento imposto pela lei genebrinade 11 de julho de 1836, juramento no qual se compendiam osdeveres do advogado, entre outras promessas, que se lhe exigem,se encontra a de no aconselhar ou sustentar causa, que lheno parea justa,a menos que se trate da defesa de um acusado .Ante a justia primitiva, pois, o patrocnio de uma causa m,

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    34/44

    40

    no s legtimo, seno ainda obrigatrio ; porquanto ahumanidade o ordena, a piedade o exige, o costume o comporta,a lei o impe (LAvvocatura, pp. 160-1).

    Na grande obra de Campani sobre a defesa penal se nos deparaa mesma lio. Nos mais atrozes crimes, diz ele,

    por isso mesmo que sobre o indivduo pesa a acusao de umhorrvel delito, expondo-o a castigos horrveis, que maisnecessidade tem ele de assistncia e defesa (La Difesa Penale,vol. I, pp. 39-41).

    O Professor Christian, anotando osComentriosde Blackstone(IV, 356), diz:Circunstncias pode haver, que autorizem ou compilam um

    advogado a enjeitar a defesa de um cliente. Mas no se podeconceber uma causa, que deva ser rejeitada por quantos exeramessa profisso; visto como esse procedimento de todos osadvogados tal preveno excitaria contra a parte, que viria aimportar quase na sua condenao antes do julgamento.

    Por mais atrozes que sejam as circunstncias contra um ru ,ao advogado sempre incumbe o dever de atentar por que o seucliente no seja condenado seno de acordo com as regras eformas, cuja observncia a sabedoria legislativa estabeleceu comotutelares da liberdade e segurana individual.1

    As falhas da prpria incompetncia dos juzes, os erros do pro-cesso so outras tantas causas de resistncia legal da defesa, pelas

    quais a honra da nossa profisso tem o mandato geral de zelar; e,se uma delas assiste ao acusado, cumpre que, dentre a nossa classe,um ministro da lei se erga, para estender o seu escudo sobre o pre-judicado, ainda que, diz o autor de um livro magistral sobre estesassuntos, da resulte escapar o delinqente (William Forsyth.Hortensius, pp. 388-9, 408-9).

    Nesse tratado acerca da nossa profisso e seus deveres, escrito

    com a alta moral e o profundo bom-senso das tradies forenses da1 Christian apud Blackstone.Commentaries on the Laws of England in Four Books,

    book 4, p. 356.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    35/44

    41

    Gr-Bretanha, se nos relata o caso da censura articulada pelo Lord Justice-Clerk, no processo de Gerald, ru de sedio, que, em 1794,requeria s justias de Edimburgo lhe nomeassem defensor, quei-xando-se de lhe haverem negado os seus servios todos os advoga-dos, a cuja porta batera. Ainda sem a interferncia deste tribu-nal, admoestou o magistrado, a quem se dirigia a petio,

    nenhum gentlemandevia recusar-se a defender um acusado, f ossequal fosse a natureza do seu crime ; whatever the nature of hiscrime might be.

    De tal modo calou nos nimos essa advertncia, que Howell, oeditor dosProcessos de Estado, endereou uma nota ao decano daFaculdade dos Advogados Henry Erskine, irmo do famoso LordErskine, o Demstenes do foro ingls, nico do seu tempo a quemcedia em nomeada, e Henry Erskine se apressou em responder queo acusado o no procurara:

    Tivesse ele solicitado o meu auxlio, e eu lhe assistiria [...]pois sempre senti, como o Lord Justice-Clerk, que se no deverecusar defesa a um acusado,qualquer que seja a natureza doseu crime ; whatever be the nature of his crime(William Forsyth.Hortensius, p. 388).

    Do que a esse respeito se usa e pensa nos Estados Unidos, temosdocumento categrico no livro escrito sobre a tica forense por umeminente magistrado americano, o Juiz Sharswood da SupremaCorte da Pensilvnia. Professando, na universidade desse estado,sobre os deveres da nossa profisso, ensinava ele aos seus ouvintes:

    O advogado no somente o mandatrio da parte, senotambm um funcionrio do tribunal. parte assiste o direito dever a sua causa decidida segundo o direito e a prova, bem comode que ao esprito dos juzes se exponham todos os aspectos doassunto, capazes de atuar na questo. Tal o ministrio, quedesempenhava o advogado. Ele no moralmente responsvelpelo ato da parte em manter um pleito injusto, nem pelo errodo tribunal, se este em erro cair, sendo-lhe favorvel nojulgamento. Ao tribunal e ao jri incumbe pesar ambos os lados

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    36/44

    42

    da causa; ao advogado, auxiliar o jri e o tribunal, fazendo oque o seu cliente em pessoa no poderia, por mngua de saber,experincia ou aptido. O advogado, pois, que recusa aassistncia profissional,por considerar, no seu entendimento, acausa como injusta e indefensvel, usurpa as funes, assim dojuiz, como do jri (An Essay on Professional Ethics, pp. 83-6).

    Pginas adiante (89-91) refora o autor ainda com outras consi-deraes esta noo correntia, que ainda por outras autoridadesamericanas vamos encontrar desenvolvida com esclarecimentos efatos interessantes (Henry Hardwicke.The Art of Winning Cases.New York, 1896, p. 457, n. XV; Snyder.Great Speeches by Great Lawyers. New York, 1892, p. 372).

    Ante a deontologia forense, portanto, no h acusado, emborao fulmine a mais terrvel das acusaes, e as provas o acabrunhem,que incorra no antema deindigno de defesa . A humanidade exi-ge que todo o acusado seja defendido (Mollot.Rgles de laProfession dAvocat , t. I, p. 92, apud Sergeant. De la Nature Juridique du Ministre de lAvocat , pp. 74-5).

    Lachaud no recusa assistncia da sua palavra a La Pommrais,ladro e assassino, que, depois de ter envenenado friamente a suasogra, envenena com os mesmos requisitos de insensibilidade e per-fdia a mulher que o amava, para se apoderar do benefcio de umseguro, que, com esse plano, a induzira a instituir em nome doamante, cuja celerada traio no suspeitava.

    J vimos que o grande orador forense no se dedignou de patro-cinar a causa de Troppmann. Na crnica do crime no h muitosvultos mais truculentos. De uma assentada; sem dio, sem agravo,por mera cobia de ouro, matara uma famlia inteira: o casal, umadolescente de 16 anos, quatro meninos, dos quais o mais velhocom treze anos e uma criancinha de dois. Pois esse monstro tevepor defensor o advogado mais em voga do seu tempo.

    Nunca, desde o processo Lacenaire, houvera um caso, que le-vasse a indignao pblica a um tal auge. Quando o criminosoescreveu a Lachaud, implorando-lhe que lhe acudisse, esta sua pre-

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    37/44

    43

    tenso de eleger por patrono aquele, a quem ento se comeava achamar, por excelncia o grande advogado, ainda mais irritou aclera popular; e, ao saber-se que ele aceitara a defesa do matadorde crianas, cuja causa a multido queria liquidar, linchando o gran-de criminoso, no se acreditou, protestou-se, tentou-se demov-lo,e deu-se voz de escndalo contra essa honra a to vil aborto daespcie humana.

    Mas ao mundo forense essas imprecaes e clamores no turva-ram a serenidade.

    O advogado, fosse quem fosse, que Troppmann escolhesse,teria, nestas tristes circunstncias, cumprido o seu deverhonestamente, como querem a lei e o regimento da Ordem.

    Lachaud, impassvel ao vozear da ira pblica, apresentou-se comsimplicidade ao tribunal, diz o editor de seus discursos,

    como auxiliar da justia, para ajud-la a se desempenhar dosseu deveres, e,como defensor, para levantar entre o culpado eos ardores da multido uma barreira .2

    A sua orao ali, obra-prima de eloqncia judiciria e consci-ncia jurdica, abre com estes perodos de oiro:

    Troppmann me pediu que o defendesse: um dever o queaqui venho cumprir. Podero t-lo visto com espanto os queignoram a misso do advogado. Os que dizem haver crimes toabominveis, to horrendos criminosos que no h, para eles, amnima atenuante na aplicao da justia, os que assimentendem, senhores, laboram em engano, confundindo, na suagenerosa indignao, a justia com a clera e a vingana. Nopercebem que, abrasados nessa paixo ardente e excitados dacomiserao para com tantas vtimas, acabam por querer quese deixe consumar um crime social, de todos o mais perigoso: osacrifcio da lei. No compreendo eu assim as obrigaes dadefesa. O legislador quis que, ao lado do ru, fosse quem fosse,

    houvesse sempre uma palavra leal e honrada, para conter, quanto

    2 Plaidoyers de Ch. Lachaud , tome second, pp. 257-8.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    38/44

    44

    ser possa, as comoes da multido, as quais, tanto mais terrveisquanto generosas, ameaam abafar a verdade.

    A lei calma, senhores: no tem jamais nem sequer osarrebatamentos da generosidade. Assentou ela que a verdadeno ser possvel de achar, seno quando buscada juntamentepela acusao e pela defesa. Compreendeu que nem tudo estnas vtimas, e que tambm mister deixar cair um olhar sobre oacusado; que justia e ao juiz toca o dever de interrogar ohomem, sua natureza, seus desvarios, sua inteligncia, seu estadomoral. Ao advogado ento disse: Estars barra do Tribunal,l estars com a tua conscincia. [...] O direito da defesa, aliberdade da defesa, confiou-os honra profissional doadvogado, conciliando assim os legtimos direitos da sociedadecom os direitos no menos inviolveis do acusado.

    ..............................................................................................Houve algum dia, senhores, uma causa criminal, que mais

    exigisse a audincia da defesa? Malvadezas sem precedente [...]e no meio desta emoo geral, clamores exaltados a exigirem,

    contra o culpado, severidades implacveis. No avaliais,senhores, que a palavra de um defensor vos deve acautelar desseperigo? Jurastes no sacrificar os interesses da sociedade, nemos do acusado; prometestes ser calmos, inquirir da verdade foradas paixes tumultuosas da multido; jurastes deixar falar avossa conscincia, quando se recolher, depois de tudo ouvido.

    Pois bem! eu vo-lo exoro, impondo silncio s vossasconscincias, tende essa coragem, e esperai!3

    Onze anos antes os auditrios de Paris se haviam agitado aosdebates de um processo, que ainda mais comovera a sociedade fran-cesa.

    Um atentado extraordinrio estremecera a nao toda, abalan-do o mundo poltico at os fundamentos.

    O Imprio escapara de soobrar num momento, fulminado, naspessoas do Imperador e da Imperatriz, pela audcia de um tenebrosoconspirador.

    3 Plaidoyers de Ch. Lachaud , tome second, pp. 282-3.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    39/44

    45

    A mais miraculosa das fortunas salvara do excdio a NapoleoIII, com o chapu varado por uma bala e o prprio rosto escoriado.

    Mas os estragos em torno dele operados foram medonhos.Dilacerado o carro imperial pelas estilhas da carga homicida, os

    animais ficaram vasquejando, num charco de sangue, de envoltacom uns poucos de agonizantes: lanceiros, gendarmes, lacaios, tran-seuntes, alcanados todos pela ao exterminadora das bombas.

    A estatstica dessa devastao instantnea contou 511 ferimentos,148 feridos e oito mortos. Dificilmente se poderia improvisar deum s golpe maior nmero de infortnios e sofrimentos. O fulminatode mercrio obrara maravilhas de instantaneidade na supresso devidas inocentes; e a influncia maligna dos projetis empregados re-vestira um carter singularmente desumano, condenando os sobre-viventes, pela natureza das chagas abertas nos tecidos lacerados, acruciadores tormentos, ou molstias incurveis.

    Tal se apresentara a obra da sanguinria conjura, que imortali-zou com uma aurola negra o nome de Felice Orsini.

    As intenes, que a haviam animado, no menos sinistras. Poucoimportava, diz o historiador do Segundo Imprio,

    que os estilhaos, projetando-se por toda a parte, juntassem grande vtima votada morte um sem conto de vtimas obscuras.

    Pouco importava, contanto que se imolasse o Imperador.Reinaria ento a anarquia em Frana, mediante a sua repercussoa anarquia na Itlia, e destarte, se realizariam os pavorosos

    sonhos dessas imaginaes doentias e pervertidas (De la Gorce,II, 219).Pois bem: a esse crime, de to infernal aspecto e to brbaras

    entranhas, no faltou, no julgamento sem conforto de esperana, amo piedosa de um advogado, e esse o maior dos contemporneos,aquele que exercia ento sobre a sua classe o principado da elo-qncia e da celebridade profissional.4

    Todos se inclinaram com admirao e respeito a esse ato de reli-

    4 Jlio Favre.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    40/44

    46

    giosa solenidade. Ningum tolheu a defensiva ao execrado ru, cujaaltivez de recriminaes levou o primeiro presidente do tribunal adeclarar-lhe que s o respeito s liberdades da defesa o obrigara atolerar similhante linguagem; e foi sobre a cabea do rprobo, es-coltado de espectros, que a inspirada orao de Jlio Favre ousouacabar, apelando das durezas da justia da terra para as eqidadesda clemncia do cu. Para cumprirdes o vosso dever sem paixonem fraqueza, dizia ele em acentos de Bousset,

    no haveis mister, senhores, as adjuraes do Sr. Procurador-Geral. Mas Deus, que a todos nos h de julgar; Deus, ante quemos grandes deste mundo comparecem tais quais so, despojadosdo squito dos seus cortesos e lisonjeiros; Deus que mede, eles, a extenso das nossas culpas, a fora dos impulsos que nosdesvairam, a expiao que os resgata; Deus pronunciar, depoisde vs, a sua sentena: e talvez no recuse o perdo, que oshomens houverem tido por impossvel na terra.5

    Bem v, pois, o meu colega: no h de que se arrepender. Temconsigo a lio geral e os melhores exemplos da nossa gloriosa pro-fisso.

    H de lhe ser rdua a tarefa. No vejo na face do crime, cujoautor vai defender, um trao, que destoe da sua repugnante expres-so, que lhe desbaste o tipo da refinada maldade.

    Fala-me em elementos, de que est de posse, os quais muitodiminuem, se no excluem, sua responsabilidade.6 Queira Deusque se no iluda. Essa responsabilidade se acentua, no conjuntodas provas conhecidas, com uma evidncia e uma proeminncia,que se me afiguram insusceptveis de atenuao.

    Nem por isso, todavia, a assistncia do advogado, na espcie, de menos necessidade, ou o seu papel menos nobre.

    Rui Barbosa

    5 Favre.Discours du Batonnat , pp. 169-70.

    6 Na Revista Universitria, de onde foi copiado o parecer, est: muito lhe diminuemseno excluem, a responsabilidade.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    41/44

    Respeitosas Observaes

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    42/44

    49

    V-se bem no final desta substanciosa resposta que vale porum tratado de tica profissional a impresso causada na alma doGrande Brasileiro pelas notcias aleivosas com que os interessadosprocuram denegrir a reputao do Dr. Mendes Tavares, a pretextode expor a ao criminosa em que ele se achou envolvido. Genero-so e altrusta, dotado de uma afetividade que s comparvel, nagrandeza, sua extraordinria sabedoria, o Mestre naturalmentese sentia naquela ocasio,dias aps o fato , presa da emoo que seassenhoreou de todos os espritos mesmo os superiores e quenecessariamente deveria refletir na apreciao do triste aconteci-mento, que a malevolncia cercara de invencionices perversas...

    Da o ter suspeitado que defesa se antepunham enormssimasbarreiras; da o ter afirmado que a nossa tarefa seria das mais r-duas, por no oferecer o processo ensanchas para exculpao doacusado.

    Em suas prprias palavras, entretanto, se nos depara aberturapara estas respeitosas observaes.

    Disse Rui Barbosa:No vejo na face do crime, cujo autor vai defender, um trao,

    que destoe da sua repugnante expresso, que lhe desbaste o tipoda refinada maldade. Fala-me em elementos, os quais muitodiminuem, se no excluem, sua responsabilidade. Queira Deusque se no iluda. Essa responsabilidade se acentua, no conjuntodas provas conhecidas, com uma evidncia e um proeminncia,

    que se me afiguram insusceptveis de atenuao.De fato, se chamarmosconjunto das provas conhecidas (como

    em boa-f as classificou o insigne e incomparvel jurisconsulto), ascircunstncias que a imprensa deu como apuradas; se aceitarmos,para formao do nosso juzo, puramente o que vinha sendo divul-gado desde a data do crime at a data da memorvel resposta, tere-mos de convir na justeza daquele acerto. Mas, infelizmente, os au-tos no contm aquele conjunto, nem qualquer coisa compacta,firme, segura, que lembre, de longe, o acervo de monstruosidadesat ento publicadas.

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    43/44

    50

    O processo Mendes Tavares feito em juzo resultou a maisformal contestao do que fora prematuramente feito nas colunasda imprensa jornalstica, iludida por falsas informaes, induzidaem erro por impresses do primeiro momento.

    Foi assim que, com documentos irrecusveis, se chegou certe-za de no ter podido o Dr. Tavares premeditar, nem ajustar o cri-me, que se lhe imputa; pois sua ida ao Conselho Municipal e conse-qente passagem pela Avenida Rio Branco foram motivadas poruma situao imprevista, por uma satisfao de dever poltico, nointeresse do povo e da administrao municipal.

    Foi assim que ficou fora de dvida que o Dr. Tavares se dirigirapara o Conselho no automvel da Prefeitura, posto sua disposi-o, ltima hora, pelo General Prefeito, e no qual bem se perce-be no poderia ter sido acompanhado por capangas ou guarda--costas...

    Averiguado, tambm, ficou ter o inditoso comandante Lopes daCruz, que voltara do Ministrio da Viao, permanecido, em fren-te ao edifcio do Conselho Municipal, como espera de algum,exatamente naquele fatal dia 14 de outubro, s 2 horas da tarde,pouco mais ou menos.

    Outrossim se provou evidncia, que, desde agosto, vinha omesmo comandante perseguindo o Dr. Tavares, buscando-o portoda a parte, indagando do seu paradeiro, manifestando-se dispos-to a dar soluo violenta sua crise conjugal, da qual fazia respon-svel o mesmo mdico.

    Demonstrou-se, por maneira insofismvel, que no fora o Dr.Tavares o instigador dos atos de Madame Lopes da Cruz, com aqual o marido vivera em alternativas de paz e guerra, propenso aperdes e transigncias e a violncias fartamente anunciadas.

    Deixou-se evidenciado,sempre com a intimao da parte con-trria , que, pelo menos,quatro testemunhas de acusao mentiramdesfaadamente, umas inventando circunstncias anteriores, ou-tras forjando circunstncias concomitantes ao crime; que a provaapurada na Polcia no foi com a devida imparcialidade, visto como

  • 8/6/2019 O DEVER DO ADVOGADO - Rui Barbosa

    44/44

    se desprezaram depoimentos valiosos, pela simples razo de seremcontrrios ao sistema de acusao preestabelecido; que outra dasmais importantes testemunhas no se encontrava em condies dedepor com preciso e segurana.

    E, no decorrer do sumrio da culpa, ficou patente oarranjo daprova, a acomodao jeitosa dos testemunhos, que, mesmo assim,se revelam contraditrios em extremo e imprestveis para gerarconvico e determinar sentena condenatria.

    Hoje, estamos muito longe do ponto em que estvamos quandoRui Barbosa, em um surto de justificada indignao, escrevia aspalavras transcritas.

    luz dos debates, pelos quais ansiamos, diante dos juzes popu-lares, em cuja serena justia confiamos, ser desfeito, destrudo,pulverizado, o conjunto de supostas provas alardeadas em outubrode 1911 e que tamanha impresso causaram.

    Evaristo de Morais